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neoconservadoras de
agitprop: o fator subjetivo da
contrarrevolução1
Reginaldo C. Moraes
Este texto foi preparado como base escrita para uma exposição oral, em semi-
nário sobre o “Conservadorismo e a Nova Direita”. O título é provocativo e
alusivo, utilizando termos usualmente empregados para mencionar formas de
organização e mobilização dos partidos de esquerda. Também a referência à
“contrarrevolução” é uma hipérbole.
As “células” a que se refere o texto são os think tanks e front groups da nova
direita americana, centros de propaganda e agitação fomentados por empre-
sários neoconservadores. E que se multiplicaram depois de 1970. Começo
com uma digressão a respeito do exercício da política nas democracias repre-
sentativas para demarcar o terreno em que essas organizações atuam. E para
diferenciá-las de outras organizações políticas dos empresários – como as asso-
ciações, os grupos de pressão e lobbies, os partidos políticos.
A forma política que costumamos chamar de democracia representativa
é um ser com várias caras. Uma delas é esta: trata-se de um instrumento de
“aferição” de preferências, vontades, escolhas individuais, que se baseia na
“eleição”, isto é, na escolha dos indivíduos. O sistema, supostamente, mede as
1
Comunicação para o Seminário Interdisciplinar promovido pelo DCP-Unicamp, sobre
Conservadorismo e a Nova Direita.
sabe o que quer. Mas a frase tem outro lado: o povo quer o que sabe, o que lhe
é permitido conhecer. O que não sabe e não está constantemente diante de sua
“representação mental” de fato não existe como elemento para escolha. Nem
sequer é levado em conta, não é pensado.
Essa ideia já foi elaborada e discutida por muita gente. Um livro célebre de
Elmer Erice Schattschneider, por exemplo, lembra o que é uma visão “realista”
da democracia: “Whoever decides what the game is about also decides who gets
into the game”.2
E Robert Reich, prefaciando um antologia sobre o Poder das ideias públicas,
resume a moral da história:
How the national debate is framed, and what options are put before the public, can be
more important ultimately than the immediate choices made. The framing defines the
breadth of the nation’s ambitions, and thus either raises or lowers expectations, fires or
depresses imaginations, ignites or deflates political movements.3
2
Trad.: “Quem decide do que se trata o jogo também decide quem entra no jogo”. (N. E.)
3
Trad.: “A maneira que o debate é enquadrado e quais opções são colocadas para o público
são mais importantes, enfim, que as escolhas imediatas feitas. O enquadramento define o
leque das ambições e, assim, aumenta ou reduz as expectativas, inflama ou deprime imagi-
nações, acende ou esvazia movimentos políticos. (N. E.)
Figura 1
THINK THANKS 1.0
FUNDAÇÕES
Decolagem 1970-90
CORPORAÇÕES
ASSOCIAÇÕES
EMPRESARIAS
FRONT GROUPS
THINK THANKS 2.0
SOFT DARK
Money Money
LOBBIES PACS
Decolagem a partir de 1969
Quadro 1
Orçamento
em 1996
1940 1960 1970 1980 1990
(US$
milhões)
30 Heritage*
25 a 30
20 a 25 Hoover
Center for
American
Strategic Free Citizens Sound Family
15 a 20 Enterprise
International Congress Economy Research
Institute**
Studies
* A Heritage Foundation é um dos think tanks mais um dos mais influentes, criado em 1973 pelo magnata
da cerveja Joseph Coors e animado pelo ativista de direita Paul Weyrich. A Heritage tem uma estratégia
agressiva de marketing, difundindo documentos de análise e proposição de políticas públicas. Tem também
conexões fortes com governos, fornecendo quadros. Recebe muito dinheiro da Bradley, Sara Scaife
Foundation, Richard Mello Scaife.
** A American Enterprise Institute recebe, desde muito tempo, fortunas da Bradley, Olin etc. Sustenta
scholars conservadores para que produzam “estudos” que deem legitimidade acadêmica para os dogmas
conservadores, como Charles Murray e Dinesh D’Souza. Murray depois migrou da AEI para o Mannhatan,
que financiou seu Loosing Ground.
Orçamento
em 1996
1940 1960 1970 1980 1990
(US$
milhões)
Cato***
American
Legislative
10 a 15 Hudson
Exchange
Council
Mannhatan
National Center
for Public
Policy Research,
National
Center for
Reason Progress
Policy Analysis,
Ethics & and
Competitive
0a5 Public Freedom
Enterprise
Policy Empower
Institute, Atlas
Center America
Economic
Research
Foundation,
Employment
Policy Foundation
Obs.: O quadro foi montado pelo National Committee for Responsive Philanthropy (NCRP), para o ano de
1996.
*** Cato Institute recebe dinheiro das fundações da família Koch. É o principal think tank da facção
“libertária” hayeckiana.
É verdade que existiam think tanks muito antes dos anos 1970. Datam
do começo do século XX, por exemplo, a Sage Foundation, o Brookings
Institute, o Twentieth Century Fund. É a velha guarda, em boa parte “li-
beral”, o que nos EUA quer dizer reformador ou ligeiramente reformador.
Seu objetivo era, basicamente, pesquisa aplicada para “resolver problemas”
de políticas públicas. Eram a criatura de uma crença – a engenharia social
e a gestão “científica” dos problemas sociais (os grandes problemas urbanos,
sobretudo). Eram “intermediadores” entre a academia, a sociedade e os for-
muladores de políticas públicas. Os think tanks da nova direita não são assim.
A forma de organização e a distribuição de gastos deles mostra isso. Um de
seus animadores e dirigentes dizia, a respeito: precisamos menos de ideias
novas do que de modos novos de difundir ideias verdadeiras e já testadas. Em
suma, difusão de crenças bem estabelecidas.
OLD-STYLE Fund
THINK TANK Raising
Fund
Raising
Research
Fund raising
Policy
research
TODAY’S and
development
Lobbying CONSERVATIVE
(National) THINK TANK
Grassroots
mobilization Marketing
and and
constituency Leveraging communictions
development change at
State and
local levels
Os novos think tanks ainda fazem pesquisa. Precisam pelo menos simular
fazê-la, se querem dar alguma “autoridade científica” a suas peças de propa-
ganda. Mas esta última é o elemento fundamental. A maior parte dos recursos
e quadros dos think tanks é voltada para as ações de sedução e conversão –
marketing, comunicação, assédio a parlamentares e executivos, organização de
grupos de base (grassroots) etc.
Com isso já estamos estabelecendo as diferenças. Voltemos ao “quando”,
ao contexto, porque ele é decisivo para explicar a natureza e a missão dos no-
vos think tanks.
Lobbies e organizações voltadas para a “advocacia de interesses” são coisa
antiga nos EUA. Mas essas organizações – muito concentradas em Washing-
ton D.C. – cresceram monstruosamente na mesma época dos think tanks.
Viraram lenda, a lenda da famosa Rua K (K Street) de Washington, tema de
novelas policiais e séries de TV.
Por que esse florescimento empresarial? Há uma ampla literatura que explica
isso. Não vou explorar todo o contexto, apenas recuperar algumas informações.4
Os anos 1960 foram marcados por alguns conflitos marcantes e, até, por
alguns avanços sociais – direitos civis, reformas das políticas de saúde e segu-
ridade, defesa do consumidor e do meio ambiente. Ao mesmo tempo, no final
daquela década já era visível um declínio do período conhecido como “Idade
de Ouro” ou “Vinte e cinco gloriosos” do pós-guerra, o período mais ferven-
te de acumulação de capital e também o período de reinado inconteste dos
EUA como líder do “Ocidente”. Surge, mesmo nos anos 1970, uma literatura
declinista. Durante os anos 1960, lutas sociais e governos democratas refor-
mistas ampliaram conquistas para o lado de baixo. Ou seja, parecia avançar um
“progressismo doméstico”. Mas também foi o momento da escalada no Vie-
tnã, uma guerra sem perspectiva e cara, em todos os sentidos. Também era o
período em que as economias reconstruídas (Japão e Alemanha, por exemplo)
competiam com os EUA. No final dos anos 1960, além do fortalecimento de
movimentos demandando regulações estatais e direitos civis, disseminava-se
também uma certa cultura (ou contracultura) de descrença no American way.
4
Vou selecionar passagens ou informações de dois estudos. Os livros de David Vogel (1989),
Fluctuating Fortunes: the Political Power of Business in America, e de Jacob Hacker e Paul
Pierson (2010), Winner-take all Politics.
5
Cf. Vogel (1989), cap.8, principalmente p.196-197.
Durante a década de 1970, os líderes empresariais tornaram-se cada vez mais pre-
ocupados com a profundidade e a persistência de atitudes públicas negativas em
relação a eles. Como disse o presidente da Westinghouse Electric Corporation:
“essa hostilidade é real. Professores universitários não gostam de nós. A mídia
não confia em nós. O governo não nos ajuda. Alguns grupos de interesse não nos
querem ver por perto. E cada um deles cria uma onda cada vez maior de hostilida-
de — professores expandem a onda em relação a seus alunos, grupos de cidadãos
para o governo, o governo para a mídia e os meios de comunicação para o público
em geral. De repente nós olhamos ao redor e me pergunto por que estamos tão
isolados aqui na terra do business ”. (Vogel, 1989, p.213-214)
direita nos anos 1980, aquela dos think tanks que se formaram nos anos 1970
para dar corpo ao neoliberalismo de Thatcher e Reagan, para que eles em-
polgassem e tomassem os seus partidos (o Conservador e o Republicano).
Eles já eram think tanks versão 2.0. Mas... aparentemente, há uma espécie de
novíssima direita com Bush Jr. E essas organizações parecem também ter uma
outra cara, missão, composição. Novos fronts e novos métodos, também. Não
necessariamente think tanks 3.0, mas, quem sabe, think tanks 2.1.
Nesta nova conjuntura, não apenas os think tanks se tornaram elementos
centrais do “fazer política”. Já eram assim. Eles se transformaram radicalizando
bastante o papel que já vinham desenhando nos anos 1970. Mais ainda do
que nos anos 1970-80, os think tanks da “novíssima direita” têm se tornado,
cada vez mais, elementos fundamentais não para fornecer respostas a questões
colocadas diante dos cidadãos. Têm se tornado fundamentais para parametri-
zar as próprias questões. Em outras palavras, têm cumprido papel relevante
de agenda setting ou de framing para as questões. E isso ocorre de modo deli-
berado, como uma estratégia política clara: a “novíssima direita” cria e mul-
tiplica think tanks e aparatos de mídia (impressa, eletrônica, virtual etc.) para
modelar o ambiente político. De outro lado, operando também como lobbies
(pressionando para aprovação de certas políticas ou para o direcionamento das
já existentes), eles conseguem esse mesmo objetivo: policies make polity,6 diz a
sentença. Assim, por exemplo, ocorre com o fato de determinados programas
públicos (provisão de saúde, educação etc.) serem financiados pelo público,
mas “entregues” através de canais privados: isto os faz, ainda que públicos,
reconhecíveis pelo usuário como privados. Utilizei, para provocar, o termo
“células” no título desta fala. Os think tanks vão criando uma grande diversi-
dade de formas – tanto no que diz respeito às “áreas temáticas”, quanto no que
diz respeito ao espaço, à geografia de sua atuação. Os partidos de esquerda têm
células “temáticas” para intervenção nas “frentes de massa” específicas – células
de metalúrgicos, professores, mulheres, artistas etc. Também se organizam em
células para responder à geografia – não há apenas “célula de metalúrgicos”,
mas “célula de metalúrgicos da zona oeste da cidade”, por vezes célula de fá-
brica etc. Os think tanks cedo percebem que precisam se diversificar, criando
6
Trad.: “Políticas fazem política”. (N. E.)
gasto pelos dois candidatos presenciais de 2004, juntos. É um partido sem ser,
e sem precisar dizer de onde vem seu dinheiro. Esse é o dark money. É isso que
permitiu coisas outrora inacreditáveis. Grupos ligados aos Koch financiaram
44 mil anúncios de TV entre janeiro 2013 e agosto 2014, dezoito meses. Isso
dá 10% do total de anúncios de TV!
Vamos a alguns nomes e números. Quais são as principais células de agi-
tprop dessa contrarrevolução neoconservadora? Algumas são mais antigas e
mais visíveis, diferentemente dos front groups variados que surgem, desapare-
cem, ressurgem e mudam de nome e cara.
O NCRP fez um estudo sobre o labirinto conservador e seus financiadores
principais. Levantou as doações de doze maiores fundações conservadoras no
período 1992-94. São elas:
• Lynde and Harry Bradley Foundation
• Carthage Foundation (Familia Scaife e Mellon)
• Earhart Foundation
• Charles G.Koch, David H. Koch and Claude R. Lambe charitable founda-
tions
• Phillip M. McKenna Foundation
• J. M. Foundation
• John M. Olin Foundation
• Henry Salvatori Foundation
• Sarah Scaife Foundation (Scaife e Mellon)
• Smith Richardson Foundation
O direcionamento das doações visava:
• Criar programas de pesquisa conservadores, treinar jovens pensadores e
ativistas conservadores e combater as tendências progressistas nos câmpi;
• Construir uma forte infraestrutura nacional de think tanks e grupos de
interesse voltados para políticas (advocacy groups);
• Financiar mídias alternativas, grupos de vigilância e monitoração sobre a
mídia etc.;
• Ajudar escritórios de advocacia conservadores e pró-mercado;
Figura 4
Grupos de mídia
7,8%
Organizações
jurídicas
5% Think Tanks e Lobbies
Think Tanks e Lobbies nível nacional
nível estadual 38%
4,4%
Instituições
filantrópicas
e religiosas
2,6%
Instituições acadêmicas
42%
Várias outras fundações deram somas consideráveis – mais que US$ 100
milhões para causas conservadoras entre 1998 e 2004, como por exemplo
Walton Family Foundation, Arkansas, criada pelos herdeiros de Sam Walton,
do Wal-Mart; já Richard e Helen DeVos Foundation, Michigan, apoia grupos
da Direita Cristã, como o Focus on the Family, que possui vastos recursos de
mídia e comunicações.
Como se vê no diagrama mais acima, empresários injetam dinheiro nas
fundações “filantrópicas”. E estas financiam os centros de intervenção, os
think tanks. Vejamos então quais são as vinte maiores entidades conservadoras
na virada do milênio (1999) e seu orçamento (1996), segundo dados colhidos
pelo NCRP.
Fonte: NCRP .
7
Exemplos. Wisconsin Policy Research Institute (W.P.R.I.). Hudson Institute, Indiana. Ma-
nhattan Institute, New York City.
Referências bibliográficas
CALLAHAN, David D. $1 Billion For for Ideas: The National Conservative Think Tanks in the
1990s. Washington, D.C.: National Committee for Responsive Philanthropy, march 1999.
HACKER, J. S.; PIERSON, P. Winner-Take-All Politics: How Washington Made the Rich
Richer and Turned Its Back on the Middle Class. Nova York: Simon & Schuster, 2011.
KREHELY, J.; HOUSE, M.; and KERNAN, E. Axis of Ideology Conservative Foundations and
Public Policy. Washington D.C.: NCRP, march 2004.
REICH, R. B. (ed.). The Power of Public Ideas. Harvard: Harvard University Press, 1990.