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Gente ‘do bem’ e a malvada diferença das diferenças

Yuri Martins Fontes

Falar de política no Brasil se tornou repetir o óbvio (infeliz do povo que precisa do óbvio). É
insistir no que o mundo já sabe: que estamos sob um regime de malucos.
Um governo de coalizão entre: uma ala militar-entreguista (adestrada na Escola das Américas
sob o mito da supremacia estadunidense à qual, nós, eternos “dependentes, devemos nos vender); e
a outra ala (que começa a cair na boca do povo), a ala dos completos idiotas, uns tais crentes na
conspiração comuno-globalista, cruzados com terraplanistas adão-e-eva – asseclas de astrólogo
chulo alçado a filósofo pela manada da classe média pouco cultivada (esta caprichosa cria do
matrimônio entre a mídia corporativa monodiscursiva e nossa planificada crise da educação).
Um desgoverno, em suma, sem qualquer projeto de país, construído como rebarba de um golpe
mesquinho: último recurso da “direita-ilustrada”. Um processo abertamente inconstitucional,
internacionalmente sujo, levado a cabo pela intelligentsia das panelas, com seu grito contra a
“corrupção” (persistente retórica da reação, usada de Hitler a Collor): em nome do desenvolvimento
do atraso brasileiro.
Consumou-se assim o ódio plantado pela imprensa corporativa: a supressão mesquinha de
mínimas conquistas sociais, em defesa de supostos “equilíbrios fiscais”, que podem ser assim
resumidos: manutenção das altas taxas de lucro, em época de uma generalizada crise capitalista
global.

Gente do bem – ou do humanismo moderado


O golpe de 2016, contudo, tem uma particularidade: foi executado com a ajuda da “gente do
bem”. Aquela gente que aparece sempre sorrindo nas fotos, ao lado de “gente-bonita” (aos
psicólogos cabe entender o que mais significa o termo, além do racismo evidente); frequentadora de
vernissages e cafés gourmets; essa gente da paz – “não suporto o radicalismo, gente!” –, gente
ponderada e sempre com um bom conselho quase humanista para dar (reproduzido da novela da
Globo ou, em casos mais cults, das séries-netflix da vida).
Essa gente do bem – ao lado dos eruditos da economia de (do) mercado, e oportunamente aliada
ao irracionalismo fascista – pôs a última pedra do golpe “anticorrupção”: o “termo final” de 5
séculos desta amarga prática que escandalizou (só por 13 anos) nossa nação.
E o mais lindo disso tudo – gente!! gritam em uníssono – foi que não se precisou da “violência”
desses desequilibrados que em passeatas quebram as vidraças dos pobres bancos e méqui-donaldis.
Aliás, os “do bem”, estes seres límpidos e apreciadores da harmonia, quase nem sequer precisaram
sair do conforto do sofá, exceto num ou noutro domingo de sol, em que um passeio de metrô grátis
(patrocinado pelo PSDB) os levou à praça pública, retirando-os de seus assépticos bairros quase-
nobres, retiros silenciosos com alamedas irretocáveis onde gorjeiam os pássaros da alienação: e
onde as ruas são especialmente “limpas” de toda visão da miséria humana (que pacífica e “sem
violência” habita logo ali ao lado). [*Vale aqui uma digressão para frisar que esta proximidade
urbanística não é tão negativa como pode parecer, já que evita que suas empregadas domésticas, a
quem generosamente ofertam a possibilidade de limpar suas privadas de merda, cheguem atrasadas
ao serviço, o que logicamente implicaria em descontos de seus salários também de merda, que de já
tão mínimos, desapareceriam].
Mas não tomemos nosso tempo para bater no desgoverno do Cão Moribundo, coisa-ruim – que-
nem-se-diga! – que, com seus monstrinhos amestrados, já tuita com a cabeça perigosamente alijada
do pescoço.
Antes, examinemos mais de perto essa gente do bem: a visão binária bem-mal dessa classe
média meio culta e até meio humana, que se crê meio europeia e se declara meio amante do
“centro” político, meio amante da centro-esquerda (“mas da violência incendiária contra inofensivas
latas de lixo, jamais!”). Gente para quem a paz social (especialmente a paz em seus condomínios e
vilas fechadas) é apenas uma questão de cada qual pensar positivamente no bem universal:
“gratidão gente”!
Vejamos então um pouco da prática dessa galera tão querida pelos vizinhos de portões não
menos eletrificados; e sempre bem informada pelos editoriais gramaticalmente corretos das
terceiras páginas dos jornalões gurus da elite (nessa terra de gurus, digo, da preguiça de pensar).
Esta gente do bem conhece algo da “história”, embora quase sempre sua leitura, tenra e breve (já
que tempo é dinheiro e ninguém merece textão, né gente?), venha já filtrada pela letra “intelectual”
dos magnatas da comunicação, essa gente ainda mais “do bem”, já que publicam o que é bom pro
povo (em especial, pro povo dono de banco).

A lama do dia-a-dia: entre vivenciar e experimentar o Outro


Qualquer eleição dentro do capitalismo é uma derrota. A de 2014 não poderia ser diferente. O
problema é que dentro do poço, agarrado às paredes, qualquer erro de cálculo faz com que a queda
seja ainda mais violenta – especialmente para os que já nasceram mais prejudicados.
Política de verdade não se faz em eleição, mas no cotidiano, na doação de tempo de sua própria
vida, no dia-a-dia dedicado ao fomento da atitude crítica, aos projetos de formação (educativos,
culturais, jornalísticos...), ou onde quer que se decida atuar social e coletivamente.
Na política de verdade é preciso se experimentar profundamente a situação vivida pelo
Outro. Não basta a “vivência” rasa de um instante fotográfico da situação: esse olhar “estudioso”
sobre o fenômeno, tal qual o que se usa num zoológico, ou como aquele da política bairrista tão
divertida de certa classe média dita “proativa”.
Manja dono de “espaço cultural” de apelo popular, que no seu “projeto social” tem a manha de
cobrar 9 ou 10 contos na latinha de cerveja? Haja proatividade.

Gente do bem: a arte da captação de “capital social”


Essa é a gente do bem (conceito talvez próximo ao tal “lado bom da força”): “gente proativa”,
repetem, embora não saibam bem o significado de tal chavão alçado a neologismo, fruto da moda
lançada por escrevinhadores-de-mercado que, não tendo ideias para transmitir, atiram ao público
novas palavrinhas legais.
Os “do bem” são conhecidos “experts” na esperta captação de recursos sociais para projetos
vagos – “pela causa do verde no bairro”, “em prol da cultura da paz e do amor” –, realizados junto a
seus parceiros também do bem (como corporações semiescravistas que plantam mudinhas cidadãs
do saudoso pau-brasil em terras regadas com sangue de trabalhadores soterrados pelos competitivos
cortes da reengenharia de segurança).
Como representantes desse maniqueísta e etéreo “bem”, há ainda os militantes pela revitalização
do espaço público – especialmente incansáveis no tocante à revitalização do espaço público do
quarteirão ali onde eles moram: “ninguém merece se privar da qualidade de vida, né gente?!”.
Entretanto, estas gentes do bem são bem mais conhecidas por sua refinada arte da “captação de
capital social”: são especialistas em captar bons amigos, bons casamentos, bons sócios, em se
relacionar – casualmente, é claro – sobretudo com milionários. (É certo que a população de
milionários não anda atualmente muito majoritária no país, mas pede-se aos leitores que não caiam
no anacronismo de suas avós, que confundiam tal prática com o vulgar golpe-do-baú. Não! Hoje é
tudo mais bem-vestido, legal, discreto…).
Estes tais “do bem” são sobretudo detentores da expertise (perdão pelo raso anglicismo
descritivo, mas me falta imaginação pra encontrar na nossa pobre língua um termo inútil à altura) –,
detentores da expertanalhice de promoverem sua própria qualidade de vida, seus bons ganhos
mensais sob fachada filantrópica, altruísta – e se possível, claro, obter aquele brinquedo novo pro
parquinho infantil do Fulaninho, né gente, “aqui do lado de casa” (em troca da placa de bronze do
banco patrocinador no portão de entrada).

Ativismo pessoal versus ativismo social


De ativismo cidadão, em ativismo cidadão; de críticas construtivas, a coros juvenis contra a
“falta de ética na política” (como se “a política” fosse instituição única e independente das atitudes
de cada um); de falácias em falácias, o Brasil (que nunca avançou muito) regride uma década por
mês, desde o golpe.
Na lama, difícil saber o que é certo, mas é sempre mais fácil verificar a falcatrua.
Àquele que tem o hábito regular da autocrítica sobre sua vida e uso do tempo, ao militante social
que não seja “de ocasião”, cabe meter a mão na massa onde quer que se precise intervir, haja ou não
haja imundície.
Para isso, não basta lutar incansavelmente pela instalação do jardim público florido na rua
de casa; mas é preciso dedicar uma hora sincera do dia, um período da semana, um tempo da
própria existência para se envolver em lutas primordiais (me refiro, é claro, àqueles que não têm
todo seu tempo roubado na defesa ímpia da sobrevivência).
Estas lutas primordiais não são “por um bairro mais limpo”, com mais praças e brinquedos e
bancos (me refiro aos bancos “do bem”) – ainda que com isso a cidade ficasse mais receptiva à
vida, o que não é de pouca monta.
Não. As lutas primeiras (ainda) são pelos direitos humanos mais básicos, que estão sendo
subtraídos em tempos de crise do capital, quando os especuladores e agiotas do sistema se voltam
ao “socialismo” dos prejuízos.
São os direitos humanos trabalhistas, ambientais, previdenciários, educacionais que merecem
nossa atenção: direitos, aliás, anos-luz mais “humanos” do que o tão adulado e analfabeto direito
ao voto, que desde a crise de 2008 só vigora quando não ganham os “déspotas corruptos” ou
“bolivarianos” (como se adjetiva a todo o campo político minimamente progressista).
Há sempre um problema mais urgente a ser pautado e enfrentado antes de que outros; ainda que
outros devam, em seu tempo, chegar a ser pauta.
O que separa o ativista do bem-bom, daquele ativista cansado (que desdobra seu exíguo tempo
livre para ir à merda do real), é saber pautar a “prioridade social” com um olhar amplo, para além
de orgulhosas caridades ou oportunismo bairrista.
Para sair do golpe é necessário sair das redes sociais, sair do conforto do sofá, da vilinha do
bairro ajeitado, sair da conveniência do pseudoativismo “cidadão”, e se organizar em coletivos,
partidos, movimentos (efetivamente) sociais: ações que visem não o prepotente “estado da arte” da
cidadania (modelo Europa sustentada pela África), mas uma vida menos indigna aos mais afetados
pelo estado iníquo das coisas.
Mas não se pode partir para cima dos problemas maiores, sem se ir aos “lugares” destes
problemas, aos locais dessas violências caladas; sem se conhecer de fato as pessoas “diferentes” que
habitam, que sofrem esses problemas diferentes (e mais graves).

“Tem que saber lidar com a diferença”: ou da “diferença das diferenças”


Falando em “diferenças”, vejam o que virou moda nos discursos das escolinhas particulares
formadoras de “capital social”: estas dos bons cidadãos, amigos de outros cidadãos ainda melhores
(melhores de vida).
Estas tais instituições voltadas a pessoas “do bem” (os mais iguais que outros, mas sempre
defensores da igualdade, democracia, honestidade, bons-costumes, moral e de todos os lugares-
comuns de fácil acesso), dedicam-se agora à seguinte pregação: “Nossos filhos devem saber desde
cedo lidar com as diferenças”.
Mas curiosamente omitem dos pimpolhos a existência de certas “diferenças” cruciais; caso da
desigualdade social, que em nossa pátria afundada pelo golpe (que enriquece bilionários e pauperiza
a pobreza), nos elevou a mais um patriótico récorde: nosso abismo entre ricos e miseráveis é o
maior da história.
Evitam assim que a pureza dos herdeiros se manche com essa impertinente constatação: a de que
há desumanas diferenças entre as diferenças.
Há “diferenças violentas” a serem exterminadas (pressuposto para a democracia e paz social,
hoje reduzidas a discursos abstratos).
E há “diferenças formadoras”, que devem ser experimentadas – justamente para propiciar a
consciência da necessária destruição daquelas outras diferenças, num gesto que também pode, ou
precisa, conter algo de pontual violência (estabelecendo assim uma inflexão, um momento chave na
redução da violência cotidiana estatal – estrutural).
Sim, as diferenças, têm diferenças. E muitas. A escola, a universidade – para além das delícias
dos exames, das gentes peladas, sexo, MPB, roquenrol e baseados (como bem notam bolsonaros)
– serve também pra gente aprender a diferença entre desigualdade e diversidade.
Aquela, a diferença do “desigual”, negativa, afasta os homens: ameaça-os sob a carga das
hierarquias.
Esta, a diferença do “diverso”, positiva, consiste na saudável capacidade de olhar o Outro, de
entender, de sentir como o Outro – ou ao menos tentar essa aproximação.

É assim que, na “polis”, na prática da vida em sociedade (a política), os cidadãos de bem e os


filhos dos cidadãos de bem poderão apreender efetivamente o valor e o problema das diferenças. E
aí, quem sabe, transcender seus “projetos sociais de bairro”, e até ensinar algo de útil a seus irmãos
terraplanistas. Um processo que serviria inclusive para a diferenciação entre estas duas facções da
classe média acrítica. Pois muitas vezes, para além dos discursos cara-pintadas, das passeatas
coloridas, festas bacanas ou almoços familiares, para além da anódina filosofia de boteco esta gente
“do bem” tanto se assemelha aos fascistas (na prática elitizada de seu dia a dia).
Ah, se a filosofia já escrevesse cordas, quanta gente do bem não estaria pendurada no inferno.

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