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Edições Mulemba
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Colecção Reler África
Nota de Apresentação
Víctor Kajibanga
(Coordenador da Colecção Reler África)
Copyright © 1989, L´Harmattan
Título Original: Cheikh Anta Diop ou l´honneur de penser
© desta edição
Edições Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto
Título: Cheikh Anta Diop ou a honra de pensar
Autor: Jean-Marc Ela
Colecção: Reler África
Coordenador da Colecção: Víctor Kajibanga
Tradução: Narrativa Traçada
Revisão do Texto: Isabel Henriques e Pedro M. Patacho
Design e Paginação: Márcia Pires
Impressão e Acabamento: Ca ilesa, Soluções Grá icas
ISBN: 978-989-8655-42-4
Depósito Legal: 379395/14
Julho de 2014
Nenhuma parte desta publicação pode ser transmitida ou reproduzida por qual-
quer meio ou forma sem a autorização prévia dos editores. Todos os direitos desta
edição reservados por
EDIÇÕES MULEMBA
Rua do Colégio, 8
3530-184 Mangualde
PORTUGAL
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Edições Mulemba
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Uma testemunha do século
Índice
Introdução 11
1. Th. Obenga. «Hommage à notre camarade Cheikh A. Diop», Taxaw, n.º 28, Março de 1986,
p. 5.
2. Ler «La mort de Cheikh Anta Diop», Le Soleil de 8 e 9 de Fevereiro de 1986.
3. Iber Der Thaim. «Un géant de l’esprit et du cœur», Taxaw, n.º 28, p. 3.
4. Idem.
Um mundo fragmentado
Desde o Renascimento, o mundo não se cinge ao Ocidente apesar
de ser precisamente o Ocidente que domina o mundo. Um reajusta-
mento dos valores a igura-se necessário no momento em que os po-
vos – há muito mantidos à margem das responsabilidades mundiais
– almejam reconquistar a sua iniciativa histórica. Nunca atravessara a
Humanidade uma crise semelhante desde a queda do Império Roma-
no. Na sequência do choque de culturas provocado pelo alargamento
dos horizontes do Renascimento, os con litos religiosos que cindem
os cidadãos permanecem circunscritos a uma Europa dividida entre o
catolicismo barroco e a Reforma protestante. Em virtude destes acon-
tecimentos, os pensadores vêem-se forçados a rede inir o estatuto da
religião no seio do Estado. Face a fanatismos de natureza variegada,
urge substituir a tirania da insensatez pela hegemonia da razão através
de um novo ordenamento do espaço político.
A Europa das Luzes edi ica-se no contexto de uma crise de consciên-
cia. Tendo em vista o desenvolvimento de uma nova perspectiva sobre
a natureza, o homem, a sociedade e o Estado, a razão tem de se libertar
da tutela da religião enfrentando assim o repto da ciência que se con-
solida desde o processo de Galileu. Os acontecimentos que ocorrem
na sequência da Segunda Guerra Mundial revestem-se de uma maior
gravidade. Já no início do século, alguns pensadores anunciavam o
«declínio do Ocidente». Com a revolta dos homens cor, assiste-se a um
questionamento da autoridade dos Estados modernos alicerçada no
equilíbrio dos poderes, tal como fora propiciada pela Revolução de
2. Sobre esta questão, ler P. D. Curtin, The Image of Africa: British Ideas and Action, 1780-1850,
Londres 1965.
O im de uma visão
C. A. Diop insere-se neste vasto movimento em que ideias novas,
temas e abordagens diferentes a nível do pensamento e da investiga-
ção ditam o surgimento de um discurso sobre o homem que tende a
fragmentar-se em especialidades cada vez mais numerosas, originan-
do a necessidade de uma perspectivação unitária da diversidade dos
campos de explorações e de análise. No início de um estudo fundamen-
tal3, o investigador africano reconhece o quanto deve aos seus mestres,
de entre os quais se refere em primeiro lugar a Gaston Bachelard que
contribuíra para a «formação do [seu] espírito cientí ico». Evoca igual-
mente a memória de Griaule cuja obra foi marcante para uma geração
de antropólogos. Por im, C. A. Diop expressa a sua «gratidão de estu-
dante» aos seus professores André Aymard e Leroi-Gourhan. O último
não só foi um pré-historiador como também um etnólogo que leccio-
nou primeiramente em Lyon e depois em Paris, numa altura em que
C. A. Diop empreende os seus trabalhos sobre o Antigo Egipto. Talvez
o estudante tenha aprendido com o seu mestre – que restitui o homem
à sua vida material através da etnologia pré-histórica – este sentido do
concreto e esta preocupação em relacionar vestígios que, caso fossem
considerados isoladamente, não se revestiam de nenhum interesse.
«A formação intelectual dos africanos que estavam a dar os seus primeiros passos
era, regra geral, demasiado inconsciente para que pudessem desenvolver um parecer
pessoal sobre a tese defendida, sem a necessidade de se basearem, previamente, na
opinião de uma autoridade sacrossanta4.»
Eis o sentido de uma obra cujo desa io cientí ico se revela em cada
etapa da investigação, em que C. A. Diop se vê confrontado com pre-
conceitos acumulados ao longo de uma história que se assemelha a um
5. Idem, p. 5.
6. Antériorité des civilisations nègres: Mythe ou Vérité historique, Présence Africaine, 1967, p. 9.
13. Sobre esta questão, cf. G. Leclerc, Anthropologie et Colonialisme, A. Fayard, Paris, 1972; ler
também M. Duchet, Le partage des savoirs, La Découverte, 1985; sob a direcção de J. Copans,
Anthropologie et Impérialisme, Maspero, 1975.
14. Ver J. Bonjou, Une image ethnologique. La mentalité primitive, IUD, 1982.
15. C. Lévi-Strauss, «J.-J. Rousseau fondateur des sciences de l’homme», em J.-J. Rousseau, Neucha-
tel, éd. de la Baconnière 1962; ler também os textos reunidos e apresentados por J.-L. Amselle, Le
Sauvage à la mode, Le Sycomore, 1979.
3. Cf. «La question islamique en Afrique Noire», Politique africaine, n.º 4, 1981.
4. J. Fonkoué, Différence et identité. Les sociologues africains face à la sociologie, Silex, 1985, p. 31.
«Em suma, o berço meridional, con inado com o continente africano em particu-
lar, caracteriza-se pela família matriarcal, pela criação do Estado-território, por
oposição à Cidade-estado ariana, pela emancipação da mulher na vida doméstica
(…), por uma espécie de colectivismo social cujo corolário reside na quietude cujo
expoente máximo é a despreocupação com o amanhã, por uma solidariedade mate-
rial de direito para cada indivíduo, em virtude da qual, até aos nossos dias, não se
conhece a miséria material ou moral; existem povos numerosos que são pobres,
mas ninguém se sente só, ninguém está angustiado (…). O berço nórdico, con inado
com Grécia e Roma, caracteriza-se pela família patriarcal, pela Cidade-estado (…),
pela existência (…), são o apanágio deste berço.»
10. Idem.
11. Antériorité des civilisations nègres, p. 9.
«Com efeito, a plenitude cultural torna necessariamente um povo mais apto para
dar o seu contributo para o progresso geral da humanidade, e se aproximar dos
restantes povos com conhecimento de causa. Obstaria apenas ao falso progresso
que resultaria do tolhimento e da eliminação dos valores culturais da maioria dos
povos em bene ício de alguns.»
Um problema de método
Nos territórios ou locais onde os antropólogos se deparam com um
paraíso estranho, encetando individualmente um diálogo intemporal
13. Idem, p. 21.
14. «Sociologie africaine et méthodes de recherche», Présence africaine, n.º 48, 1963, pp. 182-
-183.
15. Idem, p. 184.
1. C. A. Diop, «Histoire primitive de l’humanité: Évolution du monde noire», Présence Africaine,
n.º 51, 1964.
«Se nos ativermos estritamente aos dados cientí icos e factos arqueológicos (…) o
protótipo da raça branca seria investigado em vão nas primeiras eras da humani-
dade actual. O negro está na sua origem, sendo inclusivamente o único a existir
durante milénios e, até ao início da época histórica, o cientista negligencia-o2».
Impõe-se uma nova atitude cientí ica a respeito dos dados afri-
canos caso se pretenda proceder a uma interpretação acertada dos
factos sem eliminar «a consciência colectiva histórica africana numa
lista pormenorizada3». A obra de C. A. Diop pretende ser uma nova
perspectivação das ciências humanas que permitem conhecer África.
Esta orientação deve ter como ponto de partida o alto vale do Nilo
como berço da civilização num contexto em que a racionalidade do
negro loresce no seio de uma cultura fundadora cuja base de ra-
ciocínio con irma o papel dos negros na história do pensamento.
Os trabalhos de C. A. Diop podem ser lidos como uma tentativa de
reinterpretação do complexo cultural africano na história das civiliza-
ções a partir do Antigo Egipto. Reenquadra as formas de produção
intelectuais e culturais, as marcas, os aspectos da ciência e do pensa-
mento, os mitos e a religião, bem como a arte, num contexto global
em que o Ocidente deve reavaliar a consciência que tem de si próprio,
atendendo aos ensinamentos da história acerca da in luência dos ne-
gros no mundo mediterrânico. Não se trata apenas da imagem que
há muito se formou sobre África; é a própria visão que o Ocidente
tem de si mesmo que corre o risco de se tornar obsoleta e a desactu-
alizada na medida em que mergulha numa mitologia alheia à ciência.
Com efeito, C. A. Diop põe em causa uma tradição teórica que esteve
em voga durante largos séculos. Os europeus haviam ensinado ao
resto dos homens que Atenas, Alexandria ou Roma constituíam os
únicos pólos da civilização antiga. No momento em que Aristóteles
irrompe no Ocidente medieval onde se assiste à criação de univer-
sidades, a Grécia assume-se como a referência fundamental da vida
intelectual. Para além da cristandade, o homem renascentista almeja
reconciliar-se com a Antiguidade grega na qual se operou, a partir
do século VI a.C., uma espécie de Iluminismo que, no século XVIII,
consagrará de forma de initiva a emancipação da razão e o im da
6. Sobre esta questão, ler L. Fanoudi-Sieffer, Le mythe du Nègre et de l’Afrique dans la littérature
française (de 1800 à la deuxième guerre mondiale), C. Klincksieck, Paris, 1968.
Verdade escandalosa
Assiste-se ao delinear de uma ruptura com os poetas da negritude
envoltos na imagem de inferioridade do negro imposta pela coloni-
zação. Os trabalhos do historiador demolirão esta imagem em todos
os níveis da sua reprodução. O primeiro golpe visa esta geogra ia da
inteligência que, com base na história ocidental, considera África «o
continente da emotividade».
«Em virtude das suas catedrais, dos seus palácios, das suas cidades e das suas
casas com telhado de colmo, a Europa é o museu da medida, da razão, da ordem
(…). Em contrapartida, África é o continente da emotividade, do contentamento,
da indolência alegre, do ritmo, da forma, da cor e da luz. Todo o continente
africano irradia esta emotividade criadora de arte.»
«As nações situadas nas regiões frias e, em especial, as nações europeias transbor-
dam de coragem, mas carecem sobretudo de inteligência e de aptidões técnicas;
por essa razão, apesar de uma existência relativamente livre, revelam uma inca-
pacidade para a organização política e uma impotência para exercer a suprema-
cia sobre os seus vizinhos. As nações asiáticas são, pelo contrário, inteligentes e
exibem um espírito inventivo mas não têm qualquer coragem e, por esse motivo,
vivem numa subordinação e escravidão contínuas. Porém, a raça dos helenos, que
ocupa uma posição geográ ica intermediária, participa de forma semelhante nas
qualidades dos dois grupos de nações anteriores pois é corajosa e inteligente,
sendo essa a razão pela qual leva uma existência livre, sob instituições política
excelentes, e inclusivamente mostra-se capaz de governar o mundo inteiro mesmo
se atingir a unidade de constituição10.»
9. Max Weber, L’Ethique protestante et l’esprit du capitalisme, Plon, Paris, 1964, p. 13.
10. Aristóteles, La politique, VII, 7, 25-31, Vrin, 1982, p. 493.
12. Id., p. 13.
13. Ibid., p. 10.
O respeito do real
Eis a condição dos jovens africanos dos anos 50 face à questão da
sua origem. Com base nas obras ocidentais, os jovens deparam-se
com «a noite negra», mostrando-se incapazes de explicar aquilo que
os seus antepassados faziam no continente desde a pré-história. A
revolução cultural preparada por C. A. Diop – que, em plena crise
do colonialismo, destaca a importância da memória para as novas
gerações de africanos – eclode neste contexto. Em certo sentido, a
história resume a consciência que um povo tem de si próprio e en-
volve a totalidade da existência humana no seu futuro. Ademais, para
o negro, a recuperação da sua memória signi ica munir-se de um eixo
de referência a im de reconquistar aquilo que fora con iscado em
prol do Ocidente7. Logo, para se libertar, é necessário começar por
uma consciencialização acerca do seu passado. Ao colocar o problema
da história africana, C. A. Diop abre um caminho de libertação para
os colonizados. Ao reestabelecer «a clareza acerca de um período
histórico cuja obscuridade apenas se deveu realmente (…) ao apogeu
do imperialismo», o egiptólogo permite que o «negro se reapodere
da continuidade do seu passado histórico nacional, de retirar dele
o bene ício moral necessário à reconquista do seu lugar no mundo
moderno8».
C. A. Diop reitera a importância desta investigação sobre uma
questão determinante que se prende com o facto de os mestres
da verdade terem, amiúde, ensinado aos africanos um conjunto de
6. A. Diop, «Le Congrès des hommes de culture noire», Le Monde, 11 de Outubro de 1956.
7. Cf. J. Ki Zerbo, «Histoire et conscience nègre», Présence Africaine, 1957.
8. C. Anta Diop, Nations nègres et culture, vol. 2, p. 411; Civilisation ou barbarie?, capítulos 16 e 17.
«Berço da civilização durante 10 000 anos numa época em que o resto do mundo
estava imerso na barbárie, o Egipto, destruído em virtude de ocupações suces-
sivas, deixará de desempenhar qualquer papel no plano político. Todavia, con-
tinuará ainda a iniciar os jovens povos mediterrânicos (gregos e romanos, entre
outros) nas luzes da civilização durante muito tempo. Durante toda a Antiguidade,
permanecerá a terra clássica que será visitada pelos povos mediterrânicos em
peregrinação com o intuito de beberem das fontes dos conhecimentos cientí icos,
religiosos, morais, sociais, etc. mais antigos que homens haviam assimilado.18»
16. L’Afrique noire pré-coloniale; ler também Les fondements économiques et culturels d’un État
fédéral d’Afrique noire, pp. 11-15.
17. Ver Nations nègres et culture e Antériorité des civilisations nègres.
18. Nations nègres et culture.
26. Ver os testemunhos coligidos por C. Anta Diop sobre a matéria em Nations nègres et culture e
Antériorité des civilisations nègres, pp. 34-40.
27. Ler as conclusões do colóquio, designadamente o contributo de C. Anta Diop sobre a origem
dos antigos egípcios em Histoire générale de l’Afrique, Unesco, Paris, vol. 1.
28. Cf. L’Afrique Noire pré-coloniale.
33. Ibidem.
34. Ibid., cap. 15, pp. 283-290.
35. Ver o subtítulo de L’Afrique Noire pré-coloniale.
36. Civilisation ou barbarie?, p. 280.
45. Les fondements économiques et culturels d’un Etat fédéral d’Afrique Noire, p. 50.
46. Idem, p. 51.
47. Ibidem, p. 45.
48. Ibidem, p. 44.
49. Ibidem, pp. 56-110.
50. Ibidem, p. 32.
1. Ver C. Coquery- Vidrovitch, «Les débats actuels en Histoire de la colonisation», Revue Tiers-
Monde, vol. XXVIII, n.º 112, Outubro-Dezembro de 1987, pp. 777-791.
2. Idem.
6. Ler V. Lanternari, Les mouvements religieux de liberté des peuples opprimés, Maspero, Paris,
1961; G. Balandier, «Messianisme et nationalisme en Afrique Noire», Cahiers internationaux de
sociologie, 1955, pp. 41-61; J. Marc Éla, Le cri de l’homme africain, L’Harmattan, 1980, pp. 60-65.
7. Ver J. Marc Éla, L’Afrique des villages, Karthala, 1982, pp. 28-29.
«Os Negros não pertencem a nenhuma nação europeia e não pretendem servir os
interesses de qualquer imperialismo contra os interesses de outro imperialismo
(…). A escravatura é abolida, brada-se por todo o universo. Vejamos! Os colonialistas
internacionais apoderaram-se dos nossos territórios e de nós mesmos (…). Actu-
almente alegam ter abolido a escravatura apesar de se outorgarem democratica-
mente (?) os direitos de vender e comprar todo um povo sem querer saber a opinião
do último… Que hipocrisia! Que falsidade! A verdade é que a venda a retalho é proi-
bida, ao passo que a venda por atacado é permitida. É precisamente contra todas
essas iniquidades que nos unimos.»
9. Cf. R. Joseph, Le mouvement nationaliste au Cameroun, Karthala, Paris, 1985, pp. 79-81.
10. Ver «La lutte anti-colonialiste des Noirs en France», Afrique-Histoire, n.º 12, 1987, pp. 10-16.
11. Le Monde, 4 de Outubro de 1957.
12. Les fondements économiques et culturels d’un Etat fédéral d’Afrique Noire, p. 50.
13. Idem.
18. Idem.
19. Idem.
20. Ibidem.
21. Cf. entrevista a C. Anta Diop em Afrique-Asie, 9 de Novembro de 1981
A memória de um povo
O texto fundador de C. Anta Diop amadurece no contexto das lutas
pela libertação do continente. Actualmente, as novas vulgatas africa-
nas gostam de retomar ideias que pareciam tão revolucionárias às
quais pouquíssimos intelectuais ousavam aderir. Essas ideias con-
tribuem para «a a irmação da identidade nacional», tal como de inida
por C. Anta Diop num congresso organizado pela UNESCO sobre a ma-
téria. Deve frisar-se a dimensão política das ideias-chave alumiadas
pelos trabalhos do historiador africano mais ilustre do nosso tempo.
Para terminar com o discurso do mestre, C. Anta Diop dedica-se a
demonstrar os mecanismos e os aparelhos ideológicos da dominação.
«Alistar a alma nacional de um povo num passado pitoresco e inofen-
sivo, deveras adulterado, é um procedimento clássico da dominação.»
Logo, em nome da ciência, deve travar-se a luta contra o colonialismo
22. J.-P. Sartre, Orphée Noir, Situations III, Gallimard, 1949, pp. 229-230.
«A Europa já não era mais do que um mero acidente geográ ico. Se ao menos espe-
rássemos recuperar a nossa grandeza aos olhos domésticos dos africanos. Porém,
já não há olhos domésticos: há olhares selvagens e livres que julgam a nossa terra
(…). O homem branco iluminava a criação como uma tocha. Revelava a essência
secreta e branca dos seres. Hoje, olhamos para nós e o nosso olhar penetra nos
nossos olhos; tochas negras, ao seu redor, iluminam o mundo26.»
25. Sobre o tema, ler Ngugi Wa Thiong IO, Decolonising the Mind. The Politics of language in Afri-
can Literature, Nairobi, 1987; (Hinw Eizu, Decolonising the African Mind, Lagos, 1987).
26. J.-P. Sartre, op. cit., p. 231.
27. P. Biya, Pour le libéralisme communautaire, Ed. P.M. Favre, 1987.
À margem da universidade
Quando aquele que foi um dos principais dinamizadores da Fédéra-
tion des Étudiants d’Afrique Noire en France (FEANF) e o secretário-
geral da RDA (Reunião Democrática Africana) decide voltar ao país-
natal, é no ensino e na investigação que antevê a sua vida e o seu futuro.
Ambas as actividades são indissociáveis do seu projecto de vida mas,
segundo o seu plano, numa primeira fase, é necessário formar os es-
tudantes, para depois poder dedicar-se à investigação no domínio que
lhe é característico. Projecto que corresponde perfeitamente ao seu
per il intelectual, pois pretendia dedicar-se à investigação atómica
pelo facto de ser formado em Física e também por ter encetado inves-
tigações nesse domínio juntamente com Pierre e Marie Curie quando
viveu em França. Após regressar ao Senegal, a prossecução das suas
investigações a igura-se natural. Salienta-se que, ao longo de toda a
sua existência, C. Anta Diop vive ensombrado pelo problema da inves-
tigação cientí ica sem a qual nenhum plano de recuperação de África
pode concretizar-se. As suas re lexões de Les fondements économiques
et culturels d’un État fédéral d’Afrique noire terminam precisamente
com esse problema. Embora a investigação aplicada «deva ser par-
tilhada, tanto quanto possível, com institutos especializados ligados à
Universidade», para C. Anta Diop, «fundamentalmente, a investigação
fundamental emanará sempre da Universidade4». Como tal, a Univer-
sidade deve tornar-se «um dos centros de formação mais importantes
dos quadros africanos5».
Um dos aspectos perturbadores do destino intelectual do ilustre
egiptólogo é o facto de o poder ter recusado o acesso à Universidade
2. Idem, p. 11.
3. Ibidem, p. 12.
4. Les fondements économiques et culturels, p. 117.
5. Idem, p. 118.
6. Edem Kodjo, «Cheikh Anta Diop ou la pensée à contre-courant», Le monde diplomatique, Março
de 1986.
7. Idem.
«Ao considerar a história da humanidade, o negro não terá sido outrora uma potên-
cia? Não terá sido grandioso? Historiadores, lembrem-se da época na qual o Egipto,
a Etiópia e Tombuctu deslumbravam a Europa. Quando a Europa era habitada por
canibais, homens nus, selvagens e pagãos, África era povoada por uma raça de ho-
mens de cor, mestres no domínio das ciências, das artes, da literatura, cultos e re i-
nados, semelhantes a deuses, até os Antigos comparavam os etíopes aos deuses13.»
11. Ibidem, p. 15.
12. Ibidem, p. 25.
13. Citado por I. Babakake, La Diaspora Noire, Paris, 1976, pp. 36-37.
Um desa io político
Essa responsabilidade que C. Anta Diop assume relativamente ao seu
povo, através de diversas publicações e de encontros determinantes,
representa um desa io político considerável. Para perceber isso, não
se pode reduzir a vida militante do investigador a querelas com os
poderes instituídos, é necessário retomar os principais temas da sua
obra e do seu pensamento. Ora, se a história e a cultura, o homem e a
sociedade e, por im, o Estado e as línguas constituem os actos funda-
mentais da investigação do cientista, além da coerência interna deve
analisar-se também a pertinência. C. Anta Diop faz parte dessa gera-
ção da década de 1950 que representa, provavelmente, o período axi-
al do pensamento africano elaborado a partir de acontecimentos que
marcaram a memória dos povos negros. Em vésperas de Bandung, o
historiador africano retoma as ideias, publicadas num artigo intitu-
lado «Para uma ideologia política na áfrica negra», editado em La Voix
de l’Afrique noire, órgão dos estudantes da RDA. Em Nations nègres
et culture, retém apenas dois temas essenciais relativamente ao na-
cionalismo: a cultura nacional e a independência nacional. Evidente-
mente que esses temas compõem o horizonte da sua investigação nos
diversos domínios das ciências humanas. Um dos factos notáveis é
precisamente a abrangência dos temas que C. Anta Diop decide tratar
nas suas obras e que voltará a reler e aprofundar, incessantemente,
partindo de uma intuição magistral que lhe serve de io condutor.
Evocando apenas alguns exemplos, a inal de contas, por que motivo
a história domina a problemática da investigação de C. Anta Diop, a
não ser por se tratar de um tema verdadeiramente estratégico? Neste
caso, para o investigador, a história em causa não é a história dos
acontecimentos, mas aquela que é analisada à luz de práticas socio-
económicas do passado africano. Constatou-se anteriormente que o
estudioso salienta o facto de que o Egipto negro foi «ao longo de toda
a Antiguidade, a terra clássica para a qual os povos mediterrânicos
acorrerão em peregrinação para beberem das fontes dos conhecimen-
tos cientí icos». Facto que foi cuidadosamente acobertado pelos estu-
diosos europeus. Ao retomar a questão das origens negras do Antigo
Egipto, C. Anta Diop não desvela uma realidade que teria escapado à
19. Ibidem, p. 14.
20. Ibidem, p. 25.
Propaganda ou verdade?
É possível questionar o valor de uma obra na qual o investigador é
indissociável do militante, na medida em que as suas ferramentas de
análise também se revelam meios de luta pela dignidade dos povos
africanos. Ao defender a tese da origem negra da civilização egípcia,
C. Anta Diop não está a sacri icar a verdade cientí ica à sua consciên-
cia política?
Eis a questão que está no cerne dos debates sobre a obra do egip-
tólogo e antropólogo africano e à qual o próprio respondeu, no seu
prefácio à segunda edição da sua obra fundamental, Nations nègres
et culture. Segundo salienta, o livro «foi escrito num período di ícil
(1948-1953) de luta anticolonial no qual de bom grado se dava lar-
gas às paixões». Situação que não impede o investigador de manter o
sangue frio e, no fulgor da luta nacionalista, é capaz de adoptar uma
«Há tendência para acreditar que todo o pensamento, toda a actividade intelec-
tual – que supostamente contribuem para despertar a consciência de um povo –
devem debruçar-se, forçosamente, sobre o campo cientí ico. No âmbito da nossa
abordagem, existia uma forma de evitar essa doença infantil da investigação cul-
tural. Bastaria admitir que cada povo tem um passado, por mais modesto que seja,
que é relativamente possível descobri-lo com uma investigação apropriada (…).
Para alcançar esse objectivo, não é necessário alterar conscientemente os factos
(…). Mesmo assim, não podia deturpar a verdade histórica, complacentemente,
inventando outras origens para os povos africanos para dar a impressão de um tra-
balho mais «sério», mais «cientí ico», sobretudo mais aceitável aos olhos de muitos
especialistas que, remontando a origem da raça negra a alguns milénios, acreditam
tratar-se de uma concessão extraordinária. Este foi, por essa razão, um verdadeiro
diálogo entre surdos31.»
«Por vezes, o tom da nossa argumentação é denunciado. Para nós, não se tata de
adoptar os defeitos dos textos que criticamos. Numa demonstração, deve estabelecer-
-se uma distinção entre a irmeza dos argumentos apresentados e o tom com que se
expressam. Não se concede qualquer indulgência relativamente ao primeiro ponto
que, só por si, emana essencialmente da ciência. No segundo caso, a atitude a adop-
tar depende das circunstâncias (…). Evita-se o debate cientí ico de uma maneira
que não engana ninguém ao substituir a refutação dos argumentos por uma expli-
cação «psicológica» da motivação de uma obra32.»
«África deve absorver o pensamento cientí ico moderno o quanto antes; devendo
esperar-se ainda mais da sua parte: para compensar o atraso que acumulou nesse
domínio ao longo de séculos, tem de entrar no plano da emulação internacional e
contribuir para o avanço das ciências exactas em todos os ramos, com o contributo
dos seus próprios ilhos35.»
«Os especialistas africanos devem adoptar medidas de preservação. Devem ser ca-
pazes de descobrir uma verdade cientí ica pelos seus próprios meios, dispensando
a aprovação de outrem, e de saber conservar a sua autonomia intelectual até que as
ideologias que se abrigam sob a capa da ciência se apercebam de que a era dos es-
tratagemas intelectuais chegou ao im. A competência torna-se a virtude suprema
do africano que pretende desalienar o seu povo36.»
36. C. A. Diop, Prefácio a T. Obenga, L’Afrique dans l’antiquité, Egypte Pharaonique, Afrique Noire,
1974, p. 10.
37. Fanon, op. cit., p. 240.
1. Sobre o tema, ler «Ch. A. Diop, l’hérétique», Peuples Noirs, Peuples africains, Nov.-Dez. de 1986 ;
Ver também o simpósio sobre a obra de C. A. Diop: «Problématique et Champ historique», Le Soleil,
23 de Abril de 1982; «Contrer les hégémonies idéologiques et scienti iques», id.; Edem Kodjo,
«Cheikh Anta Diop ou la pensée à contre-courant», Le Monde Diplomatique, Março de 1986.
«O africano que nos terá compreendido é aquele que, após a leitura das nossas
obras, terá sentido despontar outro homem dentro de si, animado por uma
consciência histórica, um verdadeiro criador, um Prometeu portador de uma nova
civilização e perfeitamente consciente daquilo que toda a terra deve ao seu génio
ancestral em todos os domínios da ciência, da cultura e da religião2.»
«A nossa geração não tem sorte na medida em que não conseguirá evitar a tem-
pestade intelectual; querendo ou não, será levada a pegar o touro pelos cornos, a
libertar o seu espírito das receitas intelectuais e dos fragmentos de pensamento,
para envolver-se resolutamente na única via verdadeiramente dialéctica da solução
dos problemas que a história lhe impõe.
Isso pressupõe uma actividade de investigação, no sentido mais autêntico, das
mentes lúcidas e ferazes, capazes de alcançar soluções e icazes e de serem consci-
entes por si mesmas, sem qualquer titela intelectual.
É a conjuntura histórica que obriga a nossa geração a resolver, numa perspectiva
favorável, o conjunto dos problemas cruciais com os quais África se depara (…). Se
não conseguir fazê-lo, igurará na história da evolução do nosso povo como a ge-
ração de demarcação que não terá sido capaz de garantir a sobrevivência cultural
e nacional do continente africano; aquela que, pela sua cegueira política e intelec-
tual, terá cometido o erro fatal ao nosso futuro nacional, terá sido a geração indigna
por excelência, aquela que não esteve à altura das circunstâncias5.»
6. Civilisation ou barbarie?, p. 12; cap. 16 e 17. Ver também Nations nègres et culture, vol. 2, 1979,
pp. 405-411.
II. Artigos
(1952). «Vers une idéologie politique en Afrique Noire», in La voix de l’Afrique Noire, organe des
Etudiants du RDA, Paris.
(1953 ). «La lutte en Afrique Noire », id.
(Dezembro 1952 – Janeiro 1953). «Alerte sous les Tropiques », Présence Africaine.
(1956). «L’Unité culturelle de l’Afrique Noire », 1 er Congrès des Ecrivains et Artistes Noirs, n.º
especial, Présence Africaine.
(1959). «Apports et perspectives culturelles de l’Afrique Noire», 2ème Congrès des Ecrivains et
Artistes Noirs, Présence Africaine, Roma, n.º especial.
(Julho-Agosto, 1957). «Civilisations africaines », in Horizons (la revue de la paix).
(1963). «Sociologie africaine et méthodes de recherche », Présence Africaine, n.º 48.
(1967). «Réponses à quelques critiques », in Antériorité des civilisations nègres, pp. 231-279.
(1976). «Comment enraciner la Science en Afrique: exemples wolof (Sénégal)», in Bulletins de
l’IFAN, Série B, vol. XXXVII, n.º 1.
(Janeiro-Dezembro de 1984). «Philosophie, Science et Religion. Les crises majeures de la phi-
losophie contemporaine », in Actes du Colloque philosophie et religion, Université de Dakar, 7-8
de Junho 1982, Revue sénégalaise de philosophie, n.os 5-6.
(1987). «Aports de l’Afrique à la civilisation universelle», in Actes du colloque international:
Centenaire de la Conférence de Berlin 1884-1985, Présence Africaine.
(1980). «Origine des Anciens Egyptiens», in Histoire Générale de l’Afrique, vol. II, Afrique anci-
enne, UNESCO.
A Ideia de África
V. Y. Mudimbe [ISBN: 978-989-8655-19-6]
Sentido e Poder
Georges Balandier [ISBN: 978-989-8655-30-1]