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História da Globalização

Autores: Profa. Ivy Judensnaider


Prof. Maurício Felippe Manzalli
Colaborador: Prof. Vinícius Albuquerque
Professores conteudistas: Ivy Judensnaider / Maurício Felippe Manzalli

Ivy Judensnaider

Economista pela Fundação Armando Álvares Penteado e mestra pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, no Programa de Estudos Pós‑Graduados em História da Ciência e da Tecnologia. Atualmente é professora da
Universidade Paulista (UNIP), onde coordena o curso de Ciências Econômicas no campus Marquês (SP). Também atua
no setor de publicações, sendo autora de inúmeros textos de divulgação científica publicados na web. Nos últimos dez
anos, tem trabalhado na elaboração de textos e de livros para uso em ensino a distância.

Maurício Felippe Manzalli

Economista pela Universidade Paulista (UNIP) e mestre em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Atualmente é professor da UNIP nos cursos de Ciências Econômicas e Administração e também é
coordenador do curso de Ciências Econômicas na mesma universidade, tanto na modalidade presencial quanto a
distância. Tem experiência em administração e finanças, notadamente àquelas ligadas ao setor de transporte de
passageiros, atuando há 29 anos no ramo.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

J92h Judensnaider, Ivy.

História da Globalização. / Ivy Judensnaider, Maurício Felippe


Manzalli. – São Paulo: Editora Sol, 2016.

180 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2-089/16, ISSN 1517-9230.

1. Globalização. 2. Comércio Mundial. 3. Relações econômicas. I.


Manzalli, Maurício Felippe. II. Título.

CDU 338(100)

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
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Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças

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Vice-Reitora de Unidades Universitárias

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Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa

Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez


Vice-Reitora de Graduação

Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Souza
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Lucas Ricardi
Giovanna Oliveira
Sumário
História da Globalização

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8

Unidade I
1 ORIGENS HISTÓRICAS, CAPITALISMO MERCANTIL E AS CRÍTICAS LIBERAIS..............................9
1.1 A Inglaterra e a primeira Revolução Industrial......................................................................... 17
1.2 O apogeu: a segunda Revolução Industrial................................................................................ 25
1.3 A crise......................................................................................................................................................... 34
1.4 A Primeira Guerra Mundial............................................................................................................... 41
2 A CRISE DE 1929.............................................................................................................................................. 46
2.1 A gênese da crise................................................................................................................................... 46
2.2 O New Deal.............................................................................................................................................. 52
3 A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL................................................................................................................ 55
4 TEORIAS EXPLICATIVAS DA ECONOMIA E DO COMÉRCIO MUNDIAL.......................................... 61
4.1 Teoria “Pura” do Comércio Internacional.................................................................................... 61
4.1.1 O mercantilismo....................................................................................................................................... 62
4.1.2 Visão de David Hume acerca do comércio internacional........................................................ 63
4.2 Relações internacionais na visão da Teoria Clássica............................................................... 65
4.2.1 Adam Smith e suas vantagens absolutas...................................................................................... 65
4.2.2 David Ricardo e suas vantagens comparativas........................................................................... 67
4.3 Comércio internacional na visão neoclássica: o Modelo Heckscher‑Ohlin................... 69
4.4 Relações internacionais na perspectiva marxista.................................................................... 70
4.4.1 Abordagem de Karl Marx...................................................................................................................... 71
4.4.2 Abordagem de Paul Marlor Sweezy................................................................................................. 72
4.4.3 Visão de imperialismo por Rosa Luxemburg................................................................................. 73

Unidade II
5 REORDENAMENTO MONETÁRIO-FINANCEIRO MUNDIAL............................................................... 79
5.1 A Conferência de Bretton Woods e suas instituições............................................................ 79
5.2 Os Anos Dourados do Capitalismo................................................................................................. 82
5.3 A Guerra Fria........................................................................................................................................... 86
5.4 O fim do Acordo de Bretton Woods e o processo inflacionário......................................... 90
5.5 A crise do petróleo e os efeitos na economia mundial......................................................... 95
6 DO KEYNESIANISMO AO NEOLIBERALISMO........................................................................................100
6.1 Mises e Hayek.......................................................................................................................................107
6.1.1 Mises e sua praxeologia......................................................................................................................107
6.1.2 Hayek e o neoliberalismo econômico............................................................................................109
6.2 Neoliberalismo, neossocialismo ou social democracia........................................................112
6.3 Mudanças no cenário mundial: desafios para superar a crise..........................................118
6.4 Consenso de Washington................................................................................................................122
7 GLOBALIZAÇÃO E MUNDIALIZAÇÃO......................................................................................................125
7.1 Diferentes conceitos de globalização.........................................................................................126
7.1.1 A perspectiva histórica....................................................................................................................... 128
7.1.2 A perspectiva da compressão do espaço e do tempo............................................................ 129
7.1.3 A perspectiva da ideologia................................................................................................................ 129
7.1.4 A perspectiva econômica................................................................................................................... 130
7.2 Ajustamento macroeconômico nos países centrais como
fundamentação ao processo de globalização econômica.........................................................132
7.3 Globalização e seu paradigma produtivo..................................................................................134
7.4 As dinâmicas da globalização........................................................................................................139
7.4.1 Globalização comercial....................................................................................................................... 139
7.4.2 Globalização produtiva....................................................................................................................... 142
7.4.3 Globalização financeira...................................................................................................................... 144
7.4.4 Globalização tecnológica................................................................................................................... 145
7.5 Dos obstáculos à globalização.......................................................................................................147
7.6 Das reações à globalização..............................................................................................................150
8 CRISE ECONÔMICA DE 2008 E AS RELAÇÕES ECONÔMICAS
DO INÍCIO DO SÉCULO XXI.............................................................................................................................153
8.1 O caráter cíclico do capitalismo....................................................................................................153
8.2 Schumpeter e as contradições do capitalismo.......................................................................154
8.3 Crise de 2008........................................................................................................................................158
APRESENTAÇÃO

Este livro‑texto trata das relações econômicas internacionais a partir do século XV, buscando, pela
abordagem da evolução do sistema capitalista de produção, compreender as principais discussões
teóricas acerca da globalização, considerando a possibilidade de diálogos interdisciplinares e de uma
visão integrada da História a respeito do que vem a ser globalização, suas condições de origem, dimensões
sociais e econômicas e as discussões de fins do século XX e princípios do século XXI sobre esse processo
histórico. Reforçamos que nosso objetivo é apresentar a você, aluno, o que se entende por globalização,
desde suas origens até suas atuais formas de manifestação.

Em nosso material você encontrará:

• Textos explicativos que elucidam a matéria.

• Resumos do conteúdo estudado.

• Exercícios comentados.

• Tópicos para refletir, em que convidamos você a pensar sobre assuntos da atualidade.

• A seção saiba mais, em que indicamos filmes e livros que, de alguma forma, complementam os
temas investigados. Não deixe de explorar essas sugestões; garantimos que você irá ampliar seu
conhecimento sobre os temas apresentados e que isso será extremamente útil, não apenas na
questão específica da disciplina, mas na sua vida profissional.

• Lembretes – anotações pontuais que remetem a alguma informação já conhecida – e observações


– apontamentos que chamam sua atenção para algum ponto destacado sobre o assunto em
desenvolvimento – são recursos que reforçam algumas questões que quisemos salientar.

• Exemplos de aplicação, em que você será convidado a refletir sobre um tema proposto.

Inicialmente, abordaremos as origens históricas do capitalismo mercantil, bem como suas críticas
liberais, passando pelas revoluções industriais inglesas, as guerras mundiais e a crise do capitalismo dos
anos 1930, finalizando com as teorias explicativas da economia e do comércio mundial em ambiente de
expansão do capitalismo.

Na sequência, nos dedicaremos à discussão para o acordo de Bretton Woods e aos elementos
fundantes do processo de globalização econômica, bem como a seus efeitos em termos de evolução
do capital. O Neoliberalismo, a Inglaterra de Margaret Thatcher e o Consenso de Washington também
estarão presentes aqui, e abordaremos ainda as reações à globalização a exemplo dos fóruns mundiais.
Finalizaremos com a crise econômica de 2008 e as relações econômicas do início do século XXI.

Esperamos que você aproveite o texto, bem como a disciplina.

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INTRODUÇÃO

Para que serve a História? Segundo Arruda (2008, p. 8), para que possamos ultrapassar o “eu” na
direção do “nós”, para que possamos compreender a relação do homem com outros homens ao longo
do tempo. Como afirma o autor, “por esta razão, a consciência histórica, que é parte fundante do
conhecimento da História, pressupõe a ultrapassagem do ‘eu individualista’ e é, concomitantemente,
um dos principais caminhos para realizar essa superação” (ARRUDA, 2008, p. 8).

Aceitando‑se, dessa forma, a importância do conhecimento histórico, fica, no entanto, a


questão: das muitas Histórias existentes, qual deve ser contada? Como devem ser narrados o tempo
e os acontecimentos que nele transcorrem? Sabemos que essa narrativa pode ser feita por meio da
investigação dos desenvolvimentos artísticos ou científicos. Pode ser feita, também, a partir do estudo
dos movimentos sociais. São muitas as Histórias e, por isso, é importante definirmos: a História que
iremos contar é a que irá narrar como as relações econômicas se desenvolveram, criando, assim, o
mundo tal como o conhecemos hoje.

8
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Unidade I
1 ORIGENS HISTÓRICAS, CAPITALISMO MERCANTIL E AS CRÍTICAS LIBERAIS

Para que se possa perceber a forma com que o capitalismo se desenvolve, é importante lembrar
que as cidades e os comerciantes travaram uma intensa luta política contra a autoridade feudal para
que suas atividades ficassem livres das amarras e do excesso de regulamentação. Neste aspecto, não se
deve deixar de lado as transformações provocadas pela perda de poder político da Igreja Católica e o
surgimento de uma nova classe social, a dos camponeses expulsos de suas terras e que, dali para frente,
estavam dispostos a vender sua força de trabalho em troca de salário.

O que ainda é importante para que possamos entender o cenário de desenvolvimento industrial que
teve início na Inglaterra e, posteriormente, disseminou‑se pelo restante da Europa? Basicamente, são dois
os aspectos que tornam possível a compreensão dos primórdios da história do capitalismo: o primeiro diz
respeito à acumulação de capital necessária para os investimentos na indústria; o segundo está relacionado
à existência de uma classe social que chamará para si a tarefa de empreender, criar, construir e conquistar.

Sabemos que uma das primeiras fontes de acumulação do capital foi a venda ou o arrendamento
de terra, mas nem tal negócio, tampouco o comércio em si – que ainda era local e se resumia à troca de
artigos artesanais ao lado de produtos agrícolas – podem explicar a transformação pela qual a economia
feudal passaria. Investiguemos, então, como ocorreu a acumulação de capital que seria, posteriormente,
investido nas indústrias nascentes.

Aos poucos, os comerciantes romperam seus laços com o antigo sistema e com a produção agrícola,
passando a depender, e cada vez mais, da renda do comércio para sobreviver: surgiam gradualmente
oportunidades de ganho que iam além da mera economia de subsistência e que tinham por objetivo um
mercado amplo e crescente.

É evidente que a fonte de acumulação de capital tem de ser buscada não


dentro, mas fora desse pequeno modo de produção que os artesanatos
urbanos entronizavam: nos desenvolvimentos que logo viriam perturbar a
simplicidade primitiva dessas comunidades urbanas. Esses desenvolvimentos
tomaram a forma do surgimento de uma classe privilegiada de burgueses
que, separando‑se da produção, começaram a se empenhar exclusivamente
no comércio atacadista (DOBB, 1986, p. 63).

Se a renda da aristocracia feudal provinha do excedente de trabalho servil (que, embora não
apresentasse taxas significativas de crescimento em função da baixa produtividade e da falta de
incremento tecnológico, era capaz de satisfazer as necessidades imediatas dos senhores feudais), a nova
riqueza da burguesia emergente teve como origem as atividades relacionadas às trocas comerciais.
9
Unidade I

Lembrete

A burguesia, ou a classe média, se formou a partir das populações


urbanas e era composta basicamente por comerciantes, empresários e
industriais.

Para além da melhoria na qualidade de vida da burguesia, que passou a ter acesso a matérias‑primas
e produtos de alto padrão, são dois os pontos que, segundo Dobb (1986), explicam os ganhos que o
comércio representava para a burguesia:

Em primeiro lugar, boa parte do comércio naqueles tempos, sobretudo o


exterior, consistia na exploração de alguma vantagem política ou pilhagem
quase declarada. Em segundo lugar, a classe de mercadores, assim que
assumiu alguma forma de corporação, adquiriu prontamente poderes de
monopólio que protegiam suas fileiras da concorrência e serviam para
transformar as relações de troca em sua própria vantagem, em seus negócios
com produtos e consumidor (DOBB, 1986, p. 65).

Tratava‑se do início do processo de obtenção de lucro por meio da exploração comercial e da alienação,
sobre as quais Marx iria se debruçar. Marx também nos dá outra explicação para o enriquecimento
da burguesia: o aumento da oferta de metais preciosos no século XVI. O aumento da disponibilidade
de moeda foi fundamental para o desenvolvimento do modo de produção capitalista, porque estava
relacionado a “uma quantidade de dinheiro suficiente para a circulação e a formação correspondente de
um entesouramento” (DOBB, 1986, p. 131). Essa moeda foi utilizada não apenas para investir em novos
negócios, mas também para a aquisição de terras e propriedades dos antigos senhores feudais, falidos
e endividados.

Aos poucos, o mercado cresceu, ampliando as possibilidades de negócios. Não cresceu por meio
do consumo interno, já que a classe ascendente contribuía pouco para o consumo interno do país, em
função de um padrão de vida limitado e de gastos parcimoniosos. De fato, a indústria – em especial
a inglesa – dependeu basicamente dos mercados de exportação. Ainda, em vez de contribuir com seu
poder de consumo para o desenvolvimento da economia, a classe burguesa envolveu‑se em transações
bancárias, comprando títulos da dívida pública da Coroa e do Estado. Além de essa estratégia trazer
vantagens políticas, também promoveu a acumulação e a concentração de capital nas mãos de poucos.
Finalmente, “a suposição de que a abundância de dinheiro deve ser desejada por si mesma, e não porque
pode permitir a promoção de relações de comércio mais lucrativas, cada vez mais sai de cena” (DOBB,
1986, p. 152).

Essa nova forma de riqueza, portanto, esteve desde o início associada à obtenção e à venda de ações
e ao comércio exterior. O capital obtido por meio da especulação e do mercado externo foi redirecionado
ao desenvolvimento interno das manufaturas do país: no momento em que a indústria nacional passou
a representar maiores possibilidades de lucro, inverteu‑se o foco de interesse da burguesia, que passou

10
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

a defender uma “política protecionista” da indústria nascente. O objetivo era excluir a concorrência das
indústrias estrangeiras em solo nacional e criar mais empregos com a renda advinda da exportação de
bens. Esse, aliás, seria um dos argumentos a favor de uma balança comercial favorável.

A ênfase conferida às virtudes do aumento da exportação esperava pelo


aparecimento de um poderoso interesse manufatureiro, distinto do
comercial, pois era benéfico para o fabricante que o mercado para seu
produto se mostrasse tão amplo quanto possível, como também redundava
em sua vantagem que a importação dos artigos competitivos fosse reduzida.
É verdade que ele tinha ainda interesse em incentivar a barateza de suas
matérias‑primas e da subsistência dos trabalhadores: fato que vimos
a doutrina mercantilista levar inteiramente em conta ao reservar sua
recomendação de exportação às manufaturas e restringir sua condenação
às importações do que não fosse matéria‑prima ou mercadorias acabadas,
destinadas ao consumo de luxo (DOBB, 1986, p. 151).

Importações

Exportações

Figura 1 – Balança comercial favorável

Para Hobson (1985), duas doutrinas econômicas (e extremamente míopes, em sua opinião) ganharam
robustez naquele instante. A primeira estava relacionada ao fato de que “o comércio importador devia
restringir‑se a mercadorias que não eram nem podiam ser vantajosamente produzidas no país” (HOBSON,
1985, p. 31). A segunda dizia respeito à necessidade de uma balança favorável (mais exportações,
comparativamente às importações) em cada caso. No caso da Inglaterra, o saldo deveria ser positivo nas
relações comerciais com cada país com o qual ela negociava. Em função disso,

[...] a Inglaterra cortou deliberadamente todo o comércio com a França


durante o período de 1702 a 1763, aplicando um sistema de tarifas proibitivas,
estimulado por duplo temor: o de que o balanço ficasse desfavorável para
o pais e o de que os produtos têxteis franceses pudessem, com sucesso,
concorrer com as mercadorias inglesas no mercado interno inglês. Por outro
lado, desenvolvia o comércio com Portugal sob o argumento de que com

11
Unidade I

esse país obtinha um balanço mais favorável do que com qualquer outro
(HOBSON, 1985, p. 31).

Se a riqueza significava estocar metais, o Estado chamava para si a tarefa de estimular as exportações,
inibir as importações, descobrir novas fontes de metais e tornar proibitiva a saída de ouro e prata do país.

Observação

O mercantilismo é o conjunto de estratégias conduzidas pelo Estado


para promover a indústria e estimular o estoque de moedas.

Para o Estado, o metalismo – quer dizer, “a ideia generalizada de que um país seria tão mais próspero
e poderoso, na razão direta da quantidade de metais preciosos que ele possuísse” (REZENDE, 2007,
p. 122) – significava (e de forma totalmente errônea) que os negócios seriam estimulados por força da
baixa de juros permitida pela abundância de moeda. Se a estocagem de metais não fosse possibilitada
pela extração das minas, deveria ser obtida por meio de uma balança comercial favorável.

A ideia básica mercantilista era que o volume das exportações superasse


sempre o das importações, que deveria ser o mais reduzido possível; ou
seja, deveria exportar o máximo e importar o mínimo necessário. E, para
que tal acontecesse, o caminho mais fácil era a aplicação de uma política
protecionista (REZENDE, 2007, p. 123).

Foi essa política de ação do Estado que contribuiu para a acumulação primitiva do capital sob a forma de
propriedades e títulos que seriam, no momento apropriado, investidos na produção. É claro que a transferência
de riqueza aos burgueses não teria bastado para impulsionar o desenvolvimento do capitalismo; ela precisava
estar – e efetivamente esteve – aliada ao desapossamento dos proprietários anteriores, gerando uma classe
de destituídos e pobres que, depois, constituiria a classe proletária. A burguesia ascendeu em detrimento da
pauperização dos pequenos proprietários, que perdiam seu patrimônio a preços em queda e presenciavam
sua valorização, em seguida, nas mãos pouco numerosas dos seus detentores.

Sem esse processo, torna‑se claro que uma oferta abundante e barata de mão
de obra não poderia estar à disposição, a menos que houvesse um regresso
a algo bem parecido com o trabalho servil. A força de trabalho não teria sido
“ela própria convertida em sua mercadoria” em escala suficientemente ampla,
e estaria faltando a condição essencial para o aparecimento da mais‑valia
industrial como uma categoria econômica ‘natural’ (DOBB, 1986, p. 132).

É importante termos em mente que a emergência do capitalismo mercantil se valeu da reformulação


de estruturas feudais de dominação em estruturas capitalistas de dominação. Como nos lembra Dobb
(1986), a existência de uma classe privilegiada se manteve: os privilégios, antes exclusivos da sociedade
feudal, foram conquistados pela nova burguesia mercantil por meio de acordos econômicos, sociais e
políticos. Dos novos comerciantes, Dobb revela:
12
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Preocupavam‑se tanto com as condições de comércio (das quais dependia


sua margem de lucro) quanto com seu volume, sendo‑lhes indiferente
se negociavam com escravos ou marfim, lã ou tecidos de lã, estanho ou
ouro, desde que fosse lucrativo. Adquirir privilégio político era sua primeira
ambição. A segunda era que o menor número possível de pessoas dele
desfrutassem. Como eram essencialmente parasitas da antiga ordem
econômica, embora pudessem exauri‑la e enfraquecê‑la, seu sucesso, em
última análise, estava ligado ao do corpo que os nutria (DOBB, 1986, p. 88).

O capital mercantil nos séculos XIV e XV acumulou‑se a partir dos juros cobrados pelos grandes
comerciantes nos empréstimos feitos aos pequenos produtores e aos empobrecidos. As novas organizações
de comerciantes ricos, que monopolizavam o comércio atacadista e se posicionavam contra a nobreza e
a Igreja, cobravam taxas administrativas altíssimas e excluíam de suas fileiras os varejistas e os artesãos.

A participação mínima dos trabalhadores na produção comercial para a qual contribuíam também
colaborou para a acumulação de capital mercantil. Já no século XVI, a exploração do trabalho assalariado
– ou seja, a maximização do uso da força de trabalho e a queda dos salários – passou a representar
uma oportunidade cada vez maior de obtenção de lucro. O proletariado, cada vez mais desesperado por
meios de sobrevivência, competia entre si, oferecendo sua força de trabalho por salários reduzidos.

Faltava, ainda, que se desse o aprimoramento da técnica, fator essencial para o aumento da
produtividade do trabalho e, portanto, da mais‑valia industrial, o que ocorreu com as grandes
invenções que revolucionaram a indústria como a máquina de fiar, tear mecânico, máquina a vapor,
lançadeira volante, patentes para técnicas diversas de fundição, bombeamento de minas e obras
hidráulicas. Para termos uma ideia da velocidade com que essas invenções foram incorporadas aos
processos industriais, citamos alguns exemplos no caso da indústria têxtil inglesa: em 1730, surgiu a
máquina fiadora de rolos; em 1738, a lançadeira volante; em 1748, a máquina de cardar; em 1764, a
máquina jenny de fiar, e assim por diante.

Figura 2 – A máquina a vapor inventada por James Watt (1736‑1819)

Para Hobson (1985), a introdução do maquinário permitiu, finalmente, o desenvolvimento da


atividade industrial.

13
Unidade I

O desenvolvimento da indústria mecanizada pode, portanto, ser medida pelo


número e complexidade crescente dos processos relacionados entre si na
unidade mecânica ou máquina e, também, pela redução correspondente da
dependência do produto em relação à qualificação e força de vontade do ser
humano, que cuida da máquina e coopera com ela (HOBSON, 1985, p. 56).

Segundo Marx e Engels,

[...] o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. A grande


indústria moderna suplantou a manufatura; a média burguesia manufatureira
cedeu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos
industriais, aos burgueses modernos (MARX; ENGELS, 1999, p. 9).

A introdução da máquina alterou o processo de produção, provocando a divisão do trabalho. Smith


(1996) mostrou como a divisão de trabalho gerava riqueza por meio do aumento da produtividade,
usando o exemplo de uma fábrica de alfinetes:

Um operário desenrola o arame, outro o endireita, um terceiro o corta, um


quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da
cabeça do alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requerem‑se três ou
quatro operações diferentes; montar a cabeça já é uma atividade diferente,
e alvejar os alfinetes é outra; a própria embalagem dos alfinetes também
constitui uma atividade independente. Assim, a importante atividade
de fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente 18 operações
distintas, as quais, em algumas manufaturas, são executadas por pessoas
diferentes, ao passo que, em outras, o mesmo operário às vezes executa
duas ou três delas. [...] Se, porém, tivessem trabalhado independentemente
um do outro, e sem que nenhum deles tivesse sido treinado para esse ramo
de atividade, certamente cada um deles não teria conseguido fabricar 20
alfinetes por dia, e talvez nem mesmo 1 (SMITH, 1996, p. 66).

A divisão de trabalho ocorria até o limite da extensão do mercado. Mais: como cada um buscava seu
próprio interesse e como o interesse de cada um tinha que levar em consideração o interesse do outro, o
bem‑estar de todos estava garantido. O que dava essa certeza para Smith era a sua crença na existência
de um mecanismo natural de autorregulação na natureza que, espelhado no sistema econômico, o
manteria em funcionamento e em crescimento (HEILBRONER; MILBERG, 2008).

A divisão do trabalho e a introdução da máquina afetaram o espaço em que essa produção ocorria,
tornando a fábrica o lugar apropriado para a produção, em vez das pequenas oficinas de manufatura.
Ainda, no momento em que a técnica passou a ser empregada amplamente, os destituídos de terra
transformaram‑se em trabalhadores assalariados (DOBB, 1986). A adoção do maquinário utilizado nas
fábricas e a caracterização e expansão do proletariado como classe trabalhadora, explorada e assalariada,
apontavam para o distanciamento cada vez maior da atividade econômica industrial com relação à
economia comercial e mercantil dos séculos XVII e XVIII.
14
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Nesse período, as velhas estruturas fabris continuaram a conviver com técnicas produtivas
modernas. Em algumas regiões, o trabalho ainda ocorria em pequenas firmas que empregavam poucos
trabalhadores, ou seja, em firmas nas quais o empregador não era o grande capitalista, mas o empreiteiro
intermediário. A manutenção de resquícios desses padrões de indústria domiciliar, inclusive, explica a
demora na consagração de um caráter homogêneo da classe trabalhadora, que seguia envolvida com o
sistema dos ofícios e pequenas unidades produtoras.

Portanto, o capitalismo ganhou seus contornos específicos no instante em que a máquina foi
introduzida e a produtividade aumentou. Afinal,

[...] ele não opera sua extração de excedente econômico, nem se apropriando
do produtor – como na escravidão –, nem do trabalho do produtor –
como na economia [...] senhorial. O capitalismo extrai excedente dentro
do próprio processo de produção, de um produtor livre, através da
diferença de valor, que esse produtor recebe pela venda da mercadoria
força de trabalho, em relação às mercadorias que essa força de trabalho
produz (REZENDE, 2007, p. 139).

Ainda, esse excedente se somou ao que ocorria na esfera do consumo: o produtor, pelo seu trabalho,
recebia dinheiro em vez de mercadorias. Quando ele adquiria mercadorias, “não o faz[ia] pelo valor
que elas possuíam quando da sua produção, mas sim pelo que [teriam] após passarem pela esfera da
distribuição e chegarem à do consumo, agregando sobrepreços” (REZENDE, 2007, p. 139). E, para que
sempre houvesse mão de obra disposta a vender sua força de trabalho por salário, o capitalismo não
realizava o pleno emprego, levando à formação do exército de reserva de mão de obra, “constituído por
trabalhadores mantidos desempregados [...] para permitir a rotatividade da mão de obra, barateando os
salários e dificultando a formação do proletariado em um bloco coeso” (REZENDE, 2007, p. 140).

Na Europa, como também aconteceu na colônia americana, buscou‑se restringir o acesso das pessoas
à propriedade e às terras.

Tornou‑se claro para os que desejavam reproduzir as relações capitalistas de


produção no novo país que a pedra fundamental de seus esforços devia ser
a restrição da propriedade da terra a uma minoria e a exclusão da maioria
quanto a qualquer participação na propriedade (DOBB, 1986, p. 160).

Afinal, o fácil acesso a propriedades a partir de uma política de distribuição de terras tornava escassa a
mão de obra. Na Inglaterra a mesma política foi executada, e as pequenas propriedades foram substituídas
por maiores: os agricultores eram expulsos por meio do aumento de multas e taxas sobre os arrendamentos
e, às vezes, até mesmo acabavam doando suas terras a outros camponeses por dificuldades de mantê‑las
frente à competição com outros proprietários que detinham mais técnica e capital.

[...] dois tipos bem diversos de donos de mercadorias têm de se defrontar e


entrar em contato: de um lado, os donos do dinheiro, meios de produção
e de subsistência, desejosos de aumentar a soma de valores possuídos pela
15
Unidade I

compra da força de trabalho de outras pessoas; de outro, os trabalhadores


livres, vendendo sua própria força de trabalho. [...] Com essa polarização do
mercado de bens, as condições fundamentais da produção capitalista passam
a ter existência. O sistema capitalista pressupõe a separação completa dos
trabalhadores de toda propriedade dos meios pelos quais podem realizar
seu trabalho. [...] A chamada acumulação primitiva, portanto, nada mais é
que o processo histórico de divorciar o produtor dos meios de produção.
[...] A expropriação do produtor agrícola, ou camponês, assim afastado de
qualquer propriedade do sono, é a base de todo o processo (MARX apud
DOBB, 1986, p. 160).

Aqui vale a pena uma observação: embora alguns historiadores afirmem ter sido o aumento da
classe proletária nos primeiros momentos do capitalismo um resultado espontâneo do crescimento
demográfico excepcional, é importante lembrar que a população total de países como França e
Inglaterra declinava; era a classe social dos empobrecidos que inflava desproporcionalmente. Afinal, se
o proletariado nos séculos XVI e XVII era pequeno e tinha mobilidade restrita e se, em grande medida, ele
era composto por quem tinha algum tipo de ligação com a terra, em período posterior ele seria “tirado
da terra e [...] [seriam] removidos os obstáculos à mobilidade da mão de obra da aldeia para a cidade.
Só então a indústria capitalista pôde atingir maturidade completa” (MARX apud DOBB, 1986, p. 166).

De fato, do século XVI ao XVIII, a lei inglesa

empenhou‑se em esmagar o trabalhador inglês e reduzi‑lo ao mínimo, em


eliminar toda expressão ou ato que indicasse qualquer descontentamento
organizado, e em multiplicar as penalidades a serem aplicadas quando este
pensasse em seus direitos naturais (MARX apud DOBB, 1986, p. 167).

Quando não havia oferta para mão de obra suficiente, a Coroa permitia o emprego de trabalho compulsório.

Mesmo em momentos de escassez de mão de obra, as leis determinavam o nível máximo dos
salários, obrigavam os desempregados ao trabalho, encaminhavam os mendigos a casas de correção e
até mesmo expulsavam pessoas do reino. Na Alemanha, a Guerra dos Trinta Anos congelou a economia
por um tempo – o que, no fim, contribuiu para que os salários se estabilizassem.

Observação

A Guerra dos Trinta Anos envolveu a Alemanha e outros países europeus


em uma série de conflitos causados por divergências políticas e religiosas.

Na Inglaterra o cenário era outro: os salários reais, que haviam sofrido aumento até o século XV,
se estagnaram – ainda que os preços dos produtos começassem a inflacionar, principalmente com a
afluência de metais preciosos. Na França e na Inglaterra, eles se mantiveram por todo o século XVII
abaixo do que haviam estado nos anos quinhentos. Para Dobb (1986),
16
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Com a nova e mais poderosa onda de cercamentos na parte final do século


XVIII, desalojando o exército de aldeões das últimas magras terras que estes
possuíam às margens das terras comunais, surgiu, entre a década de 1760 e
o final das guerras napoleônicas, uma tendência para um declínio maior dos
salários reais, tendência que coincidiu com uma nova época de expansão
industrial (DOBB, 1986, p. 171).

Nesse novo sistema, a sociedade se tornou compelida a buscar os seus próprios interesses e o lucro.
A burguesia passou a ser responsável pelos investimentos, pelos empreendimentos e pela disseminação
do sistema para todos os cantos do planeta. Segundo Marx e Engels (1999),

[...] a burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente


os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com
isso, todas as relações sociais [...]. Impelida pela necessidade de mercados sempre
novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer‑se em toda
parte, criar vínculos em toda parte. [...] Devido ao rápido aperfeiçoamento dos
instrumentos de produção e ao constante progresso dos meios de comunicação,
a burguesia arrasta para a torrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras.
Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as
muralhas da China e obriga a capitularem os bárbaros mais tenazmente hostis aos
estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo
burguês de produção, constrange‑as a abraçar o que ela chama de civilização,
isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem e
semelhança (MARX; ENGELS, 1999, p. 12‑4).

1.1 A Inglaterra e a primeira Revolução Industrial

Por que a Revolução Industrial ocorreu inicialmente na Inglaterra? Quais as condições ou


circunstâncias que permitiram à Inglaterra obter a primazia no processo de desenvolvimento industrial?
Aqui nos interessa descobrir o que teria levado a Inglaterra a realizar, e melhor do que os outros países,
a acumulação primitiva de capitais

[...] que permitiu a introdução contínua de inovações técnicas e da forma


fabril de produção. Esse pioneirismo da Inglaterra foi fundamental para que
ela se mantivesse, durante todo o século XIX, como a nação líder de uma
economia‑mundo bastante ampliada, e não mais comercial, mas industrial
e capitalista (REZENDE, 2007, p. 141).

Em primeiro lugar, a Inglaterra havia enriquecido com o comércio e com a pirataria, sendo que a riqueza
oriunda dessas atividades ficou nas mãos da burguesia comercial. Em função dos excedentes econômicos,
a acumulação primitiva de capitais promovida entre os séculos XVI e XVIII sustentou e financiou o parque
industrial nascente. A formação de poupança, essencial para os investimentos solicitados pela atividade fabril,
foi estimulada. Esses novos valores, totalmente distintos daqueles que haviam vigorado durante o feudalismo,
aderiram com perfeição a um novo tempo contaminado pelo empreendedorismo e pelo crescimento econômico.
17
Unidade I

Em segundo lugar, deve ser considerado o contexto político da Inglaterra: a cisão entre Estado e Igreja
acabou por servir aos interesses de uma reforma ética que pregava o lucro como objetivo, o trabalho como
virtude (e não como uma punição) e a mobilidade social como prêmio para o esforço pessoal.

O desenvolvimento científico também era notável e as sociedades destinadas ao culto e à transmissão


do saber espalhavam‑se por toda a Europa. Já distante da escolástica medieval, o contexto agora é o
do Renascimento, que dissemina por toda a Europa os ventos do racionalismo cartesiano, da filosofia
kantiana e de Spinoza, da dialética hegeliana, da pintura holandesa e da revolução científica de Newton.
De fato, o humanismo e a busca de compreensão da natureza por meio da ciência vão dar a esse
momento uma característica especial, e a Inglaterra saberá aproveitar essa oportunidade ao máximo.

Embora durante muito tempo tenha prevalecido na História Econômica Geral certa “leitura” que
manteve indústria e universidade em esferas distintas, algumas evidências apontam para a existência de
uma estreita relação entre elas, em especial na Inglaterra, “local de um entusiasmo peculiar pela ciência
e engenharia” (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 83). Lá surgiram, por exemplo, a Royal Society (presidida
por Isaac Newton) e a Philosophical Society of Edinburgh, inaugurada em 1737 e que tinha, entre seus
mantenedores e membros, vários grandes proprietários de terra.

Afinal, “não menos importante foi o entusiasmo da aristocracia inglesa da terra pela agricultura
científica: os donos de terra ingleses deixaram claro um interesse em questões como rotatividade das
colheitas e fertilizantes” (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 83). Ainda, além do desenvolvimento na
Ciência e Engenharia na Inglaterra, outros fatores podem explicar a origem da Revolução Industrial ali,
alguns tão fortuitos

[...] quanto os imensos recursos das minas de carvão e ferro existentes em


solo inglês; outros tão propositais quanto o desenvolvimento de um sistema
nacional de patentes que de forma deliberada estimulou e protegeu o
próprio ato de inventar. Iniciada a revolução, ela se autoalimentou. As novas
técnicas (em especial, na indústria têxtil) simplesmente acabaram com a
concorrência do fabrico artesanal no mundo, aumentando assim de forma
inimaginável os próprios mercados (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 83).

Quanto ao papel das instituições bancárias naquele instante, temos duas possíveis interpretações:
uma que privilegia o papel da atividade bancária comercial e outra que reconhece a importância das
operações financeiras dos bancos, especialmente no tocante às operações de crédito para industriais
e empresários. De qualquer forma, é importante notar que não havia ainda o conceito dos bancos
como agentes para captação de poupança e recursos com o objetivo explícito de agenciar fundos para
investimentos. Segundo Heilbroner e Milberg (2008), o capital era acumulado e as indústrias cresciam,
mas isso ocorria porque os salários eram mantidos em patamares extremamente baixos e porque
poupadores importantes (agricultores, donos de terra e fabricantes prósperos) contribuíram para que
volumosas quantias de dinheiro fossem colocadas à disposição para investimentos.

Parece evidente, a essa altura, que todas essas vantagens por si só não teriam sido suficientes para
explicar o incrível desenvolvimento industrial na Inglaterra: “o que em última instância fez funcionar todos
18
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

esses fatores foi a energia de um grupo de Novos Homens que transformou as oportunidades latentes da
história em um veículo de sua própria ascensão à fama e à fortuna” (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 83).

John Wildinson (industrial do aço), James Watt (fabricante de máquinas a vapor), John Roebuck
(magnata do ferro), Matthew Boulton (fabricante de botões), Richard Arkwright, John Kay, Samuel
Need e Jedediah Strutt, todos envolvidos com a indústria têxtil: esses foram os ingleses talentosos e
empreendedores (na maioria, de origem social bastante humilde) que souberam fazer uso das condições
históricas excepcionais, inventando, investindo e fabricando riqueza e fortuna nas novas indústrias. Nem
sempre preocupados com o bem‑estar de seus empregados, eles desejavam a expansão e o crescimento.

Os Novos Homens foram, em todos os momentos, empreendedores‑organizadores.


Trouxeram consigo uma nova energia, tanto inquieta quanto inesgotável. Num
sentido econômico, e também político, merecem o epíteto de “revolucionários”,
porque a mudança que introduziram foi nada menos que total, avassaladora e
irreversível (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 86).

Dessa lista de nomes, também podemos depreender o tripé que sustentou a industrialização inglesa:
a indústria têxtil, a siderurgia e a mineração de carvão (REZENDE, 2007). A fabricação de tecidos de
algodão (acelerada pela utilização da lançadeira volante e do tear mecânico) totalmente mecanizada
permitiu o incremento da produção e a exportação do produto; a siderurgia possibilitou a construção de
estradas de ferros; a mineração do carvão (combustível da máquina a vapor) acompanhou a expansão.

A fome, as doenças e as deficiências tecnológicas não conseguiam mais frear a produção de


mercadorias. Os valores ligados ao capitalismo industrial (do lucro e do progresso econômico focados no
mercado) tiveram papel mais importante para o desenvolvimento industrial da época do que qualquer
tipo de superioridade intelectual ou científica britânica. Faltava somente que o fabricante se visse
motivado a investir no crescimento industrial e que a Inglaterra monopolizasse o mercado mundial.

Os riscos dos investimentos do mercado do algodão valiam a pena, o que atraiu empresários
dispostos a se envolverem com o desenvolvimento tecnológico necessário para a revolução
industrial. Os subprodutos do algodão eram um ótimo investimento, na medida em que a maquinaria
necessária para produzi‑los era simples e barata e o lucro que dela se obtinha era crescente. A
revolução industrial britânica não teria ocorrido sem a contribuição das condições fornecidas
pela indústria do algodão, ou seja, sua familiaridade com o ambiente fabril (e a necessidade dele
derivada de manutenção física das fábricas), o emprego de numerosa mão de obra e seu peso no
montante total do comércio inglês:

A indústria algodoeira foi assim lançada, como um planador, pelo empuxo


do comércio colonial ao qual estava ligada; um comércio que prometia uma
expansão não apenas grande, mas rápida e sobretudo imprevisível, que
encorajou o empresário a adotar as técnicas revolucionárias necessárias
para lhe fazer face. Entre 1750 e 1769, a exportação britânica de tecidos de
algodão aumentou mais de dez vezes (HOBSBAWM, 2010, p. 68).

19
Unidade I

Até mesmo a Índia deixou de representar um continente exportador e passou ao papel de comprador
dos produtos de algodão, já que perdia a corrida industrial. Pela primeira vez, invertia-se a relação de
comércio existente há muito tempo entre Oriente e Ocidente. À Inglaterra coube o monopólio do mercado
exportador, principalmente por meio dos acessos obtidos nas colônias que, por sua vez, passaram a
depender das importações britânicas – ainda mais em períodos de guerra na Europa. Hobsbawm (2010)
nos relata que, em 1814, a exportação inglesa era de quatro jardas de algodão para cada três jardas
usadas internamente, enquanto em 1850 essa proporção subiu de treze para oito jardas.

A paisagem inglesa se modificou profundamente. Centenas de fábricas se espalharam pelas cidades


e essas cidades se transformaram

[...] no centro produtor e consumidor de toda a economia, relegando o


campo a uma posição economicamente secundária. [...] A [...] cidade de
Manchester teve sua população de 17 mil habitantes em 1760 decuplicada
para 180 mil em 1830. Por volta de 1850, várias cidades industriais inglesas
possuíam cerca de 300 mil habitantes – Bradford, Liverpool, Leeds, Sheffield,
Birmingham, Bristol –, e Londres concentrava 4 milhões de habitantes em
1880. Uma vez desencadeado, esse processo de urbanização que a fábrica
provoca torna‑se irreversível; a Inglaterra vê sua população rural, que
representava 52% em 1851, baixar para 31% em 1881, e para apenas 22%
em 1911 (REZENDE, 2007, p. 143).

Figura 3 – A industrialização. Sheffield, Inglaterra, 1850

É claro que o desenvolvimento industrial na Inglaterra não necessariamente trouxe apenas


modificações positivas. De fato, as degradadas e imundas cidades inglesas viam circular trabalhadores
esfomeados que viviam em condições totalmente insalubres e conviviam com a fome resultante da
explosão populacional e da escassez de terras aráveis e produtivas.

20
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Figura 4 – Moradias operárias em Londres, século XIX, em ilustração de Gustave Doré

Aquele era um tempo de exploração humana – das crianças em particular – motivada pela crença
do progresso daqueles que detinham os meios de produção.

Saiba mais

Sugerimos a leitura das obras de Charles Dickens. Entre seus livros,


recomendamos:

DICKENS, C. Tempos difíceis. São Paulo: Boitempo, 2013.

___. Oliver Twist. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Oliver Twist também foi transformado em filme:

OLIVER Twist. Dir. Roman Polanski. Reino Unido: TriStar Pictures, 2005.
130 minutos.

Huberman (1974) conta o que era considerado normal, no século XIX, em termos de duração de um
dia de trabalho em uma fábrica inglesa:

As crianças agora trabalhavam em fábricas, sob a direção de um supervisor


cujo emprego dependia da produção que pudesse arrancar de seus pequenos
corpos, com horários e condições estabelecidos pelo dono da fábrica, ansioso
por lucros. Até mesmo um senhor de escravos das Índias Ocidentais poderia
surpreender‑se com o longo dia de trabalho das crianças. Um deles, falando
a três industriais de Bradford, disse: “Sempre me considerei infeliz pelo fato
de ser dono de escravos, mas nunca, nas Índias Ocidentais, pensamos ser
21
Unidade I

possível haver ser humano tão cruel que exigisse de uma criança de 9 anos
trabalhar 12 horas e meia por dia, e isso, como os senhores reconhecem,
como hábito normal (HUBERMAN, 1974, p. 192).

Heilbroner (1996) também narra a miséria e a exploração infantil. Conforme o autor,

Em 1828, The Lion, uma revista radical para a época, publicou a incrível
história de Robert Blincoe, uma das oito paupérrimas crianças que
haviam sido enviadas para uma fábrica em Lowdham. Os meninos e
as meninas – tinham todos cerca de dez anos – eram chicoteados dia
e noite, não apenas pela menor falta, mas também para desestimular
seu comportamento preguiçoso. E comparadas com as de uma fábrica
em Litton, para onde Blincoe foi transferido a seguir, as condições de
Lowdham eram quase humanas. Em Litton, as crianças disputavam com
os porcos a lavagem que era jogada na lama para os bichos comerem;
eram chutadas, socadas e abusadas sexualmente; o patrão delas, um
tal de Ellice Needham, tinha o horrível hábito de beliscar as orelhas dos
pequenos até que suas unhas se encontrassem através da carne. O capataz
da fábrica era ainda pior. Pendurava Blincoe pelos pulsos por cima de
uma máquina até que seus joelhos se dobrassem e então colocava pesos
sobre seus ombros. A criança e seus pequenos companheiros de trabalho
viviam quase nus durante o gélido inverno e (aparentemente apenas
por pura e gratuita brincadeira sádica) os dentes deles eram limidados!
(HEILBRONER, 1996, p. 101).

Heilbroner e Milberg (2008, p. 89), por sua vez, relatam a trágica vida dos operários:

Era um período cruel. As intermináveis horas de trabalho, a sujeira


generalizada e o ruído pesado nas fábricas, a falta das mais elementares
precauções de segurança, tudo combinado para conferir ao início do
capitalismo industrial uma reputação de que jamais se recuperou na mente
de muitas pessoas neste mundo. Pior ainda eram as favelas para as quais
retornava a maioria dos operários após a jornada de trabalho. A expectativa
de vida ao nascer, em Manchester, era de 17 anos – número que refletia uma
taxa de mortalidade infantil acima de 50%.

Marx e Engels (1999) explicam a situação do proletariado naquele instante.

Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolve‑se


também o proletariado, a classe dos operários modernos, que só
podem viver se encontrarem trabalho, e que só encontram trabalho na
medida em que este aumenta o capital. Esses operários, constrangidos
a vender‑se diariamente, são mercadoria, artigo de comércio como
qualquer outro; em consequência, estão sujeitos a todas as vicissitudes
22
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

da concorrência, a todas as flutuações do mercado. O crescente emprego


de máquinas e a divisão do trabalho [...] [reduz o custo do operário] aos
meios de manutenção que lhe são necessários para viver e perpetuar sua
existência (MARX; ENGELS, 1999, p. 18).

Exemplo de aplicação

O trabalho infantil ainda é uma tragédia nos nossos tempos.

Em sua opinião, há semelhanças entre a exploração do trabalho infantil nos dias de hoje e a da
Revolução Industrial?

Segundo Heilbroner e Milberg (2008), a Revolução Industrial inglesa transformou uma sociedade
agrícola e comercial em uma sociedade industrial. Portanto, esse processo, muito lentamente,
foi modificando as principais características da economia inglesa e incorporando aos poucos as
mudanças tecnológicas que efetivamente se traduziram em alterações visíveis na vida das pessoas e
na organização das empresas.

Afinal, a Inglaterra, excepcionalmente, comportava uma classe de empresários capitalistas


agrícolas que empregavam, por sua vez, um grande proletariado rural. Ainda assim, não fugia à
regra geral da época: eram os mercadores que controlavam as cidades europeias e não aqueles cuja
fortuna vinha do mundo agrícola – fazendeiros, advogados, comerciantes ou ainda mineradores e
fabricantes que começavam a surgir. Isso se dava por conta do sistema de indústria doméstica, em
que o mercador comprava e revendia os produtos dos artesãos e de quem dependiam os primeiros
capitalistas industriais.

Apenas no século XIX essas transformações estarão cristalizadas: até lá, o campo – fornecedor
da matéria‑prima das tecelagens e das manufaturas têxteis – ainda ocupará espaço privilegiado na
economia; depois disso, ganharão importância as fábricas e a produção de bens de capital, que foi uma
das razões para o fantástico crescimento da Inglaterra.

23
Unidade I

Regiões metalúrgicas
Bacias carboníferas

Figura 5 – Economia inglesa ao final do século XVIII

Tal processo pode ser facilmente explicado: foi o desenvolvimento da produção de bens de capital,
principalmente para a mineração, que permitiu a invenção das ferrovias. As minas precisavam de
máquinas a vapor e de meios de transporte, demandando indústrias de bens de capital e as elevando ao
mesmo patamar de desenvolvimento que a indústria algodoeira. Os homens de negócios, que integravam
a classe média e precisavam encontrar onde investir seu capital acumulado, passaram a se dedicar à
construção de ferrovias: de 28 milhões de libras investidas em ferrovias em 1840, segundo Hobsbawm
(2010), o investimento em 1850 passou para 240 milhões de libras:

O capital encontrou as ferrovias, que não podiam ter sido construídas


tão rapidamente e em tão grande escala sem essa torrente de capital,
especialmente na metade da década de 1840. Era uma conjuntura feliz, pois
de imediato as ferrovias resolveram virtualmente todos os problemas do
crescimento econômico (HOBSBAWM, 2010, p. 88).

Devemos lembrar que a produção de bens de capital é fundamental para o surgimento de uma
economia industrializada. Os baixos salários dos trabalhadores e a produção limitada de bens de
consumo em momento posterior explicam‑se no contexto da opção pelo desenvolvimento do setor de
bens de capital em detrimento dos bens de consumo. Mais: já consagrada na Inglaterra, havia chegado
o momento de a Revolução Industrial alcançar outras nações.

24
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

1.2 O apogeu: a segunda Revolução Industrial

De forma resumida, o século XVIII ficaria marcado pela conformação de estruturas sociais bastante específicas.
Contribuíram para isso o crescimento demográfico (principalmente em função da queda da mortalidade advinda
das melhorias nas técnicas de saúde pública), a expansão do mercado por meio da divisão do trabalho e dos
acréscimos na produtividade e as invenções que transformariam as cidades e a produção.

Entre 1775 e 1875, o mundo experimentou um “vasto boom secular” caracterizado por progresso
econômico, ainda que desigual entre os países europeus. A fábrica passou a centralizar o trabalho
coletivo e alienante. O operário não mais precisava oferecer habilidades de manuseio das ferramentas:
pelo contrário, neste novo cenário são as máquinas que exigem do trabalhador obediência. Além disso,

[...] era agora necessário capital para financiar o equipamento complexo


requerido pelo novo tipo de unidade de produção; e criara‑se um papel para
um tipo novo de capitalista, não mais apenas como ursurário ou comerciante
em sua loja ou armazém, mas como capitão de indústria, organizador e
planejador das operações da unidade de produção, corporificação de uma
disciplina autoritária sobre um exército de trabalhadores que, destituídos
de sua cidadania econômica, tinham de ser coagidos ao cumprimento de
seus deveres onerosos a serviço alheio pelo açoite alternado da fome e do
supervisor do patrão (DOBB, 1986, p. 262).

Esse cenário nos permite perceber a Revolução Industrial como “uma série contínua de transformações
que perdurou além mesmo do século XIX, em vez de como uma modificação feita de uma só vez” (DOBB, 1986,
p. 269). No entanto, “uma vez vinda a transformação crucial, o sistema industrial embarcou em toda uma série
de revoluções na técnica de produção, como traço notável de uma época do capitalismo amadurecido” (DOBB,
1986, p. 270). A especialização e a divisão do trabalho permitiam inovações, caracterizando um processo cumulativo
e irreversível em termos de produtividade, concentração da produção, acumulação e propriedade do capital.

Essa última tendência, filha da complexidade crescente do equipamento


técnico, é que iria preparar o terreno para outra transformação crucial na
estrutura da indústria capitalista, e gerar o “capitalismo de corporação”
monopolista (ou semimonopolista ou quase monopolista) em grande escala
da era atual (DOBB, 1986, p. 270).

Aqui já identificamos o aparecimento de características mais próximas às do nosso contexto


contemporâneo. O espírito comercial e prático dos capitalistas aliado às invenções, ao aumento populacional
e à disposição dos trabalhadores – sem terra e recém‑chegados aos ambientes urbanos – de submeterem sua
força de trabalho a condições desfavoráveis de emprego que garantissem apenas sua sobrevivência passaram
a caracterizar as estruturas sociais da Revolução Industrial. As invenções serviam à economia de tempo e à
maximização da força de trabalho, e a acumulação do capital excedia o crescimento da oferta de trabalho.

No seu auge, as transformações provocadas pela Revolução Industrial foram anormalmente rápidas e se
distinguiram em muito dos padrões anteriores. As mudanças na economia, na indústria, nas relações sociais,
25
Unidade I

na produção e no comércio indicavam o surgimento de um novo indivíduo que acreditava no progresso e


na mudança. As deficiências do mercado e a baixa produtividade já não eram mais obstáculos para uma
sociedade que convivia com uma oferta abundante de mão de obra e com o avanço das técnicas de produção.

A grande revolução de 1789‑1848 foi o triunfo não da “indústria” como


tal, mas da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral,
mas da classe média ou da sociedade “burguesa” liberal; não da “economia
moderna” ou do “Estado moderno”, mas das economias e Estados com uma
determinada região geográfica do mundo (parte da Europa e alguns trechos
da América do Norte), cujo centro eram os Estados rivais e vizinhos da
Grã‑Bretanha e França (HOBSBAWM, 2010, p. 20).

De fato, o cenário estava preparado para a expansão da Revolução Industrial para além das fronteiras
inglesas, e isso ocorreria com a segunda Revolução Industrial, conjunto de inovações que permitiu ao
capitalismo sair de sua infância e desenvolver‑se.

Dos produtos dominantes durante a Revolução Industrial inglesa, apenas a


estrada de ferro continuou recebendo um notável impulso, ampliando‑se
continuamente. O ferro deixou de ser um produto industrializado, para se
transformar em matéria‑prima para o aço. O vapor de água foi substituído
pela eletricidade e pelo petróleo, como fonte de energia. A indústria química
permitiu a crescente independência industrial das matérias‑primas naturais.
A fábrica concentrou‑se em escala jamais imaginada. A ciência tornou‑se
matéria auxiliar da técnica. E a administração dos negócios adquiriu um
caráter científico (REZENDE, 2007, p. 145).

Como consequência dessas transformações, a composição do capital também se modificou. Os


investimentos para a criação e para a ampliação das fábricas eram agora vultosos demais e proliferaram
sociedades anônimas, dependentes dos grandes aportes financeiros oferecidos pelo setor bancário. Na luta
pela sobrevivência, os grandes capitais engoliram os menores. Em busca de produtividade, as empresas
passaram a reinvestir os lucros em pesquisa. “Um exemplo perfeito, tanto da subordinação da ciência à
técnica, como da administração profissional, foi fornecido por Frederick W. Taylor (1885‑1915), com seus
métodos que procuravam obter o máximo de rendimento produtivo por operário” (REZENDE, 2007, p. 148).

Os governos e os homens de negócio do Ocidente não encontravam impeditivos para suas pretensões
capitalistas. Ainda: embora o iluminismo objetivasse a libertação do indivíduo, tratava‑se de uma
liberdade atrelada à sociedade capitalista, em que os iluministas emancipariam os futuros burgueses
já pertencentes à alta sociedade. Não por acaso, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial inglesa
ocorreram no mesmo período e em lugares próximos: ambas foram fruto do desenvolvimento do
capitalismo liberal burguês. Elas serviram como marcas cruciais e divisoras de águas entre a existência
das velhas civilizações e o domínio europeu (principalmente britânico) do resto do mundo. Foi esse
desenvolvimento do capital burguês o que permitiu à Inglaterra a superioridade técnica, militar e
comercial, por meio da qual essa nação poria em prática empreendimentos capitalistas e expansionistas.
Além disso, a Inglaterra, cuja estabilidade fizera com que a conquista de autonomia por parte das suas
26
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

colônias não implicasse grande perda econômica, soube administrar melhor todas as guerras travadas
com o inimigo francês, ainda que este dispusesse de mais recursos.

Em 1848, uma revolta na França contra o autoritarismo e as péssimas condições da economia francesa
acabou servindo de estímulo à propagação de um clima revolucionário para dezenas de outros países na Europa.

Figura 6 – Propagação da Revolução de 1848 pelo restante da Europa. Em branco, os países liberais; em amarelo, os conservadores

Saiba mais

Sugerimos o filme a seguir, que retrata o período revolucionário na França:

OS MISERÁVEIS. Dir. Tom Hooper. EUA: Working Title Films, 2012.


158 minutos.

O desapego aos ideais tradicionais e religiosos daria lugar à máxima da Revolução Francesa, que
pretendia a liberdade, a igualdade e a fraternidade de todos os homens, desde que respeitados o progresso
e o racionalismo inerentes ao desenvolvimento do capitalismo. Afinal, foi a Revolução Francesa que pôs
fim de fato aos resquícios das relações sociais feudais: a monarquia tinha interesse nas novas ideias da
classe média para se modernizar e a classe média dependia da boa vontade do príncipe para que as ações
direcionadas ao progresso do capitalismo tivessem espaço em meio aos interesses aristocráticos e clericais.

Lembrete

A Revolução Francesa foi o conjunto de revoltas que culminaram com a


substituição da monarquia por um regime republicano secular.
27
Unidade I

Entretanto, é necessária uma observação: embora a Revolução Francesa, de cunho burguês,


tenha ocorrido em 1789, “não foi senão a partir de 1804 que seu governo tomou certas medidas
de favorecimento à burguesia, como a criação do Banco da França, construção de novas estradas,
remodelação dos portes, e incentivos à mecanização da produção” (REZENDE, 2007, p. 149). O
cenário era propício, já que desde o século anterior os governos franceses vinham adotando políticas
protecionistas à indústria nacional; em contrapartida, a hegemonia política da nobreza dona das
terras servia como empecilho ao crescimento industrial.

A força política da nobreza, que controlava o Estado, criava obstáculos


intransponíveis ao desenvolvimento industrial. O país era coberto por
barreiras alfandegárias locais e provinciais, que forçavam o pagamento de
tributos pela passagem por qualquer parte de seu território, tal como desde a
Idade Média. Essas barreiras faziam com que o mercado interno não fosse na
realidade único, e sim a soma de uma centena ou mais de mercados locais,
e tornava proibitivo o envio de mercadorias de uma região a outra. Como
se isso não bastasse, havia limitações legais ao livre trânsito dos produtos
agrícolas, sendo os agricultores obrigados a vender sua produção somente
nos mercados locais (MAGALHÃES FILHO, 1991, p. 262).

A Revolução Francesa e o período napoleônico representaram a vitória e o triunfo da


burguesia na França e, terminadas as guerras napoleônicas, o ritmo de industrialização na França
intensificou‑se de forma significativa: no norte, a indústria de tecidos se estabelece; nas minas
do Noroeste e na Lorena, a produção de ferro e carvão aumenta. Nas fábricas, empregam‑se os
antigos operários das corporações aniquiladas pela força das indústrias, buscando vagas como
assalariados nas fábricas capitalistas.

Lembrete

Na Inglaterra, diferentemente do que ocorreu na França, a mão de obra


nas indústrias se formou a partir dos camponeses expulsos dos campos.

A industrialização também acabou alcançando a Suíça e a Holanda, já que nesses países a burguesia
estava no poder havia muito tempo. Segundo Magalhães Filho (1991), na Holanda, apesar de a burguesia
ser predominantemente comercial, sua posição estratégica e as riquezas de suas colônias asiáticas
davam‑lhe posição privilegiada.

Na Dinamarca, as restrições e amarras feudais haviam sido abolidas em 1788; a economia, desde
então, havia se especializado na exportação de cereais e animais, principalmente para a Inglaterra. Na
Bélgica, desenvolveu‑se a produção de carvão e a indústria siderúrgica; também cresceu a produção de
produtos alimentícios e expandiu‑se a indústria têxtil.

Na Alemanha, a unificação nacional em 1870 permitiu que o país finalmente se industrializasse,


distanciando‑se da economia agrária.
28
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Limite da Confederação Germânica do Norte em 1867

Limite do Império Alemão em 1871

Figura 7 – Unificação alemã: em amarelo, o reino da Prússia em 1864; em rosa, as aquisições prussianas entre 1865 e 1866; em verde,
a Alsácia e a Lorena, adquiridas em 1871

Nesse processo, a Prússia desempenhou importante papel, liderando as áreas alemãs mais
desenvolvidas e, por meio de uma política militarista agressiva, combatendo a Dinamarca, a Áustria
e a França.

Ciente de que os capitais originários das atividades agrícolas e da indústria


têxtil e siderúrgica são insuficientes para promover uma industrialização
nos moldes requeridos pela segunda Revolução Industrial, o Estado
joga todo seu peso a fim de viabilizá‑la, atuando como produtor e
grande consumidor (forças armadas, administração, serviços públicos)
(REZENDE, 2007, p. 152).

Como exemplo dessa atuação centralizadora e forte do Estado da Prússia, podemos citar a prática de
dumping, sistematizada com o objetivo de criar vantagens para os produtos alemães.

Observação

A prática de dumping consiste em estabelecer preços diferenciados para


o mercado interno (mais elevados) e para o externo (mais baixos), fazendo
com que o consumidor interno subsidie as exportações.

29
Unidade I

Em função das necessidades nacionais, o Estado alemão também privilegiou o ensino técnico e a
pesquisa científica. Segundo Rezende (2007, p. 153), “as indústrias Krupp, por exemplo, chegaram a
ter em seus quadros funcionais um corpo de cientistas maior que o de qualquer outra universidade, às
vésperas da Primeira Guerra Mundial”.

A unificação também foi fundamental para o desenvolvimento industrial na Itália. Nesse país, o
processo de industrialização respeitou as características geográficas e econômicas do país. Segundo
Rezende (2007, p. 154),

[...] existiam duas Itálias. Uma Itália do Norte, com uma agricultura
progressista, com um sistema bancário desenvolvido, e com uma indústria
centrada nas cidades de Milão (têxtil e metalúrgica), Turim (mecânica e
têxtil), Gênova (têxtil e construção naval) e Veneza (têxtil), ligadas por uma
razoável rede ferroviária. E uma Itália do Sul, atrasada, essencialmente rural,
com apenas uma grande cidade, Nápoles, que no entanto concentrava mais
uma atividade comercial, que propriamente industrial.

Reino da Sardenha em 1815 Território anexado em novembro de 1860


Território anexado em 1859 Território anexado em 1866
Território anexado em março de 1860 Território perdido para a França em 1860
Francesa desde 1768, antes genovesa Fronteira internacional em 1914

Figura 8 – Unificação italiana

30
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Dentro desse contexto, os interesses dos grandes proprietários de terra se uniriam aos interesses dos
industriais, e a Itália do Sul passou a oferecer a mão de obra tão necessária à Itália do Norte.

Observação

Ainda nos dias de hoje, percebe‑se essa divisão na Itália, com as


indústrias concentrando‑se ao norte e a agricultura, ao sul.

Não será a Europa a única região a se contaminar pelos ares da industrialização, e o Japão é um
exemplo de como o desgaste do poder dos senhores feudais acabou por permitir que o desenvolvimento
econômico ganhasse impulso por meio da junção de forças entre o Estado e a burguesia. Assim, ao
final do século XIX, impostos feudais são substituídos por tarifas alfandegárias, e os antigos samurais
(a serviço dos senhores feudais) são substituídos por soldados profissionais. No entanto, é importante
lembrar que os senhores feudais não perderam suas terras nesse processo, e a organização tributária
passou a arrecadar recursos dos senhores proprietários de terras, dirigindo‑os para investimentos
industriais. Segundo Magalhães Filho (1991, p. 285),

[...] a grande vantagem comparativa da indústria japonesa estará em seus


salários, mais baixos que os de qualquer outro país industrial. O fato de
as restrições feudais terem sido abolidas sem que fosse modificada a
estrutura de propriedade da terra transforma a maior parte dos lavradores
em pequenos arrendatários, que em épocas de más colheitas, não podendo
pagar suas rendas, são obrigadas a abandonar o campo. [...] É esse crescente
fluxo para as cidades que forma os grandes contingentes de mão de obra
necessários à industrialização, permitindo ao mesmo tempo manter muito
baixos os níveis salariais.

Outro exemplo de industrialização, agora no Novo Mundo, diz respeito aos Estados Unidos. Segundo
Rezende (2007, p. 156), inicialmente colônia inglesa, “independentes em 1781, e tendo reafirmado
sua independência com a Guerra de 1812‑14 com a Inglaterra – motivada pelos impedimentos que
os ingleses faziam ao comércio com a França napoleônica e suas dependências –, os Estados Unidos
mantêm até 1860 a dicotomia herdada de seu passado colonial”: ao Sul, estavam os estados que viviam
da agricultura e eram, portanto, escravocratas. “As colônias de Maryland, Virgínia, Carolinas do Norte e
do Sul e Geórgia exportavam fumo, e em escala menor, arroz, anil, cânhamo, linho e resinas vegetais,
importando quase tudo o que consumiam” (MAGALHÃES FILHO, 1991, p. 274). Ao Norte, as colônias não
apresentavam condições geográficas favoráveis para a agricultura, tendo sido povoadas posteriormente,
por religiosos fugitivos da Grã‑Bretanha e da Europa continental: de origem burguesa, esses habitantes
trouxeram técnicas de produção e uma cultura voltada para o comércio e para a manufatura. Ao final
do século XIX, tem início um movimento separatista: os estados sulistas (Confederados) formam um
novo país e os estados do Norte reagem, defendendo a União. Segundo Magalhães Filho (1991, p. 279),

[...] a guerra durou quatro anos. As mortes militares alcançaram 529 mil
homens. O Sul foi completamente derrotado e sua economia primária
31
Unidade I

reorientada em benefício das indústrias do Norte. O custo total da guerra


ultrapassou a quantia de 8 bilhões de dólares, incluindo‑se apenas os gastos
diretos dos dois governos.

Vencedor, o norte “abole a escravidão e garante as condições para seu crescimento econômico, com
uma industrialização caracterizada pela presença de grandes trustes e cartéis (Carnegie, Ford, General
Electric, Westinghouse)” (REZENDE, 2007, p. 156).

Estados da União
Estados Confederados

1 – Oregon 13 – Pensilvânia 1 – Texas


2 – Califórnia 14 – Massachusetts 2 – Lousiana
3 – Área indígena 15 – Nova Iorque 3 – Arkansas
4 – Kansas 16 – Vermont 4 – Mississippi
5 – Wisconsin 17 – New Hampshire 5 – Alabama
6 – Michigan 18 – Maine 6 – Tennessee
7 – Missouri 19 – Rhode Island 7 – Geórgia
8 – lllinois 20 – Connecticut 8 – Carolina do Sul
9 – Indiana 21 – New Jersey 9 – Carolina do Norte
10 – Kentucky 22 – Delaware 10 – Virgínia
11 – Ohio 23 – Maryland 11 – Flórida
12 – Virgínia Ocidental

Figura 9 – A Guerra Civil Americana (Guerra de Secessão)

32
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Saiba mais

Sugerimos que você veja o filme a seguir, que retrata a Guerra de


Secessão e os debates acerca da escravidão:

LINCOLN. Dir. Steven Spielberg. EUA: DreamWorks Pictures, 2013.


150 minutos.

No século XIX, a Revolução Industrial estava consolidada na maior parte dos países da Europa. O
operário, que não possuía nada além de sua força de trabalho, empregava‑se nas pequenas ou grandes
fábricas e sujeitava‑se a condições extremamente precárias e insalubres. Não havia como protestar ou
como lutar por quaisquer melhorias de salário: sequer havia garantia de emprego, já que a ameaça da
substituição da mão de obra por máquinas funcionava como uma espada sobre a cabeça do trabalhador.
De fato, havia tanta revolta que, ao final do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX, as invasões
de fábricas por operários se tornaram uma constante.

Fábricas destruídas espalhavam‑se pelo campo e a cada uma o comentário


era “Ned Ludd passou por aqui”. O boato era que um Rei Ludd ou um General
Ludd estava dirigindo as atividades da turba. Não era verdade, claro. Os
Luddites, como eles eram chamados, inflamavam‑se pelo puro e espontâneo
ódio às fábricas, que viam como prisões, e ao trabalho assalariado, que
desprezavam. [...] Para a maior parte dos observadores [...], as classes
baixas estavam escapando do controle e era preciso agir severamente para
acabar com a situação. E, para as classes altas, aqueles acontecimentos
pareciam indicar que um violento e terrificante Armageddon se aproximava
(HEILBRONER, 1996, p. 102‑3).

As condições desesperadoras dos trabalhadores alimentariam e impulsionariam as revoltas do final


do século XIX e do início do XX, sob os auspícios da atuação política dos socialistas, anarquistas e
comunistas; Marx e Engels, por seu turno, depois de oferecerem o arcabouço teórico necessário para
a compreensão da formação do lucro e da acumulação capitalista, propunham a revolução comunista
como salvação para os operários e, por que não dizer, para o próprio capitalismo.

Saiba mais

Sugerimos o filme a seguir, baseado no livro homônimo de Émile Zola,


que narra a trajetória de um grupo de mineiros grevistas franceses, no
século XIX:

GERMINAL. Dir. Claude Berri. França: AMLF, 1993. 160 minutos.

33
Unidade I

1.3 A crise

No final do século XIX, deflagra‑se a primeira crise geral do capitalismo. A miséria social produzida
e intensificada pela Revolução Industrial fomentou levantes trabalhistas e a aparição de movimentos
contrários à industrialização. Todos estavam insatisfeitos, e a insatisfação não atingia apenas o
proletariado. Entre os indignados, podiam ser encontrados pequenos comerciantes, pequenos burgueses
e fazendeiros; em suma, todos – exceto os grandes proprietários dos meios de produção, a quem a
Revolução Industrial proporcionava grandes lucros –, sofriam com a desigualdade de renda.

De fato, ao longo da segunda metade do século, a economia já havia dado sinais de que algo não
corria bem: recessões, fracas e de curta duração, e depressões, mais profundas e duradouras, ameaçavam
o desenvolvimento até então exponencial do capitalismo e implicavam desemprego, queda de produção
e consumo e baixa na qualidade de vida. Além disso, o proletariado, frente às condições constantes
de miséria às quais era submetido e sofrendo ainda mais intensamente com as oscilações do sistema
capitalista, se organizava em sindicatos e se interessava por ideias que preconizavam a democracia e a
efetiva participação política que lhe fazia falta:

Por toda a parte os grupos excluídos defrontavam‑se com novas oligarquias


que não atendiam às suas necessidades e não respondiam aos seus anseios.
Estes extravasavam em lutas visando tornar mais efetiva a promessa
democrática que a acumulação de riquezas e poder nas mãos de alguns,
em detrimento da grande maioria, demonstrara ser cada vez mais fictícia.
[...] Ideias socialistas, anarquistas, sindicalistas, comunistas ou simplesmente
reformistas apareceram como críticas ao mundo criado pelo capitalismo e
pela liberal‑democracia (COSTA, 2003).

Datam desse período a disseminação das correntes do socialismo utópico, a publicação do Manifesto
Comunista (1848), a organização da Primeira Internacional (1864) e, após seu fracasso, da Segunda
Internacional (1889), a publicação de O Capital (1867), os escritos anarquistas, a Comuna de Paris (1871)
e a mobilização política sindical e partidária do operariado.

O socialismo utópico (que se contrapunha ao socialismo científico de Marx e Engels por conta da
ausência de ações propositivas em sua teoria e de seu pacifismo) teorizava acerca do que deveria ser
considerada uma sociedade justa e igualitária, mas não elaborava quaisquer métodos revolucionários
para alcançá‑la. Além disso, os autores dessa corrente responsabilizavam as classes superiores pela
modificação social necessária ao estabelecimento do socialismo.

A crítica de Marx e Engels aos socialistas utópicos era simples: para eles, não se podia ignorar
a questão de classe inerente à desigualdade social. Era preciso atentar para as distinções de classe,
em vez de dar preferência aos valores burgueses e entendê‑los como representativos da sociedade
em seu conjunto. Com esse propósito, em 1848, Marx e Engels publicam o Manifesto Comunista,
convocando todos os operários do mundo para que se unissem e se comprometessem com a revolução
socialista. Para seus autores, o vetor de qualquer ação revolucionária era a classe trabalhadora e só ela
poderia conquistar a própria emancipação, fazendo‑se essencial a libertação autônoma, por baixo, do
34
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

proletariado com relação à burguesia. Além disso, os autores propunham uma união internacionalista
de todo o operariado para que se pusesse fim à concentração de riqueza própria do capitalismo
monopolista. De fato, Marx e Engels enxergavam, também, uma contradição inerente ao capitalismo.
Essa contradição era o que explicava as crises e antecipava a intensificação inevitável do conflito entre
a centralização dos meios de produção e a exploração do proletariado, situação que supostamente
levaria o capitalismo à sua decadência.

E o mais importante – a contradição fundamental da sociedade capitalista


– o fato de que enquanto a produção em si é cada vez mais socializada,
o resultado do trabalho coletivo, a apropriação, é privado, individual. O
trabalho cria, o capital se apropria. No capitalismo, a criação pelo trabalho
já se tornou uma empresa conjunta, um processo cooperativo com milhares
de operários trabalhando em conjunto (frequentemente, para produzir
apenas uma coisa, como por exemplo o automóvel). Mas os produtos,
socialmente produzidos, são apropriados não pelos seus produtores, mas
pelos donos dos meios de produção – os capitalistas. E aí está o problema – a
origem do conflito. A produção socializada contra a apropriação capitalista
(HUBERMAN, 1974, p. 293).

Anos depois, Marx publicou O Capital, em que definiu conceitos que seriam utilizados tanto por
socialistas quanto por estudiosos em geral por muitas décadas. Em O Capital podemos ler, por exemplo,
que o capitalismo se baseia na exploração da força de trabalho e na obtenção de mais‑valia: uma ínfima
parte do trabalho do proletário (tão especializado que o impede de ter uma noção integral do produto
final do esforço conjunto dos trabalhadores) paga seu salário, sendo todo o resto revertido em lucro
para o proprietário dos meios de produção.

Lembrete

O Capital é um livro teórico, extenso, que gira em torno de uma crítica


econômica ao capitalismo e procura compreendê‑lo.

Indiferente à organização política do proletariado no final do século XIX, entretanto, o capitalismo


tinha outros problemas a resolver. Afinal, chegara o momento em que se tornava evidente que a
exploração promovida pelo capitalismo, e da qual ele se alimentava, tinha seus limites. A lucratividade
não mais crescia de acordo com o aumento de produtividade, uma vez que a mais‑valia só poderia ser
obtida por meio da exploração de mão de obra e essa, por sua vez, além de possuir limites fisiológicos
naturais, tornava‑se mais cara à medida que era mais empregada. Diminuindo‑se a taxa de lucro e, com
isso, as oportunidades de investimento, inevitavelmente a produção entrou em um período de depressão
que se destacou das crises conjunturais e periódicas às quais os capitalistas já haviam se acostumado.

A redução da margem de lucro, segundo Hobsbawm (2010), teve duas consequências: em primeiro
lugar, por conta do ambiente extremamente competitivo entre as empresas, o mercado viveu a experiência
da queda dramática e constante no preço dos artigos acabados; em segundo, houve a manutenção dos
35
Unidade I

custos de produção, que não se beneficiaram da queda geral dos preços. Na verdade, depois de 1815, a
situação geral dos preços era de deflação e não de inflação, e os lucros experimentavam um leve recuo.

Uma possível saída era que o custo de vida diminuísse, para que os salários também pudessem
diminuir. Havia, entretanto, o impedimento representado pela política protecionista do Parlamento, que
permitia o monopólio da propriedade fundiária e criava obstáculos para as importações: como exportar
para países se estes não tinham recursos, dada a impossibilidade de exportar para países que adotavam
políticas protecionistas?

O capitalismo industrial, então, dava lugar ao capitalismo monopolista, em que grandes grupos
controlavam partes igualmente grandes do mercado referente à sua produção – sem, com isso, eliminar
necessariamente a concorrência: um número pequeno de empresas eliminava seus concorrentes
menores e competia pelo mercado entre si, às vezes chegando a acordos para dividi‑lo.

Aço, metalurgia, indústria química, siderurgia, mineração e outros setores: os países industrializados
deparavam com o estabelecimento de monopólios empresariais especializados e os países não
industrializados forneciam os produtos primários necessários a tal produção, importando produtos
acabados. Via‑se, também, a consolidação e a crescente importância do monopolismo bancário, por
meio do qual as empresas particulares e governos, cujos interesses convergiam, controlavam empresas
menores e influenciavam a política exterior com seus empréstimos e concessões de crédito.

Um a um os principais setores industriais haviam caído em mãos de grandes


grupos, e a tendência indicava que, a seu tempo, os demais setores viriam a
ter o mesmo destino. Montados em sua posição monopolística, os grandes
grupos ditavam os preços, mantendo‑os anormalmente altos, de modo a
auferir maiores lucros, mas podendo baixá‑los até onde fosse preciso para
aniquilar um concorrente. Os pequenos produtores que ainda restavam
nesses setores iam sendo deliberadamente engolidos, e os que compravam
ou vendiam para esses grupos eram obrigados a ceder às suas exigências. A
não ser em ramos inteiramente novos, passara à lembrança a época em que
qualquer um podia vir a estabelecer‑se. Surgira o capitalismo monopolista
(MAGALHÃES FILHO, 1991, p. 324).

A racionalização da produção e a obtenção de margens consideráveis de lucro permitiam o


investimento em novas técnicas e novos produtos, assim como transferia às empresas o poder de
definir os preços de mercado. Porém, embora lucrassem com o capitalismo, os regimes monopolistas
não agradavam inteiramente à classe média de burgueses, comerciantes e proprietários agrícolas. Para
muitos, os cartéis, trustes e manobras perpetrados pelos grandes grupos empresariais ameaçavam a livre
concorrência a que a sociedade já estava acostumada.

Na indústria ferroviária, a ação predatória dos grandes empresários acabou por fazer com que os
moradores da Califórnia só pudessem usar os trens de uma única e grande empresa. “Mas não foi
apenas a indústria ferroviária que utilizou o poder econômico para criar uma posição monopolizadora.
Na fabricação de uísque e de açúcar, no tabaco e nos alimentos para o gado, em pregos, anéis de aço,
36
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

aparelhos elétricos, lâminas de metal, em fósforos e carne” (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 107), em
todos os setores da economia americana, surgiram gigantes monopolizadores, cuja atuação e controle
inviabilizavam qualquer concorrência. Aos poucos, a produção industrial passou a se concentrar nas
mãos de poucas unidades de negócio.

Nos Estados Unidos, segundo Heilbroner e Milberg (2008, p. 108),

A transformação foi dramática. Em 1900, por exemplo, a quantidade de


fábricas têxteis, ainda que grande, diminuiu em um terço desde a década de
1880; durante o mesmo período, o número de fabricantes de implementos
agrícolas despencou em 60%, e a quantidade de fabricantes de couro, em
três quartos. Na indústria de vagões, duas empresas dominavam o cenário
em 1900, num contraste com as 19 em 1860. A indústria de biscoitos doces
e salgados passou de umas poucas empresas, menores e espalhadas, para um
mercado em que um só produtor detinha 90% da capacidade industrial, na
virada do século. Enquanto isso, no aço, existia a colossal US Steel Company,
que sozinha dava conta de mais da metade da produção de aço no país. No
petróleo, a Standard Oil Company controlava 75% da produção de cigarros
e 35% da produção de charutos.

É evidente que, em dado momento, os gigantes perceberam que a conquista de novas fatias de mercado
só aconteceria caso eles brigassem; e, como eles não queriam brigar, decidiram não competir. Quais
as estratégias então formuladas por essas grandes empresas? Elas resolveram criar trustes, grupos que
reuniam empresas coligadas que recebiam parcelas dos lucros conforme a porcentagem de participação.
Quando os trustes foram declarados ilegais, criou‑se o dispositivo que permitia às empresas a compra de
ações de outras empresas, em um verdadeiro processo de fusão. Nos Estados Unidos,

só na manufatura e na exploração de minério, ocorreram 43 fusões em 1895


[...]; 26 fusões em 1896; e 69 em 1897. Em 1898, havia 303 – e finalmente,
em 1899, um clímax de 1.208 fusões combinavam 2,26 bilhões de dólares
em ativos corporativos (HEILBRONER; MILBERG, 2008, p. 111).

O capitalismo monopolista enfrentava outras dificuldades: a premência em expandir os horizontes


já o havia lançado na direção de territórios estrangeiros não industrializados. Os países centrais,
interessados em controlar seu próprio suprimento de matérias‑primas para a produção monopolista,
não mais encontravam a segurança necessária no seu fornecimento por meio das trocas comerciais
existentes. Fazia‑se necessário para a manutenção da exploração capitalista, então, controlar as regiões
de onde provinham os recursos primários. Havia a preocupação, também, de aumentar a demanda cujo
consumo escoaria a produção em larga escala dos países industrializados. A desigualdade de renda
interna destes países não permitia o estabelecimento de um mercado que se encarregasse de consumir
a produção, e à exportação era inerente a competição internacional.

Igualmente problemática era a necessidade de investimento do excedente econômico das


economias industriais. Nessas condições, a melhor saída que se apresentava era a conquista de
37
Unidade I

mercados externos, ainda que ela não envolvesse dominação política, e ao conjunto de estratégias
relacionadas a esses objetivos damos o nome de neocolonialismo.

O imperialismo levou à formação de grandes impérios coloniais [...], mas


essa foi apenas uma de suas formas de ação. Em muitas ocasiões não era
possível ou vantajoso submeter politicamente uma determinada região
ou país, às vezes nem sequer necessário. A evolução das forças produtivas
nas economias industrializadas fora tão grande e tão rápida, e o poderio
econômico desses países crescera de tal forma que as outras nações,
quisessem ou não, haviam passado a depender deles, e de seus grandes
monopólios (MAGALHÃES FILHO, 1991, p. 331).

Explorar economicamente países periféricos, entretanto, não era tarefa simples ou justa. A ação
capitalista trouxe consigo a responsabilidade pela dependência comercial, pela subjugação política e,
por vezes, pela eliminação da cultura e população locais.

Observação

O neocolonialismo, quer dizer, a divisão dos territórios não


industrializados pelas grandes potências no final do século XIX e começo
do século XX, segue se desdobrando em consequências negativas no
processo de desenvolvimento econômico dos países colonizados (ou cujo
mercado interno foi monopolizado) nos dias atuais. A África, em especial,
foi devastada nesse período.

Saiba mais
Sobre o tema, sugerimos os filmes a seguir:
DIAMANTE de sangue. Dir. Edward Zwick. EUA: Warner Bros., 2006. 143 minutos.
HOTEL Ruanda. Dir. Terry George. EUA: United Artists, 2004. 121 minutos.

Exemplo de aplicação

Não há consenso sobre o fim do processo de descolonização do mundo, visto que ainda hoje há
países travando suas lutas por independência e pela reformulação de seus limites geográficos, por conta
da política expansionista europeia de que falamos: o último país a obter independência foi o Sudão do
Sul, que conquistou sua autonomia frente ao Sudão em 2011.

Em sua opinião, há semelhança entre o imperialismo do final do século XIX e início do século XX e
as estratégias de dominação econômica que os países industrializados utilizam atualmente junto aos
países periféricos?

38
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

A Grã‑Bretanha era, nesse período, praticamente dona do mundo. Ela detinha o controle do maior
império colonial. A sua posse mais importante era a Índia; no Império da Índia, organizou‑se a produção
e exportação de algodão, açúcar e juta, consumo e objeto de investimento de capital inglês. Os britânicos
também se estabeleceram em Cingapura, controlando o fluxo marítimo entre China e Índia; ocuparam
Hong Kong; conquistaram a Birmânia; dominaram a Austrália, a Nova Zelândia e o Canadá; e expandiram
seu império por quase todo o continente africano.

A ação imperialista nas colônias britânicas fora da África, entretanto, tinha suas particularidades: desde o
começo, a Grã‑Bretanha concedeu certa autonomia política para a população nativa e, por mais que as colônias
estivessem estritamente ligadas à sua metrópole, puderam desenvolver sua indústria ao mesmo patamar da
indústria britânica, passando a exportadoras de grande porte. Já na África, os interesses ingleses operavam
de forma diferente. Com um terço do continente sob o domínio britânico, o maior objetivo da metrópole era
controlar as reservas de ouro e diamantes em solo africano: África do Sul, Natal, Egito, Zanzibar, Quênia, Uganda,
Bechuanalândia (atual Botswana), Nigéria e Serra Leoa foram alguns dos territórios anexados ao império britânico.
Além disso, várias regiões foram disputadas com outros países europeus, como a Alemanha, a França e Portugal,
que também procuravam participar da divisão do mundo proporcionada pelo expansionismo imperialista.

A França ocupou a Argélia e a Tunísia e, em seguida, se preocupou especialmente em conquistar a


África Ocidental e Equatorial, anexando ao seu domínio São Luís, a ilha de Goreia, Dakar, Aden e Somália.
Na Ásia, o império francês dominava a Conchinchina, Camboja, Tonkin, Laos, Danang e Anam.

Por sua vez, a tentativa de expansão alemã figurou em vários conflitos e contribuiu para o
aceleramento da conquista da África por franceses e britânicos. Coube à Alemanha, no fim, o controle
de Nova Guiné, das ilhas da Micronésia e da Samoa Ocidental. A Itália e a Bélgica também entraram na
corrida imperialista, mas conseguiram o controle de apenas poucos territórios: a Itália ocupou a Eritreia
e posteriormente a Somália e a Líbia, e a Bélgica explorou economicamente a região do Congo até 1908,
quando o país foi de fato anexado à metrópole e a opressão lá vista nos anos anteriores foi controlada.

Figura 10 – Os impérios

39
Unidade I

O expansionismo russo, ainda que tenha se aventurado por terras em que habitavam populações
rurais e até mesmo nômades, se espalhou por grandes territórios: a fronteira oriental russa chegou ao
Pacífico e, em 1858, a China reconheceu o domínio russo a norte do Amur e leste do Ussuri. A Rússia
ocupou o Cáucaso; anexou a Geórgia; transformou em vassalos o vale do Amu Darya, Bucara e Quiva; e
disputou o Afeganistão e a Pérsia com a Grã‑Bretanha. Além disso, a Rússia e a Áustria‑Hungria se viam
em um conflito pelos territórios recém‑desmembrados do Império Otomano. A partir daí, uma série
de crises se iniciou entre os países que queriam anexar mais terras, ocasionando guerras, provocando
acordos, justificando intervenções por parte das potências e fomentando levantes populares.

Enquanto isso, os recém‑independentes Estados Unidos firmavam‑se como potência colonial: os


americanos compraram o Alasca da Rússia, anexaram o Havaí e várias ilhas no Pacífico (como a Samoa
Oriental), participaram do conflito pelo comércio com a China, disputaram regiões da América Latina
com a Espanha (Porto Rico, Filipinas e Guam foram tornadas colônias norte‑americanas) e controlaram a
produção caribenha, e por mais que Cuba também tivesse conquistado sua independência, foi transformada
em um protetorado não oficial dos Estados Unidos, fazendo‑se dependente economicamente do país.

Pressões dos EUA

Áreas de influências dos EUA


As intenções imperialistas dos EUA.

Figura 11 – O império norte‑americano

Foi igualmente importante nesse período a tentativa de negociação norte‑americana com a


Colômbia, com o objetivo de construir um canal interoceânico em seu território. O atrito culminou
em lutas separatistas de nativos fomentadas pelos interesses dos Estados Unidos. Como resultado, a
República do Panamá tornou‑se independente.

40
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Mas a disputa pelos mercados estava longe de se solucionar. Muito em breve, os países entrariam em
guerra para preservar o que julgavam serem suas propriedades e para expandir os seus limites. Afinal,
quais seriam os limites para o crescimento capitalista?

1.4 A Primeira Guerra Mundial

Os motivos que levaram à Primeira Guerra Mundial não foram ideológicos ou revolucionários, mas
sim econômicos. A rivalidade econômica havia crescido com o desenvolvimento capitalista e com a
competição econômica. Por causa dos mercados, os países europeus entraram em guerra, levando
consigo outras nações.

Figura 12 – As frentes envolvidas na Primeira Guerra Mundial (1914‑1918)

Tanto a Alemanha quanto a Grã‑Bretanha já haviam encontrado os limites para sua expansão,
precisando conquistar outros territórios e novas fontes de recursos. No caso da França, os objetivos eram
menos globais, contudo igualmente urgentes: compensar a sua inferioridade demográfica e econômica
frente à Alemanha. Em resumo, a França lutava pelo seu futuro como grande potência (HOBSBAWM, 2008).

O conflito foi sangrento a tal ponto que, a partir de 1914, a palavra “paz” ganhou um significado
que até então ninguém conhecia. É totalmente compreensível pensar assim; afinal, até 1914 nunca
havia ocorrido uma guerra em que todas as grandes potências estivessem envolvidas. Houvera apenas
uma guerra breve com a participação de duas grandes potências: a Guerra da Crimeia (1854‑6), com a
Rússia de um lado e a Grã‑Bretanha e a França do outro. Normalmente, as guerras envolvendo grandes
potências eram rápidas, durando semanas ou, no máximo, poucos meses.

41
Unidade I

Lembrete

A Guerra Civil americana – ou a Guerra da Secessão – foi resultado do


conflito entre os estados americanos do Sul (escravocratas) e os do Norte
(industrializados).

Antes de 1914, não houvera guerras mundiais, e entre 1815 e 1914 nenhuma grande potência
combateu outra fora do seu território imediato. Porém, tudo mudou em 1914: a Primeira Guerra
Mundial envolveu todas as grandes potências, e todos os Estados europeus, com exceção dos três
países da Escandinávia: Suíça, Espanha e os Países Baixos. Canadenses lutaram na França, americanos
viajaram para a Europa (desconsiderando a advertência de George Washington quanto à inadequação
do envolvimento americano no conflito), indianos foram enviados para a Europa e para o Oriente Médio,
batalhões de chineses foram para o Ocidente e africanos lutaram no exército francês: a guerra naval
tornou‑se global e, o conflito, mundial (HOBSBAWM, 2008).

Observação

Conforme Hobsbawn (2008), o conflito fora da Europa não foi tão


significativo. A primeira batalha naval ocorreu em 1914 e as campanhas
decisivas, entre os comboios aliados e os submarinos alemães, ocorreram
nos mares do Atlântico Norte e Médio.

Segundo Hobsbawm (2008), um satirista em Viana, Karl Kraus, ao documentar e denunciar essa
guerra em um drama‑reportagem, deu ao seu trabalho o título de Os Últimos Dias da Humanidade;
ele não era o único a ver a Guerra Mundial como o fim do mundo. É bem verdade que a humanidade
sobreviveu; contudo, no curso dos acontecimentos, o extermínio de uma considerável parte da raça
humana foi percebido não só como possível, mas como uma verdadeira tragédia.

Mas o que provocou essa guerra? A Primeira Guerra Mundial (1914‑1918), a princípio, foi essencialmente
europeia, tendo a Tríplice Aliança de um lado (formada pela França, Grã‑Bretanha e Rússia) e as Potências
Centrais de outro (Áustria‑Hungria, com a Sérvia e a Bélgica sendo arrastadas imediatamente para um
dos lados). O acontecimento inicial foi o ataque austríaco à Sérvia. A Turquia, a Bulgária e o Japão logo se
juntaram às Potências Centrais. Subornada, a Itália se uniu à Tríplice Aliança; depois, a Grécia, a Romênia,
Portugal e, de forma decisiva, os EUA (em 1917) se envolveram no conflito (HOBSBAWM, 2008).

A Alemanha tinha como plano liquidar rapidamente a França no Ocidente e partir tão rápido quanto
possível para derrotar a Rússia no Oriente, antes que os russos pudessem usar o seu enorme potencial
militar humano. Movida por uma questão de necessidade, a Alemanha planejava uma campanha
relâmpago. O plano não deu certo em sua totalidade. Os alemães avançaram sobre a França, inclusive
atravessando a Bélgica, sendo bloqueados a algumas dezenas de quilômetros a leste de Paris depois de
cinco ou seis meses de declarada a guerra.

42
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

O exército alemão recuou e a defesa da França foi reforçada com forças belgas e britânicas, auxílio
esse que logo aumentou de forma significativa. Essa era a frente de batalha ocidental, que se tornou
uma máquina de massacre sem precedentes na história da guerra.

Figura 13 – Soldados nas trincheiras (Primeira Guerra Mundial)

Milhões de homens ficavam uns diante dos outros nos parapeitos de


trincheiras barricadas com sacos de areia, sob os quais viviam como – e
com – ratos e piolhos. De vez em quando os seus generais procuravam
romper o impasse. Dias e mesmo semanas de incessante bombardeio de
artilharia – que um escritor alemão chamou depois de “furações de aço”
(Ernst Jünger, 1921) – “amaciavam” o inimigo e o mandavam para baixo
da terra, até que no momento certo levas de homens saíam por cima do
parapeito, geralmente protegido por rolos e teias de arame farpado, para
a “terra de ninguém”, um caos de crateras de granadas inundadas de água,
tocos de árvores calcinadas, lama e cadáveres abandonados, e avançavam
sobre as metralhadoras, que ceifavam, como eles sabiam que aconteceria
(HOBSBAWM, 2008, p. 33).

Em 1916, a tentativa alemã de romper as barreiras inimigas em Verdum fracassou: a batalha envolveu
2 milhões de homens e resultou em 1 milhão de baixas. Os britânicos efetuaram uma ofensiva contra
os alemães no Somme, com o objetivo de forçar os alemães a suspenderem a ofensiva em Verdum.
Segundo Hobsbawm (2008), são números impressionantes: essa batalha custou à Grã‑Bretanha 420 mil
mortos, sendo que só no primeiro ataque morreram 60 mil homens.

Observação

Para os britânicos e franceses que lutaram nessa “frente ocidental”,


a Primeira Guerra Mundial foi a “Grande Guerra”, sendo mais terrível
e traumática do que a Segunda Guerra Mundial devido ao grande
volume de mortos.
43
Unidade I

A Primeira Guerra Mundial foi deveras catastrófica: os franceses perderam mais de 20% de
seus homens em idade militar, e se levarmos em conta os prisioneiros de guerra, os feridos e os
permanentemente estropiados e desfigurados, não mais de um terço dos soldados franceses saiu ileso.
Os britânicos perderam uma geração – meio milhão de homens com menos de trinta anos; os alemães
perderam um pouco mais do que os franceses (1,8 milhão de mortos, contra 1,6 milhão por parte dos
franceses). Os EUA perderam 116 mil homens, o que é muito se levarmos em conta que os americanos
lutaram apenas um ano e meio (1917‑ 1918) (HOBSBAWM, 2008).

Enquanto na frente de batalha ocidental mantinha‑se um impasse sangrento, a frente de batalha


oriental permanecia em movimento. Os alemães, muitas vezes com ajuda dos austríacos, pulverizavam
a Rússia, tanto para impedi‑la na tentativa de invasão em Tannenberg quanto expulsando-a da Polônia.
Ficou claro que as Potências Centrais tinham o controle e a Rússia apenas atuava com uma ação
defensiva de retaguarda contra o avanço alemão.

O plano da Itália de abrir outra frente de batalha falhou: os soldados não viam motivo para lutar pelo
governo de um Estado que tinha se formado havia tão pouco tempo.

Observação

O processo de unificação da Itália durou de 1815 a 1870, sendo finalizado


com a incorporação dos estados de Roma e Veneza.

Os italianos tiveram de ser ajudados por seus aliados e a Grã‑Bretanha, a França e a Alemanha
sangraram até a morte na frente de combate ocidental. Na frente de batalha oriental, a Rússia estava
totalmente desestabilizada, claramente perdendo a guerra contra seus inimigos, sendo empurrada para
a revolução e perdendo grande parte de seus territórios (HOBSBAWM, 2008). A grande questão era
como resolver o impasse na frente de combate ocidental; afinal, sem que houvesse alguma vitória no
Ocidente, nenhum dos lados sairia vencedor da guerra. O conflito naval também estava empatado, tanto
que o ultimo confronto em 1916 havia terminado de forma indefinida, sem que um vencedor pudesse
ser identificado.

Durante a Primeira Guerra Mundial, tanto a Tríplice Aliança quanto as Potências Centrais tentaram
vencer a guerra por meio da tecnologia.

44
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Figura 14 – Indústria e pesquisa a serviço da guerra

Os alemães, especialistas em química, apostaram no gás venenoso, cuja utilização se revelou bárbara
e ineficaz. Os britânicos foram os pioneiros nos veículos blindados de esteira (comumente chamados
de tanques de guerra), embora seus generais ainda não soubessem como usá‑los. Os submarinos se
tornaram a forma mais eficaz de combater o inimigo, tornando‑se a arma tecnológica mais importante
durante a Primeira Guerra Mundial.

Visto que nenhum dos lados conseguia derrotar os soldados do outro, o alvo passou a ser a população
civil. Todos os suprimentos da Grã‑Bretanha vinham pelo mar, logo, parecia factível estrangular as ilhas
britânicas mediante uma guerra submarina cada vez mais implacável contra os navios ingleses; com
essa estratégia, os alemães chegaram muito perto do êxito em 1917. A solução britânica foi simples:
arrastar os Estados Unidos para a guerra.

Os britânicos também responderam com o bloqueio de suprimentos à economia e ao abastecimento


de alimentos à população alemã, e se saíram melhor do que o esperado, visto que a economia de guerra
alemã não era tão eficiente quanto se gabavam os alemães. De fato, a superioridade alemã residia única
e simplesmente na sua força militar, enquanto a economia, em termos gerais, carecia de organização e
vigor. A superioridade do exército alemão teria decidido a guerra em favor da Alemanha, se os aliados
não tivessem contado com os recursos praticamente ilimitados dos EUA: graças à inundação de recursos
que os americanos disponibilizaram, os aliados se recuperaram e começaram a avançar nas frentes de
batalha no verão de 1918.

Para Hobsbawm (2008), com a Alemanha já exausta, o fim chegaria em apenas uma questão de
semanas. As Potências Centrais não só admitiram a derrota como, em seguida, desmoronaram. Devido
a essa derrota, nenhum dos velhos governos ficou de pé: a revolução varreu o Sudeste e o Centro da
Europa no outono de 1918, e nenhum dos países derrotados escapou da revolução. Mesmo os vitoriosos
ficaram com seus governos abalados.

45
Unidade I

A respeito dessa catastrófica guerra, deixamos aqui uma reflexão:

A maioria das guerras não revolucionárias e não ideológicas do passado


não se travava sob a forma de lutas de morte ou que prosseguissem até a
exaustão total [...]. Por que, então, a Primeira Guerra Mundial foi travada
pelas principais potências dos dois lados como um tudo ou nada, ou seja,
como uma guerra que só podia ser vencida por inteiro ou perdida por
inteiro? (HOBSBAWM, 2008, p. 37).

Ao final, a Primeira Guerra Mundial nos deu uma lição muito importante: os interesses econômicos
no capitalismo, mais do que qualquer outra coisa, tiveram o poder de ceifar centenas de milhares de
vidas. De qualquer forma, o mundo depois da Primeira Guerra Mundial já não era o mesmo. Em março
de 1917, o czar russo foi deposto; em outubro do mesmo ano, o Partido Bolchevique derrubou o governo
provisório estabelecido e instituiu o governo socialista na Rússia. De forma dissidente e contrária
ao movimento de outros países, a União Soviética substituía a estrutura feudal por outra distinta,
não capitalista: embora o processo de industrialização já houvesse atingido essa região, a situação
de extrema pobreza no território russo, as péssimas condições de vida do proletariado (empregado
na exportação de petróleo, na construção de estradas de ferro e na indústria siderúrgica) e os ares
revolucionários das ideias comunistas e socialistas levariam à criação de uma dissidência em relação ao
contexto hegemônico capitalista. A Primeira Guerra Mundial colaboraria para esse processo, por meio
da crise de abastecimento que serviria de combustão para as greves e revoltas populares.

A Revolução de Outubro de 1917 acabou por colocar os conselhos operários no controle de todas as
esferas da economia (por meio da estatização), o confisco das propriedades privadas e a estatização. A
União Soviética surgia com uma proposta distinta do capitalismo, negando o mercado e centrando sua
força na concentração de poder nas mãos do Estado. Mas o capitalismo teria outras preocupações mais
urgentes pela frente.

2 A CRISE DE 1929

O período que vai entre os anos 1920 e 1930 será importante para que seja permitido entender a
evolução do capitalismo e sua característica cíclica em que de um momento de exuberância, rapidamente
se passa a um momento de depressão. É o que iremos entender.

2.1 A gênese da crise

O século XX mal havia se recuperado dos efeitos terríveis da Primeira Guerra Mundial quando outro
acontecimento atingiu o mundo com força.

[…] a Primeira Guerra Mundial foi seguida por um tipo de colapso


verdadeiramente mundial, sentido pelo menos em todos os lugares em que
homens e mulheres se envolviam ou faziam uso de transações impessoais de
mercado. Na verdade, mesmo os orgulhosos EUA, longe de serem um porto
seguro das convulsões de continentes menos afortunados, se tornaram o
46
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

epicentro deste que foi o maior terremoto global medido na escala Richter
dos historiadores econômicos […] (HOBSBAWM, 2008, p. 91).

A crise de 1929 veio se construindo durante e após a Primeira Guerra Mundial (1914‑1918). Nesse
período, os Estados Unidos tornaram‑se o principal fornecedor de produtos industrializados para a
Europa devido à destruição causada pela guerra aos países europeus.

Em 1920, a indústria norte‑americana produzia mais de 42% de toda a produção industrial do


mundo. Além de os EUA serem o maior exportador do mundo, eles também eram o segundo maior
importador do mundo (ficando atrás apenas da Grã‑Bretanha), importando cerca de 40% das exportações
de matérias‑primas e alimentos de quinze países, o que ajuda a entender o forte impacto da depressão
sobre os produtores de trigo, algodão, açúcar, borracha, seda, cobre, estanho e café. Segundo Hobsbawm
(2008), a prosperidade do período causada por essa euforia na produção colocou a produção e o consumo
desenfreado como variáveis fundamentais do crescimento econômico.

Entretanto, à medida que a Europa foi se reorganizando, a produção interna em diversos


países aumentou, reduzindo assim a dependência dos produtos norte‑americanos, mas, no
entanto, causando um excesso de oferta. Redução dos preços, queda na produção e desemprego
foram consequências dessa insuficiência de demanda efetiva. Muitas empresas foram à falência
e o nível de desemprego cresceu de uma forma assombrosa; em 1933, 25% da população
economicamente ativa nos Estados Unidos estavam desempregados. Logo a crise se espalhou
pelo mundo como uma epidemia, infectando a grande maioria das economias capitalistas no
mundo, com quedas no comércio internacional, na produção, com falências de empresas e bancos
e, consequentemente, desemprego. Para que se tenha uma dimensão do que foi esse período, no
seu pior momento (1932‑33) o desemprego chegou a 22% da força de trabalho na Grã‑Bretanha,
23% na Bélgica, 24% na Suécia, 29% na Áustria, 31% na Noruega, 32% na Dinamarca e 44% na
Alemanha (HOBSBAWM, 2008).

De fato, o estouro dessa bolha de consumo e especulação, entremeada por elevados índices de
desemprego, traduzia uma morte anunciada. Sobre isso, a Revista Veja publicou o seguinte texto:

Um alvoroço incomum nos arredores da Bolsa de Valores de Nova York chamou


a atenção do comissário de polícia da cidade, Grover Whalen, na última
quinta‑feira, dia 24. Por volta das 11 horas, um rugido cavernoso começou
a escapar do edifício. Alguns minutos depois, já não era possível identificar
se o bramido vinha de dentro ou de fora da Bolsa; uma multidão estrepitosa
tomara as cercanias de Wall Street e Broad Street, como formigas rodeando
um torrão de açúcar esquecido na pia da cozinha. Alarmado, o comissário
logo enviou um destacamento especial para a região. A turba, contudo, não
representava uma ameaça à ordem pública, como o oficial perceberia mais
tarde. Com olhares horrorizados e incrédulos, os nova‑iorquinos, espremidos
uns aos outros, estavam inertes. Eles apenas esperavam, não se sabe ao certo
quem ou o quê. Era o pânico.

47
Unidade I

Dentro do prédio, a consternação era semelhante, e estava ainda mais


evidente na agitada face de corretores e operadores, protagonistas e
testemunhas do acontecimento que pode mudar os rumos da economia
mundial. Símbolo maior da pujança econômica dos Estados Unidos, o
mercado de ações, que se tornou verdadeira mania nacional nesta década
gloriosa para os americanos, via seu baluarte, a rica e poderosa Bolsa de
Nova York, despedaçar‑se em poucos minutos naquela que já entrou para
os anais como a “quinta‑feira negra”. Uma onda súbita e sem precedentes de
vendas tomou de assalto o pregão nova‑iorquino. Ações outrora valorizadas
simplesmente não encontravam novos compradores, nem mesmo por
verdadeiras ninharias. Os preços dos papéis, fossem eles da United States
Steel ou da American Telephone and Telegraph, caíam vertiginosamente,
arrastando com eles as economias, esperanças e sonhos de milhares de
americanos levados à bancarrota instantânea” (VEJA NA HISTÓRIA, 2008).

Tratava‑se da Crise de 1929: a partir da quebra da Bolsa da maior economia do mundo, todas as
economias mundiais foram afetadas. Para Dobb (1986), para além de perdas materiais, a crise também
– ou principalmente – representou uma ameaça ao sonho do progresso econômico.

Os próprios fatos desses anos sombrios, com suas falências repentinas,


fábricas abandonadas e filas de gente a pedir pão, forçaram nos espíritos
já refeitos a conclusão de que algo muito mais fundamental do que uma
adaptabilidade lenta de desordenadas relações de preços devia estar errado
no sistema econômico, e que a sociedade capitalista fora tomada por algo
com todos os sinais de ser uma doença crônica e ameaçando tornar‑se fatal
(DOBB, 1986, p. 322).

Saiba mais

O filme a seguir mostra com clareza o clima de euforia anterior à quebra


da Bolsa de Nova York:

O GRANDE Gatsby. Dir. Baz Luhrmann. EUA: Village Roadshow, 2013.


142 minutos.

Vamos, agora, direcionar nossa atenção às origens da crise. Em um período em que a produção
de massa era o principal motor do capitalismo – produção essa que envolvia sucessivas etapas de
divisão do trabalho –, o produtor independente da máquina, o antigo artesão e o agente que operava
a máquina foram substituídos por uma só máquina, que centralizava a administração da produção e
que demandava apenas supervisão humana. Temos o estabelecimento de uma produção mecanizada,
unificada e invariável.

48
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

A expectativa era que o conceito por trás da expressão “mão invisível”, cuja aplicação parecia estar
em pleno funcionamento, combinasse com a movimentação do mercado e conciliasse os interesses
da oferta e da demanda. O que vimos, entretanto, foi a intensificação do monopólio das empresas, a
rigidez de preços, a estabilidade das margens de lucros, a redução da oferta de trabalho e um otimismo
no mínimo incoerente. Com pouca demanda e excedente de produção, tentava‑se equilibrar a balança
reduzindo a produção e o emprego, mas não havia espaço para que os preços sofressem alteração
no capitalismo monopolista. Da mesma forma, a taxa de lucro dos capitalistas se mantinha. Foi esse
contexto que propiciou o colapso mundial em 1929. Além disso,

Na medida em que o processo de produção se torna um todo unificado,


em vez de uma coleção de unidades atomísticas, impõe‑se pelo menos
um tamanho mínimo, abaixo do qual uma fábrica não pode operar. E, na
medida em que os custos fixos ou gerais são aumentados, enquanto os
custos diretos ou primários (ou variáveis) são simultaneamente rebaixados,
a praticabilidade de variar a produção de uma dada fábrica (por exemplo,
pela sua dotação com uma força de trabalho menor) fica ao mesmo tempo
reduzida (DOBB, 1986, p. 360).

Só se podia falar com otimismo sobre os lucros obtidos na Bolsa de Valores, que eram tão imensos
que atraíam todos, independentemente de sua classe. A esperança de dias mais prósperos e com poucos
riscos fazia com que grande parcela da sociedade se envolvesse com as operações na Bolsa. Não se
previa que uma crise de tão grandes dimensões se aproximava.

Quando os escombros foram varridos, o estrago era assustador. Em dois


insanos meses o mercado perdera todo o terreno que ganhara em dois anos
delirantes; US$ 40 bilhões em valores haviam simplesmente desaparecido.
Houve também o fato de que o americano médio usara sua prosperidade
de forma suicida; ele se hipotecara até o pescoço, esticara seus recursos de
forma perigosa sob a tentação de compras a prestação e acabara por selar o
próprio destino comprando avidamente fantásticas quantidades de ações —
cerca de 300 milhões de quotas, é a estimativa — com dinheiro emprestado
(HEILBRONER, 1996, p. 233).

Saiba mais

Sobre os efeitos devastadores da quebra da bolsa de Nova York,


sugerimos o filme:

O FIO da navalha. Dir. John Byrum. EUA: Columbia Pictures, 1984.


122 minutos.

49
Unidade I

Desocupação e produção industrial

300

200
1929 = 100 Desocupação

100
Produção

80

60
1929 1930 1931 1932 1933 1934

Figura 15 – Os efeitos da crise de 1929 na economia americana.

Havia outras deficiências no sistema monopolista: as dificuldades impostas, ainda que de forma
espontânea, ao estabelecimento de novas empresas e a queda inevitável de investimentos. Os
equipamentos de produção e o capital ficaram imobilizados, sem ter para onde serem escoados,
e mais: o exército industrial de reserva, ou seja, a mão de obra disponível, cresceu de forma
desproporcional e preocupante.

Os milhões de desempregados eram como uma embolia na circulação vital


da nação; e enquanto sua evidente existência argumentava com mais força
do que qualquer texto para demonstrar que algo estava errado no sistema,
os economistas retorciam as mãos, espremiam os cérebros e invocavam
o espírito de Adam Smith, mas não conseguiram estabelecer qualquer
diagnóstico nem remédio. Desemprego – este tipo de desemprego –
simplesmente não se encontrava na lista dos possíveis problemas do sistema;
era absurdo, irracional e, portanto, impossível. Mas estava ali (HEILBRONER,
1996, p. 234).

Ainda que se acreditasse que o capitalismo monopolista seria capaz de garantir o pleno emprego
de recursos, se deixado à mercê de seu próprio desenvolvimento, não se encontravam evidências que
sustentassem tal teoria. A Grande Depressão dos anos de 1930 provava a qualquer observador menos
atento que muitos daqueles que buscavam emprego falhavam.

Mesmo assim, não podemos responsabilizar a quebra da bolsa de valores pela Grande Depressão
de forma integral, fazendo‑se necessário atentar para outros aspectos da conjuntura econômica
norte‑americana que, aliados à euforia especulativa, contribuíram para a crise.

50
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Um desses aspectos se relaciona ao setor agrícola. Tratava‑se de um mercado cuja concorrência


supostamente não sofria perigo, já que, ainda que os preços ou a renda se alterassem, dificilmente a demanda
acompanharia essa mudança, ou seja, por mais que o preço do tomate diminuísse, seu consumo permaneceria
no mesmo patamar. O mesmo ocorria em função da renda. Com a sociedade se industrializando, era comum
que os salários dos trabalhadores da indústria fossem maiores do que os dos trabalhadores agrícolas. Uma
vez que os espaços rurais presenciavam a migração em massa de sua população para os centros urbanos, o
consumo de produtos industrializados era maior do que o dos produtos agrícolas, o que gerou uma crise de
superprodução agrícola e diminuiu os lucros do empresariado desse setor.

O setor de serviços, por sua vez, surge a partir da demanda do setor industrial por suporte e assistência.
As empresas de serviços remuneravam o trabalhador conforme sua produtividade e exigiam o emprego
de trabalhadores com experiência no setor industrial. Era preciso atraí‑los por meio de uma relação de
salário positiva se comparada à do emprego nas indústrias, o que culminava em lucros menores para os
empresários do setor de serviços e salários elevados para seus empregados.

Observação

Observava‑se, então, que o equilíbrio de pleno emprego preconizado


pelo capitalismo liberal não necessariamente seria alcançado. O que fazer?

Para que possamos compreender a tomada de atitude dos diversos países do mundo e a ruptura
que as correntes teóricas daí surgidas representaram para o pensamento econômico, é preciso nos
debruçar sobre alguns conceitos. Vejamos, inicialmente, o que é política econômica. Em resumo, ela
traduz a intervenção do Estado na economia com o objetivo de promover o crescimento econômico, a
expansão dos níveis de emprego e o controle da inflação (FORTUNA, 1998). O crescimento econômico
de um país ocorre quando há um aumento no Produto Interno Bruto (PIB). O aumento no nível de
emprego acontece com a criação de novas vagas de emprego, buscando‑se sempre o menor índice de
desemprego possível. E, quando falamos em controle da inflação, estamos falando em controle dos
níveis de preço, ou seja, dos cuidados para que os preços não oscilem muito na economia.

As políticas econômicas podem ser divididas em política fiscal, monetária e cambial. A política
fiscal ocorre por meio da arrecadação de impostos e dos gastos do governo, afetando assim o nível de
demanda. A arrecadação de impostos influencia diretamente o poder de consumo dos agentes, visto
que determina quanto de renda estará disponível para o consumo. Já os gastos do governo agem como
um efeito de demanda, ou seja, aumentam ou diminuem (caso ocorra um aumento ou uma diminuição
dos gastos do governo) o consumo de mercadorias e serviços. A política monetária se dá por meio da
ação do Banco Central. O objetivo da política monetária é o controle da liquidez, da taxa de juros e dos
preços, visando sempre ao crescimento econômico e à redução do desemprego.

Segundo Fortuna (1998, p. 15), o Banco Central pode ser entendido como:

[...] entidade criada para atuar como órgão executivo central do sistema
financeiro, cabendo‑lhe a responsabilidade de cumprir e fazer cumprir as
51
Unidade I

disposições que regulam o funcionamento e as normas expedidas pelo


Conselho Monetário Nacional (CMN).

O Banco Central também é o responsável pela política cambial, sendo esta indiretamente ligada à
política monetária; porém, destacando‑se por afetar mais diretamente as variáveis que relacionam o
país com o exterior. O câmbio é entendido como uma relação de preço entre as moedas; ele reflete, por
exemplo, quanto vale o Dólar em Real, o Real em Euro, o Euro em Dólar etc. A política cambial baseia‑se
fundamentalmente na administração desses preços (FORTUNA, 1998).

Por que esses conceitos são importantes? Porque a crença que surgiu como resultado dos processos
que levaram a cabo a Revolução Industrial – a de que o mercado equilibraria automaticamente a oferta
de emprego – foi posta em xeque pela crise de 1929.

2.2 O New Deal

Para achar uma saída para a crise em 1933 e para resolver o problema de 17 milhões de desempregados,
a equipe de Roosevelt elaborou o New Deal (Novo Acordo). O New Deal propunha a intervenção do Estado
na economia, supervisionando o mercado e os empresários, corrigindo as distorções e monitorando as
atividades nas bolsas de valores.

O New Deal buscaria provocar o equilíbrio na economia por meio do seguinte conjunto de medidas:

• criação de um portentoso e ambicioso programa de obras públicas a serem executadas por órgãos
públicos e empresas estatais: foram construídas estradas, escolas, hospitais, aeroportos e toda
uma infinidade de obras de infraestrutura;

• criação da Previdência Social e elaboração de leis sociais para a proteção dos trabalhadores e
desempregados;

• criação do salário mínimo;

• diminuição da jornada de trabalho e manutenção dos salários;

• compra de estoques de cereais, e posterior queima deles, para manter a remuneração dos setores
da economia envolvidos com o setor primário;

• arbitragem dos conflitos entre empresários, forçando‑os a concretizar acordos sobre os níveis de
produção e de preços;

• renegociação e perdão das dívidas dos pequenos proprietários;

• concessão de crédito aos fazendeiros.

52
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Descrente do equilíbrio automático do pleno emprego, o que a sociedade agora presenciava era
o Estado salvando o Capital. As estratégias adotadas pelo New Deal conseguiram aumentar o nível
de emprego, contribuindo também para o aumento da produção e, portanto, para a manutenção das
atividades econômicas que geravam as tensões sociais.

O New Deal foi bem‑sucedido porque entendeu a necessidade de se aumentar a capacidade de consumo
para que, depois, se pudesse fomentar o aumento da capacidade de produção das empresas. Foi assim que
Roosevelt transferiu renda para a sociedade e inaugurou novos tempos de consumo e produção.

A lógica por trás da construção de infraestrutura preconizada pelo New Deal era a seguinte: o governo
poderia, por exemplo, adquirir o espaço físico de uma fábrica falida em função da crise, repassando
para a família antes proprietária daquele local verba suficiente para que ela pudesse reintegrar a classe
consumidora. Em seguida, o governo adquiria do mercado de construção civil os materiais necessários
para construir naquele mesmo local alguma estrutura de que a sociedade precisasse – por exemplo, um
hospital. Dava‑se, então, a contratação das pessoas que trabalhariam nas obras para a construção do
hospital: pedreiros, marceneiros, pintores e demais profissionais. Com o salário recebido por esse trabalho,
cada um dos trabalhadores voltaria ao mercado de consumo de mercadorias e, ainda por cima, todos
poderiam desfrutar da melhoria de infraestrutura obtida por meio da construção do prédio público.

Os empresários, por seu turno, incentivados também pelo governo com subsídios à produção,
voltaram a ter ímpeto para continuar seus negócios, percebendo então que a sociedade tinha capacidade
de retorno ao mercado de consumo. Assim, empresas voltaram a empregar outras pessoas e retomaram
a produção anteriormente freada em função da crise. Todas essas medidas conjugadas geraram um
aumento no nível de emprego da economia, forçando o aumento da produção e da contratação de
empregados, a manutenção da atividade econômica e o controle das tensões sociais.

A lição que os economistas acabavam de aprender era a seguinte: caso o mecanismo natural de regulação
do mercado falhasse, a solução para o capital era a ação decisiva do Estado. Experimentaríamos a partir daquele
instante o Welfare State, Estado de Bem‑estar Social, em que caberia ao Estado o resgate da sociedade.

Lembrete

Chamamos de Welfare State o Estado que chama para si a tarefa de


preservar e garantir o bem‑estar social por meio de uma política econômica
intervencionista e baseada em políticas de atendimento das demandas sociais.

Um economista britânico se proporia a traduzir essa nova situação dentro dos rigores do pensamento
econômico: seu nome era John Maynard Keynes, e o seu trabalho foi tão brilhante que ainda hoje ele
adjetiva parcela considerável dos economistas do mainstream. Keynes mostrou que, contrariamente
aos resultados apontados pela Teoria Clássica, as economias capitalistas não tinham a capacidade
de promover automaticamente o pleno emprego. Assim, deveriam ser abertas oportunidades para a
ação governamental: por meio dos clássicos instrumentos de política econômica, caberia ao governo
direcionar a economia rumo à utilização total dos recursos.
53
Unidade I

A análise de Keynes partiu do estudo da riqueza de uma nação. Segundo ele, a medida de riqueza
de uma nação era sua renda, transferida de mãos no processo de produção e consumo de mercadorias.
De fato, era essa transferência que revitalizava a economia. Parte da renda era gasta no consumo de
bens e serviços; outra parte era poupada, ou em bancos ou por meio da aquisição de ações. De qualquer
forma, era esperado que essa renda retornasse ao sistema, via concessão de empréstimos ou por meio
de financiamentos para a expansão das atividades produtivas.

O problema surgia porque essa comunicação entre poupança e investimento não era automática.
Afinal, o fluxo circular da renda não funciona de forma automática.

E aí está a possibilidade de depressão. Se nossas poupanças não forem


investidas por empresas com negócios em expansão, nossas rendas vão
declinar. Estaremos na mesma espiral de contração como estaríamos
se tivéssemos congelado nossas poupanças guardando‑as no colchão
(HEILBRONER, 1996, p. 248).

A economia ficava paralisada, segundo Keynes. Ele ainda descobriria mais uma coisa: a depressão
e a crise da bolsa haviam acabado com o montante de poupanças. De fato, sequer havia renda para o
consumo, quanto menos para poupança.

A maior consequência era que a economia encontrava‑se em uma condição de paralisia exatamente
quando precisava ser mais dinâmica, pois, se não havia excedente de poupanças, não havia pressão na
taxa de juros para encorajar os negociantes a pedir empréstimos. Se não havia empréstimos e gastos
com investimentos, não havia ímpeto de expansão. Assim, dava‑se o paradoxo da pobreza em meio à
fartura e à anomalia de homens e máquinas sem ter o que fazer (HEILBRONER, 1996).

O que fazer nessa situação de paralisia? Keynes elaboraria teoricamente o que se tentara antes, e de
forma bem‑sucedida, com o New Deal americano. Assim, cabia ao governo tirar a economia do fundo do
poço, investindo e criando empregos. Ao criar empregos, criaria renda para consumo e poupança. Criando
demanda, criaria estímulos para que a oferta fizesse a produção retomar seu crescimento. O governo
deveria investir em obras públicas, mesmo que fosse apenas para cavar buracos que, posteriormente,
fossem tapados: a prioridade era criar emprego.

Em outras palavras,

[...] os projetos de obras públicas atacariam o problema com uma faca


de dois gumes: ajudando diretamente a manter o poder de compra
das pessoas, que de outra forma permaneceriam desempregadas, e
liderando o caminho para a retomada da expansão privada dos negócios
(HEILBRONER, 1996, p. 256).

Era, afinal, a “mão visível” do Estado colocando ordem no mercado, ordem essa que outra mão
invisível não lograra conseguir.

54
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Uma vez que estamos interessados em compreender a evolução do sistema capitalista de produção
para que possamos mapear os processos inerentes à globalização econômica, faz‑se necessário
compreender como, do ponto de vista de alguns teóricos, as relações econômicas internacionais
também evoluíram durante o capitalismo.

3 A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Ao contrário da Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial (1939‑1945) não tem uma
vasta literatura sobre suas causas; com raras exceções, não se discute que Alemanha, Japão e Itália
foram os agressores e que a maioria dos Estados levados à guerra (capitalistas ou socialistas) fizeram o
possível para evitar o conflito (HOBSBAWM, 2008). No entanto, a pergunta sobre o que ou quem causou
a Segunda Guerra Mundial não pode ser respondida de forma simples.

Figura 16 – Hitler e Mussolini em Munique, cidade na qual se realizou em 1938 uma conferência reunindo Alemanha e Itália de um
lado e França e Inglaterra de outro

Os países que saíram “vitoriosos” na Primeira Guerra Mundial, com medo de uma nova guerra, fizeram
tratados de “paz” com os derrotados. O tratado feito com a Alemanha tinha o nome de Tratado de Versalhes,
e era totalmente punitivo. Essa “paz” punitiva imposta à Alemanha justificava‑se com o argumento de que
o Estado alemão era o único responsável pela guerra e por suas consequências. O real objetivo do Tratado
de Versalhes era enfraquecer ao máximo a Alemanha e, para tanto, o Estado alemão teve perdas territoriais
(embora não substanciais), ficou privado de expandir sua força marinha e aérea efetiva e ficou limitado a
um exército de 100 mil homens. Também foram impostos à Alemanha os pagamentos dos custos da guerra
sofridos pelos vitoriosos (custos esses que eram teoricamente “infinitos”); além disso, os países vencedores
retiraram dos alemães todas as suas colônias do ultramar, redistribuindo‑as entre os britânicos, franceses
e, em menor extensão, aos japoneses (HOBSBAWM, 2008).

Observação

O economista inglês John Maynard Keynes reconheceu de imediato que


caso a Alemanha não fosse reintegrada à economia europeia, as chances de
uma paz duradoura seriam pequenas.

55
Unidade I

Visto que essa “paz” imposta pelos vitoriosos era cercada de medidas punitivas, poucos acreditavam
que ela durasse por muito tempo. A insatisfação com o status quo não era exclusiva dos países derrotados:
mesmo países vitoriosos, como o Japão e a Itália, estavam insatisfeitos (HOBSBAWM, 2008). Todos os
partidos na Alemanha, incluindo os comunistas na extrema esquerda e os nacional‑socialistas de Hitler
na extrema direita, eram contra o Tratado de Versalhes, pois o consideravam injusto e inaceitável.

Com a ascensão do fascismo na Itália, a insatisfação passou a ganhar contornos mais perigosos.
Quanto ao Japão, sua força militar e naval o tornava a mais formidável potência do Extremo Oriente.
O país, com a sua indústria avançando a passos largos – embora a sua economia em tamanho absoluto
ainda fosse bem modesta (2,5% da produção mundial no final da década de 1920) –, acreditava que
merecia uma porção maior do Extremo Oriente do que as potências imperiais brancas haviam concedido.
Além disso, os japoneses também tinham consciência da sua vulnerabilidade econômica, dado que lhes
faltavam praticamente todos os recursos naturais necessários a uma economia moderna: a saída era a
importação de mercadorias, processo esse que deixaria o país vulnerável à interferência de marinhas
estrangeiras. Segundo Hobsbawm (2008), a pressão militar dentro do Japão para que se criasse um
império territorial próximo da China, com o objetivo de diminuir a vulnerabilidade do país, era imensa.

Independentemente das condições impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes, é inegável que o
que causou de fato a Segunda Guerra Mundial foi a sucessão de agressões por parte das três potências
descontentes. A Segunda Guerra Mundial começou com a invasão da Manchúria pelo Japão em 1931; com
a invasão dos italianos à Etiópia em 1935; com a intervenção alemã e italiana na guerra civil espanhola
entre 1936 e 1939; com a invasão alemã da Áustria em 1938; com o estropiamento da Tchecoslováquia
pela Alemanha no mesmo ano; com a ocupação alemã ao que sobrou da Tchecoslováquia em março de
1939 (seguida pela ocupação italiana da Albânia); e com as exigências alemãs à Polônia que, de fato,
levaram ao início da guerra (HOBSBAWM, 2008).

56
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Países neutros
Alemanha em 1/9/1939
Adversários da Alemanha
Países ligados à Alemanha por um Tratada de Amizade

Figura 17 – A Europa antes da Segunda Guerra

De modo alternativo, o início da Segunda Guerra Mundial também pode ser visto como uma série de
inações: a não ação contra o Japão; a não tomada de medidas contra a Itália em 1935; a não reação da
Grã‑Bretanha e França à acusação alemã contra o Tratado de Versalhes e a reocupação da Renânia em
1936; a recusa da França e Grã‑Bretanha em intervir na Guerra Civil Espanhola; a não reação à ocupação
da Áustria; o recuo de Grã‑Bretanha e França frente às chantagens alemãs sobre a Tchecoslováquia; e a
recusa da URSS de continuar se opondo a Hitler em 1939 (HOBSBAWM, 2008).

E no entanto, se um lado não queria guerra, e fez todo possível para


evitá‑la, e o outro a glorificava e, no caso de Hitler, sem dúvida a desejava
ativamente, nenhum dos agressores queria a guerra que tiveram, quando
a tiveram, e contra pelo menos alguns dos inimigos com os quais se viram
lutando. O Japão, apesar da influência militar em sua política, certamente
teria preferido alcançar seus objetivos – em essência a criação de um império
leste‑asiático – sem uma guerra geral, na qual só se envolveu porque os

57
Unidade I

EUA se achavam envolvidos numa. Que tipo de guerra queria a Alemanha,


quando e contra quem, ainda são temas de discussão, pois Hitler não era um
homem que documentava suas decisões, mas duas coisas são claras. Uma
guerra contra a Polônia (apoiada pela Grã‑Bretanha e a França) em 1939
não fazia parte do seu plano de guerra, e a guerra em que finalmente se viu,
contra a URSS e os EUA, era o pesadelo de todo general e diplomata alemão
(HOBSBAWM, 2008, p. 45).

Para a Alemanha (e depois para o Japão) era necessária uma guerra rápida: os recursos de seus inimigos,
uma vez unidos e coordenados, eram esmagadoramente superiores aos seus. Nem a Alemanha nem o
Japão fizeram planos para uma guerra longa, tampouco contavam com equipamentos para tal cenário.

Observação

Os britânicos, reconhecendo a sua inferioridade em terra, investiram nos


armamentos mais caros e sofisticadamente tecnológicos, preparando‑se
para uma guerra longa.

A Segunda Guerra Mundial começou como um conflito puramente europeu ocidental da Alemanha
contra a Grã‑Bretanha e França, depois de os alemães terem invadido a Polônia, que foi derrotada e
dividida em três semanas com a até então neutra URSS. Na primavera de 1940, a Alemanha já havia
conquistado Noruega, Dinamarca, Países Baixos, Bélgica e França com extrema facilidade, ocupando
os quatro primeiros países e dividindo a França numa zona diretamente ocupada e administrada pelos
alemães. Restava apenas a Grã‑Bretanha em guerra contra a Alemanha.

É de grande importância deixar claro que os “fantasmas” da matança que ocorreu na Primeira Guerra
Mundial influenciaram muito a forma de combate de Grã‑Bretanha, França e EUA:

[...] tornou‑se bastante evidente para os políticos, pelo menos nos países
democráticos, que os banhos de sangue de 1914‑8 não seriam mais
tolerados pelos eleitores. A estratégia pós‑1918 da Grã‑Bretanha e da
França, tal como a estratégia pós‑Vietnã nos EUA, baseava‑se nessa crença.
A curto prazo, isso ajudou os alemães a ganhar a II Guerra Mundial no
ocidente em 1940, contra uma França empenhada em agachar‑se por trás
de suas fortificações incompletas e, uma vez rompidas estas, simplesmente
não querendo continuar a luta; e uma Grã‑Bretanha desesperada por evitar
meter‑se no tipo de guerra terrestre maciça que dizimara seu povo em
1914‑8. A longo prazo, os governos democráticos não resistiram à tentação
de salvar as vidas de seus cidadãos, tratando as dos países inimigos como
totalmente descartáveis. O lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima
e Nagasaki em 1945 não foi justificado como indispensável para a vitória,
então absolutamente certa, mas como um meio de salvar vidas de soldados
americanos (HOBSBAWM, 2008, p. 34‑5).
58
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Em termos práticos, a guerra parecia estar acabando, e o mapa da Europa era redesenhado. Por acordo,
a URSS recuperou as áreas do império czarista que haviam sido perdidas em 1918 (com exceção da Polônia,
então ocupada pela Alemanha) e a Finlândia, onde Stalin travou uma guerra de inverno em 1939 a 1940,
levando as fronteiras russas um pouco mais longe de Leningrado. As tentativas britânicas de expandir a
guerra nos Bálcãs falharam. A Alemanha cruzou todo o Mediterrâneo em direção à África, quando pareceu
que sua aliada, a Itália, seria totalmente expulsa de seu império africano pelos britânicos, que atacavam
de sua base principal no Egito. Sob o comando de um dos seus generais mais brilhantes, Erwin Rommel,
o Afrika Korps alemão ameaçou toda a posição da Grã‑Bretanha no Oriente Médio (HOBSBAWM, 2008).

A data decisiva da Segunda Guerra Mundial foi 22 de julho de 1941, quando Hitler invadiu a até
então neutra URSS, com o objetivo de reavivar a guerra. Mesmo parecendo insensato o ataque – pois
deixava a Alemanha envolvida em uma guerra de duas frentes –, a conquista de um vasto território
oriental rico em recursos e trabalho escravo era o próximo passo lógico. Com o Exército Vermelho todo
desorganizado, os avanços iniciais contra os soviéticos foram tão rápidos quanto no Ocidente. Como
Hobsbawm (2008) relata, em meados de outubro de 1941, os alemães estavam nos arredores de Moscou

[...] e há indícios de que, durante alguns dias, o próprio Stalin ficou


desmoralizado e pensou em fazer paz. Mas o momento passou, e as simples
dimensões das reservas de espaço, força humana, valentia física e patriotismo
russos, e um implacável esforço de guerra, derrotaram os alemães e deram
à URSS tempo para se organizar efetivamente (HOBSBAWM, 2008, p. 47).

A guerra contra a URSS não durou semanas, como esperava Hitler: a Alemanha estava perdida, pois
não havia se preparado para uma guerra longa e produzira menos aviões que a Grã‑Bretanha, a URSS e
os EUA. Uma nova ofensiva foi tentada contra a URSS em 1942, após o terrível inverno; o exército alemão
avançou no Cáucaso e no Vale Volga, mas, no verão de 1942, os alemães foram detidos em Stalingrado. O
mundo todo sabia que a derrota alemã era só uma questão de tempo (HOBSBAWM, 2008).

Finalmente, em 1941, os japoneses entraram em guerra contra a Grã‑Bretanha e EUA. Péssima


decisão: o seu adversário, os EUA, era imensamente superior em recursos. Para os japoneses, passou a
ser importante ocupar o vácuo parcial no Sudeste Asiático, mas os EUA encararam essa expansão do
Eixo no Sudeste Asiático como intolerável, aplicando severas pressões econômicas aos japoneses, como
o embargo ocidental ao comércio japonês e o congelamento de bens japoneses. O ataque japonês a
Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, tornou a guerra mundial. Em pouco tempo os japoneses já
controlavam todo o Sudeste Asiático, ameaçavam invadir a Índia por meio da Birmânia no Oeste e, a
partir da Nova Guiné, invadir o vazio do Norte da Austrália (HOBSBAWM, 2008).

Saiba mais

Sobre o assunto, sugerimos o filme a seguir:

PEARL Harbor. Dir. Michael Bay. EUA: Touchstone Pictures, 2001.


183 minutos.

59
Unidade I

O Japão até poderia ter evitado o conflito, mas a essência de sua política era a de se transformar em
uma potência econômica. Dado o fracasso que as potências europeias haviam sofrido ao tentar reagir
contra Hitler e Mussolini, os japoneses não esperavam que os EUA reagissem à expansão japonesa. A
jogada era perigosa e se mostrou suicida. O Japão queria estabelecer rapidamente o seu império e, para
tanto, imaginava ser necessário imobilizar a marinha americana, a única força que poderia intervir. De
acordo com Hobsbawm (2008), era previsível que os EUA seriam imediatamente arrastados para a guerra e,
com as suas forças e seus recursos esmagadoramente superiores, ganhariam o conflito com tranquilidade.

Hitler, já inteiramente esgotado na URSS, declarou guerra aos EUA. Para Washington, era claro que
a Alemanha nazista apresentava um problema muito maior para os interesses americanos e do mundo
do que o Japão. Portanto, os EUA se concentraram em derrotar primeiro a Alemanha: decisão correta,
porque eles levaram três anos para vencer a Alemanha e apenas três meses para colocar o Japão de
joelhos (HOBSBAWM, 2008).

As decisões da Alemanha no sentido de invadir a URSS e declarar guerra aos EUA significaram o
fim da Segunda Guerra Mundial. Os soviéticos avançavam pelos Bálcãs principalmente pela Iugoslávia,
Albânia e Grécia. Um movimento armado, arquitetado pelos comunistas, causou sérios problemas
militares à Alemanha e, sobretudo, à Itália.

[...] Winston Churchill tinha razão quando exclamou confiante depois de Pearl
Harbor que a vitória pela aplicação correta de uma força esmagadora era certa
(KENNEDY, p. 347). Do fim de 1942 em diante, ninguém duvidou de que a
Grande Aliança contra o Eixo ia vencer. Os aliados começaram a concentrar‑se
no que fazer com a sua previsível vitória (HOBSBAWM, 2008, p. 49).

Observação

Winston Churchill foi o primeiro‑ministro do Reino Unido entre os anos


de 1940 e 1945.

Segundo Hobsbawm (2008), os EUA, com o objetivo de assegurar uma rápida rendição japonesa no
Leste, lançaram duas bombas atômicas, uma sobre Hiroshima e outra sobre Nagasaki. A vitória em 1945
foi total. Os Estados derrotados foram totalmente ocupados pelos vitoriosos e não fizeram nenhum
tipo de acordo de paz, com exceção da Itália. Os países aliados – Grã‑Bretanha, EUA e URSS – tentaram
chegar a um acordo de como ficariam os despojos da vitória, iniciativa que não teve muito sucesso.

Observação

Mesmo com a iminente derrota da Alemanha, não houve sinal de


revolução do povo alemão contra Hitler. Apenas alguns generais tramaram
a queda de Hitler em julho de 1944, mas não tiveram apoio popular: eles
fracassaram e foram mortos pelos legalistas de Hitler.
60
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

As perdas são incalculáveis e mesmo estimativas aproximadas são difíceis de serem realizadas:
a Segunda Guerra Mundial, diferentemente da Primeira Guerra Mundial, matou tanto civis quanto
soldados, sendo que boa parte da comunidade judaica pereceu em campos de concentração construídos
pelos nazistas, assim como outros grupos étnicos minoritários. As mortes causadas diretamente pela
guerra foram estimadas entre três a quatro vezes o número estimado da Primeira Guerra Mundial:
entre 10% e 20% da população total da URSS, Polônia e Iugoslávia; entre 4% e 6% da Áustria, Itália,
Alemanha, Hungria, Japão e China; a Grã‑Bretanha e França tiveram baixas menores do que na Primeira
Guerra Mundial (cerca de 1%). Os soviéticos divulgaram as suas baixas de forma oficial várias vezes: em
7 milhões, 11 milhões, 20 milhões ou mesmo 30 milhões.

De qualquer modo, que significa exatidão estatística com ordens de grandeza


tão astronômicas? Seria menor o horror do holocausto se os historiadores
concluíssem que exterminou não 6 milhões (estimativa oficial por cima, e
quase certamente exagerada), mas 5 ou mesmo 4 milhões? E se os novecentos
dias de sítio alemão a Leningrado (1941‑4) mataram 1 milhão ou apenas
três quartos ou meio milhão de fome e exaustão? Na verdade, podemos
realmente aprender números além da realidade aberta à intuição física? Que
significa para o leitor médio desta página que, de 5,7 milhões de prisioneiros
de guerra russos na Alemanha, 3,3 milhões morreram (HIRSCHFELD, 1986)?
A única coisa certa sobre as baixas da guerra é que levaram mais homens
que mulheres. Em 1959, ainda havia na URSS sete mulheres entre as idades
de 35 e 50 anos para cada quatro homens (MILWARD, 1979, p. 212). Os
prédios podiam ser mais facilmente reconstruídos após essa guerra do que
as vidas sobreviventes (HOBSBAWM, 2008, p. 50‑1).

4 TEORIAS EXPLICATIVAS DA ECONOMIA E DO COMÉRCIO MUNDIAL

Passaremos a analisar a questão das relações internacionais a partir da contribuição da economia


política. Para tanto, partimos de considerações da Teoria “Pura” do Comércio Internacional, passando
pela escola clássica do liberalismo econômico na abordagem de Smith e Ricardo, considerando depois
o pensamento neoclássico de Heckscher‑Ohlin. Tratando‑se de teorias do comércio internacional
incorporadas ao processo de concorrência da dinâmica capitalista, esta parte aborda também o
pensamento marxista, inicialmente através de seu fundador, para depois considerar as contribuições de
Sweezy e de Luxemburg quanto ao imperialismo.

4.1 Teoria “Pura” do Comércio Internacional

A chamada Teoria “Pura” do Comércio Internacional, ao adotar uma perspectiva de longo prazo,
concentra‑se na explicação de fatores reais como determinantes do fluxo comercial entre países. Para
tanto, conforme Baumann (2004) ressalta, essa teoria apoia‑se em algumas hipóteses simplificadoras,
quais sejam:

• que todas as variáveis do sistema econômico sejam determinadas de forma independente dos
fluxos monetários;
61
Unidade I

• que todos os preços da economia sejam flexíveis, e que os mercados de produtos e de fatores de
produção funcionem sob a lógica da concorrência perfeita;

• que para cada país considerado, o estoque de fatores de produção seja encarado como uma variável
exógena, independentemente de sua remuneração;

• que como a utilização dos fatores de produção independe de sua remuneração, os fatores sejam
móveis entre setores, mas imóveis entre países.

Dadas as restrições, a preocupação central deste tipo de teoria está em descobrir a existência ou
não de ganhos com o comércio internacional, bem como qual será o padrão do fluxo comercial, ou seja,
que produtos uma economia deveria exportar e importar e a que nível de preços. Por outras palavras, a
Teoria “Pura” procura identificar o que determina o comércio internacional.

4.1.1 O mercantilismo

Durante o período em que se desenvolve a Revolução Comercial e consolida‑se o pensamento


mercantilista, as teorias explicativas das relações comerciais prescreviam que cada nação deveria exportar
o máximo e importar o mínimo para que fosse mantido saldo positivo em sua balança comercial. Nesse
contexto, o comércio longínquo era visto como fonte de riqueza para os países e a prosperidade de uma
economia era medida pelo seu estoque de metais preciosos.

A visão dominante entre os séculos XVI e XVIII foi essencialmente uma postura mercantilista, em que o
comércio era admitido como uma fonte de riqueza, mas sob uma ótica bastante peculiar: a de acumulação
sem limites de poder de compra, possibilitada por crescentes ganhos derivados de superávits comerciais.

Para Dowbor (1990) e Singer (1989), a exacerbação do comércio produziu dois efeitos sobre a
estrutura econômica europeia. O primeiro desses efeitos corresponde ao fluxo de metais preciosos para
a Europa, pois a quantidade de ouro chegou a dobrar em meados do século XVI. Como a produção de
bens pouco se alterou, houve uma elevação de preços e redução dos rendimentos dos senhores feudais.
Sobre isso, Dowbor (1990, p. 32) ressalta que:

[...] nesta época, os senhores feudais recebiam as contribuições anuais dos


servos ainda em trabalho e em produtos, mas a forma dominante já era de
simples pagamento, em moeda, de uma taxa fixa por pessoa. Ao dobrar
a quantidade de ouro, enquanto a produção de bens permanecia pouco
alterada, os preços duplicaram [...] reduzindo pela metade os rendimentos dos
senhores feudais.

O segundo desses efeitos foi o reforço da produção, pois conforme Dowbor (1990, p. 33) explica,

a rápida acumulação de capital nas mãos dos comerciantes e a abertura dos


mercados internos criam uma atuação em que há ao mesmo tempo a procura
pela produção e a procura pelos meios para desenvolver esta produção.
62
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Desta maneira, o comércio internacional promovido pelo maior relacionamento entre países passava
a ser encarado como uma disputa por uma quantidade limitada de metal precioso, e dessa forma cada
país poderia obter vantagens às custas dos demais, por intermédio da acumulação de tal metal.

A visão mercantilista, além de ser altamente nacionalista e priorizar o bem‑estar do próprio país, implicava
uma percepção estática da disponibilidade de recursos. A atividade econômica era, portanto, reduzida a um
jogo de soma zero no qual os ganhos de um país têm lugar em detrimento dos resultados obtidos pelos demais.
Sobre isto, vejamos uma passagem de Araújo (1989, p. 22):

Os mercantilistas, por seu lado, preocupavam‑se sobretudo com a política


econômica, com saldos favoráveis na balança comercial, com o estoque de
metais preciosos e com o poder do Estado. Este seria tão mais forte quanto maior
fosse seu estoque de metais preciosos. Para alcançar isto, ele deveria restringir as
importações e estimular as exportações. Mas esta é uma política inconsequente.
Se todos os países restringirem suas importações, quem conseguirá exportar?
As importações de um são as exportações do outro. Não podia dar outra coisa.
A política mercantilista exacerbou o nacionalismo, estimulou as guerras e
promoveu uma maior presença do Estado nos assuntos econômicos.

Diante desse quadro, as proposições mercantilistas passam a ser objeto de críticas. Um dos primeiros
pensadores a oporem‑se veementemente à lógica mercantilista foi David Hume, ao questionar o argumento
básico de uma economia poder acumular indefinidamente divisas sem afetar com isso sua posição
competitiva no mercado internacional.

4.1.2 Visão de David Hume acerca do comércio internacional

Conforme Kuntz (1983), há três traços principais na explanação de Hume que explicitam o que viria a
ser o comércio internacional: a concepção de um mecanismo de ajuste automático nas contas externas, que
inutilizaria qualquer intervenção governamental, a aplicação da Teoria Quantitativa da Moeda quanto aos
efeitos econômicos de superávits ou déficits na balança comercial de cada país e a alegação de que vantagens
comparativas são variáveis determinantes na mobilidade de recursos num sistema sem intervenção.

O argumento é o de que a acumulação de divisas na forma prescrita pelos mercantilistas, ou seja, via
superávits comerciais, acabaria por afetar a oferta interna de moeda e, assim, elevar o nível de preços
e salários internos. Em sua obra Escritos sobre Economia, de 1777, David Hume dedica um capítulo à
análise da moeda. Dentre outras considerações, efetua a que se segue:

O dinheiro não é, propriamente falando, um dos objetos do comércio,


mas apenas o instrumento sobre o qual concordaram os homens para
facilitar a troca de uma mercadoria por outra. Não é uma das rodas do
comércio: é o óleo que torna mais suave e fácil o movimento das rodas. A
grande abundância de dinheiro tem uso bastante limitado, e pode às vezes
até mesmo constituir uma perda para o comércio de uma nação com os
estrangeiros (1983, p. 201‑2).
63
Unidade I

Ainda sobre a moeda, David Hume (1983, p. 203) esclarece que:

[...] em qualquer reino onde o dinheiro comece a afluir com maior abundância
que anteriormente, tudo assume novo aspecto: o trabalho e a indústria
ganham vida; o comerciante torna‑se mais empreendedor; o fabricante
mais hábil e diligente e até mesmo o agricultor empurra o arado com
maior alegria e atenção. Não é fácil explicar isto, se considerarmos apenas a
influência que a maior abundância de moeda exerce sobre o próprio reino,
elevando o preço das mercadorias e obrigando todos a pagarem um número
maior dessas cédulas amarelas ou brancas por tudo que compram. Quanto
ao comércio exterior, parece que uma grande quantidade de dinheiro é
bastante desvantajosa, porque eleva o custo de todo tipo de mão de obra.

Se admitirmos que o excesso de dinheiro pode comprometer a competitividade das exportações


do país superavitário, admitiremos também que se reduz a possibilidade de que se continue a geração
de excedente comercial, ou seja, de que sejam aumentados indefinidamente os superávits comerciais.
Acerca disto, Baumann (2004, p. 11) resume que “o movimento de divisas entre dois países opera como
um mecanismo automático, que leva à igualdade entre os valores de exportações e importações. Esse
raciocínio é conhecido como o mecanismo preço‑fluxo‑espécie, de Hume”.

Sobre tal mecanismo, vejamos a contribuição de Williamson (1988, p. 131):

David Hume havia desacreditado a base macroeconômica da posição


mercantilista. Em 1752 mostrou que um superávit permanente nos
pagamentos não era viável e que, portanto, não tinha sentido algum como
objetivo de política, enquanto um déficit seria solucionado por si mesmo, de
modo que não era preciso preocupar‑se com a possibilidade de um país perder
toda a sua oferta monetária e ter de, por isso, deixar de produzir. A alegação
básica era que o padrão ouro tinha um mecanismo de ajuste automático.

Pelos argumentos de David Hume, o mecanismo de ajuste automático funcionaria da seguinte forma:
um déficit em balanço de pagamentos ensejaria uma saída de ouro do país, ocasionando uma queda
na oferta monetária. Esta contrai a demanda interna por mercadorias, diminuindo seus preços. Também
diminui a demanda interna por produtos estrangeiros, o que, em outras palavras, diminui as importações.
A queda nos preços das mercadorias produzidas internamente eleva a competitividade internacional
aumentando, portanto, as exportações. Por fim, reduz‑se o déficit no balanço de pagamentos.

Williamson (1988) ressalta que há algumas premissas necessárias a serem atendidas para se garantir
que o mecanismo de fluxo‑espécie‑preço funcione da forma descrita por Hume. São elas:

• que a taxa de câmbio seja fixa;

• que se evite a esterilização completa, ou seja, que não seja compensada uma queda nas reservas
com elevação do crédito interno;
64
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

• que se aceite a Teoria Quantitativa da Moeda:

• que os preços externos permaneçam constantes ou que se elevem;

• que seja satisfeita a condição Marshall‑Lerner;

• que haja inexistência de mobilidade de capital.

4.2 Relações internacionais na visão da Teoria Clássica

Enquanto no século XVI os mercantilistas ainda viam a aquisição de ouro e da prata como forma
mais importante de enriquecer o país, a própria necessidade de dispor de cada vez mais produtos para
exportar e adquirir o ouro gera uma outra visão de fonte de riqueza: a capacidade de produzir, que
se desenvolve com a Revolução Industrial. Na Inglaterra, ela teve seu auge por volta das três últimas
décadas do século XVIII e começo do século XIX.

Nesse período, a Inglaterra tinha um mercado interno bem desenvolvido, comparativamente aos demais
países da Europa, onde se procurava a produção em maior quantidade para vender a preços mais baixos, o que
significava lucros crescentes. Além disso, a busca por maiores lucros, conjugada ao aumento das vendas, foi
também estimulada pela demanda externa por bens produzidos na Inglaterra, dando motivos para a explosão
de inovações tecnológicas então ocorridas. Segundo Dowbor (1990, p. 36‑7), a Revolução Industrial promoveu
efeitos positivos para países desenvolvidos, como a Inglaterra do século XIX. Vejamos sua explanação:

(a) com a progressão da divisão do trabalho e da mecanização, a produtividade


do trabalho dá um salto imenso, reduzindo, pela primeira vez na história, o custo
unitário dos produtos manufaturados, permitindo assim realizar grandes economias
de escala; (b) a industrialização leva a custos decrescentes, à medida em que
exige um processo permanente de inovações tecnológicas; (c) a industrialização
acarreta a multiplicação de economias externas: abrem‑se estradas, formam‑se
trabalhadores, estende‑se a rede de comercialização, desenvolvem‑se transportes
e comunicação, constituindo um conjunto de infraestrutura que torna mais barato
o funcionamento de cada empresa nova que se instala.

Em outras palavras, ainda para Dowbor (1990), a Revolução Industrial generalizou a utilização
da tecnologia ao desenvolver a produção de ferramentas, especializou e modernizou a produção
manufaturada, promoveu, nos países desenvolvidos, o processo de enriquecimento cumulativo através
da conquista de novos mercados a cada progresso técnico da sua indústria, invadiu diversas partes do
mundo com produtos manufaturados e, por fim, estimulou a industrialização.

4.2.1 Adam Smith e suas vantagens absolutas

Em 1776, com A Riqueza das Nações, de Adam Smith, e em 1817, com Princípios de Economia
Política e Tributação de David Ricardo, ocorre uma evolução no pensamento econômico. Incorporando
os fatos e os valores da Revolução Industrial, forma‑se a Teoria Clássica do liberalismo. Segundo ela,
65
Unidade I

dentre outros aspectos, o sistema econômico livre do Estado permite a cada capitalista e a cada
trabalhador buscar o seu próprio interesse no mercado. Trata‑se da recomendação do laissez‑faire,
laissez‑passer, que podemos identificar como a recomendação da irrestrita abertura dos portos, ou
dos mercados, na promoção de maior relacionamento entre as nações, fato que na época favorecia o
poder industrial inglês.

A abertura dos mercados seria importante, pois como enfatiza Smith (1996, p. 77):

[...] quando o mercado é muito reduzido, ninguém pode sentir‑se estimulado


a dedicar‑se inteiramente a uma ocupação, porque não pode permutar toda
a parcela excedente de sua produção que ultrapassa seu consumo pessoal,
pela parcela de produção do trabalho alheio, da qual tem necessidade.

Ainda para Smith (1996, p. 420):

[...] com plena segurança, achamos que a liberdade do comércio, sem que
seja necessária nenhuma atenção especial por parte do governo, sempre
nos garantirá o vinho de que temos necessidade; com a mesma segurança
podemos estar certos de que o livre comércio sempre nos assegurará o ouro
e a prata que tivermos condições de comprar ou empregar, seja para fazer
circular as nossas mercadorias, seja para outras finalidades.

Com este argumento, percebe‑se que o comércio externo beneficiaria todos os países participantes,
já que em primeiro lugar, daria escoamento à produção excedente de manufaturados, caso não existisse
demanda interna; em segundo lugar, valorizaria, no mercado externo, mercadorias que poderiam
tornar‑se supérfluas no mercado interno; e em terceiro lugar, o comércio externo provocaria a elevação
da produção, “aumentando assim a renda e a riqueza reais da sociedade” (SMITH, 1996, p. 430).

Com isto, Adam Smith defende a Teoria das Vantagens Absolutas, entendidas em custos de produção
– notadamente à sua época, custos de mão de obra. Seu argumento difere daquele postulado pelas
teorias “puras”, pois parte do pressuposto de que as trocas comerciais beneficiam todas as nações que
delas participam, e cada país obteria vantagens maiores ou menores na produção de cada mercadoria.
Mais claramente, se o mercado internacional fosse encarado como forma de competição e sem qualquer
interferência governamental, cada país procuraria especializar‑se na produção de mercadorias que lhe
dariam maior vantagem absoluta, tanto natural quanto adquirida.

Desta forma, se cada nação participante do comércio internacional procurasse sua produção mais
vantajosa, ou seja, aquela vantagem absoluta, todas as mercadorias seriam trocadas ou vendidas pelo
seu valor mais baixo, de onde surgiria a riqueza de todas as nações, pois para Smith (apud SINGER, 1989,
p. 47), “riqueza significa obter bens de uso necessários ao consumo da população com o menor gasto
de tempo de trabalho humano. Neste sentido, o comércio internacional, livre de interferências não
econômicas, promoveria a riqueza de todas as nações”.

66
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

Smith (1996) assegura então que toda pessoa procura empregar seu capital da forma mais vantajosa
possível, visando à manutenção de sua própria vantagem. Com efeito, se todas as pessoas assim agirem, e
aplicarem seu capital em fomento da atividade nacional, a sociedade como um todo atingirá o emprego
mais vantajoso de seu capital, e cada indivíduo se esforçará para aumentar ao máximo possível a renda
anual da sociedade, já que

[...] os produtores individuais consideram de seu interesse empregar toda sua


atividade de forma que obtenham alguma vantagem sobre seus vizinhos,
comprando com uma parcela de sua produção, tudo o mais de que tiverem
necessidade (SMITH, 1996, p. 435‑8).

Sendo assim, se algum país puder fornecer uma mercadoria a um custo mais baixo que aquele de
sua produção interna, para Smith seria melhor comprá‑la que produzi‑la, ou seja, é melhor importá‑la.
Desta forma, deixando de produzir tal mercadoria, encaminha‑se o capital e o emprego necessário para
outra produção, que poderá fornecer maior vantagem. Ao produzir internamente aquela mercadoria,
que é mais barata quando se importa, há um desperdício de recursos produtivos, provocando, então,
uma queda no valor da produção anual da atividade do país, e não é isto que um pais deseja.

Smith acrescenta ainda que as vantagens naturais que um país pode deter frente a outro na produção
de determinadas mercadorias tornam‑se, às vezes, tão grandes que não ensejaria provocar um processo
de concorrência entre tal mercadoria, mesmo

[...] não interessando se as vantagens que um país leva sobre o outro são
naturais ou adquiridas. Enquanto um dos países tiver suas vantagens, e
outro desejar partilhar delas, sempre será mais vantajoso para este último
comprar que fabricar ele mesmo (SMITH, 1996, p. 44).

4.2.2 David Ricardo e suas vantagens comparativas

David Ricardo dá forma definitiva a essa concepção argumentando que cada país não precisaria ter
uma vantagem absoluta na produção de todas as mercadorias, mas deveria se especializar na produção
daquelas em que tivesse maiores vantagens relativas ou comparativas, também em custos.

Neste sentido, Ricardo sustenta, assim como Smith, que numa economia de livre mercado, cada
nação procurará aplicar todo o seu capital, bem como todo o seu trabalho, em atividades que lhe tragam
o máximo benefício, como se cada país buscasse sua “vantagem individual”. Obter vantagem significaria
obter eficiência na produção derivada da utilização de uma quantidade menor de trabalho na produção.
Assim, para Ricardo (1996, p. 97‑8),

[...] um país dotado de grandes vantagens em maquinaria e em capacidade


técnica, e que consiga produzir certas mercadorias com muito menos
trabalho que seus vizinhos, poderá importar em troca dessas mercadorias
parte dos cereais necessários ao consumo.

67
Unidade I

Dessa forma, dois países poderiam tirar proveito do comércio, se cada um tivesse uma vantagem
relativa na produção. Vantagem relativa ou comparativa significa que a quantidade de trabalho
incorporado em duas mercadorias seria diferente entre dois países, de modo que cada um poderia ter,
pelo menos, uma mercadoria na qual a quantidade relativa de trabalho incorporado seria menor que a
do outro país (HUNT, 1989, p. 137). Assim, o comércio internacional seria importante para um país, pois
ampliaria a quantidade de mercadorias transacionadas, elevaria a diversidade dos produtos nos quais os
salários poderiam ser gastos a um custo menor e, por fim, aumentaria o grau de satisfação da sociedade
(RICARDO, 1996, p. 93‑7). Por suas palavras,

[...] se Portugal não tivesse nenhuma ligação comercial com outros países, em
vez de empregar grande parte de seu capital e de seu esforço na produção
de vinhos, com os quais importa, para seu uso, tecidos e ferramentas de
outros países, seria obrigado a empregar parte daquele capital na fabricação
de tais mercadorias, com resultados provavelmente inferiores em qualidade
e quantidade.

Para Singer (1989, p. 147), Ricardo demonstra então que mesmo que um país tivesse grandes
vantagens naturais ou adquiridas em todas as esferas de produção, conforme explicava Smith, a
especialização de sua produção apenas nos ramos em que suas vantagens comparativas fossem maiores
trar‑lhe‑ia mais vantagens que a autossuficiência econômica.

Ainda que essa teoria não explicite que os ganhos de especialização, sejam no consumo ou
na acumulação de capital, não se repartem homogeneamente entre as nações participantes do
intercâmbio comercial (SINGER, 1989), durante boa parte do século XIX, as políticas comerciais das
nações capitalistas mais avançadas e daquelas menos desenvolvidas observaram suas recomendações
de política econômica, notadamente a política de “portos abertos”. As poucas exceções a essa visão
e a essa política derivam do argumento da indústria infante, cujo conteúdo, em última instância,
implicaria sugerir um fechamento temporário do país ao livre comércio, que contraria as relações
de comércio até então apresentadas.

A abordagem clássica dos custos comparativos desempenhou importante papel no quadro da teoria
das vantagens resultantes da especialização e das trocas internacionais. Suas conclusões tiveram grande
utilidade e, nesse sentido, as bases teóricas do enfoque ricardiano puderam ser aplicadas a situações reais,
principalmente em sua época, quando o trabalho era considerado como o fator básico determinante dos
custos de oferta da maior parte dos bens e serviços produzidos pelas nações.

Se o trabalho fosse o único fator de produção, as vantagens comparativas poderiam surgir apenas por
causa de diferenças internacionais da produtividade da mão de obra, mas no mundo real elas também
refletem diferenças entre os recursos dos países – por exemplo, terra, capital, recursos minerais, entre
outros. Dessa forma, diante de novos recursos teóricos e em decorrência das consideráveis modificações
havidas na estrutura de produção das nações, a Teoria Clássica das Vantagens Comparativas passa a ser
objeto de diversas reformulações.

68
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

4.3 Comércio internacional na visão neoclássica: o Modelo Heckscher‑Ohlin

O teorema desenvolvido pelos suecos Eli Heckscher e Bertil Ohlin enfatiza as razões e os ganhos
com o comércio internacional, pois fatores diferentes de produção estão disponíveis nos mais diversos
países e mostram que as vantagens comparativas de cada país são influenciadas pela interação entre
a abundância relativa dos fatores de produção e a tecnologia da produção, ou seja, a quantidade e a
intensidade relativa com que os fatores de produção são usados na produção de bens diferentes.

Tomando por base Krugman e Obstfeld (1999), Gonçalves (1998) e Williamson (1988), passamos a
exemplificar o teorema. Esse modelo considera que cada economia pode produzir dois bens, tecidos e
alimentos, e que a produção de cada bem requer o uso de dois fatores de produção específicos e com
oferta limitada, quais sejam, mão de obra e terra. Neste caso simples de dois fatores, dois produtos e duas
regiões, ou seja, modelo 2x2x2, o comércio praticado entre os países seria baseado na troca de produtos
produzidos mais baratos em cada região, portanto, aqueles cuja produção utilize relativamente maior
quantidade do fator abundante em termos domésticos.

Assume‑se, também, que os consumidores dos diferentes países têm preferências idênticas, que a
sociedade pode maximizar seu bem‑estar como se fosse um indivíduo e que um maior nível de bem‑estar
para a sociedade implica maior nível deste para cada indivíduo.

Sendo assim, o modelo de Heckscher‑Ohlin diz respeito ao comércio em equilíbrio entre duas
economias, passando a ideia de que o país onde o trabalho for, por exemplo, relativamente abundante,
será capaz de produzir o bem intensivo em trabalho a um custo relativamente baixo, obtendo uma
vantagem comparativa em sua produção. Para Williamson (1988, p. 37), o modelo pode ser enunciado
da seguinte maneira: “cada país exportará o bem intensivo em seu fator abundante”.

Sabemos que o custo de produção de um bem depende dos preços dos fatores de produção. Se o
aluguel da terra, por exemplo, for mais elevado, então o bem cuja produção seja terra‑intensiva terá
preços mais altos. Nesse caso, a importância do preço de fator particular no custo de produção de um
bem depende, entretanto, da quantidade do fator que a produção do bem envolve. Se a produção de
tecido utiliza pouca terra, então um aumento no preço da terra não terá muito efeito sobre o do tecido.

A partir da determinação do preço dos tecidos e dos alimentos, bem como do estabelecimento do
padrão de oferta limitada de terra e mão de obra, podemos identificar quanto de cada recurso será
direcionado na economia à produção de cada bem, e, portanto, a quantidade produzida de cada bem na
economia, de acordo com a curva de possibilidade de produção de uma economia específica.

Se a oferta de terra na economia aumenta, isso favorecerá aquela produção terra‑intensiva,


desfavorecendo a produção dos bens trabalho‑intensivo. A terra e a mão de obra não serão mais utilizadas
na produção de tecidos, sendo transferidas para o setor de alimentos, cuja produção aumentará mais
que proporcionalmente ao incremento na oferta de terra, ocasionando um deslocamento para fora na
curva de possibilidade de produção. Agora, a economia pode produzir mais alimentos que antes.

69
Unidade I

Para Krugman e Obstfeld (1999, p. 75‑6), “o efeito enviesado dos incrementos dos recursos nas
possibilidades de produção é a chave para entender como as diferenças em recursos aumentam o
comércio internacional”.

Uma vez que a economia doméstica tem uma proporção maior de mão de obra em relação à terra
que a economia estrangeira, a doméstica é abundante nisso e a estrangeira é abundante em terra. Se
o tecido for um bem intensivo em mão de obra, a fronteira de possibilidade de produção da economia
doméstica, relativa à estrangeira, é deslocada para fora mais na direção dos tecidos que na direção dos
alimentos. Assim, coeteris paribus, a economia doméstica tende a produzir uma proporção mais elevada
de tecidos em relação a alimentos.

Pelas palavras de Krugman e Obstfeld (1999, p. 77),

[...] sinteticamente, eis o que aprendemos sobre os padrões de comércio:


a economia doméstica tem uma proporção maior de mão de obra em
relação à terra que a economia estrangeira; isto é, a economia doméstica
é abundante em mão de obra e a economia estrangeira é abundante em
terra. A produção de tecidos utiliza uma proporção maior de mão de obra
em relação à terra que a produção de alimentos: ou seja, tecidos são
intensivos em mão de obra e alimentos em terra. A economia doméstica,
país abundante em mão de obra, exporta tecidos, o bem intensivo em
mão de obra; a economia estrangeira, país abundante em terra, exporta
alimentos, o bem intensivo em terra. A regra geral dessa teoria é: os países
tendem a exportar bens cuja produção é intensiva em fatores com os quais
eles são favorecidos em abundância.

Frente às considerações anteriores, ao ser confrontado com os fluxos de comércio internacional,


o enfoque Heckscher‑Ohlin parece ser o que mais se aproxima da realidade. Em sua mais simples
manifestação, as causas fundamentais das redes de trocas entre as nações parecem encontrar‑se nas
diferenças estruturais quanto à disponibilidade de recursos. Estes não se encontram distribuídos na
mesma proporção entre as nações e, diante das dificuldades para a sua mobilização de uma nação
para outra, cada uma tende a se especializar na produção dos bens e serviços mais apropriados à sua
tipologia de recursos. Os excedentes resultantes tendem a ser trocados no exterior por produtos, cuja
obtenção não se ajuste à estrutura interna de recursos. Assim, poderíamos dizer que, do ponto de vista
da Teoria Neoclássica das Relações Internacionais, o comércio internacional é, na realidade, uma espécie
de troca de recursos abundantes por recursos escassos.

4.4 Relações internacionais na perspectiva marxista

Abordagem diferente é encontrada na perspectiva marxista acerca das relações de comércio


internacional. Tal abordagem parte do princípio da existência de certa tendência ao declínio da taxa de
lucro postulada por Marx, importância da exportação de capitais defendida por Sweezy e necessidade
do capitalismo de se apoderar de economias ainda não capitalistas expressada por Luxemburg.

70
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

4.4.1 Abordagem de Karl Marx

Segundo Marx, mesmo em sua fase comercial, anterior à Revolução Industrial, o poder dos capitalistas
passava a ser garantido por novas leis sobre a propriedade privada, e o desenvolvimento da produção
capitalista tornava sempre necessários aumentos no capital aplicado em determinado empreendimento
industrial, para que cada empresa pudesse acompanhar a evolução tecnológica.

Por outro lado, isto se reforçou com a consolidação do capitalismo industrial. Através dele, além das
exigências de maiores gastos com aperfeiçoamentos tecnológicos, visando aos ganhos de produtividade,
que garantiriam as reduções de custos e os ganhos de competitividade, outro elemento era crucial: a
intensificação da concorrência entre empresas que, levando a crises de subconsumo ou superinvestimento,
fazia com que regularmente fossem eliminadas as empresas menos competitivas, o que acarretava
concentração da produção em um número decrescente de empresas e centralização de parcelas cada vez
maiores da riqueza do capital em um número cada vez menor de proprietários (HUNT, 1989, p. 241‑2).

Para Gorender (1985), partindo‑se de uma análise da concorrência entre os capitalistas, a tendência à
queda da taxa de lucro já fora constatada por Smith, que a inferiu da queda da taxa de juros, explicando
o fenômeno pela concorrência entre os capitais cada vez mais acumulados, em que a concorrência
impelia os salários para cima e induzia à baixa da taxa de lucros. Ricardo também deu sua contribuição
à questão, mas, em sua explicação, parte do pressuposto da lei dos rendimentos decrescentes na
agricultura. Uma vez que a produção atinge um ponto em que não satisfaz a demanda, o plantio é
obrigado a ser deslocado para terrenos cada vez menos férteis e distantes dos centros de consumo,
aumentando‑se os custos e reduzindo‑se a lucratividade da atividade agrícola.

Marx, quando aborda esta questão, parte do que chamou de composição orgânica do capital. O
capital de uma empresa foi por ele explicado como sendo uma composição entre uma parcela dita
constante (equivalente ao valor dos meios de produção = c) e uma parcela variável (equivalente ao valor
da força de trabalho = salários = v), definindo‑se uma razão conhecida como a composição orgânica do
capital (COK = c/v). Para Marx (1991, p. 242‑3), a acumulação incessante aumentaria a COK, expressando
o desenvolvimento progressivo da produtividade social do trabalho, pois, na tentativa de superar a
concorrência pela incorporação dos avanços tecnológicos, na composição orgânica do capital social
médio, o aumento dos fatores constantes ocorreria em ritmo maior que o aumento nas quantidades
utilizadas da força de trabalho e isso levaria a uma tendência à queda da taxa de lucro. Por suas palavras:

[...] a tendência do capitalismo ao decréscimo relativo do capital variável em


relação ao constante gera cada vez mais elevada composição orgânica do
capital global, daí resultando que a taxa de mais‑valia, sem variar e mesmo
elevando‑se o grau de exploração do trabalho, expresse‑se em taxa geral de
lucro em decréscimo contínuo. A tendência gradual, para cair, da taxa geral de
lucro é, portanto, apenas expressão peculiar ao modo de produção capitalista, do
progresso da produtividade social do trabalho (MARX, 1991, p. 242‑3).

Diante disso, temos que, embora a taxa de lucro seja a relação deste com o capital total, o próprio
lucro só seria criado pelo capital variável, pela força de trabalho que produz a mais valia, ou seja, pelo
71
Unidade I

trabalho excedente. Em não se alterando a taxa de mais‑valia, expressada pela relação entre esta e o
capital variável, m/v, a redução da parcela variável no capital total resultaria numa queda da taxa de
lucro. Mas a tendência histórica do capitalismo consiste na elevação dos elementos do capital constante,
impulsionado pela valorização do capital e, portanto, de sua acumulação, expressando o crescimento
da produtividade social do trabalho como resultado do aumento da massa e do valor dos meios de
produção por trabalhador ocupado, e a redução do valor por unidade do produto. Não havia, portanto,
para Marx (1991, p. 244‑66), dificuldade lógica na explicação da queda da taxa de lucro. A dificuldade
advinha do seu movimento muito lento e dos seus efeitos perceptíveis tão somente em longo prazo.

Essa tendência declinante da taxa de lucro faz com que os capitalistas busquem algumas influências
compensatórias para que revertam esse processo. Como influências compensatórias, Marx (1991, p.
266‑74) identificou:

• o aumento da intensidade da exploração da força de trabalho, ou o barateamento dos bens‑salários,


que, diminuindo o tempo de trabalho necessário, aumentariam o tempo de sobretrabalho e,
portanto, a criação de mais‑valia, aumentando a taxa de lucro;

• o barateamento dos elementos do capital constante, o que baixaria a COK e elevaria a taxa de lucro;

• o comércio exterior, por permitir obtenção de bens de produção e/ou bens‑salários mais baratos,
coincidindo com os efeitos de aumentos da intensidade da exploração;

• a exportação de capitais a países atrasados, onde a taxa de lucro costuma ser mais elevada,
motivo por que os lucros dos investimentos no exterior impelem para cima a taxa de lucro no país
exportador de capitais.

Finalizamos então com a seguinte passagem de Marx (1991, p. 266):

[...] a expansão do comércio exterior, embora tenha sido a base do modo


de produção capitalista em sua infância na fase do capitalismo comercial,
mercantilista, transformou‑se em seu próprio produto, com o progresso
posterior do modo de produção capitalista, por causa da necessidade
intrínseca deste modo de produção: sua necessidade por um mercado
sempre em expansão.

4.4.2 Abordagem de Paul Marlor Sweezy

Sweezy (1983, p. 92‑3), em sua obra Teoria do Desenvolvimento Capitalista, retoma a lei de tendência
declinante da taxa de lucro identificando, além das influências compensatórias anteriormente discutidas
em Marx, outras forças importantes que tendem a reduzir ou a elevar a taxa de lucro.

Por forças que influenciariam negativamente a taxa de lucro, identificou o poder dos sindicatos, bem
como a ação estatal destinada ao beneficio do trabalho. Já as forças que impelem para cima a taxa de
lucro seriam as organizações de empregadores, a formação de monopólios e a ação estatal destinada a
72
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

beneficiar o capital e, por último, a exportação de capital, por aliviar a pressão sobre o mercado interno
de trabalho e impedir que “a acumulação exerça plenamente seus efeitos depressivos na taxa de lucro”.

De acordo com Sweezy (1983, p. 221‑2), no mundo real, existe uma grande quantidade de países
que, através de um processo de interdependência, mantêm relações econômicas entre si, relações
de troca de mercadorias, formando uma economia mundial integrada e determinando uma forma
particular de divisão internacional do trabalho, pois cada país exporta mercadorias, que mantêm
melhores e maiores vantagens, conforme discutido por Heckscher‑Ohlin anteriormente. Mas as relações
econômicas internacionais não se limitam às trocas de mercadorias, já que tais relações “são suplantadas
pelos movimentos de capital, ou seja, pela exportação por alguns países e importação por outros, de
mercadorias que têm características e funções específicas de capital”.

Nesse aspecto, países enviam a outros meios de produção de que estes últimos necessitam para pôr
em prática seu processo produtivo com o objetivo de produzir mais‑valia, que, uma vez realizada, deve
ser enviada regularmente ao país exportador do capital ou da mercadoria que tem função de capital.
Assim, Sweezy (1983, p. 222‑4) sustenta que se há movimentos de capital numa direção e de mais‑valia
na outra, em se tratando de relações internacionais, já que de países capitalistas, cujo lucro é baixo, ou
cuja acumulação tenha atingido seu ponto máximo, tenderão a exportar capitais para países de alto lucro,
fazendo com que as taxas de lucro se igualem, nos diferentes países, devido à mobilidade do capital.

Como vimos, quando Sweezy (1983, p. 225‑35) analisa os movimentos da economia mundial,
provocados pelo próprio desenvolvimento do capitalismo, não está somente preocupado com as
relações de troca de mercadorias entre países, mas também em discutir modificações qualitativas nas
partes componentes da economia mundial, encarando, então, o imperialismo como um estágio no
desenvolvimento da economia mundial, em que as contradições do processo de acumulação atingiram
tal maturidade que a exportação de capital é uma característica das relações econômicas mundiais.

Sweezy (1983, p. 224‑5) sustenta que em países onde a liberdade de comércio e de movimento de
capital é a norma, haveria uma tendência para que as taxas de desenvolvimento do capitalismo em
escala mundial fossem niveladas pelos movimentos de capitais, mas na realidade isso não acontece, pois

[...] as relações entre países têm constituído até certo ponto o domínio da política
econômica, ou seja, da ação estatal dirigida para a realização de objetivos
econômicos definidos, [já que] na esfera internacional os interesses do capital
são diretamente e rapidamente traduzidos em termos de política estatal, [e desta
forma] os antagonismos internacionais do imperialismo assumem a forma de
conflitos entre Estados e portanto, indiretamente, entre as nações como um todo.

4.4.3 Visão de imperialismo por Rosa Luxemburg

Herdeira da economia política marxista, Rosa Luxemburg (1970, p. 392), em sua obra A Acumulação
do Capital, utiliza‑se da Teoria da Reprodução do Capital de Marx para formular sua Teoria do
Imperialismo, definindo‑o como “a expressão política do processo de acumulação de capital, de sua luta
para conquistar regiões não capitalistas que não se encontrem ainda dominadas”.
73
Unidade I

Para Luxemburg (1970, p. 11‑3), reprodução significa produção nova ou renovação do processo de
produção, que em sociedades com base capitalista, depende de condições técnicas e sociais, ou seja,
depende de meios materiais de produção, bem como da força de trabalho, empenhadas na produção
de mercadorias, que ao serem levadas ao mercado e trocadas por dinheiro deverão gerar lucro ao seu
produtor/vendedor.

No capitalismo, o ritmo de produção global do capital assume a forma de realização de mais‑valia


como condição imprescindível à acumulação de capital, mas determinado pelas necessidades de
consumo da sociedade. Dessa forma, períodos de prosperidade e depressão representam um elemento
importante no processo de reprodução capitalista, fazendo com que ele oscile em torno da capacidade
de consumo da sociedade. Portanto, para Rosa Luxemburg (1970, p. 18), a produção de mercadorias
não constitui um fim para o produtor capitalista, e sim um meio para apropriar‑se da mais‑valia.
Por suas palavras: “a verdadeira finalidade e impulso motriz da produção capitalista não é conseguir
mais valia em geral, numa só apropriação, em qualquer quantidade, mas de forma ilimitada, em
quantidade crescente”.

Acrescenta Luxemburg (1970, p. 19‑20): para que o capitalista consiga uma apropriação mais rápida
da mais‑valia, deverá incrementar seu processo produtivo, incorporando novos meios de produção,
no intuito de ampliar a produção, diminuir custos e baratear o preço das mercadorias. Para que a
reprodução do capital prossiga seu caminho, cada capitalista individual deverá reinvestir parte de sua
mais‑valia na produção de mercadorias, incorporando mais bens de capital, ou seja, transformando
mais‑valia em capital constante, exigência do processo de concorrência.

Reforçando esse pensamento, temos que para Luxemburg (1970, p. 21):

[...] no sistema capitalista, [...] a produção não visa essencialmente à satisfação


das necessidades: seu objetivo imediato é a criação do valor que domina em
todo o processo da produção e da reprodução. A produção capitalista não é
produção de artigos de consumo nem de mercadorias, em geral, porém de
mais‑valia.

Após fazer uma análise do processo de reprodução capitalista, mais minuciosa que esta aqui
apresentada, Luxemburg se preocupa em saber para quem e quando produzem os capitalistas, à medida
em que não consomem tudo o que produzem, mas acumulam. Ela está interessada em identificar quem
viabiliza a realização da mais‑valia em constante crescimento. Sustenta, então, que uma economia
capitalista sem relação comercial com setores não capitalistas internos ou externos às suas fronteiras
é incapaz de acumular, pois esse modo de produção só pode funcionar normalmente em acumulação
mais intensa, se vinculado a um meio não capitalista, que lhe forneça um mercado externo adicional
em expansão, pois enquanto se reduz o consumo interno, a acumulação é motivada pelo crescimento
de consumo externo, isto é, da economia não capitalista (SINGER, 1985, p. 37‑40).

Posto que os capitalistas acumulavam bens de capital não pelo desejo de fazê‑lo, mas na expectativa
de obter lucros, e isso poderia ser comprometido por falta de consumo interno, Luxemburg acaba por
concluir que na esfera interna de uma economia capitalista, os ganhos dos capitalistas e dos trabalhadores
74
HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

não eram suficientes para permitir, por um período prolongado, a realização contínua da mais‑valia
gerada pela expansão da produção de mercadorias, e procura descobrir de onde provinham os gastos
adicionais que haviam tornado possível essa expansão, concluindo por fim que “o capitalismo aparece
e se desenvolve historicamente num meio social não capitalista” (LUXEMBURG, 1970, p. 317). Segundo
ela, o capitalismo necessita de camadas sociais não capitalistas para desenvolver sua mais‑valia, pois o
capital não alcança seus objetivos em uma economia “natural”, ou seja, pré‑capitalista, pelo fato de a
produção nessa economia ser toda em função de necessidades domésticas, não existindo demanda por
mercadorias estrangeiras e nem excedente de produtos.

Para Luxemburg (1970, p. 334), o desenvolvimento de uma economia de mercado seria uma forma de acabar
com as economias não capitalistas, e em seus estudos encontra a resposta para a explicação do expansionismo
das economias capitalistas do início do século XX na tendência histórica do modo de produção capitalista a
expandir‑se continuamente, submetendo a seu controle áreas não capitalistas e incorporando‑as ao domínio
das relações capitalistas. Os gastos dessas áreas não capitalistas com a aquisição de mercadorias produzidas nas
economias avançadas proporcionavam a demanda adicional de que essas economias necessitavam.

Em resumo, tanto o pensamento de Smith, de Ricardo e de Heckscher‑Ohlin como o de Marx, Sweezy


e Luxemburg levam, por diferentes vias, ao entendimento da importância do comércio internacional e da
forma com que se desenvolve, seja para encarar os problemas de busca de maior eficiência, de expansão
do consumo/vendas ou ainda pela compensação da queda da taxa de lucro por excesso de concorrência
interna. Para o bom funcionamento de uma economia capitalista, com suas empresas pressionadas por
forte concorrência nas vendas de bens e serviços, a busca por maior eficiência que reduz custos e, em
tese, permite sustentar os lucros, faz com que empresas e países passem a buscar os mercados externos,
onde o processo de relações internacionais, hoje denominado globalização, passa a ser encarado como
um processo extremamente antigo.

De um ponto de vista teórico‑conceitual, o intercâmbio ou o comércio entre nações estudado em


períodos anteriores por esses pensadores já dava, portanto, indícios do processo de internacionalização
da economia. Para pensadores marxistas aqui estudados, os fatos já ocorriam na segunda metade
do século XIX, e voltam após a década de 1960, com o surgimento de novos meios de comunicação
e avanços tecnológicos, que estão na origem do paradigma produtivo do século XX, e também na
chamada globalização da economia, que exigem, tanto das empresas quanto das nações, novos métodos
da organização da produção, pois com mercados crescentemente globais, só sobreviverá aquele que se
adaptar às novas regras.

Resumo

Iniciamos nesta unidade nosso passeio pela construção, evolução e


consolidação do sistema capitalista de produção. Vimos que seu berço é a
Europa, notadamente a Inglaterra e suas incríveis revoluções. Na Europa,
a Inglaterra foi a pioneira no processo de industrialização. Ela havia
enriquecido com o comércio e com a pirataria, sendo que a riqueza oriunda
dessas atividades ficou nas mãos da burguesia comercial. A formação de
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Unidade I

poupança, essencial para os investimentos solicitados pela atividade fabril,


foi estimulada. Esses novos valores, totalmente distintos daqueles que
haviam vigorado durante o feudalismo, aderiram com perfeição a um novo
tempo contaminado pelo crescimento econômico. Esse contexto favoreceu
o surgimento de um grupo de homens empreendedores e que buscavam
aproveitar cada oportunidade para crescer, investir e produzir.

Foi possível perceber que a paisagem inglesa se modificou


profundamente. Centenas de fábricas se espalharam pelas cidades. Nelas,
circulavam trabalhadores esfomeados que viviam em condições totalmente
insalubres e conviviam com a fome resultante da explosão populacional e
da escassez de terras aráveis e produtivas. O cenário estava preparado para
a expansão da revolução industrial para além das fronteiras inglesas, e isso
ocorreria com a segunda Revolução Industrial, conjunto de inovações que
permitiu ao capitalismo sair de sua infância e desenvolver‑se.

Os investimentos para a criação e para a ampliação das fábricas eram


então vultosos demais, e proliferaram sociedades anônimas, dependentes
dos grandes aportes financeiros oferecidos pelo setor bancário. Na luta pela
sobrevivência, os grandes capitais engoliram os menores. A industrialização
atingiu a Suíça, a Holanda, a Dinamarca, a Bélgica, a Alemanha, a Itália, o
Japão e os Estados Unidos. No século XIX, a Revolução Industrial estava
consolidada na maior parte dos países da Europa.

As condições desesperadoras dos trabalhadores alimentariam e


impulsionariam as revoltas do final do século XIX e do início do XX, sob os
auspícios da atuação política dos socialistas, anarquistas e comunistas. O
capitalismo industrial, então, dava lugar ao capitalismo monopolista, em
que grandes grupos controlavam partes igualmente grandes do mercado
referente à sua produção: um número pequeno de empresas eliminava seus
concorrentes menores e competia pelo mercado entre si, às vezes chegando
a acordos para dividi‑lo.

Nessas condições, a melhor saída que se apresentava era a conquista


de mercados externos, ainda que ela não envolvesse dominação política. Às
estratégias de expansão e controle dos mercados externos damos os nomes
de imperialismo e neocolonialismo.

A disputa pelos mercados estava longe de se solucionar. Muito em


breve, os países entrariam em guerra para preservar o que julgavam serem
suas propriedades e para expandir os seus limites.
Percebemos que a Primeira Guerra Mundial (1914‑1918) foi o primeiro
conflito em que todas as grandes potências estavam envolvidas, sendo,
a princípio, uma guerra essencialmente europeia, com a Tríplice Aliança
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HISTÓRIA DA GLOBALIZAÇÃO

de um lado (formada pela França, Grã‑Bretanha e Rússia) e as Potências


Centrais de outro (Áustria‑Hungria, com a Sérvia e a Bélgica sendo
arrastadas imediatamente para um dos lados).

A Primeira Guerra Mundial foi deveras catastrófica: os franceses


perderam mais de 20% de seus homens em idade militar e, se levarmos
em conta os prisioneiros de guerra, os feridos e os permanentemente
estropiados e desfigurados, não mais que um terço dos soldados franceses
saiu ileso. Os britânicos perderam uma geração – meio milhão de homens
com menos de trinta anos; os alemães perderam um pouco mais do que os
franceses (1,8 milhão de mortos, contra 1,6 milhão por parte dos franceses).
Os EUA perderam 116 mil homens, o que é muito se levarmos em conta que
os americanos lutaram apenas um ano e meio (1917‑1918).

Mas o que provocou essa guerra? Os motivos que levaram à Primeira


Guerra Mundial não foram ideológicos ou revolucionários, e sim econômicos.
A rivalidade econômica havia crescido com o desenvolvimento capitalista e
com a competição econômica. Por causa dos mercados, os países europeus
entraram em guerra, levando para o conflito outras nações. Tanto a
Alemanha quanto a Grã‑Bretanha já haviam encontrado os limites para
sua expansão, precisando conquistar outros territórios e novas fontes de
recursos. No caso da França, os objetivos eram menos globais, contudo
igualmente urgentes: compensar a sua inferioridade demográfica e
econômica frente à Alemanha. Em resumo, a França lutava pelo seu futuro
como grande potência.

Com o final da Primeira Guerra Mundial, outra catástrofe global teve


início a partir da Crise de 1929, que veio se construindo durante e após a
Primeira Guerra Mundial. Nesse período, os Estados Unidos tornaram‑se o
principal fornecedor de produtos industrializados para a Europa devido à
destruição causada pela guerra aos países europeus. Em 1920, a indústria
norte‑americana era responsável por mais de 42% de toda a produção
industrial do mundo. Além de os EUA serem o maior exportador do
mundo, eles também eram o segundo maior importador (ficando atrás
apenas da Grã‑Bretanha), importando cerca de 40% das exportações de
matérias‑primas e alimentos dos quinze países mais comerciais, o que
ajuda a entender o forte impacto da depressão sobre os produtores de
trigo, algodão, açúcar, borracha, seda, cobre, estanho e café. A prosperidade
do período causada por essa euforia na produção colocou como modelo de
prosperidade econômica a produção e o consumo desenfreado.

Entretanto, à medida que a Europa foi se reorganizando, eles passaram a


investir e incentivar a produção interna, reduzindo assim a dependência dos
produtos norte‑americanos, o que causou um excesso de oferta. Redução
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Unidade I

dos preços, queda na produção e desemprego foram consequências dessa


insuficiência de demanda efetiva. A crise foi sentida em todos os lugares
em que homens e mulheres se envolviam ou faziam uso de transações
impessoais de mercado.

A Grande Depressão de 1929 expôs problemas fundamentais da


economia mundial; para resolvê‑la, o governo americano adotou políticas
intervencionistas que, depois, seriam estudadas e explicadas por Keynes.
A esse conjunto de ações de intervenção do Estado na economia damos o
nome de New Deal.

Vimos ainda que o capitalismo e sua evolução podem também ser


explicados por teorias que abordam o comércio internacional. Nessa
empreitada, você teve contato com as teorias clássicas e neoclássicas do
comércio internacional como aprofundamento, ou ora contradizendo,
das teorias mercantilistas até então dominantes na área dos negócios
internacionais. Nesse sentido, as visões de Adam Smith e de David Ricardo
são brilhantes. A abordagem marxista também passou por nossa descrição,
tanto na figura de seu fundador quanto nas de seus seguidores, aqueles
que fundamentam o imperialismo.

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