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Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus (1914/1977)

 Filha ilegítima de um homem casado, foi marginalizada durante a infância


 1937: mudança para São Paulo
 Moradora da favela Canindé; doméstica e catadora de lixo
 1958: conhece Audálio Dantas, jornalista da Folha de S. Paulo
 1960: publicação de Quarto de Despejo = reconhecimento internacional
 Registro, na forma de diário, do seu cotidiano na extinta favela Canindé
 Entradas:
15/07/1955 a 28/07/1955 (13 dias)
02/05/1958 a 31/12/1958 (175 dias)
01/01/1959 a 31/12/1959 (77 dias)
01/01/1960 (1 dia)

 PROSA POÉTICA
Gênero Diário
 Narrador em 1a pessoa: AUTOR
 Linguagem espontânea, coloquial; oralidade
 Documento histórico: retrata uma determinada época ou mesmo registra fatos do dia a dia
de uma pessoa que faz ou fez parte de uma determinada sociedade: problemas oriundos da
miséria e do descaso público com os mais pobres, que viviam às margens da sociedade X
Modernização e desenvolvimento do Brasil na década de 50
Carolina e suas diferentes identidades
 Mulher negra
• Catadora de lixo
 Mãe
• Escritora
 Favelada
• Contestadora
Análise crítica
 Carolina = Identidade plural
 Livro de RESISTÊNCIA e DENÚNCIA: narração dos dramas diários dos favelados
Carolina certamente modificou o padrão de representação da mulher negra na literatura e abriu espaço
para novos traçados, pois, embora desacreditada por muitos, fez o mais importante e inovador:
levantou sua voz de mulher negra diante do patrimônio masculino e branco para tomar para si o próprio
estereótipo, que há muito vinha sendo deturpado pelos padrões hegemônicos, e reconfigurou a imagem
ao seu gosto, — dentro e fora da literatura — conforme visto na apresentação dos diários.
TOLEDO, Cristiane Vieira Soares. O estudo da escrita de Si nos diários de Carolina Maria de Jesus: A
célebre desconhecida da literatura brasileira.

Carolina não foi apenas uma catadora de papel no sentido físico da palavra, mas também alguém que
catou e construiu o papel que representava na cultura do país. Sua vida é feita de papéis identitários
que representa e de outros que vende e dos cadernos que escreve. O papel é um devir: meio para encontrar
comida e suporte para sua escritura, condição para sua emancipação. O papel é o que a anima, que dá
forças, juntos aos filhos, para seguir. Carolina tem "fome" de papel: cata e escreve.
SANTOS, Lara Gabriella Alves dos. Carolina Maria de Jesus: análise identitária em quarto de despejo - diário
de uma favelada

Sua identidade se constrói nas tramas do cotidiano, que descreve nas folhas de cadernos, nas relações
com os vizinhos de infortúnio e nas andanças pela Cidade Jardim e outros espaços da grande
metrópole. A identidade é, portanto, compreendida como metamorfose e nunca como algo cristalizado,
acabado. Assim, Carolina encarna as relações sociais, configurando uma Identidade pessoal, uma
história de vida, no emaranhado das relações socioculturais e, logo, também uma identidade coletiva."
SANTOS, Lara Gabriella Alves dos. Carolina Maria de Jesus: análise identitária em quarto de despejo - diário
de uma favelada
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Quarto de despejo (1960) é uma compilação que leva o subtítulo de “diário de uma favelada” e
que tem as entradas organizadas pelo jornalista Audálio Dantas.
Foi escrito de modo intermitente, cíclico e, por vezes, com assunto repetitivo, ao longo de 5
anos, entre os anos de 1955 e 1960. Constitui-se num vasto acervo social e existencial do cotidiano da
favela do Canindé, às margens do rio Tietê, em São Paulo.
Carolina Maria de Jesus sempre foi independente por opção, “mãe solteira”, criou os seus três
filhos: João José, José Carlos e Vera Eunice. Morou no “barraco número 9, da rua A”, e foi catadora de
materiais recicláveis – sobretudo “papel”, que “serve para vender e para escrever”.
O diário é uma visceral tomada de consciência de si e dos outros, da sua cor da pele, do cenário
favelado em que vive e dos contrastes que encontra pelas ruas de São Paulo e que, por vezes, coleta:
“Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade”- 6 de Julho de 1958.
A vida de Carolina Maria de Jesus é literalmente feita de papéis: dos que vende para sobreviver
e dos que desempenha na vida como negra, mulher, mãe, favelada e escritora. Os múltiplos “papéis’
desempenhados pela autora atravessam as relações de gênero, raça e classe social e seus escritos
emitem ao leitor, por espelho, suas vivências – uma visão de quem está inserido no que escreve: “...Há
de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais” -
29 de Maio de 1958 .
Jogando com os recursos que tem, Carolina Maria de Jesus “ameaça” citar o nome dos
desafetos no livro, atribuindo ao imaginário literário o poder de resolver alguns dos seus problemas
reais: “Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que a espada. E as feridas
são incicatrisáveis” - 1 de Junho de 1958.
Registra nas entradas o cotidiano da favela: as brigas; as tentativas de homicídio; os casos de
infidelidade, pedofilia e incesto; as injustiças e transgressões sociais, o oportunismo político e
religioso; e, especialmente, a fome (para ela a “fome é amarela”): “Eu quando estou com fome quero
matar o Jânio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades cortam o afeto
do povo pelos políticos. [...] O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A
fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças” - 10
de Maio de 1958.
Sem escolaridade regular, mas com muita sabedoria e leitura, Carolina Maria de Jesus registra
suas variantes linguísticas, bem como expressões populares e de época, sempre com o desejo de se
tornar escritora e mudar de vida: “É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com
esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela. Não tenho tempo para ir na casa de
ninguém” - 27 de Julho de 1955.
“... Cheguei na favela: eu não acho geito de dizer cheguei em casa. Casa é casa. Barracão é
barracão. O barraco tanto no interior como no exterior estava sujo. E aquela desordem
aborreceu-me. Fite! o quintal, o lixo podre exalava mau cheiro. Só aos domingos que eu tenho
tempo de limpar” 31 de maio de 1958 (p.42).
“Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades
de delinquir do que tornar-se útil a pátria e ao pais. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um
relatório e envia para os políticos? O senhor Jânio Quadros, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de
Barros? Agora falar para mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas
dificuldades. ...O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também
é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças” 10 de Maio de
1958 (p.26).
“16 DE JULHO DE 1955:
Fui buscar água. Fiz o café. Avisei as crianças que não tinha pão. Que tomassem
café simples e comesse carne com farinha. Eu estava indisposta, resolvi benzer-me. Abri a boca
duas vezes, certifiquei-me que estava com mau olhado. A indisposição desapareceu, sai e fui ao
seu Manoel levar umas latas para vender. Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender”
(p.9).

“1 DE JANEIRO DE 1960:
Levantei as 5 horas e fui carregar água” (p.167).

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