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CENTRO UNIVERSITÁRIO DO LESTE DE MINAS GERAIS

CURSO DE DIREITO

MATHEUS BARCELOS GOMES

SISTEMA PROCESSUAL PENAL CONSTITUCIONAL E O JUIZ COM PODERES


INSTRUTÓRIOS

Coronel Fabriciano

2019
MATHEUS BARCELOS GOMES

SISTEMA PROCESSUAL PENAL CONSTITUCIONAL E O JUIZ COM PODERES


INSTRUTÓRIOS

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Direito do Centro
Universitário do Leste de Minas Gerais
como requisito parcial para obtenção do
título de Bacharel em Direito

Orientadora: Gabriella Caroline Rodrigues


Beltrame
MATHEUS BARCELOS GOMES

SISTEMA PROCESSUAL PENAL CONSTITUCIONAL E O JUIZ COM PODERES


INSTRUTÓRIOS

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Direito do Centro
Universitário do Leste de Minas Gerais
como requisito parcial para obtenção do
título de Bacharel em Direito

Aprovado em: __/__/__. Por:


RESUMO

Considerando a relevância do processo penal para o Estado de Direito, é importante


definir a estrutura do processo penal querida pelo constituinte, constata-se, porém, a
dificuldade dos autores em entrar em um consenso sobre os elementos
caracterizadores dos sistemas processuais penais atualmente existentes – o
inquisitorio, acusatório e o misto –, buscou-se, pois, mostrar os elementos mais
referidos pelos autores, para que, assim seja possível definir qual o adotado pela
Constituição Federal e se, a partir disso, um juiz ativo ou não na busca por provas no
processo penal é compatível com o sistema previsto pela Carta Magna. Realiza-se
para isso estudo bibliográfico da doutrina processual penal pátria, com abordagem
qualitativa e usando como técnica de pesquisa um levantamento bibliográfico. Diante
disso, verifica-se que é possível identificar elementos que são essenciais de cada
sistema processual penal, que a partir da identificação desses, é uníssona a doutrina
ao afirmar que a Constituição deseja o Sistema Acusatório e que a legislação deve
estabelecer limites à atuação judicial no campo probatório durante o processo ja
iniciado, vedando-se, contudo, sua atuação ex officio, no âmbito da investigação
preliminar sob pena de violação a ordem constitucional vigente.

Palavras-chave: sistema processual penal, constituição, poderes instrutórios, juiz.


ABSTRACT

Considering the importance of the process of the criminal law in a state based in the rule of
law, the structure of procedure criminal wanted by Federal Constitution must be identified, but
the literature do not find an agreement about the basic elements of each criminal justice
system, this research aimed to define the main elements of the current Criminal Justice
Systems pointed by most part of the brazilian criminal procedure literature, with this main
elements, it’s possible to set the criminal justice system wanted by Constitution and if a judge
with an active posture inside the process is compatible with Constitution’s will. To achieve this
goal, we used the methodology as applied research with a qualitative approach and as a
research technique using a bibliographic survey. It is concluded that it is possible to identify a
main element for each criminal procedure system, with these elements, the brazilian criminal
procedure literature, analyzed in this research, by unanimity, defines that the Federal
Constitution has adopt the Accusatory Criminal Justice System, for the judge posture in
evidences search, this literature recognizes that must be created limits in his acts after the
beginning of the criminal procure in judicio, and before it, in preliminary investigation, the
perform ex officio for searching evidences must be refused in view of the Constitution.

Key-words: Criminal justice system, constitution, evidence search, judge.


SUMARIO

1. INTRODUÇÃO..................................................................................................7
2. A CONSTITUIÇÃO COMO FUNDAMENTO DO PROCESSO ........................9
3. OS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS.......................................................11
3.1.1 Sistema Acusatório..................................................................13
3.1.2 Sistema Inquisitivo...................................................................23
3.1.3 Misto..........................................................................................30
4. O SISTEMA ADOTADO PELA CONSTITUIÇÃO.........................................33
5. (IN)COMPATIBILIDADE DA ATUAÇÃO DO JUIZ EX OFFICIO NA
PRODUÇÃO DE PROVA................................................................................36
6. CONLUSÃO.....................................................................................................46
REFERÊNCIAS ...................................................................................................49
7

1. INTRODUÇÃO

Desde de os tempos posteriores à sociedades complexas como as atuais o ser


humano cede à prática atos que ferem bens de valor alheio, desse modo, a partir do
início do convívio social, tem-se o conhecimento de que um mal praticado que ferisse
as regras sociais estabelecidas geraria algum tipo de sanção.

Colocando fim na vingança privada, e avocando para si o monopólio da justiça o


estado passa a ter o poder-dever de aplicar sanção àquele que infringe as normas
penais, nesse contexto, com o surgimento do Estado Democrático de Direito, o
crescimento do debate em torno dos direitos humanos após os eventos da Segunda
Grande Guerra, e por conseguinte, o neoconstitucionalismo, o movimento de
positivação dos direito fundamentais, a discussão culmina, então, em dar efetividade
ao texto constitucional, nesse interim, o processo penal se tornou um importante
instrumento de garantia do cidadão frente ao ius puniendi do estado (LOPES JR.,
2012).

Assim sendo, busca-se identificar no presente trabalho, a estrutura do processo penal


definido pelo legislador constituinte, far-se-á isso com base no que a doutrina chama
de sistemas processuais, o inquisitório, acusatório e o misto. Essa classificação tem
o objetivo de taxar o processo de um ordenamento jurídico de acordo com seus
princípios que lhe dão base. Então, a primeira parte da pesquisa voltar-se-á a definir
as principais características históricas apontados pela maioria da doutrina em cada
um dos modelos de sistema processual e, também, os princípios que regem cada
sistema.

Assim, com os dados obtidos na analise dos sistemas processuais penais,


buscaremos confronta-los com os dispositivos da Constituição que os autores
apontam como definidores do sistema processual penal adotado, ora, sabendo do
protagonismo máximo que exerce a constituição de um pais nos dias atuais, definindo
validas ou não as normas infraconstitucionais e considerada verdadeiro caminho
8

interpretativo a ser seguido pelos aplicadores do direito, é nela que devemos buscar
as vigas mestras do processo penal brasileiro porquanto “somente podemos entender
o sistema jurídico se, no seu ápice, estiver a Carta Magna” (RANGEL, 2015).

Desta feita, definida a sistemática constitucional, foi eleita como objeto de pesquisa
do presente trabalho a atividade do juiz na busca e produção de provas dentro do
Código de Processo Penal e se ela se adequa ao modelo processual penal eleito pelo
constituinte.

O tema gera grandes controvérsias, a questão gira em torno da capacidade do


magistrado de buscar provas, até que ponto pode, a pessoa que vai definir o deslinde
final do processo, e que deve ser um terceiro alheio as partes e, portanto, imparcial,
ir, ex officio – sem provocação de nenhuma das partes –, buscar elementos
probatórios a fim de embasar um decreto condenatório ou absolutório. E até que ponto
esse poder do juiz vem ao encontro do sistema escolhido pelo legislador constituinte.

Buscaremos, por meio da pesquisa bibliográfica, trazer os argumentos da posição que


advoga o total afastamento do juiz da gestão da prova fundamentada na
inconstitucionalidade dessa atuação, tanto na fase pré-processual quanto na
persecução penal in judicio, e daqueles que defendem, um juiz mais ativo nessa
atividade. Toda essa discussão será realizada tendo em vista o sistema processual
penal constitucional.

São os objetivos gerais do trabalho:


a) Expor o contexto histórico do auge de cada um dos sistemas processuais
penais apontados pela doutrina e definir suas características básicas.

Os objetivos específicos são:


a) Demonstrar os elementos que definem a base acusatória do sistema adotado
pela CF
a) Analisar a intervenção do juiz na gestão da prova na legislação
infraconstitucional
9

Quanto ao método de pesquisa, o trabalho se utiliza do método qualitativo, com


abordagem metodológica e bibliográfica realizado em bases científicas de dados.

O trabalho será dividido em 3 capítulos: O primeiro definirá os sistemas processuais


históricos e suas principais características, a fim de que, no capitulo 2, subsidiado
pelos elementos colhidos no 1, possa ser feita uma análise dos princípios processuais
básicos estabelecidos na Constituição, definindo qual sistema escolheu o constituinte;
o terceiro, demonstrará, após analise doutrinária, a posição dos autores em relação à
constitucionalidade ou não da intervenção do juiz na busca e produção de prova;

2. A CONSTITUIÇÃO COMO FUNDAMENTO DO PROCESSO

A constituição é o estatuto jurídico fundamental de um estado, define a sua estrutura


política e os direitos e garantias fundamentais. No contexto atual, o conceito de estado
é umbilicalmente ligado à existência de uma Lei Maior que regerá todo o ordenamento
jurídico, sujeitando todos – inclusive o próprio Estado – ao império da lei, desse modo
tem-se que um Estado de Direito carrega consigo a necessidade de uma supremacia
constitucional (MORAES, 2018).

Esse protagonismo tem sua genese com o surgimento dos movimentos


constitucionalistas que são produtos da crescente ideia libertária de limitar o poder do
estado por meio da garantia de direitos fundamentais ao longo do tempo,
posteriormente, juntou-se a concepção de que as constituições deveriam incorporar
os direitos sociais, daí o surgimento das democracias sociais – warfare state -, hoje,
com o neoconstitucionalismo tem-se como principal objetivo dar efetividade ao texto
constitucional, valorizando seu conteúdo axiológico, demonstrando a reaproximação
do direito da ética, assim, a diferença entre as normas constitucionais daquelas
estabelecidas na legislação ordinária não se evidenciam somente no status mas
também na carga valorativa, portanto, o maior desafio da atualidade é transformar a
vontade do constituinte em realidade (LENZA, 2018).

Evidencia-se, pois, a relevância de se definir com clareza os comandos


constitucionais, com a finalidade de realizar concretamente o Estado de Direito.
10

Tratando-se de poder do estado, é inegável que o Direito Penal, é o ramo do direito


que materializa a vertente mais expressiva de sua manifestação, ele é a ultima ratio,
só é colocado em campo quando todos os outros ramos no direito falharem na missão
de proteger os bens jurídicos mais importante para a sociedade, tem como principal
meio de atingir esse objetivo a pena, que cerceia um dos direitos mais caros ao
indivíduo : a sua liberdade (GRECO, 2017). Diante disso, uma pena aplicada de forma
equivocada, distante das garantias fundamentais esculpidas na Constituição é cara
ao Estado como instituição e – principalmente – ao indivíduo, porquanto, as
consequências da pena não se restringem somente à privação da liberdade haja vista
que, como classifica Barrata (2002, p. 162), o direito penal é “um direito desigual por
excelência” e reprodutor e conservador da realidade social, de modo que, a aplicação
da pena estigmatiza o indivíduo perpetuando o seu status de delinquente, que a ele
foi atribuído pelo sistema penal e suas cerimonias degradantes, e finalizado pelo
cárcere (BARATTA, 2002).

Por isso a aplicação da pena sofre uma série de limitações e tem seu conteúdo
delineado de forma incisiva pela Constituição e seus princípios explícitos e implícitos
que irradiam sobre todo o ordenamento jurídico, funcionando como verdadeiro
caminho a ser seguido pelos Poderes da República na criação e aplicação do direito
penal.

Evidenciando esse abismo entre o a seara penal e as demais Aury Lopes Jr. citando
Carnelutti (2012, p. 94) expõe:

[...] ao juiz penal não se pede, como ao juiz civil, algo que nos falta, o
tal “bem da vida” como se referem os civilistas. É a própria vida que
está em jogo. Para o autor, tanto o juiz penal como ao juiz civil,
compete dar a cada um o seu. A (imensa) diferença está em que no
penal é dispor do próprio “ser”, ao passo que no civil é o “ter”.

Ocorrendo, então, a prática de uma infração penal, o Estado tem o poder-dever de


aplicar a pena. Todavia, a fim de que sejam respeitados os direitos fundamentais do
indivíduo, para que o estado consiga exaurir seu ius puniendi a única trilha a ser
seguida é o processo penal, daí decorre o brocado jurídico nulla poena sine judicio,
assim, desprovido de meios de aplicação direta o direito penal é viabilizado pelo
processo (JR. LOPES e GLOECKNER, 2014).
11

Assim, a principal missão do processo penal é a “simultaneidade e coexistência entre


a repressão do delito e respeito às garantias constitucionais” (AURY, 2016, p.35)..

Antes, então, de ser visto como viabilizador da pena, na visão garantista de Aury
Lopes Jr. (2012), a função fundante do processo penal em um Estado Democrático
de Direito é garantir os direitos fundamentais do indivíduo refletindo o modelo de
Estado vigente, como ensina J.Goldsmith (2016, p. 67): “o processo penal nada mais
é que o termômetro dos elementos corporativos e autoritários de uma Constituição”;
e Pisapia (1971, p.3) que estabelecia que “o grau de civilidade um povo se mede
sobretudo pelo modo com o qual se salvaguarda os direitos e as liberdades do
imputado no processo penal”.

Contudo, Grinover (GRINOVER, 2002), defende que a função do processo é garantir


a paz social por meio da correta aplicação do direito material, é claro, respeitando os
direitos fundamentais, o cerne aqui é que ela não dá o protagonismo garantista e
individual ao processo penal como faz Aury Lopes Jr (2012), que como veremos
refletirá diretamente como esses autores entendem a dialética processual e a relação
entre as partes.

Concluindo, deve-se ter como premissa, então, que o processo deve ser um reflexo
daquele modelo delineado pela Constituição do país, aplicando o direito material e
defendendo o indivíduo dos efeitos negativos inerentes à aplicação do direito penal,
do abuso e excesso de poder, o grande desafio é a convivência desses dois objetivos,
não obstante o processo penal deve ser a única estrutura legitima para a imposição
da pena (JR. LOPES e GLOECKNER, 2014).

3. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

Importa-nos, agora, tratar dos sistemas processuais penais, ou como prefere Tourinho
Filho (TOURINHO FILHO, 2010), tipos de processo penal. Atualmente a doutrina
majoritária estabelece 3 (três) modelos processuais: o inquisitivo, acusatório e o misto.
12

Antes de imergimos nos sistemas processuais, precisamos subir um degrau a fim de


entendermos o conceito de sistema jurídico, Mauro Fonseca Andrade (ANDRADE,
2013, p.38) define como:

Uma reunião, conscientemente ordenada, de entes, conceitos,


enunciados jurídicos, princípios gerais, normas ou regras (jurídicas,
fazendo com que se estabeleça, entre os sistemas jurídicos e esses
elementos, uma relação de continente e conteúdo, respectivamente.

Especializando o conceito para o processo penal, Rangel (RANGEL, 2015, p.46)


define sistema processual penal como: “conjunto de princípios e regras constitucionais
de acordo com o momento político de cada Estado, que estabelece as diretrizes a
serem seguidas à aplicação do direito penal em cada caso concreto”.

A classificação dos sistemas processuais penais é o reflexo da estrutura processual


estabelecida, ou seja, o conjunto de entes, conceitos, regras e princípios que
informam o regramento processual, a despeito disso, é evidente que o principal critério
utilizado é aquele que tenta medir a participação dos atores processuais nas principais
funções exercidas no bojo do processo – investigar, acusar, defender e julgar – os
princípios que circulam ao redor dessas funções. É sobre essa distribuição, o modo
como cada parte interfere em cada uma delas que a maioria da doutrina ampara o
núcleo as classificações.

O estudo dos sistemas processuais é importante porque define a política penal eleita
pelo o legislador de determinado país, essa escolha é crucial, porque, como veremos,
determina o nível de imparcialidade do julgador, a eficiência da repressão criminal e
seu grau de tecnicidade (ANDRADE, 2013)

Há certa dificuldade em encontrar um consenso, do que caracteriza um processo


penal de determinado ordenamento jurídico como acusatório, inquisitivo e misto. Os
autores elencam alguns elementos de cada sistema, uns aparecem sempre, outros,
por alguns, não é sequer mencionado. Essa falta de unidade gera dificuldade em
definir os sistemas.

Discorrendo sobre assunto, Andrade (2013) aduz que os sistemas são formados por
elementos, esses divididos em duas espécies: fixos e variáveis. Os primeiros seriam
13

a verdadeira base axiológica do sistema, seu núcleo, de modo que adicionando ou


eliminando qualquer deles surgiria um novo sistema. Os variáveis são os que orbitam
os fixos, podendo compor vários sistemas, dão dinamismo e flexibilidade.

Por utilizar de uma metodologia bem definida, no decorrer de cada tópico relativo aos
sistemas processuais, será exposta a conclusão do autor supracitado em relação aos
elementos fixos de cada um dos sistemas.

A finalidade do tópico a seguir é, então, apresentar como esses sistemas foram


implementados ao longo da história, o contexto político e econômico no qual foram
implementados, as consequências dessa implementação para a finalidade do
processo e, por último, apontar as suas características básicas a fim de que possamos
com elas identificar de forma clara o sistema processual penal desejado pela nossa
Constituição Federal.

3.2.1. Sistema Acusatório

O sistema acusatório é aquele considerado mais próximo dos postulados inerente a


um regime democrático. Esse sistema influenciou o processo em duas épocas
distintas: o período clássico e o atual (ANDRADE, 2013).

Os primeiros registros históricos de sistemáticas predominantemente acusatórias


remontam ao direito ateniense e as leis de Sólon (arconte – espécie de magistrado
ateniense, pertencente à classe mais elevada), substituindo Drácon, esse, que apesar
de incrementar a primeira legislação codificada em Atenas, havia deixado uma
sociedade em conflito pela severidade de suas leis e o excesso de opressão que sofria
classe mais baixa, já que suas leis nada mais faziam que reproduzir um direito calcado
em religiosidade implacável, assim, a pena para quase todos os delitos era a capital
(CASTRO, 2010)

A fim de abrandar a legislação draconiana, e pressionado por revoltas populares que


ganhavam força rapidamente, Sólon favoreceu, em partes, as classes inferiores,
aumentando a participação popular na vida política. Como principal ação, permitiu-se
a participação popular em tribunais, e que qualquer cidadão pudesse recorrer a eles
14

quando discordassem da decisão dos magistrados, portanto, Sólon foi importante


governante que, de fato, aproximou o povo da vida política (WOLKMER, 2006).

De modo gradual, o poder popular foi ganhando força, até que os arcontes decidiram
que os assuntos judiciais deveriam ser decididos pelo povo. Por meio de tribunais
populares compostos por cidadãos leigos (WOLKMER, 2006).

Em síntese didática, Jose Reinaldo de Lima Lopes (LOPES, 2011, p.23) explica a
estrutura das instituições jurídicas no direito ateniense:

Há duas espécies de órgãos de jurisdição em Atenas. Para os crimes


públicos, o julgamento é feito por grandes tribunais de dezenas ou
centenas de membros. A Assembleia de todos os cidadãos, repartidos
em distritos territoriais elegia o grande conselho de supervisão
(Areópago). Embora todos pudessem ter participação na assembleia,
nem todos poderiam ocupar todas as magistraturas, pois os cidadãos,
para este efeito, haviam sido divididos, por Sólon, em classes de
renda. Ao lado do Areópago, um conselho de 400 (boulé) exercia o
governo. O Arcópago julgava acusados de subverter a Constituição.
Quando o julgamento se fazer para casos menos importantes quem
julgava eram magistrados ou juízes singulares e poderiam, nesses
casos, haver apelação para a assembleia judicial propriamente que
funcionava em grupos.

Portanto, os crimes eram julgados por diversos tribunais – todos populares –, que
eram divididos por competência em relação à modalidade do delito submetido a
julgamento (ANDRADE, 2013).

Entre as principais características do processo ateniense, conforme Mauro Fonseca


de Andrade (2013), destaca-se para fins desse trabalho:

a) Divisão entre delitos públicos e privados, aos primeiros eram dada


legitimidade ativa a todos cidadãos, aos segundos somente à vítima.
b) Magistrados não poderiam acusar, somente os cidadãos comuns,
excluídos, pois, os escravos, mulheres e menores de idade.
c) Havia a fim de proteger os interesses estatais, acusadores públicos, que
eram nomeados pelo Senado ou a Assembleia do Povo..
d) Durante a investigação que era levada a cabo pela acusação, os
magistrados apenas avaliavam a regularidade do procedimento, portanto,
15

a busca por provas era encargo que recaia sob as partes, esse era um
princípio importante que constantemente era reforçado.
e) Debates orais, com tempos divididos de forma equitativa para cada parte
f) Existia algo parecido com in dubio pro reo, se a votação terminasse
empatada, decidia-se pela absolvição.
g) A tortura era utilizada, porém, vista com maus olhos. A confissão obtida por
meio dela tinha valor probatório menor.

Vê-se, pois, presente características estrurais importantes: a divisão de funções de


acusar e julgar com suas atividades bem definidias, o processo precisava de um
acusador para ser iniciado, e esse não poderia ser o magistrado, ademais, os
cidadãos que exerciciam o munus acusatório, além disso, o princípio do contraditório,
na sua vertente de igualdade de armas, já que havia garantia de tempos equitativo
entre as partes, que eram ambas eram privadas, não havendo interesse a priori que
justificasse diferença de tratamento por parte do estado-juiz.

Outra manifestação do sistema acusatório ocorreu em Roma, que passou, durante


sua história por várias formas de governo, passando pelo período monárquico,
republicano e imperial (ANDRADE, 2013).

Desse modo, e reforçando a tese de Goldsmith que o processo penal de um estado


reflete a própria estrutura do poder, foi no período republicano que funcionou a forma
mais perfeita de organização do sistema acusatório no mundo antigo (ANDRADE,
2013).

O período republicano, ocorreu entre 509 e 27 a.C, nesse tempo, houve um intenso
movimento popular que aproximou o povo do poder, as decisões da plebe, depois de
várias revoltas, passaram, até certo ponto, a ter força normativa e os Tribunais da
Plebe começam a ter relevância. Ocorreu a promulgação de lei que garantia o direito
de casamento entre patrícios e plebeus, ganharam também, representatividade no
Senado antes composto apenas pela elite, além da lei Hortência que elevou as
decisões da plebe à categoria de lei (PALMA, 2011).

A competência para legislar evoluiu de acordo com as mudanças


políticas ocorridas em Roma. Desta forma, durante a república, as leis
16

emanavam das assembleias populares; inicialmente, suas decisões


obrigavam somente os plebeus, mas após a Lei Hortência de 286 a.C.,
adquiriram validade para todos os cidadãos de Roma (WOLKMER,
2006)

Segundo Andrade (2013) essas são as principais características do processo penal


em Roma no período republicano:

a) Um dos deveres dos juízes era ouvir em silêncio os debates;


b) Os juízes eram eleitos – entre os cidadãos romanos - para uma lista, e depois
sorteados para atuar tanto no Senado como nas Assembleias Públicas. As
partes poderiam recusar determinado número de julgadores;
c) O início do processo dava-se somente por acusador distinto dos julgadores e
do pretor (presidente do tribunal);
d) A legitimidade ativa era reconhecida a qualquer cidadão de boa reputação
e) Recebida a acusação, a atividade investigativa era atribuição do acusador, o
acusado não podia fazer sua própria investigação;
f) O acusado, nos debates, poderia utilizar-se de pessoas com habilidade oratória
ou jurídica maiores que a sua, a fim de se defender da acusação. Se o defensor
do acusado não estivesse preparado, poderia o pretor entender pelo
cerceamento de defesa e suspender o julgamento;
g) O julgamento era, em regra, público, porem, muitos atos de investigação ainda
eram sigilosos;
h) Tortura era utilizada, todavia, apenas recaia sobre os escravos;
i) A prisão era regra nos casos de confissão, no restante, o acusado era liberado
mediante caução ou garantia pessoal;
j) A votação era secreta;
k) Era realizada a descrição de todo o ocorrido em atas de julgamento.

Desse modo, como ocorreu em Atenas, tem-se presentes características


essencialmente acusatórias, como a necessidade do acusador diferente do juiz para
dar início ao processo, a separação rigorosa das atividades de acusar e julgar, assim,
a investigação era encargo exclusivo da acusação. A publicidade também estava
presente no processo romano, haja vista que os debates eram públicos.
17

Interessante notar que, mesmo em um sistema acusatório, tem-se presente a tortura,


tanto em Atenas como em Roma.

A sociedade romana dava especial importância à defesa no processo (fruto da


quantidade alta de acusações falsas), por isso, nesse momento, uma das figuras mais
importantes do processo eram os defensores, que detinham maior prestigio público
do que aqueles que acusavam (WOLKMER, 2006).

Após esse período, tem-se o império, a partir desse momento a intervenção do


imperador (e seus prepostos) no processo aumentaram-se paulatinamente até que
um processo de base acusatória apenas existiu no âmbito de competência do Senado,
até o enfraquecimento dessa instituição, já desgastada pelos desmandos do
imperador e a volta das práticas inquisitoriais (ANDRADE, 2013).

Os problemas dessas duas manifestações históricas do acusatório eram os mesmos,


o principal era: a acusação a cargo de particulares, como vimos, qualquer pessoa do
povo podia acusar.

Esses ficavam suscetíveis as mais variadas formas de pressão externa, e, aqueles


que tinham maior influência não chegavam a ser acusados, além disso, o debate em
torno dos casos ficava restrito ao nível de conhecimento das partes e dos julgadores,
que eram populares, portanto, em sua maioria, leigos (WOLKMER, 2006).

Além disso, no começo do período imperial em roma, havia corrupção generalizada


das partes e dos atores do processo, como os delatores, chegou ao ponto de
determina-se, além da prisão do acusado como regra, a do próprio acusador
(TOURINHO FILHO, 2010).

Tourinho Filho (2010, p.120), sintetiza como a acusação e todas suas funções
inerentes na mão exclusivamente de particulares poderiam afetar a sociedade:

Há, contudo, inconveniente: poderia haver transações, às vezes até


vergonhosas, receio de vingança, e, assim, a defesa social ficaria
prejudicada. Deixar-se a iniciativa a qualquer do povo, as
consequências seriam as mesmas, se não piores Os acusados
poderosos, pondera Vitu, poderiam neutralizar os eventuais
acusadores, pelo temor que eles poderiam inspirar, e, além disso,
18

muitas infrações ficariam impunes, porque muita gente não desejaria


exercer as funções déscigréables et périlleuses d ’acciisateur
Ademais, ninguém se interessaria em reprimir as pequenas infrações,
e, nas mais graves, os acusadores sofreriam toda sorte de pressão
dos acusados .

Esse empobrecimento do debate, já que todo cidadão poderiam acusar e os jurados


eram populares, aproximava os julgamentos de discursos apelativos, trazia-se a
família, tentava-se não convencer os jurados do mérito em si, mas através de seu
emocional. Assim, os debates eram predominantemente retóricos e persuasivos,
contratavam-se pessoas especializadas com técnicas retoricas com fim de redigir
discursos emocionados (LOPES, 2011).

Além disso, o processo era utilizado como meio de buscar vantagens indevidas,
porquanto, os acusados poderiam ter parte das multas e penas aplicadas ao acusado
convertidas para si, tornando-se um verdadeiro mercado lucrativo e por isso “uma
praga em Atenas” (LOPES, 2011, p.25)

Sintetizando, os principais problemas do modelo acusatório manifestado tanto em


Atenas e em Roma no período republicano são:

a) Impunidade, decorrente de atribuir unicamente à populares o ônus acusatório;


b) Denunciações falsas em busca de vantagens ou como forma de opressão;
c) Predominância da oralidade combinada com a presença dos juízos populares
que empobreciam o debate.

Nos dois casos acima as práticas inquisitórias – sistema que será visto no proximo
capitulo – surgiram após ascensões autoritárias ao poder e sustentadas pela
impunidade gerada pelo sistema que fazia com que, aos poucos, os juízes se
aproximassem da função de acusar (LOPES JR., 2012).

Essas foram as manifestações mais próximas do que a doutrina ora ou outra


convenciona chamar de sistema acusatório puro, conceito controverso, porém, usado
para referir-se, quase sempre, ao direito romano na república, que como vimos,
promovia a separação completa das atividades de acusar e julgar (PRADO, 1999).
19

Após as mazelas do modelo processual inquisitivo – que será detalhado no próximo


tópico – somado aos ideais iluministas e posteriormente a difusão dos Estados de
Direito e das democracias, os sistemas de características predominantemente
acusatórias são os que marcam presença em grande parte dos países adeptos ao
império da lei e à representatividade popular (ANDRADE,2013).

Assim, absorvidas algumas lições históricas, a principal distinção entre o sistema


acusatório clássico e o contemporâneo situa-se na presença maior, neste último, do
acusador público, haja vista, os defeitos que recaem sob essa função quando
atribuída de forma dominante aos particulares e os direitos humanos positivados aos
ordenamentos jurídicos de cada estado.

Os autores brasileiros elencam várias características do sistema acusatório, porém,


há características que alguns autores omitem outros numeram como essenciais à
sistemática acusatória, desse modo, a fim de estabelecer os principais pilares do
sistema, foi realizada uma análise dos elementos que a doutrina trata como essencial.

Analisamos 10 autores brasileiros com a finalidade de identificar alguns aspectos do


processo tratados como decorrência da adoção do sistema acusatório, são eles: Aury
Lopes Jr (2012), Avena (2017), Badaró (2015), Brasileiro (2016), Nucci (2014), Pacceli
(2017), Rangel (2015), Távora e Alencar (2017) e Tourinho Filho (2010).

A única característica citada por todos os autores, com unanimidade, é a separação


das funções de acusar e julgar, assim, como pode ser visto no detalhamento histórico
do sistema, essa é a viga mestra do sistema acusatório, portanto, permitir que um
processo seja iniciado sem a presença de um acusador distinto do julgador
desmorona por completo qualquer base acusatória. Portanto, conforme Andrade
(2013, p.241) a:

Separação entre as funções de acusar e julgar se constitui na própria


base estrutural do que, exclusivamente no sistema acusatório,
entende-se como processo [...] será dessa separação entre as figuras
do acusador e julgador que se chegará à única forma de processo
judicial condenatório aceitável, na atualidade, concebido sob estrutura
de um actum trium personarum.
20

No entanto, apesar da doutrina majoritária definir essa separação como principal


característica acusatória, Aury Lopes Jr. (2012) defende que a mera separação de
funções não é o suficiente para que se tenha um sistema acusatório, ele reconhece a
importância da separação, mas destaca que, no atual estágio de desenvolvimento,
não parece razoável que um processo carregue consigo a etiqueta de um sistema
acusatório somente pelo fato de ter separado as funções de acusar e julgar, outros
aspectos devem ser avaliados em conjunto, a fim de que se possa definir o núcleo
desse sistema como o acusatório. Para o professor, deve-se combinar a separação
das funções de acusar e julgar e a imparcialidade do julgador, essa última como
“princípio supremo do processo penal”.

Decorrência lógica da separação de funções é a necessidade de que somente a


acusação apresentada por pessoa diferente daquela que julga deve ser o instrumento
apto a iniciar a persecução penal in judicio, daí o brocardo ne procedat iudex ex officio.

Portanto, não pode juiz, invadindo a função acusatória, provocar a jurisdição


instaurando um processo penal, Tourinho (2010, p.120) resume bem o raciocínio: “as
funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas, e,
logicamente, não é dado ao Juiz iniciar o processo”.

Outro princípio que, segundo 7 dos autores, excepcionados por Pacceli (2017) e
Brasileiro (2016), é atrelado à sistemática acusatória é o contraditório, que decorre da
própria estrutura dialética desse procedimento – o processo de 2 partes em confronto
e o estado-juiz como terceiro imparcial –, nesse sentido, deve o juiz ouvir ambas as
partes em qualquer ato do processo. Inclusive o juiz, antes de praticar determinados
atos, deve ouvir ambas as partes. Tourinho Filho (2010, p.72) de maneira clara traduz:

Tal princípio consubstancia-se na velha parêmia audiatur et altera pars


— a parte contrária deve ser ouvida. Assim, a defesa não pode sofrer
restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre
acusação e defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em
igualdade de condições, com os mesmos direitos, poderes e ônus, e,
acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão “superpartes”, para,
afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as
provas, “dar a cada um o que é seu”.
21

Outra faceta do contraditório é a capacidade de a aplicação desse postulado permitir


a construção histórica dos fatos pelo magistrado mediante a contribuição da acusação
e da defesa de modo que o juiz possa visualizar as alegações das partes de maneira
a pondera-las e a avaliar probabilidade de ocorrência de cada um dos fatos,
reconstruindo a história do processo (PACELLI, 2017).

Em sentido oposto, tem-se Mauro Fonseca Andrade (2013), o autor defende que o
contraditório não deve ser elevado à categoria de elemento fixo do sistema acusatório,
fundamenta sua posição nas excepcionalidades em que o princípio incorre, por
exemplo, quando o juiz aceita a denúncia sem ouvir a outra parte, quando defere
medidas cautelares inaudita et altera parte, o instituto da preclusão (réu que fica
impossibilitado de contrapor por perca de prazo) e até a retirada do réu da sala de
audiência são exceções ao contraditório admitidas, para Andrade então, a fim que um
princípio seja elemento essencial de um sistema ele deve ter: “presença ininterrupta
ao longo de todo processo” (ANDRADE, 2013, p.147-158).

Outro ponto levantado pelos autores é a questão do afastamento do juiz da gestão da


prova, esse, sem sombra de dúvidas é o que rende as discussões mais acirradas da
doutrina pátria e é levantado como ponto polêmico por todos os autores objetos desse
estudo, por isso, será tratado em tópico próprio.

O princípio da publicidade também é citado pela maioria dos autores como decorrente
do sistema acusatório.

O princípio tem fundamento no interesse público que envolve o processo penal, no


interesse da sociedade em ver sanado os conflitos sociais, além disso, diz-se que é
uma garantia de garantias, porquanto, instrumento que pode ser usado por todos a
fim de fiscalizar a atividade jurisdicional (TOURINHO FILHO, 2010).

É evidente que esse vínculo entre publicidade e sistema acusatório é fruto das
manifestações históricas dos modelos processuais, ora, o próprio surgimento dos
tribunais populares, que eram realizados em público, do direito ateniense e romano
remontam ao sistema acusatório, e ao contrário, no inquisitivo que atingiu seu auge
22

na idade média, os processos sigilosos predominaram, como veremos no próximo


capitulo. Rangel (2015, p.14), sintetizando o curso histórico, ensina:

Como característico do processo de tipo acusatório, a publicidade


campeava na índia, entre os atenienses, entre os romanos, à época
republicana, entre os germânicos, Era a publicidade popular.
Posteriormente, a publicidade foi sofrendo limitações e, na Idade
Média, por influência do Direito Processual Penal canônico, foi
totalmente abolida O processo passou a ser secreto. Só o julgador,
que também acusava, e o secretário que tinham conhecimento do que
se passava no processo, não se permitia sequer Defensor, sob a
alegação de que, se o acusado era inocente, não precisava de
Defensor, e, se culpado, era indigno de defesa. Muitas vezes o réu
desconhecia a existência de processo contra ele. Era o chamado
processo de tipo inquisitivo, antítese do processo acusatório. No
inquisitivo, tudo se fazia a portas fechadas, secretamente,
sigilosamente, em surdina, e ninguém, salvo o julgador e o secretário,
podia ter acesso aos autos.

Fazendo oposição a maioria doutrinária, Andrade (2013), de posição já citada,


fundamenta a desvinculação de publicidade do sistema acusatório na sua
excepcionalidade, de fato, há um consenso na doutrina que esse princípio deve ser
afastado em várias situações por colidir com direito fundamentais do acusado ou até
das vítimas, e por vezes por prejudicar o próprio processo, como a posição do autor é
a de que o princípio para ser elemento fixo deve estar presente durante todo
procedimento, isso já seria suficiente para desvincula-lo do acusatório.

Não obstante, Andrade (2013) reforça seu entendimento com amparo nas
manifestações históricas, já que, o sigilo esteve presente em épocas acusatórias,
assim como a publicidade se fez presente em determinados momentos da inquisição.

Outras características são citadas pelos autores, mas não detém maioria, como, por
exemplo: oralidade, sistema de livre convencimento de juiz na análise das provas,
coisa julgada, presunção de inocência, entre outras.

Portanto, são citados pela maioria da doutrina como elementos do sistema acusatório:

a) Separação das funções de acusar e julgar;


b) Apenas a acusação proposta por órgão diferente do julgador é instrumento apto
a dar início à ação penal (no procedat iudex ex officio).
23

c) Contraditório;
d) Afastamento do juiz da atividade probatória (sem considerar o grau de
afastamento);
e) Publicidade, admitindo amplas ressalvas.

Apesar da maioria da doutrina brasileira, elencar todos esses requisitos como


características essenciais do sistema em estudo, Mauro Fonseca Andrade (2013),
realizando uma análise histórica rica, e com foco no direito comparado, além de fazer
dura crítica à doutrina brasileira que, na visão do autor, elenca esses atributos sem o
devido lastro histórico e e sem metodologia, descontrói várias das características
citadas acima como pilares do sistema acusatório por considera-las nada mais que
componentes de tipos ideias (o processo penal ideal na visão de cada autor), e elege
apenas duas delas, como aquelas que se eliminadas, desclassificariam o princípio
acusatório, são elas:

a) Necessidade de um acusador diferente do juiz


b) Acusação como único meio de iniciar o processo

Para Andrade (2013), qualquer outro elemento associado ao sistema acusatório, não
passa de elemento variável e que poderia estar presente em qualquer dos outros
sistemas processuais penais.

Os elementos propostos por Andrade (2013), são citados por todos os autores
analisados e, portanto, parece-nos serem os elementos fundantes essenciais do
sistema acusatório.

Concluindo, é possível verificar consenso total entre os autores quanto aos elementos
apontados por Andrade (2013), sendo considerados verdadeitos pilares do sistema
acusatório.

3.2.2. Sistema Inquisitivo

O sistema inquisitório é o oposto do acusatório, esse foi implementado paulatinamente


durante os séculos XII ao XVI. Tem como característica o predomínio de um dos
atores processuais nas funções de investigar, acusar e julgar (LOPES JR., 2012).
24

É unanimidade entre os autores que a maior percursora do sistema inquisitivo foi a


igreja católica, por meio das Inquisições (daí o nome dado ao modelo) – considerada
verdadeiro marco histórico da ampla implementação do sistema –, fruto da dominação
social que detinha a igreja àquela época (WOLKMER, 2006).

Ressalte-se, porém, que em cada monarquia formada era adotada um regramento


especifico para as inquisições (ANDRADE, 2013), de modo que aqui, será listado as
características centrais e não se adentrará nas especificidades de cada região.

É importante, então, entendermos o contexto histórico em que se deu o nascimento


da inquisição católica romana.

No sistema feudal, diante da ruptura do império romano, a descentralização do poder,


os senhores feudais ditavam as regras do jogo, nos seus feudos detinham poder
ilimitado, judicial e político. Em cada feudo, vigorava o direito costumeiro (PALMA,
2011).

Nesse período, predominava o essencialmente o Direito Germânico, pela ausência de


um poder judicial organizado. Os litígios eram resolvidos entre os particulares, não
havia inquérito, nem um terceiro imparcial, a autoridade só intervinha a fim de
averiguar a regularidade do procedimento, o sistema de provas utilizava de métodos
de sorte ou azar, divinos, lutas corporais (os duelos) e habilidades físicas. Por vezes
era possível provar sua inocência reunindo certo número de testemunhas que juravam
ser o acusado inocente (WOLKMER, 2006).

Enfim, a justiça no Direito Feudal nada mais era que a “continuação da guerra
regulamentada e ritualizada” (FOUCAULT, 2012, p.66)

Quando os feudos mais militarizados começam a submeter outros a seu poder, por
meio da força ou de acordos – com apoio da já muito influente igreja católica, que
legitimava as submissões, por ser a instituição que gozava de maior prestígio naquela
época, de modo que exercia controle quase integral na sociedade e detinha o
monopólio cultural e ideológico (PEDROSA, 2010).
25

A igreja tornou-se, então, grande aliada nesse processo de centralização do poder


dando validade divina as dominações e ao surgimento dos monarcas.

Portanto, servia a igreja de base para a concentração do poder absoluto nas mãos
dos “enviados de Deus” – os monarcas -, e usava a estrutura militar do estado a fim
de proteger a igreja de seus “inimigos” – os hereges.

Desse modo, entre os séculos XII e XIII, o poder da igreja atingiu seu ponto máximo,
porquanto ela coroava os reis com sua benção e podia, ainda, excomumgá-los
(WOLKMER, 2006).

A heresia – definida como qualquer ato contrário as determinações eclesiásticas –


que, até então, era caso de excomungação, nesse momento, torna-se questão
política, que afetava a própria segurança nacional, causando a normatização de
diversos crimes contra a igreja. Por conseguinte, esses delitos passaram à alcunha
de “lesa-majestade” (WOLKMER, 2006, p.241).

Assim, em 1215 a Igreja proíbe a partição dos clérigos nos procedimentos que
apelavam a manifestação divina para o estabelecimento ou não da culpa, E passou a
adotar o novo sistema inquisitorial, que aumentou a eficiência no combate às heresias
e facilitou o julgamento de todos os crimes (WOLKMER,2006).

Em 1223 foi criado o Tribunal do Santo Ofício, a partir desse momento, o procedimento
inquisitorial foi consolidado por toda Europa Continental, considerado um período
extremamente brutal e desumano da história ocidental (PEDROSA,2010).

Cumpre-nos, agora, mostrar as principais características do processo inquisitório


adotado pela igreja.

A primeira e principal característica é a mudança da atuação do Juiz, antes mero


observador e garantidor da regularidade, agora passa a ser o ator principal, porquanto,
acusa e julga. No entanto, a figura do acusador não foi eliminada do processo, mas
sim relegada, havia a possiblidade da acusação privada, mas os próprios inquisidores
incentivavam a retirada do acusador do processo (ANDRADE, 2013).
26

Um dos principais motivos desse afastamento da acusação residia no fato de que os


acusadores, quando populares, estavam sujeitos a todo tipo de ameaça. Houve
períodos da Inquisição Medieval em que o acusador que não conseguisse provar os
fatos sofreria a pena de talião, a mesma que seria aplicada ao acusado
(ANDRADE,2013). Interessante observar aqui, que os defeitos do acusatório
fundamentavam a aglutinação de poderes na mão do estado na resoulução dos
crimes.

O início do processo poderia se dar de oficio, ou por qualquer tipo de boato ou rumores
públicos, conhecidos como notitia criminis. O medo imposto pelos inquisidores e pelo
monopólio ideológico da igreja, que espalhava a existência de seitas satânicas,
bruxarias e etc, fazia com que as pessoas denunciassem as heresias, havia nas
igrejas urnas para que se realizassem denúncias anônimas (PRADO,1999).

O acusado, não mais sujeito, e sim objeto do processo, era chamado a dar seu
testemunho, sob pena de coação, segundo Geraldo Prado (1999), a prisão durante o
processo era regra, já que, era forte a tese de que todo o acusado solto traria
obstáculos à investigação.

Apesar da ampla maioria da doutrina destacar que a prisão durante o processo era
regra, Mauro Fonseca Andrade (2013, p. 292) realizando uma análise dos Manuais
da Inquisição diz haver um erro nessa afirmação, haja vista que, houve períodos em
que era necessário provar dois requisitos: a grave suspeita de práticas de heresia e o
perigo de fuga do imputado. Requisitos muito próximos da atual conjuntura
processual.

O processo corria todo em segredo, o acusado, por vezes, não conhecia o conteúdo
da acusação e em decorrência disso, era escrito, portanto a oitiva de testemunhas e
do ofendido eram feitas às escuras (LOPES JR., 2012).

“Um suspeito podia ser preso a qualquer momento, sem saber o que
se queria dele. Nunca ficava conhecendo o nome de quem o acusou,
nem lhe era comunicado o motivo da prisão, nem o lugar em que havia
cometido o crime de que era acusado, nem com quem havia pecado”
(WOLKMER, 2006, p.250)
27

Predominava também o sistema de prova tarifada – atribuía-se valor aritmético a


determinados tipos de provas –, a título de exemplo a presença de duas testemunhas
já autorizava o decreto condenatório e a confissão era a rainha de todas as provas
(LOPES JR., 2012).

Ademais, alguns crimes, só admitiam provas obtidas pela confissão, exemplo dado
por WOLKMER (2006) dos crimes de bruxaria – invocação de tempestades, rituais
ocultos, pragas, satanismo -, que eram “crimes ocultos”, só poderiam ser descobertos,
via de regra, por meio da confissão. Diante desse protagonismo, buscava-se a
confissão a qualquer custo, daí decorre a utilização da tortura, autorizada oficialmente
como método inquisitório por Inocêncio IV, em 1252 (PEDROSA, 2010).

O uso da tortura tornou-se tão intenso, cruel, que quase todos confessavam os delitos,
o índice de condenação chegava a 95%, ou seja, diante da situação extremamente
aflituosa que eram submetidos os acusados, por vezes, confessavam simplesmente
para que aquele momento cessasse. Os métodos de tortura eram dos mais variados
a depender do delito sob investigação, Wolkmer (2006 p.250) ilustra alguns desses
métodos:

Eram várias as técnicas de tortura, que aprimoravam-se conforme o


seu emprego e variavam conforme o crime a desvendar. No caso do
crime de bruxaria, por acreditar que a bruxa, através de um pacto
diabólico, adquiria de Satã o poder de suportar a dor, os juízes
utilizavam a tortura da insônia forçada, em que o suspeito era mantido
acordado por quarenta horas ou mais, até que confessasse o crime.
Outros métodos podem ser citados, como o de amarrar o suspeito a
uma mesa cheia de espinhos, forçá-lo a ingerir grandes volumes de
água, arrancar-lhe os olhos e unhas, cortar-lhe as orelhas, entupir
suas narinas com lodo e água, queimar aguardente ou enxofre sobre
o seu corpo ou ainda esmagar seus órgãos genitais.

Foucault (2012) ilustra, outro motivo, além da dominação religiosa, que impulsionou a
adoção do sistema inquisitivo pelos soberanos: com o surgimento dos monarcas, e a
realidade de que a dominação era exercida com base na força, na concentração de
armas nas mãos do soberano, tem-se a primeira ideia de infração (o dano que antes
ofendia apenas um indivíduo passa, também, a ofender o próprio estado, o monarca
e a soberania).
28

Soma-se isso a necessidade dos monarcas de centralizar o poder, retirando dos


senhores feudais essa proximidade com o processo de modo a unificar o poder
jurisdicional nas mãos do monarca. (ANDRADE, 2013)

Nesse processo, aos poucos, o estado avoca para si os procedimentos judiciais,


surgindo a ideia de que o criminoso deveria reparar também o dano causado ao
soberano. Era consolidado, então, o interesse do Estado na resolução de litígios,
sabendo que àquela época, como vimos, a resolução dos litígios era resolvida pela
luta individual entre as partes, não parecia mais razoável que os procuradores
(representantes do monarca) se arriscassem a fim de provar a culpa do acusado por
meio do sistema de prova da época. Daí a necessidade de provar a verdade por meio
da inquisição e a busca da verdade dos fatos (FOUCAULT, 2012).

Nesse contexto, Nucci (2014, p.75) afirma que o processo de características


inquisitórias possuiu a devida importância no contexto do sistema feudal, haja vista
que com o envio de inquisidores aos feudos, a punição alcançava os mais poderosos
no caso de crimes mais graves e abusivos, servindo como instrumento que garantia,
de certo modo, a isonomia, ‘’protegendo’' as classes mais baixas:

[...] contra ricos e poderosos, o processo penal jamais poderia lastrear-


se, à época, em plena igualdade. Eis o motivo pelo qual o juiz
inquisidor consegue amealhar provas, sem que as testemunhas se
furtassem aos depoimentos, com temor de represálias, fazendo-o de
maneira sigilosa, até que ficasse pronta a instrução. Assim, vítimas
pobres poderiam ver a justiça ser realizada mesmo quando seus
algozes fossem nobres ou afortunados.

Além disso, a inquisição, apesar de vista com grandes reservas devido as atrocidades
cometidas, foi importante marco para dar fim a irracionalidade do sistema anterior que
determinava culpa com métodos de prova descolados da realidade, como ensina
Geraldo Prado (1999, p.89) :

Embora hoje a Inquisição seja vista com todas as reservas, cumpre


remarcar que na sua época representou a luz da racionalidade,
confrontada com a irracionalidade das ordálias ou juízos de Deus, que
substituiu, enquanto sistema de perseguição da verdade, pela busca
da reconstituição histórica, procurando, tanto quanto possível, reduzir
privilégios que frutificavam na justiça feudal, fundada quase
exclusivamente na força e no poder de opressão dos senhores feudais
29

sobre os demais, que a rigor se sujeitavam a medidas punitivas


discricionárias, impostas pelos mencionados senhores feudais.

Por conseguinte, a inquisição marcou a substituição desse sistema de provas por


aquele que visa a busca da verdade dos fatos e não mais em manifestações de força,
seja físicas, divinas e místicas.

Todavia, com o advento dos ideais iluministas e racionalistas, o monopólio religioso,


cultural e cientifico da Igreja Católica, a relação intima entre igreja e estado, as práticas
inquisitórias, começam a sofrer várias críticas, passando por um momento de crise
profunda (LOPES JR., 2012).

Com avanço das ciências humanas, vários foram os trabalhos científicos que
questionaram os saberes da igreja, a própria existência de Deus passa a ser objeto
de questionamento. Com efeito, a jurisprudência e a atividade legislativa francesa
começaram a refletir a mudança de ares. A medicina já questionava a feitiçaria
atribuindo algumas “evidências” a doenças. Nos tribunais, passava-se a dificultar o
processamento dos crimes de bruxaria, restringiam-se as denúncias anônimas como
forma de iniciar o processo. Foi, em 1624, criado uma espécie de remessa necessária
aos tribunais superiores com relação aos crimes hereges e, em 1682, decreto real não
elencava bruxaria como crime. Iniciado, portanto, o processo de separação entre
crime e pecado (PEDROSA, 2010).

Seguindo no mesmo caminho, nascia o iluminismo penal se opondo à prática


inquisitorial, pregava um direito penal humanista, campo fértil à defesa das garantias
individuais frente ao Estado, momento da história de extrema importância ao processo
de humanização das penas e do processo, concretizava-se verdadeira ruptura com
as práticas da igreja. Importantes postulados básicos do direito penal foram
germinados como a reserva legal, pessoalidade, proporcionalidade das penal,
igualdade perante a lei (WOLKMER, 2006).

A conclusão de Wolkmer (2006, p. 275) sobre a contribuição do Século das Luzes


para o fim da inquisição é esclarecedora:

Esse movimento representou uma mudança nuclear em matéria de


legitimidade dos sistemas jurídicos. Enquanto a Inquisição era
30

justificada a partir de uma teoria jusnaturalista de ênfase teológica, o


Iluminismo utilizaria uma justificativa também jusnaturalista, só que de
cunho humanitário, para exercer seu papel revolucionário. Desprezou-
se o direito natural revelado em prol de um direito natural conquistado,
criado pelas evoluções do intelecto humano pela razão.

Concluindo, são, pois, elementos essenciais do sistema inquisitivo, para Aury Lopes
Junior (2012, p.38):

a) Aglutinação de funções na mão do juiz – acusar e julgar;


b) O juiz pode atuar de ofício;
c) Atribuição de poderes instrutórios ao julgador.

Para Aury Lopes (2012) o nucleo fundante do sistema inquisitório, na atualidade, é a


atribuição de poderes instrutórios ao juiz, se isso ocorrer, de nada adianta a separação
inicial de funções, haja vista que a busca por material probatório é atividadde exclusiva
das partes.

Para, Mauro Fonseca de Andrade (2013), utilizando de método mais fiel à história dos
sistemas os elementos fundantes do sistema acusatório são:

a) Prescindibilidade de acusação e,
b) O processo pode iniciar-se de oficio.

Em relação as outras características, tais como o segredo, tortura, prova tarifada,


abuso das prisões cautelares, essas, apesar de presentes na inquisição, não fazem
parte de seu núcleo caracterizador como pilares do processo, sendo, também,
adotado em outros sistemas processuais históricos, portanto, a título de exemplo, a
presença da prova tarifada em um processo com os princípios acusatórios, não torna
o processo inquisitivo (ANDRADE, 2013).

3.2.3. Sistema Misto

O sistema misto é o modelo de processo penal em que a doutrina encontra a maior


dificuldade em entrar em um mínimo de consenso quanto a sua própria existência, ou
quando o admitem, tem dificuldade de diferencia-lo de maneira clara dos modelos
vistos nos tópicos anteriores.
31

A própria nomenclatura é tema controverso, podemos encontrar referencias como


acusatório formal, inquisitivo-garantista, napoleônico ou francês a depender da
corrente ideológica do autor (ANDRADE,2013).

Não obstante essa obstrução conceitual, há uma unidade entre os autores na eleição
do processo penal que “representa” o sistema misto, o processo penal adotado na
França em 1808, instituído pelo Code d’Instruction Criminelle, que foi fruto dos defeitos
apresentados pelo acusatório e as atrocidades resultantes do inquisitivo (RANGEL,
2015).

Naquela época, pós-revolução francesa, tentou-se reanimar o sistema acusatório, no


entanto, já era conhecido seus problemas, quando adotado de forma pura, surgiu
então a cisão do processo em duas fases, uma de natureza predominante inquisitiva
e outra de acusatória (ANDRADE, 2013).

Na primeira fase, poderia ser iniciada ex officio, era realizada uma colheita de provas
sem contraditório e ampla defesa, sigilosa, escrita, e dirigida por um juiz de instrução,
predominava as características de um processo inquisitivo - chamada de juizado de
instrução em alguns países. Finalizada a primeira fase, a segunda apenas iniciava-se
com a propositura da acusação proposta por alguém diferente do julgador, a partir daí
havia o processo dialético, contraditório com ampla defesa (LIMA, 2016).

Vê-se, evidentemente, que tal processo mistura as características principais de dois


sistemas processuais, por isso, chamado de misto.

Para Aury Lopes Jr. (2012) o processo Francês apenas dividiu o as funções
investigativas e a fase judicial, no mais, manteve o núcleo inquisitório do sistema
(como vimos, para o autor, o processo em que o juiz que tem poder buscar e produzir
prova ex officio é fundamentalmente inquisitivo) o que por certo macula a “suposta
fase acusatória”. Ademais refere-se à classificação de misto como uma falácia, que
mascara seu real caráter inquisitivo, e ainda explica:

A fraude reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do


inquérito, sendo trazida integralmente para dentro do processo e, ao
final, basta o belo discurso do julgador para imunizar a decisão. Esse
discurso vem mascarado com as mais variadas formulas, do estilo: a
32

prova do inquérito é corroborada pela prova judicializada, cotejando a


prova policial com a judicializada; e assim todo um exercício
imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma
condenação, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no
segredo da inquisição. O processo acaba por converter-se em uma
mera repetição da encenação da primeira fase (LOPES JR., 2012)

Com o posicionamento parecido encontramos Nucci (2014), o autor ensina que quase
todos os sistemas atuais são mistos, é que não há manifestações dos sistemas
clássicos na sua forma pura. O que deve ser avaliado é a predominância de cada
princípio – acusatório ou inquisitivo. No mesmo sentido, Gustavo Badaró (2015, p.87):

No processo penal, historicamente, existiram dois sistemas ou


modelos: acusatório e inquisitório. Houve, também, a tentativa de
fundir ambos os sistemas, criando um “sistema misto” [...]. Atualmente
não existem sistemas acusatórios ou inquisitórios “puros”. Ora o
processo é prevalentemente acusatório, ora apresenta maiores
características inquisitoriais

Dos autores que reconhecem a existência do sistema misto, quase não listam
características essenciais, mas é possível perceber certos aspectos podem nos ajudar
a diferenciar esse sistema – quando houver referência especifica a ele - dos outros,
por exemplo:

a) A divisão em duas fases, uma predominante inquisitória e a outra acusatória -


princípio básico do sistema.
b) O juiz como presidente da fase inquisitorial buscando provas ex officio, nesse
sentido Avena (2017) e Rangel (2015).
c) O uso da prova obtida da fase inquisitória como elemento probatório na
segunda fase, nesse sentido Nucci (2014), Grinover (2002), Lopes Jr (2012),
Rangel (2015).

Conforme realizado nos tópicos anteriores serão elencados os elementos fixos do


sistema misto eleitos por Mauro Fonseca Andrade (2013), em uma análise histórica
rica e baseada, também, no direito comparado.

Para Andrade (2013) grande diferencial desse sistema é que a fase investigativa dá
início ao processo jurisdicional, por isso, o processo inicia-se com o juizado de
instrução, sendo a segunda fase, apenas continuação. Ademais ao autor, ensina que
33

se caracterizarmos a fase investigativa como administrativa, teríamos então a


desclassificação do sistema misto, para o acusatório, haja vista que a parte
jurisdicional só teria seu início com apresentação da acusação por um órgão distinto
do julgador. Portanto, característica essencial do sistema misto é o exercício da
jurisdição manifestado na fase de investigação preliminar do processo.

Para o autor, os elementos fixos do sistema misto é fruto da combinação dos


elementos essenciais apontados pelo autor para o acusatório e o inquisitivo, desse
modo, para que possa ser considerado misto, o processo, leia-se processo
jurisdicional, deve ser dividido em duas fases, sendo que:

a) A primeira de caráter inquisitivo, adota o elemento fixo desse sistema: O


processo pode ser iniciado de oficio, por notitia criminis ou delação secreta; (a
acusação aqui é prescindível)
b) A segunda fase de caráter acusatório, adota, pois, elemento fixo desse:
necessidade da presença de um acusador distinto do juiz.

Basicamente, constata-se, que o ponto nevrálgico do sistema misto é a presença do


juiz-investigador, e a forma como se dará o início de cada fase do processo, usando
a metodologia inquisitiva e a acusatória, respectivamente.

4. O SISTEMA ADOTADO PELA CONSTITUIÇÃO

Tendo, pois, traçadas as características básicas de cada sistema processual penal, e


sabendo que a constituição é o pilar central do ordenamento jurídico, devemos definir
a sistemática adotada pela Constituição Federal.

Todavia, o constituinte não facilitou essa tarefa, porquanto, não fez sua escolha de
maneira expressa, como fez o de Portugal, que explicitamente adota o sistema
acusatório:

Art. 32, 5: O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a


audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar
subordinados ao princípio do contraditório (PORTUGAL, 1976).
34

Desse modo, cabe aos juristas extraírem do texto constitucional os elementos que
indiquem qual sistema processual penal eleito.

Sob o enfoque estritamente constitucional, não há dúvida em afirmar que a ampla


maioria doutrinária reconhece como sistema desejado pela CF o acusatório, nesse
sentido: Brasileiro (LIMA, 2016), Rangel (2015), Avena (2017), Pacelli (2017),,
Tourinho Filho (2010), Tavorá e Alencar (2017), Aury Lopes (2012) e Prado (1999).

Há diversos fundamentos apontado pelos autores que indicam a sistemática


acusatória no bojo na CF, não há um consenso sobre esses fundamentos, variando
bastante a depender de como o autor define o que, na sua visão, é o sistema
acusatório.

O dispositivo mais citado para dar base aos autores é o art. 129 no seu inciso I:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

I - Promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;


(BRASIL, 1988)

Como vimos, um dos elementos mais característicos do sistema acusatório é a


separação das funções de acusar e julgar, o dispositivo em analise traz ao processo
penal essa separação, já que atribui à órgão autônomo e diferente daquele que irá
julgar a tarefa de iniciar a persecução penal in judicio, de modo privativo, ou seja, no
Brasil, nos crimes de ação penal pública, o monopólio constitucional da ação penal
pública é do Ministério Público (MORAES, 2018).

Esse inciso, em tese, perfaz duas características apontadas pelos autores, vistas no
capitulo do sistema acusatório, a separação inicial de funções e a de que o juiz não
pode iniciar o processo de oficio, necessitando de uma acusação para tal.

Posteriormente, os autores vinculam a adoção do sistema acusatório aos direitos


garantidos na constituição, notadamente os mais referenciados são aqueles
apontados, no capítulo anterior, como os mais citados elementos do sistema
acusatório, são eles:
35

a) O princípio do contraditório e ampla defesa, estampados no artigo 5º, inciso LV:


aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral
são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes (BRASIL, 1988);

b) O princípio da publicidade também encontra guarida constitucional no inciso


LX do mesmo artigo: a lei só poderá restringir a publicidade dos atos
processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem
(BRASIL, 1988).

Ademais, são atrelados à adoção do sistema acusatório vários outros dispositivos,


porém de maneira isolada, Avena (2017, p.42) por exemplo justifica a eleição pelo
sistema acusatório, além dos princípios do contraditório e ampla defesa, nos seguintes
dispositivos:

Obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX),


isonomia processual (art. 5.º, I), juiz natural (art. 5.º, XXXVII e LIII),
devido processo legal (art. 5.º, LIV), presunção de inocência (art. 5.º,
LVII).

Do mesmo modo Capez (2016) refere-se aos mesmos dispositivos supracitados,


porém, complementando com os da tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV) e garantia do
acesso à justiça (art. 5º, LXXIV).

Outro argumento que é usado pela doutrina é a vinculação imperativa entre um regime
democrático e o sistema acusatório, essa posição tem como base fundante a ideia já
exposta no Capitulo 1, que coloca o processo penal como o produto da distribuição
dos poderes em determinado ordenamento jurídico (BADARÓ, 2015), desse modo,
sendo a democracia um regime que deve atender à vontade popular, garantidor de
direitos individuais ao cidadão frente ao Estado, assegurando, principalmente, as
liberdades públicas, os autores concluem ser a sistemática acusatória a mais
adequada, Geraldo Prado (1999, p.363), expõem de forma clara essa linha de
raciocínio:

A democracia no processo penal projeta a tutela dos direitos


fundamentais e da disciplina constitucional da divisão de poderes em
seu interior e resulta na implementação do princípio da divisão de
36

funções no próprio processo, atribuindo-se a diferentes sujeitos as


atividades principais de acusar, defender e julgar.

Essa corrente ganha força também ante a ideia de que o sistema inquisitivo é sempre
posto em prática por governos tirânicos, totalitários e é considerado o sistema
diametralmente oposto ao acusatório, assim, é fácil concluir que sistemas de governos
democráticos tendem a estabelecer o processo penal de forma igualmente contrária,
logo, o acusatório (LOPES JR., 2012).

Cumpre destacar que essa pulverização de elementos é fruto da imprecisão cientifica


da doutrina pátria em definir os sistemas processuais penais, de modo que,
analisando os autores é impossível chegar a um conceito bem definido de cada
sistema – como foi possível constatar nos capítulos anteriores. A questão é posta à
reflexão por Andrade (2013), ao questionar a inclusão, por exemplo, da garantia do
acesso à justiça, a mera supressão da garantia do acesso à justiça tem condão de
desclassificar o sistema acusatório de determinado ordenamento jurídico
considerando as suas características vistas no capitulo próprio? Entendendo que essa
vinculação do acusatório com as garantias processuais é produto – além da questão
dos tipos ideias já citada – da ideia errônea de que o sistema inquisitivo é aquele
processo demoníaco perpetrado pela igreja, em que o acusado era mero objeto do
processo, e que, assim, qualquer processo que proteja o sujeito passivo em certo grau
tem linhas acusatórias.

Portanto, é inegável que majoritariamente a doutrina reconhece que o processo penal


desejado pelo legislador constituinte é aquele que reflete a sistemática acusatória,
ressalte-se, contudo, que tratamos aqui do modelo que a Constituição define como
prevalente, e não o efetivamente implementado pela legislação infraconstitucional.

5. (IN) COMPATIBILIDADE DA ATUAÇÃO DO JUIZ EX OFFICIO NA


PRODUÇÃO DE PROVA

Definido que a Constituição desenha um processo acusatório, conforme a ampla


maioria da doutrina, um debate constante no seio acadêmico é se o Código de
Processo Penal pátrio amolda-se ao modelo constitucional. Essa discussão é densa
e envolve uma série de dispositivos e institutos jurídicos, por isso, nesse trabalho
37

trataremos apenas da questão em torno da produção probatória e a atuação do juiz


sem a provocação das partes.

Assim o objeto de estudo será o que os autores costumeiramente se referem como a


titularidade gestão da prova ou juiz com poderes instrutórios.

Ora, se o sistema acusatório tem como principal característica a separação de funções


dentro do processo, é decorrência lógica que o estado-juiz deve ser um terceiro
imparcial alheio ao interesse das partes e que cada parte deve se ater a sua devida
atividade, nesse contexto, poderia, então, o juiz, sob determinados argumentos,
imiscuir-se na atividade das partes colacionando material probatório de oficio à
investigação ou ao processo?

A discussão ganha relevância no cenário nacional quando confrontamos o Código de


Processo Penal e a Carta Magna, porquanto, há dispositivos do Código de Processo
Penal que permitem ao juiz ter algum poder de interferir de oficio na atividade das
partes, há aqueles que permite a atuação ex officio do juiz antes mesmo de iniciada a
ação penal como artigo 156 do CPP e seu inciso I:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém,


facultado ao juiz de ofício:

I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção


antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes,
observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da
medida;

Art. 13. Incumbirá ainda à autoridade policial:

II - realizar as diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério


Público; (BRASIL, 1941)

E vários outros que abrem espaço para juiz, dessa vez, na fase processual, trazer ao
processo elementos de prova sem a provocação das partes, por exemplo:

Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém,


facultado ao juiz de ofício:
38

II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença,


a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

Art. 196. A todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de


ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes

Art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras


testemunhas, além das indicadas pelas partes.

Art. 234. Se o juiz tiver notícia da existência de documento relativo a


ponto relevante da acusação ou da defesa, providenciará,
independentemente de requerimento de qualquer das partes, para
sua juntada aos autos, se possível.

Art. 242. A busca poderá ser determinada de ofício ou a


requerimento de qualquer das partes (BRASIL, 1941).

Ante o exposto, a pergunta que se buscará a resposta na doutrina é se esses


dispositivos – que permitem o juiz, ex officio, buscar ou instruir o processo com
material probatório – são compatíveis com o sistema acusatório.

A primeira posição a ser tratada é aquela que defende um total afastamento do juiz
da atividade probatória, representada, principalmente por Aury Lopes Junior (2012), o
autor defende que a gestão da prova é o núcleo do sistema acusatório, desse modo,
não basta tão somente que determinado ordenamento jurídico separe as funções de
acusar e julgar, deve obrigatoriamente afastar por completo o juiz da atividade das
partes, assim, deve-se ter, nessa sistemática, um “juiz-espectador”, que caminha
longe da atividade das partes durante todo o processo.

Ademais, além de considerar esse afastamento essencial ao sistema acusatório,


advoga que a interferência do juiz na atividade probatória da sustentação a um
sistema de base inquisitória, portanto, conclui que – pelos dispositivos supracitados –
o nosso Código de Processo Penal nada mais faz que instituir um sistema processual
penal inquisitivo, que cria a figura do juiz-ator e jamais seria recepcionado pela
Constituição.

O raciocínio desenhado pelo professor para concluir ser o juiz-espectador um


elemento fundante do sistema acusatório deve ser bem compreendido, assim, ele
entende que a divisão de funções de acusar e julgar é importante e que decorrência
39

lógica dessa separação é as atividades das partes bem definida (estrutura dialética) e
uma juiz distante delas e, mais importante, a imparcialidade do estado-juiz (ao qual se
refere com princípio supremo do processo). No entanto, a partir do momento em que
um magistrado resolve de oficio buscar elementos para formação de seu juízo, tem-
se, além da invasão de funções originariamente das partes, a quebra da
imparcialidade, agora, o julgador escolheu uma tese e buscará elementos para
apenas justificar o pré-julgamento já realizado mentalmente por ele, desse modo, cria-
se um “quadro paranoico” no qual o “juiz primeiro decide e depois vai atrás dos fatos
que justificam sua decisão” (LOPES JR., 2012, p. 138)

Por conseguinte, Aury Lopes (2012) defende um processo privalístico, no qual o juiz
fica limitado a decidir com arcabouço probatório juntado exclusivamente pelas partes,
em que o interesse das partes sobrepõe o interesse público (outra expressão bastante
criticada pelo autor).

Como foi visto, o monopólio das partes na produção de prova é o grande problema
desse modelo proposto pelo autor, ele inclusive o reconhece, e aponta como possíveis
meios de tentar atenuar o problema o aumento do grau de tecnicidade das partes, e
também, o oferecimento de defesa bem preparada aos cidadãos que não tem
condições de pagar os elevados honorários advocatícios – tão bem organizado quanto
o órgão público acusador, o Ministério Público –, entretanto, entende tratar-se de mal
necessário ao processo democrático sob argumento de que não há sistemas perfeitos,
e que as tentativas de corrigir o vício desaguaram em sistemas inquisitivos.

Portanto, o autor defende o afastamento completo do juiz da atividade das partes, e


conclui que:

Sempre que se atribuem poderes instrutórios ao juiz, destrói-se a


estrutura dialética do processo, o contraditório, funda-se um sistema
inquisitório e sepulta-se de vez qualquer esperança de imparcialidade.
É um imenso prejuízo gerado pelos diversos “pré-juízos” que o
julgador faz (LOPES JR., 2012, p. 139)

A posição de Paulo Rangel (2015) milita no mesmo sentido, o autor também entende
que a atuação ex officio do juiz na busca de material probatório jamais pode ocorrer
na fase de persecução penal pré-processual – a investigação preliminar – haja vista
40

não está cessada ainda a inercia judicial, de tal modo, essa atuação quebra a
imparcialidade do magistrado e, por isso, é contrária à sistemática acusatória.
Portanto, o autor trata com repúdio a atuação do juiz na fase pré-processual.

Rangel (2015, p.11) expõe bem sua posição, na mesma linha de raciocínio do pré-
julgamento realizado pelo juiz-ator de Aury Lopes Jr (2012), quando comenta sobre o
art. 156 do Código de Processo Penal:

O art. 156 [...] incidiu no mesmo erro anterior: colocando o juiz no papel
de investigador, descendo do seu lugar supra partes (distante dos
interesses das partes), para procurar aquilo que acha que é a verdade,
ou que ele quer que seja a verdade. Trata-se do juiz inquisidor. Do juiz
que, ao interrogar, já sabe o que vai fazer: condenar ou absolver.

Em relação à atuação ex officio do juiz no curso do processo, segundo o autor, pode


ocorrer desde de que seja para beneficiar ao réu, ou seja, na busca de provas para
inocenta-lo, fundamentada no princípio favor rei. Não podendo agir de modo algum no
sentido de buscar provas condenatórias, situação em que ficará adstrito às provas
carreadas aos autos exclusivamente pelas partes.

Mesmo defendendo a possibilidade da atuação do juiz a favor do réu, em determinado


trecho de sua obra, mais a frente, vê com ressalvas qualquer forma de agir de oficio
do magistrado em busca de provas na seara penal:

A crença de que o juiz é um ser preocupado com os direitos do réu e,


por isso, estaria praticando atos de ofício é falsa. Quando o juiz pratica
atos de ofício em busca da prova, é para condenar, até porque
qualquer neófito sabe que se não há provas ou se há dúvida, o juiz
tem que decidir em favor do réu. Todavia, em nome de um princípio
(impulso oficial), o juiz sai em busca daquilo que irá justificar o que ele
já decidiu: a condenação (RANGEL, 2015, p. 511)

Assim, para Rangel (2015), apesar do processo penal brasileiro ser


predominantemente acusatório, há resquícios inquisitivos, externados pelos
dispositivos supracitados, que deveriam ser rejeitados pelo filtro constitucional.

De outro modo, permitindo um atuar bem limitado ao juiz penal, tem-se os


ensinamentos de Eugenio Paccelli (2017), que rejeita a figura do juiz completamente
inerte na fase processual, mas condena a chamada busca da verdade real (aquela
41

que de fato aconteceu, como se o processo pudesse reconstruir completamente com


fidelidade o fato histórico) como fundamento de qualquer atividade probatória do juiz,
haja vista que o princípio serviu de respaldo de perseguições e abusos por parte do
estado e apregoa que :
Talvez o mal maior causado pelo citado princípio da verdade real tenha
sido a disseminação de uma cultura inquisitiva, que determinou por
atingir praticamente todos os órgãos estatais responsáveis pela
persecução penal. Com efeito, a crença inabalável segundo a qual a
verdade estava efetivamente ao alcance do Estado foi a responsável
pela implantação da ideia acerca da necessidade inadiável de sua
perseguição, como meta principal do processo penal (PACELLI, 2017,
p. 177)

Desse modo, para Eugenio Paccelii (2017), no processo penal, a convicção do


magistrado restringe-se à verdade dos autos (judicial ou processual). Esse imperativo,
segundo o autor, é fruto do sistema adotado pela Constituição, assim sendo, não se
admite mais que o juiz atue de forma ativa, ou até mesmo, subsdiaria.

Por conseguinte, advoga a cristalina inconstitucionalidade do inciso I do art. 156 do


Código de Processo Penal, haja vista que o judiciário deve atuar, no bojo no inquérito
policial, apenas nas chamadas reservas de jurisdição com a finalidade de tutela das
liberdades públicas, portanto, não deve o juiz atuar protegendo a investigação quando
não houve ainda a provocação jurisdicional, que só ocorre com o oferecimento da
acusação.

Em relação ao inciso II, do mesmo artigo, que permite ao juiz “a realização de


diligencias para dirimir dúvida sobre ponto relevante”, agora já no curso da instrução
processual, ensina que o uso do dispositivo deve se ater à literalidade da redação e à
leitura constitucional, assim, o juiz nunca deve buscar novas provas, mas apenas
sanar dúvidas acerca das já trazidas aos autos pelas partes sob pena de violar o
sistema acusatório, conforme ensina o autor, acerca da dúvida referida pelo
dispositivo:

No campo probatório, ela ocorreria a partir de possíveis conclusões


diversas acerca do material probatório então produzido, e não sobre
o não produzido. Assim, é de se admitir a dúvida do juiz apenas sobre
prova produzida, e não sobre a insuficiência ou a ausência da
atividade persecutória (PACELLI, 2017, p. 180)
42

Por fim trataremos daqueles que enxergam a compatibilidade do agir de oficio do juiz
na atividade probatória sem afetar o núcleo do sistema acusatório são eles: Badaró
(2015), Távora e Alencar (2017), Ada Pellegrini Grinover (2002) e Mauro Fonseca de
Andrade (2013).

Para Gustavo Henrique Badaró (2015), devemos desvencilhar a proibição de atuação


do juiz da instrução probatória de elemento essencial ao sistema acusatório, porque
os poderes instrutórios do juiz não representam um perigo à sua imparcialidade, mas
devem ser exercidos com cautela.

Nesse ponto, o professor divide atividade do juízo em duas: a de buscar provas


(atividade eminentemente investigativa, conhecer algo novo) e a introduzi-las no
processo quando já as conhece (meio de prova).

Fica implícito que Badaró (2015) rejeita o agir ex officio do juiz na fase pré-processual,
porque, nesse caso, estará buscando provas.

Quanto à fase instrutória, o juiz não deve se tornar um investigador, mas pode trazer
aos autos fonte de provas que tomou conhecimento durante as audiências por
exemplo, fazendo-o assim, preserva sua imparcialidade.

Assim, tomando conhecimento, por meio das audiências, de uma pessoa que
presenciou o fato, pode o magistrado trazer essa pessoa para o processo pelo
testemunho (meio de prova), mantendo intacta sua imparcialidade, haja vista que ”o
resultado dessa produção de prova pode ser em sentido negativo ou positivo quanto
à ocorrência do fato” (BADARÓ, 2015, p. 90).

Conclui, admitindo que o atuar de oficio do juiz nesse escopo é historicamente ligado
à inquisição, porém, a atividade ex officio em caráter subsidiário ou suplementar não
prejudica o moderno processo acusatório.

Távora e Alencar (2017) colocam a questão da gestão da prova nas mãos do juiz
orbitando sempre um princípio: a busca da verdade real (principio criticado
fervorosamente por Paccelli (2017) e Aury Lopes Jr (2012), como vimos). No processo
43

penal como os bens em jogo são indisponíveis, deve-se ao máximo buscar a verdade
dos fatos, aquilo que no mundo fático ocorreu.

Todavia, por considerarem essa verdade algo, por vezes, inalcançável no seio
processual, os autores propõem uma aproximação da verdade dos autos (verdade
processual, aquela compreendida com a análise das provas colacionadas no
processo) com a busca da verdade material limitada pelo direito posto.

[...] a construção da verdade deve servir como expressão conjuntural


do manancial probatório trazido aos autos que permite dentro do
possível, a formatação do convencimento do julgador. Não se deve
admitir que a verdade processual seja distanciada do conceito de
verdade material, ou que esta não permeasse o processo (TAVORA e
ALENCAR, 2017, p. 653).

Portanto, a busca da verdade real autorizaria o juiz atuar de forma supletiva às partes,
como forma de “consolidar a dinâmica de seu convencimento” (TAVORA e ALENCAR,
2017, p. 653) sem cruzar os limites da legalidade, por conseguinte, nunca substituir
por completo a atuação dos polos processuais, construindo sozinho o arcabouço
probatório, se o fizer, desconstrói sua imparcialidade e vai de encontro ao sistema
acusatório, e conclui que:
O tênue limite entre a busca da verdade e a fronteira de resguardo ao
sistema acusatório e a repartição de poderes deve ser reavivado, a fim
de evitar arbítrios e impedir que a prova produzida pelo juiz que perdeu
os limites da fronteira, venha transmudar-se em prova ilícita (TAVORA
e ALENCAR, 2017, p. 654)

Ou seja, o juiz pode atuar, mas de forma suplementar as partes, sanando eventuais
deficiências probatórias a fim de perseguir a verdade material dentro dos ditames
legais.

Para Ada Pellegrini Grinover (2002) e Mauro Fonseca de Andrade (2013), devemos
ter em mente que o núcleo do sistema acusatório é a separações de funções, mas no
sentido de que se deve ter um órgão diferente do julgador para acusar e o processo
apenas se iniciar com o oferecimento de uma acusação proposta por este. Isso que
funda o acusatório.
44

Há, na visão desses autores, dois modelos de gestão de prova dentro do sistema
acusatório o adversarial system e o inquisitorial system (que apesar do nome não tem
relação com sistema inquisitivo).

O primeiro seria o modelo ortodoxo de processo penal, aquele defendido pelas


correntes nos primeiros parágrafos deste capitulo, a prova e a marcha processual
ficam a total encargo, exclusivamente, das partes, é o modelo estadunidense e inglês.
Nesse modelo, o interesse predominante é o privado, já que o juiz fica adstrito aos
que as partes produzem (ANDRADE, 2013).

O segundo, ante ao interesse publicista arreigado ao processo, o juiz deixa de ser


espectador, para ser ator, sua atividade é realizada com a finalidade de buscar o
máximo possível a verdade e maximizar seu convencimento, se insuficiente a atuação
da acusação e defesa (ANDRADE, 2013).

Para Grinover (2002), um processo acusatório calcado no adversarial system é


insustentável em um estado social, como o Brasil. Porque nesses o processo tem uma
função social com “fins que se confundem com o objetivo do próprio estado”
(GRINOVER, 2002, p. 18). O cumprimento da lei penal interessa toda sociedade, a
fim de manter a integridade do ordenamento jurídico, assim, quanto mais a justiça
atuar para dar efetividade ao direito material a paz social torna-se mais visível,
portanto o papel do juiz no processo publicista é necessariamente ativo.

O juiz, segundo Grinover (2002, p.18) deve ao máximo aproximar da verdade porque:

Nessa visão, que é eminentemente política, é inaceitável que o juiz


aplique normas de direito substancial sobre fatos não suficientemente
demonstrados. O resultado da prova é, na grande maioria dos casos,
fator decisivo para a conclusão da última do processo. Por isso, deve
o juiz assumir posição ativa na fase instrutória, não se limitando a
analisar os elementos fornecidos pelas partes, mas determinando sua
produção sempre que necessário

Segundo a autora é inviável que o processo retroceda ao liberal-individualismo, em


que este, ficava à disposição daquele que tivesse maior aporte financeiro ou prestigio
45

social, porque o fim do processo é encontrar o “verdadeiro titular do direito”


(GRINOVER, 2002, p. 19)

Combatendo o argumento da primeira corrente, de que o juiz quebraria sua


imparcialidade ao agir de oficio, a autora salienta – no mesmo sentido de Badaró -
que quando age assim, o julgador não tem como prever se aquele meio de prova será
favorável à defesa ou à acusação, portanto, a iniciativa oficial está longe de gerar a
parcialidade do juiz, ao contrário “assegura o verdadeiro equilíbrio e proporciona uma
apuração mais completa dos fatos”.

Contudo, apesar de defender e estimular a atividade oficiosa do juiz, Grinover (2002)


reconhece que limites devem ser postos. As provas produzidas por iniciativa do juiz
devem ser submetidas ao contraditório das partes, devem ser éticas e licitas material
e processualmente e por fim estabelece que o juiz não pode se aproximar da colheita
de provas na fase de investigação – que é munus acusatório –, mantendo-se
completamente inerte, tutelando apenas as liberdades públicas amparadas pela
reserva de jurisdição, sob pena de torna-se o repudiado inquisidor.

Concluindo, todos os autores analisados consideram que o poder instrutório do juiz


tem, em menor ou maior grau, relação com o sistema acusatório.

Parece-nos que o grande cerne da questão é como eles veem a função do processo.
Aqueles que consideram a função principal do processo a garantia de direitos,
advogam um juiz totalmente afastado da atividade probatória, mesmo que para isso,
deve ficar limitado à atuação deficiente das partes e os problemas decorrentes de tal
situação.

Por outro lado, a doutrina que permite um juiz ativo na busca por provas, consideram
que a função do processo penal é fazer cumprir a lei aplicando o direito material, ou
seja, predomina-se o interesse público, sustentado principalmente no princípio da
verdade real, negando que o juiz perca sua imparcialidade quando não se encontra
satisfeito com o material colacionado pelas partes. Mas há que se destacar: todos
colocam limite nessa atividade, e apregoam que se ultrapassados, derruba-se o
sistema acusatório.
46

Não obstante, as posições antagônicas tocam-se em um ponto: o juiz deve-se manter


afastado da atividade persecutória pré-processual, seja porque invade uma função
nativamente acusatória ou porque a quebra de imaparcialidade do juiz que apenas
investiga é patente ou, ainda, porque não se adotou o juizado de instrução no Brasil,
o que afasta o juiz da fase investigativa.

6. CONCLUSÃO

O presente trabalho permitiu conhecer com um pouco mais de intimidade os sistemas


processuais penais, por meio da descrição histórica das manifestações desses
sistemas e a identificação de princípios que são considerados fundantes de cada um
deles. Foi possível compreender os porquês que a esmagadora maioria dos autores
brasileiros concluem ser o acusatório o sistema processual penal constitucional. E por
fim propôs uma reflexão sobre a compatibilidade desse sistema a atividade do juiz na
produção de prova ex officio no bojo do processo penal.

Com o contexto histórico e as características com que foram implementados em certos


momentos políticos, foi possível identificar os elementos fundantes desses modelos,
e posteriormente, colidir esses dados com os que os autores hoje consideram como
elementos essenciais de cada sistema processual.

Foi possível identificar que para cada sistema há uma característica que doutrina
considera inafastável é que foi citado por todos os autores analisados:

a) Acusatório: a separação das funções de acusar e julgar, principalmente na


questão de quem deve dar início ao processo penal.
b) Inquisitivo: Acusação e estado-juiz fundem-se em uma só parte, o processo
pode ser iniciado ex officio pelo julgador.
c) Misto: A investigação preliminar é conduzida por um Juiz fazendo parte da
primeira fase do procedimento

Além disso, é notória a compatibilidade de certos sistemas processuais com


determinados sistemas políticos, como vimos a democracia e o sistema acusatório,
governos autoritários com sistemas inquisitivos.
47

Apesar de encontrarmos essas similaridades entre os autores quanto a essas


características, é possível concluir que há uma falta de consenso quanto ao restante,
haja vista os inúmeros elementos citados por determinados autores e por outros
completamente ignorados.
Isso reflete na argumentação utilizada por esses ao definir o sistema processual penal
adotado pela Constituição Brasileira, que se pulveriza em vários dispositivos da
Constituição:

a) Art.127, inciso I, que define o monopólio constitucional na ação penal pública


nas mãos do Ministério Público
b) Os inúmeros direitos e garantias processuais positivados pela Carta Magna;
c) A vinculação imperativa do sistema acusatório com a democracia.

Porém, apesar da falta de unidade quanto a esses elementos, com a análise, permitiu
concluir que todos os autores analisados no presente trabalho chegam a um só
resultado: o sistema processual adotado pela Lei Maior é o acusatório.

Por fim, foi possível verificar um debate com posições bastante divergentes quanto a
relação sistema acusatório e juiz com poderes instrutórios, aqui, não há maiorias cada
autor parece dar seu ponto de vista, e a conclusão de cada um deles acaba
encontrando raiz em o que cada autor entender ser a função principal do processo e,
por consequência, qual interesse deve predominar: o público – permitindo um juiz
ativo, na busca pela aplicação correta do direito, ou o privado – que coloca o direito
individual, a tutela do acusado como fim principal do processo, afastando o juiz da
atividade das partes.

Quanto ao último tema não foi possível chegar a uma conclusão exaustiva sobre a
constitucionalidade ou não da gestão da prova nas mãos do juiz, todavia, o
entendimento dos autores analisados segue o mesmo rumo nos seguintes aspectos:

a) O juiz deve ficar afastado da investigação preliminar;


b) Mesmo permitindo o juiz produzir provas ex officio, há de se estabelecer limites
a essa atuação.
48

Desse modo, esse resultado da pesquisa, nos permite afirmar que qualquer
dispositivo que permite o juiz atuar de oficio na investigação preliminar deve ser
declarado não recepcionado pela Carta Magna, por não se compatibilizar à
sistemática acusatória. E o legislador brasileiro deveria estabelecer limites claros aos
poderes instrutórios do juiz quando já iniciado o processo e não dar permissivo de
maneira genérica, sob pena de abrir espaço para juízes inquisidores, devendo
também os tribunais atuarem no sentindo de proteger o texto constitucional repelindo
eventuais abusos de poder perpetrados por magistrados. Agindo assim assegura-se,
pois, a efetividade da Constituição Federal.
49

REFERÊNCIAS

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