Você está na página 1de 3

As micro-utopias de Nicolas Bourriaud

Trabalho feito para a cadeira de Teorias da Arte na Era da Globalização, curso oferecido
pela graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Paraíba no período 2017.2.
Texto por Arthur Marques Vieira, graduando no Bacharelado em Teoria, Crítica e História
da Arte.

Arte
1. Termo genérico que qualifica um conjunto de objetos postos em cena no marco de
um relato chamado “história da arte”. Relato esse que estabelece uma cronologia crítica e propõe
como problema o que está em jogo nesses objetos através de 3 subconjuntos: pintura, escultura
e arquitetura.
2. A palavra “arte” aparece hoje somente como um resto semântico desses relatos, cuja
definição mais precisa seria esta: a arte é uma atividade que consiste em produzir relações com
o mundo com a ajuda de signos, formas, gestos e objetos.1

A voracidade do devir-máquina se apresenta como semáforo do ambiente pós-moderno.


Em 1991 vivemos o dissolver do socialismo soviético, o estabelecimento da mídia digital, o
enraizamento, talvez irreversível, da lógica do consumo absoluto. É esse o momento observado
por Nicolas Bourriaud como a paisagem efervescente de uma arte relacional. Estamos diante
do pessimismo civilizatório construído pela (sensata) observação do encapsulamento das
relações humanas nos espaços mercadológicos2, que servem de instalação e de discurso para os
diálogos que temos com os outros. Observar que esses espaços são construídos para moldar as
relações humanas em benefício dos acumuladores de poder, seja financeiro ou informacional,
é essencial para entende o porquê de um movimento da arte rumo às experiências sociais e sua
capacidade de servir como um solo fértil para esse tipo de acontecimento. Inicialmente
consideremos que ao invés de servir como modelo ideal, a arte passa a trabalha com
possibilidades, mudança acontecida quando o poético tem seu potencial de transformação do
corpo social fragmentado pelo processo de automação da vida3.
Não mais modificar o mundo. Habitar o mundo. Esse é o projeto político relacional. A
integração de uma produção de objetos culturais com a natureza mutante da vida4. A
necessidade de um projeto embasado, ou melhor, consciente, vem da realização de que todo ato
é político em um mundo político. Uma arte relacional carrega uma tradição de poética como
processo de reinserção do homem na realidade. A utopia rui, o que podemos promover é um
crescimento individual possível, de resultados irreversíveis, mas sempre pulsantes em direção

1
(Tradução própria do texto em espanhol) BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Tradução de Cecília
Beceyro e Sergio Delgado. Buenos Aires. Adriana Hidalgo. 2008. Pág 135.
2
A abdicação (ou venda inconsciente) de informações pessoais em troca de comodidade comunicacional é um
exemplo mais pungente dessas recentes relações já observáveis no final do século XX.
3
Bourriaud associa tal automação com as tentativas de emancipação do homem por meio da tradição
racionalista do século XVIII. A fragmentação dos grandes planos ideológicos se dá quando esses se mostram
incapazes de promover uma mudança revolucionária do corpo social (sendo o fim do comunismo soviético o
marco desse fracasso). Mais informações no próprio Estética relacional. Págs 10 e 11.
4
Idem. Ibid. Págs 12 e 13.
à criação e a vida do artista. Temos as micro-utopias, pontuais e mutantes. Em certo sentido,
zonas autônomas temporárias5, internas, e um tanto menos radicais (e menos pulsantes, diria).
Se a mudança ocorre no indivíduo, o trabalho ocorre na comunidade. Bourriaud
confirma que a “a arte sempre foi relacional em diferentes níveis”6, mas é com o advento da
urbanização massiva e dos meios eletrônicos que o potencial de conexão da arte se dobra sobre
si, adquirindo um estado maior de consciência existencial. Aqui existe um paralelo direto a
estrutura de pensamento de Allan Kaprow quanto à arte que convida a participar7. Se o processo
simbólico requer um inconsciente projetar-se por parte de quem experimenta obra, tal projeção
se torna consciente quando o trabalho de arte ativamente convida o indivíduo a escolher alterar
seu significado ou não. Seja na arte relacional, seja na experiência estética, o que definiria a
potência do evento é a percepção do participante em se colocar em seu papel como tal.
A própria forma é construída a partir da visão do participante diante da realidade, em
resumo, é simbólica e por isso maleável, construída por relações interlocutoras que fotografam
uma paisagem viva. Toda conversa carrega um ponto referencial do “real”. A visão de cada
interlocutor diante dessa referência estabelece o comportamento de cada participante, a forma,
sendo assim relacional e intersubjetiva. Quando Bourriaud afirma que essa intersubjetividade
atravessa a recepção social da obra, essa que faz parte do campo da arte como habitus em
Bourdieu, ele o faz para exaltar esse elemento do campo como a própria essência do trabalho
de arte8. Acredito que existam questões curatoriais inseridas nessa visão.
Tem-se uma forma relacional, concebida como um acordo entre as partes, um símbolo.
Existe a transitoriedade, a forma não a nega, mas se apropria de um momento o tornando
estático. É uma coalização de motivos dispersos, um poço de possibilidades, âncoras temáticas.
Essas fotografias da paisagem, mesmos que continuamente capturadas, continuam
cristalizações. Na teorização da forma existe a valorização da linguagem como fim, mesmo
que não explicitamente. A partir desses tijolos estéticos que seria possível conceber um
elemento particular da obra de arte, que a diferenciaria de outras produções humanas. Em
Nicolas Bourriaud esse elemento particular é a transparência.
Esta translucidez da obra se dá pela clareza de seu status de obra, de produto de um fazer
intencional. A clareza documental transmite a necessidade da posição do artista para a
concepção de uma experiência relacional singular. Mesmo que essa transparência não carregue
uma essência da obra quando essa se vê mergulhada no circuito de arte. Nicolas abertamente
fala da inexistência de uma funcionalidade a priori na obra9, porém se considerarmos uma
postura não essencialista, não existe funcionalidade a priori em nenhum tipo de objeto ou ação.

5
As “utopias piratas” de Hakim Bey, zonas que procuram fugir da maquinaria que perpetua as relações de
poder. É possível fazer a analogia com a característica de “interstício social” da obra de arte, atestado por
Bourriaud em Éstetica relacional (pág. 15). Ver BEY, Hakim. The temporary autonomous zone, ontological
anarchy, poetic terrorismo. Nova York. Autonomedia. 1985.
6
BOURRIAUD, Nicola. Estética relacional. Tradução de Cecília Beceyro e Sergio Delgado. Buenos Aires. Adriana
Hidalgo. 2008. Pág 14.
7
KELLEY, Jeff. Introduction. In: KAPROW, Allan. Essays on the blurring of art and life. 1ª. ed. Los Angeles:
University Of California Press, 1993. Pág XVIII.
8
BOURRIAUD, Nicola. Estética relacional. Tradução de Cecília Beceyro e Sergio Delgado. Buenos Aires. Adriana
Hidalgo. 2008. Pág 23.

9
Idem. Ibid. Pág 50.
Se a transparência do fazer artístico se estabelece dentro de uma lógica de construção
documental de um objeto, onde mesmo trabalhos fugazes são “fotografados” com o objetivo de
se apresentarem como obras de arte, ou melhor, as experiências relacionais se veem ancoradas
aos indivíduos cuja autoria lhes foi concebida, tem-se o ambiente propício para um visão de
arte como experiência “emancipadora” (para usar as palavras de Bourriaud) que só é
verdadeiramente emancipadora quando moldada à estrutura do documento. Existe aqui uma
dicotomia, enquanto que o objeto de arte representa um elemento de puro valor mercadológico
sem qualquer “utilidade prática”10, ao mesmo temo ela contém um evento de arte que atravessa
essa economia, carrega de significado a partir da prática do artista11.
A contínua atestação da impossibilidade de um fim da arte12 é consistente diante das
necessidades histórico-mercadológicas que alimentam a produção dos objetos desse campo.
Porém não há aqui qualquer argumentação que considere a pergunta: se tomo consciência da
emancipação gerada pelas relações sociais e a pratico, carregando comigo o campo de
possibilidades relacionais, existe aí poesia13? Se sim, no caso a arte tem como seu pilar não a
poética por sim, mas a produção documental de memórias da própria poética? A micro-utopia
de Bourriaud não é inconsistente em sua ambição de coalizar um processo revolucionário do
indivíduo ao sistema institucional de arte, mas ao final ela me parece limitada às estruturas
institucionais (estamos, ao final, falando do texto de um curador profissional), ou chamemos,
ao campo da arte como uma disciplina do conhecimento humano. Essa definição possui
implicações.
Toda postura específica de conexão entre arte e realidade carrega um campo semântico
e conceitual. A estética relacional aponta sua luz para as comunidades, para as trocas íntimas
de conceitos, para as construções simbólicas e para o próprio processo de normatização. Por si
só é um exercício de emancipação. A concepção de exercício é interessante porque ela atinge
diretamente o indivíduo, oferecendo a ele uma possibilidade de execução. A autoria se esvai
muito mais facilmente do exercício porque ele em si não é o fim, mas sim uma ferramenta
para a consumação de uma experiência. Um exercício consciente de si promove a experiência
também reflexiva, capaz de se completar sem estagnação, dando entrada a outra experiência.
Uma visão de arte mais voltada a tais campos semântico-conceituais como instrumentos pode
ser uma utopia maior que a da estética relacional, mas é bom sempre lembrar que, como o
próprio Nicolas atesta, sempre existe interstício social.

10
Idem. Ibid. Pág 51.
11
Ibidem.
12
Ibid. Pág 57.
13
Como elemento expansivo da linguagem, que a desestrutura e a reinventa.

Você também pode gostar