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Memória:

tipos e mecanismos –
achados recentes
Iván Antonio Izquierdo
Jociane de Carvalho Myskiw
Fernando Benetti
Cristiane Regina Guerino Furini

REVISTA USP • São Paulo • n. 98 • p. 9-16 • JUNHO/JULHO/agosto 2013 9


dossiê Memória

RESUMO ABSTRACT

Examinamos as definições e característi- We examine the definitions and main cha-


cas gerais dos principais tipos de memó- racteristics of the major types of memory,
rias de acordo com sua função, conteúdo according to their function, contents and
e duração, as áreas cerebrais responsáveis duration, the brain areas responsible for
por elas e os mecanismos moleculares them, and the molecular synaptic me-
sinápticos envolvidos na formação e chanisms that underlie the formation and
extinção dos diversos tipos de memórias extinction of the various memory types
nessas áreas. Damos particular destaque in those areas. We comment on certain
a alguns aspectos de sua biologia, com aspects of their biology, particularly con-
alguma ênfase na memória de trabalho, cerning working memory, short-term me-
na memória de curta duração e na memó- mory, retrieval and extinction, with some
ria de extinção, comentando os principais emphasis on their formation, retrieval and
processos fisiológicos responsáveis por extinction, as well as their modulation by
sua formação, evocação e extinção, assim brain and peripheral system. We end with
como sobre sua modulação por sistemas some recommendations for the maintenan-
cerebrais e periféricos. Encerramos com ce of the major memory forms.
algumas recomendações para a manu-
tenção das principais formas de memória.
Keywords: declarative memory, procedu-
ral memory, working memory, short-term
Palavras-chave: memória declarativa, memory, retrieval, extinction.
memória procedural, memória de traba-
lho, memória de curta duração, evocação,
extinção.

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MEMÓRIAS E
AMNÉSIA

C
om relação ao conteú- brais. A demência mais comum é a doença IVÁN ANTONIO
IZQUIERDO
do, as memórias podem de Alzheimer, na qual predomina o déficit é professor titular
ser divididas em dois de memória. Nela ocorrem lesões nas áreas de Neurologia
da Faculdade de
grandes grupos: as de- cerebrais responsáveis pela memória decla- Medicina da PUC-RS,
clarativas (eventos, rativa (córtex entorrinal, hipocampo), e mais coordenador do
Centro de Memória
fatos, conhecimentos) tarde em outras partes do cérebro. A doença do Instituto do
e as de procedimentos de Parkinson, nos seus estágios avançados Cérebro da PUC-RS e
pesquisador principal
ou hábitos, que adquirimos e evocamos de (em que ficam comprometidos circuitos que do Instituto Nacional
maneira mais ou menos automática (andar ligam o núcleo caudato ao córtex), a depen- de Neurociência
Translacional do
de bicicleta, usar um teclado). Na memória dência crônica do álcool, da cocaína e ou- CNPq.
declarativa participam o hipocampo (uma tras drogas, as lesões vasculares do cérebro,
JOCIANE DE
região cortical filogeneticamente antiga), a o traumatismo craniano repetido (no boxe, CARVALHO MYSKIW
amígdala, ambos localizados no lobo tem- por exemplo) e algumas doenças metabólicas é professora adjunta
de Geriatria e
poral, e várias regiões corticais (pré-frontal, (Síndrome de Creutzfeld-Jacob, doença de Gerontologia da
entorrinal, parietal, etc.), enquanto, nas Pick), também causam quadros demenciais. PUC-RS.
memórias de procedimentos ou hábitos, o FERNANDO
hipocampo parece estar envolvido apenas AS MEMÓRIAS ESTÃO BENETTI
é professor adjunto
nos primeiros momentos após o aprendiza- NAS SINAPSES da Faculdade
do, sendo elas dependentes basicamente de de Medicina do
Departamento de
circuitos subcorticais que incluem o núcleo Em fins do século XIX, Santiago Ramón Medicina Interna da
caudato e circuitos cerebelares. y Cajal, fundador da neurociência, postulou PUC-RS.
Denomina-se amnésia, em geral, a perda que as memórias obedecem a modificações CRISTIANE REGINA
de memória declarativa, pois as doenças que da estrutura e função das sinapses. Nos úl- GUERINO FURINI
é bolsista pós-
a provocam afetam em maior proporção as timos trinta anos se demonstrou que isso é doutoral do
áreas vinculadas com esse tipo de memória. verdade, e agora conhecemos as alterações Instituto Nacional
de Neurociência
A depressão é a causa mais frequente, mas moleculares sinápticas que subjazem à for- Translacional do
a menos grave. Em geral não se acompanha mação, persistência e evocação das memó- CNPq.
de dano neuronal irreversível e, ao tratá-la, rias em muitas regiões encefálicas.
a amnésia desaparece. As demências (de: Denominam-se sinapses as junções entre
partícula privativa; mens: mente) são pro- neurônios, geralmente entre as terminações
gressivas e mais graves; envolvem perda de seus prolongamentos. Chamam-se axô-
definitiva de neurônios e de funções cere- nios os prolongamentos que se dirigem a ou-

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tros neurônios, e dendritos aqueles sobre os tém a informação “viva” durante segundos
quais terminam os axônios. A maioria das si- ou poucos minutos, enquanto ela está sen-
napses funciona através da liberação de subs- do percebida ou processada. Essa forma de
tâncias denominadas neurotransmissores, os memória é sustentada pela atividade elétrica
quais se ligam a proteínas específicas deno- de neurônios do córtex pré-frontal, em rede
minadas de receptores, e sua ativação desen- via córtex entorrinal com o hipocampo e a
cadeia sequências complexas de processos amígdala, durante a percepção, a aquisição
moleculares. Os neurotransmissores podem ou a evocação. A memória de trabalho dura
estimular ou inibir o neurônio seguinte. O segundos e não deixa traços: depende exclu-
neurotransmissor excitatório mais comum é sivamente da atividade neuronal on line. Um
o glutamato, e o inibitório mais comum é exemplo é a terceira palavra da frase ante-
o ácido gama-amino-butírico. Outros neu- rior: durou 2 ou 3 segundos, para dar sentido
rotransmissores (dopamina, noradrenalina, à frase e conectá-la com a seguinte, mas já
serotonina e acetilcolina) desempenham em desapareceu de nossa memória para sempre.
geral funções moduladoras (ver adiante), Na esquizofrenia há falhas graves da memó-
relacionadas com as emoções, o alerta e o ria de trabalho, que causam uma percepção
estado de ânimo. Sua liberação está alterada distorcida ou alucinatória da realidade.
na ansiedade e na depressão. As memórias que persistem além de
segundos denominam-se memória de cur-
FUNÇÃO E DURAÇÃO ta duração e memória de longa duração.
DAS MEMÓRIAS A primeira dura 0,5-6 horas e utiliza pro-
cessos bioquímicos breves no hipocampo
Todas as memórias são associativas: se e córtex entorrinal, largamente estudados
adquirem através da ligação entre um grupo em nosso laboratório. A memória de longa
de estímulos (um livro, uma sala de aula) e duração perdura muitas horas, dias ou anos.
outro grupo de estímulos (o material lido, Quando dura anos, denomina-se remota. Sua
aquilo que se aprende; algo que causa prazer formação requer uma sequência de passos
ou penúria). O do segundo grupo, que é de moleculares que dura de 3 a 6 horas, no hi-
maiores consequências biológicas, chama-se pocampo, nos núcleos amigdalinos, e em
estímulo condicionado ou reforço. Em algu- outras áreas, durante as quais é suscetível a
mas formas de aprendizado, associa-se um numerosas influências. A memória de cur-
grupo de estímulos com a ausência do outro ta duração mantém a cognição funcionando
ou de qualquer outro. A forma mais simples durante as horas que a memória de longa
dessas formas de “aprendizado negativo” duração leva até adquirir sua forma defini-
associa um estímulo repetido (um som, uma tiva. Equivale a “morar num hotel enquanto
cena) com a falta de qualquer consequência; constroem sua casa”.
esse tipo de aprendizado se chama habitua-
ção. Permite que seja possível trabalhar em A CONSTRUÇÃO DA
ambientes cheios de ruídos, ou dormir em MEMÓRIA DE LONGA
ambientes iluminados, por exemplo. Alguns DURAÇÃO
autores consideram a habituação uma memó-
ria não associativa. O hipocampo é a estrutura central da for-
Do ponto de vista da função, há um tipo mação de memórias declarativas. Integra um
de memória que é crucial tanto no momento circuito que inclui o córtex temporal vizinho
da aquisição como no momento da evocação (córtex entorrinal), o núcleo da amígdala e
de toda e qualquer outra memória, declarati- áreas corticais distantes. O hipocampo, a
va ou não: a memória de trabalho. Operacio- amígdala e o córtex recebem também ter-
nalmente, representa aquilo que a memória minações de vias nervosas vinculadas com o
RAM representa nos computadores: man- afeto, os estados de consciência e o maior ou

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Andy Barton/stock.xchng
Livro e
aprendizado:
estímulos
da memória
associativa

menor grau de alerta, ansiedade ou estresse. dade”) na mesma estrutura. A potenciação


Essas vias são: a dopaminérgica, a noradre- de longa duração é o aumento de tamanho
nérgica, a serotoninérgica e as colinérgicas, da resposta de um grupo de neurônios de-
que registram e reagem às emoções e estados sencadeada pela sua estimulação repetitiva
de ânimo. A dopamina e a noradrenalina são durante alguns segundos, e ocorre no hipo-
os neurotransmissores da vigília e do aler- campo durante a consolidação de memórias.
ta. A serotonina regula o estado de ânimo, Dependendo dos parâmetros de estimulação
e falha na depressão. As vias colinérgicas, e/ou do estado prévio de cada sinapse, pode
que usam o neurotransmissor acetilcolina, ocorrer, em vez de uma potenciação, uma de-
regulam uma variedade grande de percep- pressão de longa duração (LTD) da resposta
ções emocionais. Em todos os casos, essas dessa sinapse. Mecanisticamente, a LTP e a
vias agem através de receptores específicos LTD são semelhantes: ambas envolvem uma
para cada neurotransmissor, localizados no ativação inicial de certo tipo de receptores
hipocampo, na amígdala e no córtex. ao ácido glutâmico, o principal neurotrans-
A sequência dos processos bioquímicos missor excitatório; a entrada na célula pós-
no hipocampo necessária para a formação -sináptica de cálcio, seguida da ativação de
(ou consolidação) de memórias declarativas várias enzimas dependentes desse íon, que
foi recentemente determinada em detalhe em permitem a transferência de íons fosfato de
nosso laboratório. Essa sequência é pareci- umas proteínas a outras e a subsequente ati-
da com a da potenciação de longa duração vação da transcrição do DNA, leva à síntese
(em inglês, long-term potentiation – LTP) proteica nos ribossomos do citoplasma do
nessa estrutura, como era de esperar, dado o neurônio ativado. Há um sistema alternativo
fato de que ambas consistem em alterações de síntese proteica nos neurônios, fora dos
perduráveis da função sináptica (“plastici- ribossomos, independente do núcleo, sensí-

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vel a uma substância chamada rapamicina. no hipocampo é necessária para a manuten-


Esse segundo sistema de síntese proteica é ção das memórias (Silva et al., 2013).
necessário tanto para a gênese de LTP como O processo de formação das memórias
para a de LTD (Myskiw et al., 2013). de longa duração, portanto, é lento e frágil:
A sequência dos processos moleculares consiste de muitas etapas, e qualquer uma
subjacentes à formação de memórias no hi- delas pode falhar. Além disso, várias dessas
pocampo envolve a ativação de numerosas etapas estão sujeitas a poderosos mecanis-
enzimas que regulam a atividade de proteí- mos de modulação, através de dois grandes
nas preexistentes, e a produção por elas de conjuntos de fibras nervosas:
ativação gênica e síntese proteica. Muitas
das proteínas sintetizadas no hipocampo na a) vias procedentes da amígdala e do núcleo
formação de memórias se incorporam às si- medial do septuo que, através de axônios
napses das células hipocampais com as de colinérgicos e glutamatérgicos, modulam
outras regiões e alteram sua função. Outras intensamente a formação de memórias no
regulam esses processos. hipocampo. Essas vias estão vinculadas com
Uma das principais proteínas regulado- o conteúdo emocional das experiências que
ras das sinapses é o fator neurotrófico de- deixam memórias; quanto maior a emoção,
rivado do cérebro (BDNF), que atua tanto maior sua ativação;
durante a formação de memórias, como b) vias nervosas vinculadas com o afeto,
também várias horas mais tarde, quando, as emoções e os estados de ânimo (dopa-
liberado no hipocampo por estímulos do- minérgicas, noradrenérgicas e serotoni-
paminérgicos, determina se as memórias nérgicas), procedentes de estruturas sub-
que foram consolidadas antes persistirão corticais e estimuladas pela aquisição de
durante poucos dias ou durante semanas. uma experiência nova ou a recordação de
Paralelamente, atuam também sobre o hipo- uma experiência antiga. Essas vias regu-
campo vias noradrenérgicas mediadas por lam enzimas que afetam o metabolismo
receptores beta, e terminações colinérgicas da célula nervosa e prejudicam sua capa-
nicotínicas; a função desses dois grupos de cidade de ativar genes e sintetizar prote-
fibras sobre o BDNF não é conhecida. A ínas e, portanto, gravar memórias. Essas
persistência das memórias procedurais é vias agem quase ao mesmo tempo sobre
muito grande (décadas); a das memórias o hipocampo, o córtex entorrinal e o cór-
declarativas é muito menor e declina depois tex parietal. Sua excitação ou inibição é
dos 40 anos de idade; isso explica por que importante para determinar se cada me-
a partir dessa idade tendemos a recordar mória de longa duração será efetivamente
menos as coisas mais recentes. O mecanis- formada ou não. Uma estimulação intensa
mo não tem relação com o sono e funcio- da via serotoninérgica ou uma inibição das
na igualmente de dia e de noite. Porém, a vias dopaminérgica ou noradrenérgica, por
falta de sono reduz a persistência das me- exemplo, podem efetivamente cancelar a
mórias declarativas. Alguns acreditam que formação definitiva de uma memória horas
isso ocorre porque elas não são ensaiadas depois de ter sido adquirida.
(rehearsed), o que é considerado por mui-
tos como necessário para a persistência. Um A MEMÓRIA DE
dos muitos mecanismos propostos para a CURTA DURAÇÃO
persistência envolve a reiteração cíclica da
ativação da enzima cálcio-calmodulina qui- Durante um século houve dúvidas acer-
nase II, e da elevação simultânea dos níveis ca de se os sistemas de memória de curta
de cAMP (sigla do inglês: cyclic adenosine duração, que mantêm a função mnemônica
monophosphate) no hipocampo, após a con- funcionante enquanto o hipocampo e suas
solidação. De fato, a ativação dessa enzima conexões vão tecendo lentamente a trama

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de cada memória de longa duração, são in- A EXTINÇÃO
dependentes deste último processo ou tão DE MEMÓRIAS
somente uma etapa do mesmo. Em suma:
se as memórias de curta e de longa duração A repetição de uma memória sem o “re-
são etapas de um mesmo fenômeno ou são, forço” (estímulo incondicionado, recom-
pelo contrário, eventos paralelos, embora pensa, castigo, consequências) leva a sua
vinculados. extinção. Esta constitui um novo processo de
Descobrimos, entre 1998 e 2001, que o aprendizagem, em que uma nova memória
processamento de memória de curta dura- – estímulo(s) sem consequência – substitui
ção é paralelo ao das memórias de longa gradativamente a original – estímulo(s) com
duração, e ocorre também no hipocampo e consequência. Essa nova memória requer
córtex entorrinal. também expressão gênica e síntese proteica
Esse achado tem implicações clínicas no hipocampo e na amígdala. Os mecanis-
importantes. Na velhice, em muitos casos mos da extinção são semelhantes aos da for-
de demência, no delirium, em alguns qua- mação de memórias, mas, em vez de resultar
dros de tumores ou lesões do lobo temporal num aumento das respostas aprendidas, re-
e em vários casos de depressão, há falhas sultam numa diminuição da probabilidade de
seletivas de um ou outro tipo de memória, sua expressão. Na extinção, o que se extingue
principalmente da de curta duração: o pa- não é a memória em si, senão a probabilidade
ciente não lembra como chegou ao consultó- de sua evocação (Myskiw et al., 2013).
rio, mas sim fatos ou eventos do dia anterior A extinção tem uma aplicação terapêuti-
ou de horas atrás. ca importante no tratamento das fobias e do
transtorno do estresse pós-traumático, para
A EVOCAÇÃO DAS o qual é o tratamento de escolha. Esse trans-
MEMÓRIAS torno é uma das entidades psiquiátricas mais
terríveis; nele, o paciente não consegue parar
As principais áreas envolvidas na evo- de evocar um episódio traumático e passa a
cação de memórias declarativas e de proce- evocá-lo fora de contexto e a qualquer hora,
dimentos são basicamente as mesmas uti- infernizando sua vida. O típico exemplo é o
lizadas para sua formação; só que, no caso do indivíduo que não consegue mais dormir
das memórias declarativas, com o passar do porque, cada vez que fecha os olhos ou chega
tempo, o hipocampo e a amígdala passam a a noite, passa a se lembrar da vez em que foi
ter um papel menos importante na evocação, assaltado com violência, ou do choque dos
e várias outras regiões do córtex predomi- aviões contra as torres gêmeas, ou de algum
nam. Na evocação, essas estruturas parti- outro acontecimento muito traumático de sua
cipam de maneira orquestrada. A evocação vida. Na aplicação à psicoterapia, a extinção
é fortemente modulada em todas elas pela se denomina “terapia de exposição”, justa-
dopamina, noradrenalina e acetilcolina, e mente porque o tratamento envolve prima-
inibida pela serotonina. É inibida também riamente a repetição de estímulos pertinentes
por corticoides procedentes da suprarrenal, às memórias traumáticas (fotos dos aviões
que, como se sabe, são liberados em situa- batendo nas torres, figuras de uma pessoa
ções de estresse. Os corticoides explicam os com uma arma na mão, etc.), mas sem o trau-
famosos “brancos” na hora da evocação; ti- ma (sem as batidas dos aviões, sem o assal-
picamente num exame ou numa apresentação to). Tem uma semelhança com a habituação
em público. no sentido em que ocorre perante a repetição
A evocação das memórias declarativas e de um estímulo sem reforço, só que, à dife-
dos hábitos é tão sensível à modulação por rença da habituação, se trata de um estímulo
fatores emocionais, ansiedade, ou estresse que já foi reforçado por sua associação com
como sua formação. outro, e da inibição da expressão da resposta

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devida a essa associação (Pavlov, 1959). enorme scanning de tudo o que tem guarda-
A extinção é simplesmente mais uma for- do nele e começa com a letra do abecedário
ma de aprendizado, ou seja, de fazer memórias. com que se inicia a leitura (a: abelha, alma,
Muitos pensam que se deve à LTD mais que à avô, etc.; b: barbaridade, burro, beijo, etc.; c:
LTP de sinapses hipocampais. A interpolação casa, corpo, cabelo, etc., e assim por diante),
de uma experiência nova, que desencadeia uma e depois com cada letra sucessiva. Ao fazê-
potenciação de longa duração no hipocampo -lo, põe em funcionamento a memória visual,
durante a extinção de uma memória traumá- verbal e até de imagens: lembra fugazmente
tica, também se acompanha de uma LTP ou do aspecto das abelhas, avós, burros, casas,
LTD no hipocampo. A modificação de um etc. Nenhuma outra atividade cerebral tem
aprendizado resultante de uma LTP ou LTD essa capacidade nesse grau. Por isso é o
hipocampal por outro aprendizado resultante exercício de escolha para a memória, que é o
de outra LTP ou LTD também hipocampal é a maior exemplo de que “a função faz o órgão”.
consequência da produção de novas proteínas 2) Permitir ao cérebro que descanse um tem-
perto da sinapse que primeiro foi estimulada; po adequado cada dia, dormindo de prefe-
outras proteínas, sintetizadas perto de outra rência nas horas apropriadas.
sinapse na mesma célula hipocampal, migram 3) Manter “viva” a memória de trabalho e a
à sinapse anterior e “capturam” as proteínas memória de curta duração, através da conver-
sintetizadas nela. Esse processo denomina-se sa, da leitura, de filmes, etc. Sem elas, será di-
“marcação sináptica” (synaptic tagging), des- fícil ter uma boa base para formar memórias
coberto por Frey e Morris em 1997, e explica as de longa duração, e não há base para o diálogo
interações entre memórias próximas no tempo, e a compreensão de eventos rápidos.
uma mais forte que a outra e ambas dependen- 4) Todas as drogas de abuso, a começar pelo
tes de LTP ou LTD (Myskiw et al., 2013). álcool, são, em qualquer dose ou em qual-
quer padrão de consumo (diário, esporádico,
NA SALA DE AULA, muito intenso, pouco intenso), prejudiciais
NA VIDA DIÁRIA para a memória em suas diversas formas e
fases. Já que este é o caso, é evidentemen-
1) O melhor exercício para manter a memória te melhor se abster delas por completo que
é a leitura. Ao ler, o cérebro faz um rápido e utilizá-las muito ou pouco.

B I B LI O G R AFIA

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