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capa

Inovações
cerve jeiras
Investimento em pesquisa e em
novas tecnologias melhora a
qualidade da cerveja brasileira
e os custos de produção

Yuri Vasconcelos

18 | janeiro DE 2017
As opções da bebida
mais apreciada pelos
brasileiros aumentaram
nos últimos anos no
país, muito pela
produção de mais de
400 microcervejarias

O
Brasil é o terceiro maior produtor doenças e de melhor qualidade industrial. Dificil-
e um dos grandes consumidores mente, sementes de cevada importadas vingam no
de cerveja do mundo. São fabrica- país. As variedades desenvolvidas aqui são muito
dos 13,8 bilhões de litros por ano, competitivas comercialmente.”
o que coloca o país no ranking glo- Quando foi criado, o programa pretendia subs-
bal atrás apenas da China e dos Estados Unidos. tituir a cevada usada pelas cervejarias que, na-
Na última década, o consumo aumentou a uma quela época, era toda importada. Esse objetivo
taxa média de 5% ao ano, com destaque para o ainda não foi atingido. A produção nacional de
segmento de cervejas artesanais, que teve uma 300 mil toneladas por ano (t/ano) do grão, de
evolução anual em torno de 20%. Com um mer- acordo com a Embrapa, atende a 43% da neces-
cado tão robusto, várias iniciativas inovadoras sidade da indústria brasileira para produção de
são fomentadas nas universidades, cervejarias, malte, nome dado ao cereal germinado seco usa-
institutos de pesquisa e por agricultores. Unidos do na fabricação da bebida (ver o infográfico com
em um esforço conjunto para melhorar a qualida- as principais etapas do processo de fabricação da
de do produto e reduzir os custos de fabricação, cerveja). Para suprir a demanda dos fabricantes,
eles são responsáveis por um leque de inovações o Brasil compra cerca de 400 mil t/ano de ceva-
relacionadas tanto ao processo produtivo quanto da de produtores argentinos, europeus, norte-
ao cultivo no país dos principais ingredientes da -americanos e canadenses.
bebida, além da água: cevada, lúpulo e levedu-
ra. “A indústria cervejeira brasileira é formada NOVAS FRONTEIRAS
por mais de 50 complexos fabris com tecnologia Gramínea parecida com o trigo, a cevada (Hor-
de padrão mundial”, diz Paulo Petroni, diretor- deum vulgare) é originária do Oriente Médio. Foi
-executivo da Associação Brasileira da Indústria domesticada inicialmente na antiga Mesopotâ-
da Cerveja (CervBrasil), entidade que reúne os mia, região onde hoje estão o Iraque e a Síria. É
maiores fabricantes do país. uma cultura anual, com a semeadura no Brasil de
Um exemplo do esforço inovativo do setor maio a julho e a colheita entre setembro e novem-
ocorre com a cevada, principal fonte de amido bro. Na última década, o plantio se concentrou
da bebida. Mais de 90% do grão plantado no país no Rio Grande do Sul e Paraná, estados que têm
é fruto de pesquisa nacional. Criado há 40 anos, características climáticas propícias ao pleno de-
o programa de melhoramento genético liderado senvolvimento da planta. Juntos, respondem por
pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária mais de 90% da produção nacional. Por meio das
(Embrapa) já lançou no mercado 30 novos cul- pesquisas da Embrapa, a lavoura tem ampliado
tivares de cevada cervejeira adaptados às condi- suas fronteiras e hoje já é possível produzir o grão
ções de clima e solo. “Com os nossos cultivares, em escala comercial em São Paulo, Goiás e Minas
conhecidos pela sigla BRS, a produtividade mais Gerais. “Lançamos até 2013, em parceria com a
do que triplicou. Nos anos 1970, colhíamos por Malteria do Vale, de Taubaté [SP], as variedades
volta de 1 tonelada de cevada por hectare e agora BRS, Sampa, Manduri e Itanema para cultivo nas
chegamos a 3,5 toneladas por hectare”, informa o lavouras irrigadas de São Paulo”, conta Euclydes
engenheiro-agrônomo Euclydes Minella, respon- Minella. “Em São Paulo, responsável por cerca
sável pelo programa na Embrapa Trigo, em Passo de 5% da produção do grão, 100% das plantações
léo ramos chaves

Fundo (RS). “As novas variedades do grão que são formadas por cultivares da Embrapa.”
desenvolvemos ajudaram a consolidar a lavoura A cooperação entre a Embrapa e produtores,
de cevada cervejeira. Hoje, temos cultivares mais maltarias (fábricas que transformam a cevada em
produtivos, com perfil superior de resistência a malte) e fabricantes de cerveja, segundo Minel-

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Lúpulo cultivado em Ela tem uma folha no formato de palma


Campos do Jordão e cresce se enrolando em fios. Atinge 6
(à esq.) e plantação
de cevada (acima):
metros de altura e, no auge de seu de-
cultivares da Embrapa senvolvimento, cresce até 30 centímetros
atendem a 43% da por dia. Por ser uma cultura típica de re-
produção brasileira giões de clima temperado do hemisfério
de cerveja
Norte, ela nunca se adaptou às condi-
ções do país, que importa todo o lúpulo
usado pelas cervejarias nacionais – em
la, está na base do sucesso do programa torno de 2,4 mil toneladas por ano, ao
Embrapa de melhoramento da cevada. custo de cerca de US$ 35 milhões. Até
“As quatro maltarias instaladas no país poucos anos atrás, a produção nacional
– duas da Ambev, no Rio Grande do Sul, de lúpulo era inexistente, mas o trabalho
uma da Cooperativa Agrária Industrial, O lúpulo, que de pesquisadores e pequenos produtores
em Guarapuava [PR], e uma da Malteria está mudando esse cenário.
do Vale, em São Paulo – são parceiras da dá o amargor “Ter um lúpulo produzido no Brasil é
Embrapa”, informa Minella. Outro fator importante não apenas para não depen-
que explica o êxito da iniciativa é a tec-
à bebida, tem dermos mais de sua importação, mas,
nologia por trás da criação dos novos dificuldade em se principalmente, para formação de uma
cultivares. “Pelo método tradicional de escola cervejeira nacional”, diz o enge-
melhoramento genético, um novo culti- adaptar à pouca nheiro-agrônomo Felipe Francisco, que
var leva pelo menos seis anos para fixar desde 2012 estuda a planta. Dono de uma
suas características genéticas. Depois variação da luz consultoria agrícola com sede em Curiti-
disso, são necessários mais quatro anos ba (PR), ele pesquisou o lúpulo durante
em testes de campo para avaliação de
solar ao longo o mestrado concluído há dois anos na
rendimento, da qualidade do grão e de do ano no Brasil Universidade Federal do Paraná (UFPR).
resistência a doenças”, explica Minella. Além de baixas temperaturas – essenciais
Na Embrapa Trigo, os cientistas usam para que a trepadeira brote –, outro de-
a técnica de haplodiploidização, com o safio para o cultivo no país é o tempo de
desenvolvimento in vitro de plantas deri- Assim como a cevada, o lúpulo (Hu- exposição diária à luz solar. “No Brasil,
vadas de gametas (células reprodutivas), mulus lupulus), outro ingrediente es- o fotoperíodo, ou seja, a duração do dia,
portadoras da metade do genoma, que de sencial na receita da cerveja, também varia pouco ao longo do ano. E isso não é
forma espontânea ou artificial dá origem é alvo de intensa pesquisa agronômica. bom para a planta”, diz Francisco.
a linhagens duplo-haploides. “Assim, Responsável pelo amargor da bebida, a O pesquisador explica que, para o lú-
alcançamos uma nova linhagem pura planta é uma trepadeira de origem eu- pulo produzir em quantidade e qualida-
geneticamente em apenas uma geração, ropeia, muito difícil de ser cultivada no de desejada, no tempo certo, é necessário
ao invés de seis ou mais com o processo país. Apenas as flores da planta fêmea, haver uma variação no tempo de expo-
convencional, obtendo um novo cultivar ricas em resinas amargas e óleos essen- sição ao sol no decorrer de seu ciclo de
em sete anos.” ciais, entram na composição da bebida. crescimento, de um mínimo de 9,5 ho-

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1 MALTEAÇÃO 2 CONVERSÃO DO AMIDO 3 PRODUÇÃO DO MOSTO
A cevada precisa ser Durante o processo de O malte é misturado à água e,
transformada em malte. malteação, são liberadas eventualmente, a adjuntos
Para isso, o grão é molhado enzimas que converterão o cervejeiros (cereais não
e começa a brotar. Nesse amido em açúcar. Dependendo maltados, como milho e arroz),
ponto é colocado em uma do processo de secagem, o formando o mosto. Esse caldo
estufa para secar e parar malte ganha aroma e coloração é aquecido para desencadear
de germinar para cada tipo de cerveja algumas reações enzimáticas

7 ENVASE 6 FILTRAGEM 5 FERMENTAÇÃO 4 ADIÇÃO DO LÚPULO


Garrafas e latas passam pela A bebida passa por um E MATURAÇÃO O mosto é filtrado e fervido
pasteurização, processo de processo de separação Depois adiciona-se a levedura para, depois, receber
aquecimento e resfriamento, de impurezas e materiais que transforma os açúcares do o lúpulo, responsável pelo
para ampliar a validade da particulados, entre eles mosto em álcool. Em seguida, amargor da bebida. É usado
bebida. Nos barris de chope, leveduras residuais. Ao final na maturação, as reações in natura ou em pellet,
fotos 1 rodrigo veraldi 2 fabio colombini  infográfico ana paula campos  ilustração pedro hamdan

para consumo rápido, não é da filtragem, o líquido químicas irão moldar o aroma um granulado cilíndrico
necessária a pasteurização torna-se transparente e o sabor definitivo da cerveja e compactado da flor

ras de luz solar por dia a um máximo de Há dois anos, Francisco presta con- Foi por um lance do acaso que ele teve
14,5 horas. “Ao perceber que o período sultoria a agricultores do Rio Grande do sucesso. “Em 2005, iniciei uma lavoura
de insolação está aumentando, a planta Sul, Paraná, Santa Catarina, São Paulo, com sementes de um lúpulo canadense
naturalmente passa a produzir um hor- Rio de Janeiro, Mato Grosso e Bahia para fornecidas por um amigo. Algumas mu-
mônio, chamado giberelina ou GA, que viabilizar produções em pequena escala das cresceram em uma estufa, mas quan-
acelera seu crescimento. Já quando os de lúpulo. “Para nossa surpresa, colhe- do as transferi para o campo nenhuma
dias começam a encurtar – no hemisfé- mos lúpulo nas últimas duas safras. To- delas vingou”, recorda-se Veraldi.
rio Sul, a partir de 21 de dezembro –, a dos com boa qualidade, menos na Bahia O agrônomo jogou o material fora, na
produção de GA diminui e ela começa a e Mato Grosso, com qualidade média mas compostagem de seu sítio, e esqueceu do
florar. Em poucas semanas, em fevereiro aceitável. A produtividade média foi de 1 assunto. Tempos depois, percebeu que
ou março, é hora de colher as flores para tonelada por hectare, cerca de um terço uma trepadeira brotara no local. “Era
produzir o lúpulo”, afirma Francisco. A da europeia, o que não é ruim.” um pé de lúpulo sobrevivente. Ele deve
saída encontrada no Brasil foi “enga- Em São Bento do Sapucaí, município ter sofrido alguma mutação genética que
nar” a planta, simulando o fotoperíodo paulista na serra da Mantiqueira, vizi- o tornou adaptado ao intenso regime de
ideal ao seu desenvolvimento. Para isso, nho a Campos do Jordão, o engenheiro- chuvas da Mantiqueira e resistente ao
o produtor instala refletores na lavoura e, -agrônomo Rodrigo Veraldi também per- ataque de fungos. Foi um feliz acaso bo-
com a luz artificial, cria dias mais longos segue, há mais de uma década, o objetivo tânico”, conta. Veraldi multiplicou esse
e reduz a iluminação quando necessário. de criar um plantio nacional de lúpulo. indivíduo e deu início a um dos primeiros

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Microcervejaria A Tutta Birra, em Piracicaba, cujo mestre-cervejeiro fez doutorado na Esalq, fabrica cinco tipos da bebida

– senão o primeiro – cultivo comercial de o tipo pilsen, no mercado brasileiro, são cantes de cervejas especiais, aquelas com
lúpulo do país em escala muito pequena. 8 quilos de malte e 300 gramas de lúpulo características exclusivas, tais como cor,
Em 2014, a cervejaria nipo-brasilei- para cada 100 litros de cerveja.” aromas e sabores atípicos, produzidas de
ra Brasil Kirin, fabricante das marcas A Brasil Kirin, segundo Mattos, plane- forma artesanal. Com a produção limita-
Schincariol, Devassa, Eisenbahn, entre ja registrar a variedade no Serviço Na- da, essas microcervejarias precisam de
outras, interessou-se pela experiência de cional de Proteção de Cultivares (SNPC), quantidades reduzidas de lúpulo. Atual-
Veraldi e estabeleceu uma parceria para do Ministério da Agricultura, Pesca e mente, elas acabam pagando mais pelo
fomentar a produção. “Nosso objetivo foi Abastecimento (Mapa). Para isso, faz lúpulo importado, que é cotado em dólar,
estimular o cultivo de um lúpulo brasi- análises a fim de definir se realmente se do que os grandes fabricantes, que com-
leiro, contribuindo para o fortalecimento trata de um novo cultivar. “Nossa aposta pram maiores quantidades do produto.
da cultura cervejeira nacional”, conta é que as plantas cruzaram novamente,
o engenheiro químico Rubens Mattos, de forma espontânea, e deram origem a BOOM DAS ARTESANAIS
gerente de Pesquisa e Desenvolvimen- uma nova variedade. Estudos genéticos O Brasil vive uma explosão de micro-
to da Brasil Kirin. Naquele mesmo ano, vão elucidar essa questão”, avalia Mattos. cervejarias. Esse movimento, iniciado
amostras da variedade experimental de O cultivo de lúpulo no país pode bene- no início deste século, ganhou impulso
Veraldi foram usadas em uma edição es- ficiar especialmente os pequenos fabri- nos últimos anos e, segundo a Associação
pecial de 15 anos na Baden Baden, cerve-
jaria da empresa em Campos do Jordão.
“Desde esse primeiro teste, estamos in- Teste de
vestindo continuamente na melhoria da estabilidade
de espuma
produção, fornecendo apoio tecnológico
na Ambev:
e envolvendo cientistas do Japão, sede camada é
da Kirin, e de universidades brasileiras, importante
como USP [Universidade de São Paulo] para preservar
aromas e
e UFPR”, diz Mattos. Em 2015, a cerve-
evitar a
jaria comprou a variedade de Veraldi e oxidação da
expandiu o plantio para outras regiões cerveja
do país. A expectativa é colher até 1.500
quilos de flor em 2017 e lançar uma cer-
veja feita com um lúpulo totalmente na-
cional. Segundo Mattos, a quantidade
de lúpulo e malte varia com o tipo de
cerveja. “Apenas como referência, para

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O laboratório com compostos aromáticos diferentes,
de Pesquisa e assim como outros aspectos organolép-
Desenvolvimento
ticos [percebidos pelo sentidos humanos
da Ambev, em
Guarulhos (SP), como olfato, paladar etc.] do produto”,
analisa o produto afirma o biólogo Cauré Barbosa Portu-
gal, especialista em bebidas fermentadas,
que fez um estágio de pós-doutorado em
processos fermentativos alternativos
da cerveja e da cachaça na Esalq-USP.
“Buscamos isolar e caracterizar outras
espécies de levedura para a elaboração
de cervejas especiais. Nosso grupo de
pesquisa revelou algumas possibilidades
de exploração desses
microrganismos para
produção de bebidas
com novas abordagens
Diferentes de bioaromatização –
incorporação de com-
leveduras postos aromáticos por
vias biológicas, além
para uso na de cervejas funcionais,
fabricação e aquelas com baixo teor
alcoólico e maior con-
a espuma da centração de fibras, vi-
taminas e minerais.”
bebida também Com o bom resul-
tado obtido nas pes-
são objeto quisas, Cauré decidiu
de estudo criar uma empresa pa-
ra oferecer leveduras
customizadas ao mer-
cado de bebidas. “Uma
Brasileira de Microcervejarias (Abracer- Autor de um doutorado na Escola Su- possibilidade inovadora é o emprego de
va), já existem no país por volta de 420 perior de Agricultura Luiz de Queiroz blends de leveduras, que é a utilização de
estabelecimentos do gênero. Juntas, elas (Esalq) da USP sobre envelhecimento mais de um microrganismo no processo
respondem por cerca de 1% do volume de cerveja em barril de madeira, Poleto fermentativo. Algumas proporcionam
consumido no país. “As microcervejarias lembra que outra linha de pesquisa que mais aromas, enquanto outras são mais
oxigenaram o setor cervejeiro nacional. empolga o setor está relacionada à busca neutras. Ao empregar mais de uma le-
Durante anos, as grandes cervejarias fa- por novas leveduras. Durante a fabrica- vedura de forma conjunta ou sequencial
bricaram basicamente um tipo de be- ção da bebida, esses microrganismos de- – primeiro um certo microrganismo e,
bida, a American Stardard Lager, uma sempenham um papel fundamental, o de em seguida, outro –, podemos modular
cerveja leve, de coloração clara e fácil digerir os açúcares presentes no mosto o processo fermentativo e criar uma cer-
de beber. Nos anos 1990, principalmente cervejeiro – como maltotriose, maltose veja diferente, com características pró-
em São Paulo, começou um movimento e glicose –, transformando-os em álcool. prias”, informa o pesquisador. Batizada
de importar cervejas de outros tipos, Mosto é o caldo formado pela cevada e de Smart Yeast (levedura inteligente), a
com sabores mais acentuados, ainda de água, que é aquecido e depois fervido no startup encontra-se em fase de projeto.
forma tímida e restrita a poucos bares e início do processo de fabricação da bebi-
supermercados. Com o surgimento dos da. Historicamente, emprega-se no pro- A estabilidade protetora
pequenos produtores, o portfólio se am- cesso a levedura Saccharomyces cerevisae, A busca por uma cerveja de excelência
pliou e foi lançada uma gama de bebidas mas a tentativa de criar cervejas com di- também tem levado pesquisadores a
que o brasileiro desconhecia: cervejas ferentes perfis tem estimulado especialis- estudar detalhes da estrutura do líqui-
com diferentes teores alcoólicos, novos tas a avaliarem o uso de microrganismos do, como sua espuma. Essa é a linha de
ingredientes, sabores e aromas variados não convencionais que permitam novas pesquisa do engenheiro de alimentos
fotos  Léo ramos chaves

e diversos níveis de amargor”, destaca o abordagens de processamento. Flávio Luís Schmidt, professor da Fa-
biólogo Luís Henrique Poleto, consultor “Leveduras não Saccharomyces têm culdade de Engenharia de Alimentos
e mestre-cervejeiro da A Tutta Birra, suscitado especial interesse na indús- da Universidade Estadual de Campinas
microcervejaria de Piracicaba (SP) que tria por demonstrar bom desempenho (FEA-Unicamp). “O objetivo é melho-
fabrica cinco tipos diferentes de cerveja. fermentativo e capacidade de contribuir rar a estabilidade da espuma da cerveja

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industrializada por meio da adição de adjuntos cervejeiros, uma miríade de
hidrocoloides”, conta Schmidt. Hidro- ingredientes usados na formulação da
coloides são polissacarídeos de alto pe- bebida para substituir alguma propor-
so molecular extraídos de plantas, algas ção do malte. Essas fontes alternativas
ou produzidos por síntese microbiana. podem ser ingredientes sólidos, como
A espuma varia conforme o tipo de cereais não maltados (milho, arroz, trigo,
cerveja e, além de aprisionar aromas e sorgo, aveia e centeio), ou líquidos, entre
perfumes, ela atrasa o processo de oxi- eles xaropes, melados e açúcar da cana
dação, que altera o sabor da bebida, ao ou beterraba. Além de reduzir o custo da
impedir que a luz incida diretamente produção – já que os adjuntos tendem a
sobre o líquido. “Quanto mais estável for ser mais baratos do que o malte da ce-
a espuma, mais tempo ela permanecerá vada –, o uso permite a fabricação de
no copo. As cervejas fabricadas no Brasil, cervejas com sabores e aromas diversos.
com altos níveis de adjuntos não malta- “Aqui em Lorena, estudamos adjuntos
dos, perdem proteína em sua composição não convencionais, diferentes daqueles
e, com isso, estabilidade de espuma”, diz usados pelas grandes cervejarias, como
Schmidt. “O foco do trabalho foi dar ou- o milho e o arroz”, explica o engenheiro
tras opções de estabilização de espuma, químico João Batista de Almeida e Silva,
fora o estabilizante mais comum, o algi- professor de Tecnologia de Bebidas e lí-
nato de propilenoglicol (APG).” der do Laboratório Planta-Piloto de Be-
Os resultados do estudo mostraram que bidas da instituição. O primeiro adjunto
o APG foi o hidrocoloide com melhor de- pesquisado foi o arroz preto, um cereal
sempenho na estabilização da espuma, po- rico em compostos fenólicos e com ele- Bar especializado em
rém, a pectina de alta viscosidade (origina- vados teores de proteína e fibra. “No pro- cervejas artesanais
em São Paulo (acima)
da da camada interna da casca da laranja) cesso convencional de beneficiamento
e a bebida do tipo Dark
e a goma locusta (um tipo de carboidrato desse arroz, verifica-se a quebra de até Lager, com adição de
de origem vegetal), em associação com o 35% dos grãos. Usamos esses resíduos, cacau e açúcar mascavo
APG, também mostraram-se viáveis. sem valor de mercado, como adjunto cer- (à dir.): exemplo da
variedade de gostos
vejeiro. As características aromáticas do
e aromas
O TOQUE DOS ADJUNTOS cereal passaram para a cerveja”, explica
Na Escola de Engenharia de Lorena o pesquisador. O estudo, feito pelo aluno
(EEL-USP) da Universidade de São Pau- de doutorado Claudio Marcelo Andrade,
lo, o foco das pesquisas são os chamados gerou um pedido de patente.

Paixão nacional
Bebida predileta do brasileiro, a cerveja foi trazida ao país pelos holandeses

Uma pesquisa feita pelo Ibope em apontam que esse povo da Não se sabe ao certo quando se
2014 revelou que a cerveja é a bebida Mesopotâmia venerava uma deusa, deu o início da produção da cerveja
mais apreciada pelo brasileiro. No chamada Ninkasi, dedicada à em solo brasileiro, mas um anúncio no
ano anterior, outro levantamento bebida. No Brasil, acredita-se Jornal do Commercio do Rio de Janeiro
mostrou que ela era a bebida que a cerveja chegou em meados de 27 de outubro de 1836 oferecia a
preferida para comemorações no do século XVII, com a colonização bebida por uma fabricante local, a
país. Dados da Associação Brasileira holandesa, pela Companhia das Cervejaria Brasileira. Segundo Santos,
da Indústria de Cerveja (CervBrasil) Índias Ocidentais. “Com a saída as primeiras cervejas industrializadas
indicam que quase 30 mil litros da dos holandeses em 1654, a cerveja surgiram na segunda metade do
bebida são fabricados a cada minuto deixou o país por 150 anos, só século XIX. Foi também nessa época
no país. O setor fatura R$ 70 bilhões reaparecendo entre o final do que foram criadas as duas empresas
por ano, o equivalente a 1,6% do século XVIII e início do XIX”, que dominariam por décadas o
Produto Interno Bruto (PIB) em 2015. escreveu Sérgio de Paula Santos em mercado nacional, a Companhia
A história da cerveja no mundo Os primórdios da cerveja no Brasil Cervejaria Brahma, no Rio, e a
remonta ao tempo dos sumérios, que (Ateliê Editorial). Importada da Companhia Antarctica Paulista. Em
há cerca de 6 mil anos criaram a Inglaterra, a bebida retornou ao país 1999, elas se uniram criando a Ambev,
primeira bebida fermentada à base a partir de 1808, com a chegada da que se tornou, à época, a terceira
de cereais. Achados arqueológicos família real portuguesa ao Brasil. maior indústria cervejeira do mundo.

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Depois da experiência com o arroz Segundo Horn, a crítica às cervejas buscado experiências inovadoras e nós
fotos  Léo ramos chaves

preto, o grupo de Lorena testou na mi- feitas com cereais não maltados baseia- estamos atentos a esses anseios”, con-
crocervejaria da escola outros ingredien- -se na chamada Lei da Pureza ou Rein­ ta Horn. Nos últimos anos, a empresa
tes, entre eles banana, pinhão, quinoa e heitsgebot, instituída na Alemanha em lançou, por exemplo, uma cerveja com
pupunha. Um trabalho recente, liderado 1516. Naquela época, a fim de preservar zero teor alcoólico, uma bebida à base
pela aluna Raquel Aizemberg, visou à pro- a qualidade do produto, cada vez mais de cerveja que pode ser consumida com
dução de dois tipos de cerveja, uma lager popular na Europa, o duque Guilherme gelo, e um líquido puro malte com menos
(clara e leve) e outra ale (escura e gosto IV da Baviera decretou que a bebida de- calorias e carboidratos.
mais forte), usando caldo concentrado veria conter apenas três ingredientes: A fim de ampliar e modernizar o tra-
de cana como adjunto. O estudo foi feito cevada, lúpulo e água – a levedura seria balho feito no CDT, a Ambev investe R$
durante o doutorado de Raquel e parte acrescentada tempos depois, pois não 180 milhões na construção de seu Centro
das análises foram realizadas na Univer- se conhecia esse microrganismo no sé- de Inovação e Tecnologia (CIT), previsto
sidade Católica de Leuven, na Bélgica. “A culo XVI. “Essa lei, na verdade, estabe- para ser inaugurado neste ano no Parque
bebida com 25% de xarope de cana foi a leceu uma reserva de mercado para os Tecnológico da Universidade Federal
que mais agradou. Essa foi a melhor cer- produtores de cevada daquela região da do Rio de Janeiro (UFRJ), na Ilha do
veja que já fizemos”, avalia João Batista, Alemanha. Foi uma grande jogada de Fundão. “Com o CIT, que será um dos
destacando que um pedido de patente marketing que perdura até hoje”, diz o principais polos de inovação cervejeira
associado à elaboração do xarope de cana mestre-cervejeiro, para quem o uso de do mundo, vamos acelerar o processo
já foi depositado no Instituto Nacional de adjuntos é uma prática comum em todo o de criação de novos líquidos e de novas
Propriedade Industrial (INPI). mundo. “Cada região usa o que tem para embalagens”, explica Horn. n
fazer cerveja. Não vejo problema nisso.”
LEI DA PUREZA Dona de 26 diferentes marcas de cer-
Luciano Horn, mestre-cervejeiro da veja, entre elas Brahma, Antarctica, Skol Projetos
Ambev, empresa resultado da fusão, em e Bohemia, a Ambev tem um Centro de 1. Obtenção de cerveja pelo processo de alta densidade,
2004, com a belga Interbrew e, em 2008, Desenvolvimento Tecnológico (CDT) utilizando como adjunto o arroz preto IAC 600 (Oryza
sativa) (n° 2007/01347-3). Modalidade Auxílio à Pesqui-
com a norte-americana Anheuser-Busch que funciona como um laboratório de sa – Regular; Pesquisador responsável João Batista de
InBev, dona da Budweiser, defende o uso ideias. No CDT, situado em Guarulhos, Almeida e Silva (EEL-USP); Investimento R$ 102.818,27
de cereais não maltados na fabricação da na Região Metropolitana de São Paulo, e US$ 26.708,00.
2. Uso de caldo de cana como adjunto na produção de
bebida no país. “A cerveja sempre teve trabalham mestres-cervejeiros, enge- cervejas Lager e Ale (n° 2013/08650-4); Modalida-
milho no país porque esse cereal existe nheiros, químicos, entre outros profis- de Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior – Doutorado;
ilustracão  pedro hamdan

por aqui desde os tempos da colonização. sionais. A equipe da Ambev envolvida Pesquisador responsável João Batista de Almeida e Silva
(EEL-USP); Bolsista Raquel Aizemberg (EEL-USP); Inves-
O ingrediente faz parte da receita pelo diretamente com Pesquisa e Desenvol- timento R$ 28.747,02.
benefício do sabor e não interfere em vimento no Brasil é composta por 170 3. Avaliação de uso de hidrocoloides como aditivo es-
sua qualidade final. É um mito pensar pessoas. Eles são responsáveis por criar tabilizante de espuma em cerveja (n° 2013/12528-0);
Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador
que cerveja que não é puro malte não desde novos sabores a soluções inéditas responsável Flávio Luis Schmidt (FEA-Unicamp); Inves-
tem qualidade”, afirma. de marketing e vendas. “O brasileiro tem timento R$ 15.672,55.  

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