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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 171-185 FEV.

2011

GESTÃO PÚBLICA MUNICIPAL E PARTICIPAÇÃO


DEMOCRÁTICA NO BRASIL1

Carlos Vasconcelos Rocha

RESUMO

O trabalho aborda três casos de participação democrática em administrações municipais do estado de


Minas Gerais, quais sejam: os Conselhos Gestores de Saúde, nos municípios de Bom Despacho e Lagoa da
Prata, e os Centros de Encontro e Integração de Ações (CEIA), no município de Betim. Nas últimas décadas,
a participação política tem se caracterizado por uma crescente presença da sociedade civil na definição de
políticas públicas. Assim, institucionalizam-se espaços em que atores da sociedade civil e atores estatais
participam em diversas áreas de decisão de políticas sociais. Parte substantiva da literatura aposta nas
virtudes democráticas da participação. Este trabalho, no entanto, busca apontar uma série de problemas
que afetam a institucionalização da democracia participativa. Os resultados dos casos abordados aqui
demonstram que os experimentos analisados não indicam uma evolução da democracia brasileira, confor-
me as promessas iniciais. No geral, o grau de participação efetivamente verificado está aquém do desejado
pelos defensores da democracia participativa, já que o critério de medida geralmente adotado é um padrão
ideal difícil de ser concretizado. Contudo, se olhamos a trajetória histórica recente de nossas instituições
democráticas, a definição de espaços de deliberação pela sociedade civil, apesar dos seus problemas, tem
potencial inegável de reforçar a accountability do poder público, aumentando a transparência de suas
ações.
PALAVRAS-CHAVE: democracia participativa; administração municipal; políticas públicas.

“Oh! A estranha cidade, tão vasta e tão vazia!


Imensos boulevards, abertos para multidões, mas
silenciosos desertos! [...] Vasta catedral que os fiéis
não chegam a encher! Há de povoar-se um dia a
cidade da fé e da esperança”

(Hazard apud GRAVATÁ, 1982).

I. INTRODUÇÃO ços de participação da sociedade civil nas deci-


sões públicas criados, no Brasil, nas últimas dé-
A observação transcrita em epígrafe, que o
cadas. Os céticos diriam que esses espaços simu-
historiador Paul Hazard fez sobre a cidade de Belo
lam “catedrais sem fiéis”: espaços de participação
Horizonte no ocaso dos anos 1920, pode muito
que não encontram resposta em cidadãos ativos,
bem servir de metáfora para a profusão de espa-
capazes de extrair todas as possibilidades da nova
institucionalidade democrática. Uma imagem que
1 Agradeço a ajuda da Fundação de Amparo à Pesquisa do contrasta com a “fé” dos que vêem a democracia
Estado de Minas Gerais (Fapemig), que financiou a pes- participativa como panacéia para todos os proble-
quisa da qual se originou parte deste artigo, bem como a mas. Essa polarização de expectativas está
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Su- marcadamente presente nos debates sobre o tema
perior (Capes), que me proporcionou uma bolsa de pós- da democracia participativa. No entanto, o esfor-
doutoramento, fundamental para a conclusão deste traba-
lho. Agradeço também os comentários dos pareceristas
ço de compreensão da realidade exige ultrapassar
anônimos da Revista de Sociologia e Política pelas suas tanto o ceticismo temerário como o otimismo te-
valiosas contribuições. merário.

Recebido em 15 de agosto de 2008.


Aprovado em 5 de junho de 2009.
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 19, n. 38, p. 171-185, fev. 2011
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GESTÃO PÚBLICA MUNICIPAL E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NO BRASIL

De fato, o recente processo de democratiza- os motivos explicam seus sucessos e insucessos.


ção política no Brasil foi caracterizado pela notá- Este trabalho pretende, de maneira não exaustiva,
vel capacidade de mobilização de diversos setores relacionar alguns pressupostos teóricos com al-
da sociedade civil, que reivindicavam seu direito gumas evidências empíricas, a fim de fornecer
de participação política. Para além das instituições pistas para a análise do desempenho da participa-
da democracia representativa, atores filiados a ção nos marcos da democracia recente.
correntes ideológicas diferenciadas demandavam
Em sua primeira parte, o trabalho irá recupe-
a adoção de espaços compartilhados de delibera-
rar brevemente o debate sobre a democracia
ção sobre decisões de políticas públicas entre a
participativa, apontando tanto os argumentos fa-
sociedade civil e o poder público. Defendiam, cada
voráveis como as ponderações críticas levanta-
qual com ênfases e argumentos específicos, que
das por diversos autores. Numa segunda parte,
a descentralização relacionar-se-ia positivamente
pretendemos problematizar tal debate a partir do
com democracia, eficiência e inovação na gestão
estudo de experiências desenvolvidas em três
pública.
municípios do estado de Minas Gerais, quais se-
Essas reivindicações acabaram se concretizan- jam: os Conselhos Gestores de Saúde, nos muni-
do em uma variedade de experiências cípios de Bom Despacho e Lagoa da Prata, e os
participativas. A Constituição Federal de 1988, ao Centros de Encontro e Integração de Ações
definir a obrigatoriedade da adoção de espaços de (CEIA), no município de Betim. Finalmente, bus-
participação em diversas áreas de políticas públi- caremos sugerir algumas questões relativas aos
cas, é expressão dessa tendência. Assim, nas últi- resultados da adoção desses espaços de participa-
mas décadas, temos a difusão de experiências de ção democrática, com base em evidências extraí-
democracia participativa nos diversos níveis de das da análise dos casos selecionados.
governo. Os governos da União e dos estados
II. DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E PODER
implementaram espaços de participação, mas fo-
LOCAL
ram nos municípios que essas experiências disse-
minaram-se de maneira mais inovadora2. Seja por Nas últimas décadas do século XX, como as-
exigência constitucional, seja pela decisão e pecto central da reforma do Estado, diferentes
criatividade dos atores locais, a consolidação de correntes de orientação política defendem em di-
tais experiências torna-se aspecto central da versos países a descentralização político-adminis-
institucionalização democrática brasileira recente. trativa do aparato estatal. Por exemplo, de 75 pa-
íses em desenvolvimento, 63 adotaram reformas
Porém, entre as intenções e os fatos, um lon-
descentralizantes (ARRETCHE, 1996). Nesse pro-
go caminho se fez presente. Aquelas esperanças
cesso, com argumentos diferentes, atores de va-
iniciais de democratização e de eficiência acaba-
riadas filiações ideológicas sustentam a necessi-
ram se defrontando com as dificuldades surgidas
dade de reformar as instituições estatais segundo
no processo de consolidação desses espaços de
o princípio da descentralização e da participação.
participação. A distância que separa o que se al-
Especialmente por parte de setores da esquerda, a
mejou do que se efetivamente alcançou é algo a
criação de espaços de deliberação implicaria a de-
ser mensurado: o esforço de se avaliar o efetivo
mocratização do processo de tomada de decisões
funcionamento dos diversos mecanismos de de-
em áreas de políticas públicas específicas. O de-
mocracia participativa adotados nas últimas dé-
senvolvimento da democracia pressupõe, nesse
cadas é ainda incipiente. E como avaliar envolve
sentido, o fortalecimento das instituições políti-
necessariamente alguma referência valorativa,
cas locais, por viabilizarem a participação dos ci-
deve-se evitar descartar tais experiências quando
dadãos nas decisões públicas. E fortalecer
elas não se aproximam de um ideal muitas vezes
institucional e politicamente esses espaços de par-
impossível de ser atingido. Mais do que adotar
ticipação implicaria criar condições para a supe-
posições excessivamente normativas, é necessá-
ração de problemas advindos do Estado centrali-
rio avaliar em que medida esses espaços
zado, a saber: balcanização do poder público por
participativos cumprem os seus objetivos e quais
elites econômicas e políticas; exercício de um
poder ilegítimo da burocracia pública no proces-
2 Ver, por exemplo, registros de várias experiências inova- so de tomada de decisões; e o clientelismo como
doras em Fundação Getúlio Vargas (2010). lógica de ação do Estado.

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A ampliação dos espaços de participação pos- Como parte desse esforço, os estudos que es-
sibilitaria, também, a vocalização de setores ex- tão sendo desenvolvidos vão problematizar a ques-
cluídos social, econômica e politicamente, tão da reforma do Estado a partir de duas pers-
ensejando a adoção de políticas redistributivas. Ou pectivas: uma que se volta para as características
seja, imaginava-se que inclusão política redunda- da sociedade civil; e outra que centra a atenção
ria também em inclusão econômica. Além disso, nas características das instituições. O sucesso da
o exercício da participação implicaria educação implementação dos espaços de participação de-
para a cidadania, propiciando o desenvolvimento penderia, no primeiro caso, dos atributos cívicos
de virtudes cívicas, ensejando maior e melhor da sociedade civil e, no segundo caso, de carac-
capacidade de participação da população no espa- terísticas adequadas das instituições públicas.
ço público.
A abordagem da questão da participação pela
De outro lado, os setores mais à direita, repre- ótica da sociedade civil dá relevância ao conceito
sentados principalmente por instituições como o de “capital social”. Coleman (1988) é um dos pre-
Banco Mundial, relacionam descentralização e cursores dessa perspectiva analítica ao estabele-
participação com maior eficiência e eficácia da cer o princípio de que a “otimização” do capital
ação pública. Instituir espaços de participação da físico-econômico e humano é maior quando as
sociedade civil no processo de tomada de deci- relações de confiança e reciprocidade aumentam
sões potencializaria a eficiência das ações públi- em uma comunidade. Nessa linha de pensamen-
cas, neutralizando os interesses corporativos da to, Putnam, em trabalho sobre a Itália que se tor-
burocracia e as barganhas clientelistas, possibili- nou clássico, propõe uma interpretação culturalista
tando a adequação das decisões às reais deman- para a explicação dos fundamentos do “bom go-
das da sociedade e a articulação de maneiras mais verno”. Para ele, em todas as sociedades o dilema
efetivas de fiscalização das ações governamentais. da ação coletiva obsta as tentativas de cooperação
A proximidade entre a administração pública e a para benefícios mútuos. A cooperação voluntária
sociedade civil implicaria maior accountability e dependeria do capital social, que diz respeito “a
responsiveness. características da organização social, como con-
fiança, normas e sistemas que contribuam para
Tais argumentos sustentam, portanto, que a
aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as
realização dos ideais democráticos e de eficiência
ações coordenadas” (PUTNAM, 1996, p. 177).
dependem da escala em que se processam as de-
Ele afirma que o capital social instaura um círculo
cisões políticas: haveria, assim, por um lado, uma
virtuoso que “redunda em equilíbrios sociais com
relação positiva entre descentralização, democra-
elevados níveis de cooperação, confiança, reci-
cia e eficiência; e, por outro lado, em sentido in-
procidade, civismo e bem-estar coletivo” (idem,
verso, uma afinidade entre centralização,
p. 186-187). Ao contrário, a comunidade não-cí-
autoritarismo e ineficiência. Entretanto, em que
vica instaura um círculo vicioso: “A deserção, a
pesem tais esperanças, os resultados da
desconfiança, a omissão, a exploração, o isola-
implementação dessas reformas sugerem que não
mento, a desordem e a estagnação intensificam-
há uma afinidade necessária entre esses valores.
se reciprocamente” (ibidem). Segundo ele, as so-
Mais que isso, hoje, com um maior ciedades horizontais, com maior igualdade, carac-
discernimento fornecido pelo passar dos anos, terizam-se por maior grau de engajamento cívico.
pode-se dizer que, até meados dos anos 1990, a Portanto, nessa perspectiva, a qualidade de um
literatura sobre o tema da reforma do Estado era governo local relaciona-se com a presença de um
marcada por uma ênfase exageradamente substrato cultural de capital social.
normativa, e até certo ponto ingênua, na defesa
Dentre as diversas variações que essa aborda-
da descentralização como panacéia para os pro-
gem comporta, vale, para nossos fins – já que diz
blemas da democracia e da gestão pública. No
respeito a uma característica relevante dos casos
entanto, essa é ainda uma percepção genérica do
considerados neste trabalho –, fazer referência a
fenômeno, pois é patente a necessidade de se
uma específica. Alguns autores afirmam que o
aprofundar o exame do padrão concreto de rela-
fator de gênero influencia a existência de capital
ção entre o Estado e a sociedade civil, visando a
social, na medida em que as mulheres teriam mai-
aquilatar os efetivos resultados do processo de
or propensão a comportamentos interdependentes,
reforma institucional.
buscando soluções compartilhadas para os pro-

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blemas, enquanto os homens seguiriam uma jus- do capital social é determinista, condenando uma
tiça individual baseada numa moral de direitos variedade de países sem cultura cívica a uma si-
(Folbre apud ABU-El HAJ, 1999). Assim, resulta- tuação sem saída, e minimizando assim o papel
dos cooperativos seriam mais prováveis em gru- das instituições. Evans (1996), por exemplo, cri-
pos com maior participação de mulheres. tica o determinismo das teses de Putnam, argu-
mentando que se capital social é cultura, e se esta
Na outra perspectiva, o foco de análise volta-
é constituída a partir de um longo processo histó-
se para as características das instituições políti-
rico, a maioria dos países poderia desistir da civi-
cas, que, ao cabo, explicariam a qualidade de uma
lidade. Contudo, por outro lado, poderíamos tam-
democracia. Em uma de suas variantes, afirma-
bém considerar a crítica oposta de que o enfoque
se que a chave do sucesso de ações públicas efi-
institucional não atenta para as condições sociais
cientes dependeria da existência de uma burocra-
subjacentes à institucionalização. Imaginar que as
cia pública autônoma, coesa, coerente, discipli-
instituições podem apresentar um bom desempe-
nada, tecnicamente preparada e com esprit de corp.
nho sem algum substrato de cultura cívica é algo
Segundo Evans (1996), a falta de participação da
logicamente pouco adequado. Catedrais certamen-
sociedade deve-se à vigência de instituições auto-
te requerem fiéis. Assim, as duas dimensões de-
ritárias e à ausência de horizontalidade social. Em
vem ser vistas como partes de um todo e, nesse
sociedades cujas instituições públicas caracteri-
sentido, o esforço analítico deve atentar para as
zam-se pelo autoritarismo, coerção e clientelismo,
características e processos que se desenvolvem
a mobilização do poder local torna-se difícil e as
nas esferas da sociedade civil e das instituições.
experiências bem-sucedidas não se generalizam.
Dessa forma, o Estado, como fator ativo de Porém, para além do debate sobre os funda-
mobilização social e incentivador de redes cívi- mentos das duas perspectivas analíticas conside-
cas, acaba por determinar o sucesso das iniciati- radas, a própria relação positiva entre a ampliação
vas de participação. dos espaços de participação da sociedade civil junto
ao poder público e a democracia é questionada
Nesse sentido, Fox (1996) também estabelece
por um conjunto de outros autores. Especifica-
uma relação entre a participação e o caráter das
mente, postula-se que a participação de setores
instituições e dos dirigentes políticos. Para ele, a
da sociedade nos processos de decisão poderia
participação da sociedade civil viabiliza-se quan-
implicar democratização, mas também redundar
do as instituições públicas são dirigidas por gru-
em seu oposto. As formas associativas não se dis-
pos reformistas favoráveis à intervenção política
tribuem geográfica e socialmente de maneira uni-
construtiva do Estado, comprometidos com a his-
forme, pois expressam padrões de desigualdade
tória de luta dos atores sociais e, ao mesmo tem-
na distribuição do poder: o capital social é geral-
po, capazes de propor soluções pragmáticas aos
mente propriedade de grupos e estratos sócio-eco-
problemas existentes. Para tal, essas lideranças
nômicos bem definidos. Por exemplo, a educação
políticas deveriam combinar um passado utópico
seria um requisito para o capital social, e ela está
com a experiência de derrotas, derrotas estas fun-
concentrada nas elites. Assim, em sociedades di-
damentais para emprestar-lhes certo pragmatismo.
ferenciadas, o capital social pode contribuir para
O fator essencial para a generalização de experi-
a manutenção do statu quo, já que pode se relaci-
ências de sucesso na mobilização do capital social
onar positivamente com a estratificação social e
seria, portanto, a presença de elites governamen-
com as desigualdades federativas. A crítica de
tais reformistas, comprometidas com a valoriza-
fundo dessa linha de argumentação é que o tema
ção de experiências de democracia participativa.
do poder acaba ficando excluído do debate sobre
Como se pode notar há uma forte relação entre as
capital social e essa omissão é evidentemente pro-
características requeridas para as elites políticas
blemática, no sentido de que qualquer vigor
expostas acima e a trajetória de atores vinculados
participativo é tomado como positivo.
à esquerda do espectro político.
Em artigo primoroso, Whitehead (1999) de-
Tomando essas duas perspectivas – as que
senvolve essa linha argumentativa. Ele afirma que,
enfatizam as características da sociedade civil e
muitas vezes, “máfias” – ou seja, associações
as que centram atenção nas instituições –, poderí-
particularistas e intolerantes que reivindicam pri-
amos demarcar como ponto de partida a proposi-
vilégios em detrimento de terceiros – atuam no
ção de que há razão na afirmação de que a visão
contexto da democracia, substituindo ou subver-

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tendo formas mais universalistas de participação. nômicos (desemprego, criminalidade e suprema-


Mesmo os direitos legais, como segurança e justi- cia do mercado) e tecnológicos (com a televisão
ça, que são formalmente uniformes, são de fato e Internet, por exemplo, afastando as pessoas do
seletivamente distribuídos. O acesso a esses di- convívio no espaço público) ou por fatores inten-
reitos pode depender da posição de classe, da raça cionais, como a ação do Estado e/ou da sociedade
e da origem familiar. A capacidade associativa ten- antiliberal. Exemplo disso é que a notável
de, portanto, a concentrar-se em uma minoria da mobilização de diversos setores da sociedade civil
população que tem origem privilegiada na estrutu- brasileira, nos anos 1980, refluiu nas décadas se-
ra de poder pré-democrática. Sendo assim, con- guinte.
forme observa o autor, “qualquer que tenha sido
Estabelecidas essas referências teóricas, fare-
o caminho histórico seguido, os padrões resultan-
mos uma reflexão sobre algumas experiências de
tes de vida associativa e comunicação social serão
implementação de espaços de participação social
altamente estruturados, com setores tradicionalmen-
em três municípios de Minas Gerais.
te mais favorecidos e centrais e outros marginali-
zados e excluídos. Dependendo da localização de III. REFLEXÕES A PARTIR DE ALGUMAS EX-
cada pessoa nessa estrutura de privilégios e opor- PERIÊNCIAS DE DEMOCRACIA PARTICI-
tunidades, e do grau de abertura e flexibilidade do PATIVA
sistema, é possível considerar a sociedade civil re-
Nas últimas décadas, uma profusão de experi-
sultante tanto como expressão mais autêntica e a
ências de democracia participativa foi desenvol-
garantia durável de uma democracia política, quanto
vida pelos municípios brasileiros. Conselhos
a mais flagrante negação de sua promessa
deliberativos de políticas sociais, orçamento
universalista” (WHITEHEAD, 1999, p. 21).
participativo, gestão participativa de escolas pú-
Considerados esses argumentos, a relação en- blicas e diversas outras modalidades de espaços
tre sociedade civil e democracia torna-se bastante de participação foram desenhando o perfil das ins-
complexa. Se existe mais de uma via histórica para tituições públicas brasileiras. Em grande medida,
o estabelecimento da sociedade civil, certamente direta ou indiretamente, isso se deveu à ação de
haverá formas diferenciadas de seu envolvimento partidos de esquerda. Um ator central nesse pro-
na construção da democracia. Fazendo referên- cesso foi o Partido dos Trabalhadores (PT), cria-
cia às ênfases na cultura política e nas institui- do em 1980, que hegemoniza a aglutinação dos
ções, respectivamente, a democracia pode ser tan- setores organizados da sociedade civil e assume a
to fruto da sociedade cívica como esta pode ser defesa da democracia participativa3. Ao lograr êxi-
resultado das instituições democráticas. Tanto a to em várias eleições para diversos governos mu-
democracia política pode fortalecer atores políti- nicipais, antes de alcançar a presidência da Repú-
cos que agem contra a existência de uma socie- blica, o PT empenha-se na difusão de gestões
dade civil robusta, fundada na capacidade de deli- participativas e utiliza-se disso como marca do
beração autônoma de seus membros, como, por partido junto ao eleitorado. Se o partido não mo-
outro lado, a sociedade civil pode afetar a demo- nopoliza a defesa de instituições participativas,
cracia em uma série de formas negativas: pode podemos dizer que, em conjunto com outros par-
levar a uma distribuição de influência tendenciosa tidos menores de esquerda, é protagonista na
no processo de produção de políticas públicas e institucionalização de espaços de participação da
pode, no contexto de uma pluralidade de socieda- sociedade civil em decisões públicas.
des civis atuando dentro da mesma comunidade
O resultado dessas experiências é, hoje, obje-
política, provocar a exclusão de grupos constitu-
to de diversos estudos. Contudo, não há ainda
ídos a partir de identidades étnicas, culturais e lin-
consenso suficiente sobre em que medida as pro-
güísticas.
Além do mais, os fatos parecem demonstrar
3 Com o colapso do socialismo real, a defesa da democra-
que a participação não é algo que se desenvolve
cia participativa passa a substituir, para parte da esquerda,
de forma cumulativa. Antes disso, a participação
a defesa do socialismo. Sem entrar em detalhes, é interessan-
parece ser cíclica. A sociedade civil sempre será te notar como algo que antes era tido como “mera” formali-
pressionada por “externalidades”, ou efeitos não- dade para a esquerda – no caso, as instituições democráticas
pretendidos, de processos políticos, socioeco- – passa a ocupar um lugar central no seu discurso.

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messas iniciais foram cumpridas. Visando a for- criados visando a possibilitar a inclusão de am-
necer uma contribuição para o entendimento do plos setores sociais nos processos de decisão
efetivo funcionamento desses espaços de partici- pública, fornecendo condições para o fortaleci-
pação, tomaremos como referência três experi- mento da cidadania e para o aprofundamento da
ências desenvolvidas em municípios do estado de democracia. Sua composição deve incorporar re-
Minas Gerais. Duas dessas experiências referem- presentantes do governo e da sociedade civil, sendo
se aos conselhos municipais de saúde dos muni- que a indicação se faz, no primeiro caso, pelo chefe
cípios de Lagoa da Prata e Bom Despacho. A abor- do poder Executivo, seja estadual ou municipal,
dagem desses dois casos permite estabelecer uma e, no segundo caso, pelos pares de cada segmen-
comparação entre municípios com tradições polí- to representado da sociedade civil, conforme le-
ticas diferenciadas: o primeiro caracterizado por gislação de cada área de política específica.
uma sociedade civil mais vigorosa e pela hegemonia
No entanto, como ressalta Dagnino (2002), o
política do PT; o segundo caracterizado por uma
potencial democratizante dos conselhos mostrou-
sociedade civil mais assimétrica, com hegemonia
se diferenciado, dada as condições de cada caso
de partidos mais conservadores. Posteriormente,
específico. Ao lado do ideal democratizante dos
abordaremos a experiência do projeto Centro de
conselhos, uma realidade prática muito mais pro-
Encontro e Integração de Ações (CEIA), desen-
blemática surgiu. Em muitos municípios sem tra-
volvido no município de Betim. Esse projeto foi
dição associativa e com uma configuração de po-
concebido e implementado por um governo do
der bastante assimétrica, os conselhos limitam-se
PT e apresentou um desenho peculiar e inovador
a cumprir formalidades, quando não são manipu-
em relação a outras experiências adotadas no
lados pelas elites locais. Outros estudos demons-
país4.
tram também a incidência de problemas como
III.1. Os conselhos de saúde em Bom Despacho e heterogeneidade do nível da capacitação dos con-
Lagoa da Prata selheiros e fragmentação do segmento da socie-
dade civil, muitas vezes composta por grupos di-
Uma estratégia de desenvolvimento da demo-
versificados e antagônicos, redundando em
cracia participativa no Brasil foi a criação de con-
assimetrias de participação entre os interesses re-
selhos gestores de políticas públicas de caráter
presentados no interior dos conselhos. O proces-
deliberativo. Aspecto central da descentralização
so decisório, não raro, mostra-se mais favorável
das políticas públicas, os conselhos foram cria-
aos setores governamentais e aos segmentos mais
dos, tanto nos estados como nos municípios, em
poderosos da sociedade civil. Nesse sentido, por
diversas áreas das políticas sociais, como saúde,
exemplo, Tatagiba (2002) demonstra que assun-
educação, assistência social, habitação, criança e
tos pontuais predominam na agenda dos conse-
emprego, por obrigatoriedade do texto constitu-
lhos em detrimentos das questões estruturais, fru-
cional brasileiro promulgado em 1988. Os muni-
to, em boa medida, da capacidade de controle da
cípios, especificamente, passaram a criar os con-
burocracia pública sobre a agenda temática dos
selhos gestores nas áreas sociais como requisito
conselhos. Os governos muitas vezes adotam es-
para o recebimento de recursos financeiros do
tratégias de esvaziamento desses espaços e, não
governo central.
raro, instrumentalizam os conselhos para seus
Segundo Tatagiba (2002, p. 54), os “conse- objetivos específicos.
lhos gestores de políticas públicas são espaços
Considerando os conselhos de saúde de Bom
públicos de composição plural e paritária entre
Despacho e Lagoa da Prata5, uma questão a ser
Estado e sociedade civil, de natureza deliberativa,
respondida é em que medida esses espaços real-
cuja função é formular e controlar a execução das
mente “democratizam a democracia”, segundo
políticas públicas setoriais”. Os conselhos foram
expressão utilizada por Santos (2002), ou, ao con-
trário, configuram-se em mecanismos de decisão
4 Os dois primeiros casos foram estudados em Oliveira meramente formais, legitimando as decisões de
(2005) e o último, em Lima (2003). Ambos os trabalhos grupos políticos dominantes.
foram dissertações de mestrado orientadas pelo autor des-
te artigo. Os dados levantados nesses trabalhos são aqui
utilizados sem, contudo, reproduzir suas conclusões. Es- 5 Esse tópico baseia-se em dados levantados em Oliveira
tas são da responsabilidade de quem assina este artigo. (2005).

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Como se sabe, a área da saúde, fundamental uma Igreja progressista ativa e inspirada pela Te-
na produção do bem-estar social, é onde os con- ologia da Libertação e de um combativo sindicato
selhos encontram-se mais consolidados no Bra- de trabalhadores rurais.
sil. A oferta dos serviços de saúde é função privi-
Essas diferenças expressam-se, também, no
legiada dos municípios e estes só recebem repas-
perfil político-eleitoral dos dois municípios. Em
ses de recursos financeiros do Sistema Único de
Lagoa da Prata, na última década, partidos mais à
Saúde (SUS) se os seus conselhos estiverem
esquerda consolidaram-se na liderança política do
implementados. A Lei Federal n. 8 142, de 28 de
município, especialmente o PT, que elegeu pre-
dezembro de 1990, define a participação da co-
feitos e maiorias no poder Legislativo municipal.
munidade na gestão das políticas de saúde da se-
Os partidos mais à direita, por sua vez, predomi-
guinte forma: “O Conselho de Saúde, em caráter
nam em Bom Despacho6. O caráter mais progres-
permanente e deliberativo, órgão colegiado com-
sista dos governos de Lagoa da Prata está presen-
posto por representantes do governo, prestadores
te, por exemplo, na adoção do orçamento
de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua
participativo, experiência que caracteriza a gestão
na formulação de estratégias e no controle da exe-
de partidos de esquerda, notadamente o PT, no
cução da política de saúde na instância corres-
Brasil.
pondente, inclusive nos aspectos econômicos e
financeiros” (BRASIL, 1990). Os conselhos de Dadas essas características, poderíamos su-
saúde apresentam uma especificidade em sua com- por que as instituições participativas seriam mais
posição em relação a conselhos de outras áreas de efetivas em Lagoa da Prata, já que encontramos
políticas sociais: a representação dos usuários deve aí os requisitos apontados seja pelos defensores
ser paritária em relação aos demais segmentos. da tese do capital social, seja pelos defensores da
tese institucionalista. Ou seja, sua sociedade civil
A avaliação do funcionamento dos conselhos
apresenta maior capacidade organizativa e rela-
de saúde nos dois municípios foi realizada a partir
ções mais horizontalizadas, além de eleger gover-
das seguintes variáveis: representatividade dos
nos de um partido fortemente comprometido com
conselheiros; autonomia dos mesmos no proces-
a gestão participativa. Em outras palavras, seu
so de tomada de decisões; e eficácia da participa-
maior “capital social” e o caráter progressista de
ção em termos de resultados nas políticas públi-
seus governos implicaria instituições públicas mais
cas.
eficientes e mais democráticas, se corretas as te-
Bom Despacho e Lagoa da Prata têm, respec- ses focadas na sociedade civil e nas instituições
tivamente, 39 943 e 38 758 habitantes (INSTI- expostas anteriormente.
TUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTA-
Contudo, não é o que parece ocorrer, pelo
TÍSTICA, 2000), sendo bastante representativos
menos de maneira suficientemente significativa.
do perfil da totalidade dos municípios brasileiros
Apesar das diferenças ressaltadas, a avaliação dos
no que tange ao aspecto populacional: dos 5 507
conselhos de saúde em ambas as cidades aponta
municípios brasileiros, 90% possuem população
a ocorrência de problemas similares, como baixa
inferior a 50 000 habitantes.
representatividade dos conselheiros, denotando
As tradições políticas e culturais das duas ci- fragilidade dos vínculos com suas bases, e pouca
dades, no entanto, apresentam diferenças signifi- autonomia dos representantes da sociedade civil
cativas, apesar da sua proximidade geográfica e no processo de tomada de decisões, especialmente
da mesma dimensão populacional. Em Bom Des- dos representantes dos usuários do sistema de
pacho, a sociedade civil é mais oligárquica, rural saúde, face à hegemonia dos representantes dos
e conservadora. Já Lagoa da Prata caracteriza-se conselheiros governamentais. Vejamos mais deti-
por uma cultura mais democrática, urbana e pro- damente, portanto, os seguintes aspectos dessas
gressista. Por exemplo, o primeiro município tem experiências: representatividade dos conselheiros
a atuação de uma Igreja Católica conservadora e a em relação às suas bases; relação entre o perfil
presença de uma Vila Militar, com um grande con-
tingente da população formada por militares e suas
famílias, difundindo, de alguma forma, noções de 6 Na década de 1990, o PT elegeu dois prefeitos e oito
ordem e hierarquia próprias dessas corporações. vereadores em Lagoa da Prata e apenas dois vereadores em
Lagoa da Prata, ao contrário, tem a presença de Bom Despacho.

177
GESTÃO PÚBLICA MUNICIPAL E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NO BRASIL

sócio-econômico da sociedade e dos representan- tários apresentam variações. Nesse aspecto, a


tes da sociedade civil nos conselhos; índice de população de Lagoa da Prata demonstra maior
participação dos conselheiros em outras organi- capacidade de mobilização. Os índices de
zações da sociedade civil; dinâmica do funciona- sindicalização dos conselheiros são semelhantes
mento dos conselhos. em Bom Despacho e Lagoa da Prata: respectiva-
mente, 38% e 36%. Porém, em Lagoa da Prata,
Em relação ao aspecto da representatividade,
64% dos conselheiros são filiados a partidos polí-
o que está em questão é se a atuação dos conse-
ticos, contra apenas 8% do outro município, e
lheiros implica de fato fazer valer os interesses
83% dos representantes dos usuários tem filiação
dos seus representados no espaço do conselho.
partidária, em sua quase totalidade no PT. Esses
Em princípio, partindo dos critérios de escolha
dados indicam que a capacidade de participar pode
das entidades participantes dos conselhos, em
ser concentrada em alguns grupos que acabam
ambos os municípios 74% delas foram escolhi-
monopolizando o acesso aos espaços de partici-
das em conferências ou fóruns municipais de saú-
pação, conforme afirmação de Whitehead (1999)
de, o que demonstra ampla participação e legiti-
exposta anteriormente. No caso, pode-se perce-
midade dos escolhidos. Nesse quesito, Lagoa da
ber uma evidência de que o conselho de Lagoa da
Prata demonstra maior autonomia dos setores da
Prata seria instrumentalizado pelo PT, violando o
sociedade civil em relação ao governo, bem como
princípio democrático de pluralidade dos espaços
maior relação dos conselheiros com suas bases,
participativos.
já que 78% de suas entidades foram escolhidas de
forma participativa, contra 69% de Bom Despa- Os conselhos, sob certo aspecto, são conce-
cho. O restante das entidades foi escolhido, em bidos como espaços em que a pluralidade dos in-
ambos os casos, pelo Prefeito ou pelo Secretário teresses estabelece dialogicamente consensos. No
de saúde (OLIVEIRA, 2005, p. 71). entanto, 56% dos conselheiros de ambos os mu-
nicípios não percebem a existência de grupos de
No entanto, considerando essa relação de ma-
interesse nos conselhos, o que denota a pouca
neira mais qualitativa, o vínculo dos conselheiros
percepção desse espaço, pelos seus componen-
com suas bases é frágil, pois as evidências de-
tes, como um local de embate de interesses. Isso
monstram que eles agem de forma individual, sem
explica o fato de que a maioria das deliberações é
debater os assuntos e sem mesmo transmitir in-
tomada por unanimidade, indicando baixa capaci-
formações para seus representados.
dade de contraposição de interesses.
Uma das promessas mais alardeadas da
Além disso, os dados demonstram uma baixa
adoção dos espaços de participação foi sua capa-
percepção de eficácia dos conselhos como espa-
cidade de incorporar setores sociais
ços de deliberação, ainda que a discrepância seja
desfavorecidos nos processos de decisão. Porém,
considerável entre os dois municípios. A percep-
nos casos em exame, o perfil sócio-demográfico
ção dos conselheiros é de que sua atuação tem
dos conselheiros não é representativo do perfil da
um caráter meramente informativo e consultivo,
população municipal em geral. Na verdade, as eli-
e muito pouco deliberativo. Por exemplo, 8% dos
tes de ambos os municípios são sobre-represen-
conselheiros de Bom Despacho percebem como
tadas nos conselhos. Vários segmentos sociais –
alto o número de deliberações do conselho, ao
como pobres, negros, jovens, analfabetos, desem-
passo que em Lagoa da Prata esse número sobe
pregados e evangélicos – não estão presentes nos
para 43%, que, diga-se de passagem, é um
espaços dos conselhos proporcionalmente à sua
percentual ainda baixo, mas alto em comparação
presença na população. Por exemplo, 59% dos
com o primeiro município (OLIVEIRA, 2005, p.
conselheiros de ambos os municípios possuem
101-102).
escolaridade média e alta em sociedades caracte-
rizadas por baixa escolaridade, e 56% dos conse- Em ambos os municípios, parte relevante dos
lheiros têm mais de 40 anos – este número chega assuntos tratados no conselho são definidos sem
a 87% no segmento dos usuários –, em socieda- maior planejamento e discussão, falta capacitação
des predominantemente jovens (idem, p. 61-64). aos conselheiros e várias das decisões tomadas
não são implementadas pelo governo municipal.
Por outro lado, os índices de participação e
Apesar disso, contrariando a tendência positiva
filiação dos conselheiros de ambos os municípios
em favor de Lagoa da Prata apresentada nos ou-
em sindicatos, partidos e outros órgãos comuni-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 171-185 FEV. 2011

tros quesitos, apenas em Bom Despacho há re- entre o discurso em favor da democracia
gistros de cobranças feitas pelos conselheiros aos participativa e o pragmatismo exigido pela com-
gestores municipais, no sentido da homologação petição político-eleitoral. De alguma maneira, o
das decisões do conselho. partido utiliza-se da sua capacidade participativa
como meio de consolidar seu poder político.
A análise da dinâmica de funcionamento dos
conselhos mostrou, ainda, que o grau de partici- A própria avaliação que os conselheiros fazem
pação (número de intervenções e índice de pre- dos conselhos deixa bastante a desejar. Em Lagoa
sença) é correlacionado positivamente com o ní- da Prata, 28% dos conselheiros acham que o con-
vel educacional dos conselheiros. Mas a variável selho democratiza a política municipal de saúde e,
que mais incide sobre o grau de participação é a em Bom Despacho, apenas 7% compartilham da
vinculação dos conselheiros ao setor público e aos mesma opinião (idem, p. 108). Apesar da diferen-
prestadores de serviços. Esses setores, mesmo ça significativa de avaliação entre os municípios,
que estejam representados numericamente em in- a percepção dos conselhos, como instrumento de
ferioridade em relação aos representantes dos usu- democratização é bastante decepcionante.
ários dos serviços de saúde, acabam tendo maior
Apesar disso, se comparada com a forma bu-
capacidade de representar seus interesses.
rocrática e centralizada de gestão da saúde até
O acesso dos conselheiros às informações re- meados dos anos 1980, e a despeito dos proble-
lativas à política de saúde é baixo, no geral, com mas apontados acima, a mera regularidade do fun-
vantagens para os representantes do poder públi- cionamento dos conselhos, mesmo sob a predo-
co. Sendo assim, a composição da pauta é minância do segmento governamental, garante
freqüentemente definida pelo Presidente do con- certa publicidade às questões relativas à gestão
selho e pelo Secretário municipal de saúde, sem pública da saúde e justifica a aposta cautelosa de
maiores debates. Com a hegemonia dos represen- que esses espaços de participação possam instau-
tantes estatais, pode-se inferir que há alto grau de rar um círculo virtuoso de democratização e ge-
controle dos conselhos pelos governos munici- ração de capital social, possibilitando a formação
pais. política e qualificação técnica de agentes da soci-
edade civil.
Os conselhos, no limite, não definem as políti-
cas municipais de saúde. Trabalham com uma III.2 O Projeto CEIA
visão fragmentada da saúde, deliberando sobre
Outra experiência de implementação de espa-
questões limitadas e secundárias. A maioria das
ços participativos, talvez a única no caso brasilei-
questões tratadas no âmbito dos conselhos não é
ro, foi o projeto Centro de Encontro e Integração
estruturante do setor: com indicadores bastante
de Ações (CEIA), desenvolvido no município de
próximos entre os dois municípios, cerca de 65%
Betim, de 1997 a 2000 7 . O projeto foi
dos assuntos tratados são acidentais, ou seja, são
implementado por um governo do Partido dos
introduzidos e decididos ad hoc (idem, p. 90).
Trabalhadores, com o objetivo de aprimorar a
Enfim, as diferentes tradições sócio-políticas participação política dos moradores de Betim por
de dois municípios não se refletem de maneira meio da constituição de canais de participação da
muito significativa na configuração da participa- população junto ao poder público municipal.
ção social dos conselhos de saúde, que, em geral,
O município de Betim é um dos mais ricos do
são caracterizados pela baixa freqüência às reuni-
estado de Minas Gerais, sede de dezenas de em-
ões, pela predominância do seguimento governa-
presas industriais, algumas importantes, como a
mental e pelo pequeno número de deliberações
fábrica de automóveis Fiat e a Petrobrás. É, por
sobre questões realmente significativas.
exemplo, o segundo pólo automobilístico do país
Em Lagoa da Prata, a ligação dos representan- e a segunda maior arrecadação de Imposto sobre
tes governamentais ao PT não significou maior Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) do
autonomia dos conselhos. Na verdade, como se estado de Minas Gerais. Com cerca de 330 000
indicou anteriormente, há indícios de
instrumentalização do conselho pelo Governo
municipal, com o retraimento da participação de 7 Esse tópico baseia-se nos dados levantados em Lima
setores não ligados ao partido. Há certa distância (2003).

179
GESTÃO PÚBLICA MUNICIPAL E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NO BRASIL

habitantes, situa-se na região metropolitana de Belo da democracia representativa seriam insuficien-


Horizonte. É um município com 97% de popula- tes para uma manifestação realmente democráti-
ção urbana. Como toda grande cidade brasileira, ca da população, percepção esta, como vimos,
tem problemas sociais agudos como pobreza e bastante difundida nos setores de esquerda. Além
falta de segurança pública. disso, radicalizando essa tendência, diagnostica-
vam que os mecanismos já existentes de partici-
Talvez por combinar uma população compos-
pação política da sociedade civil, quais sejam, o
ta por uma massa de pobres e um operariado in-
orçamento participativo e os conselhos de políti-
dustrial, a cultura política do município apresenta
cas setoriais, não estavam conseguindo envolver
traços contraditórios. De um lado, apresenta ma-
a maioria dos cidadãos, demonstrando fragilidade
nifestações de patrimonialismo e clientelismo; de
em complementar a democracia representativa.
outro, a presença de uma sociedade civil organi-
Daí a necessidade de expandir os canais de parti-
zada, com movimentos sociais de diversos tipos,
cipação.
sindicatos atuantes e a atuação de uma Igreja Ca-
tólica progressista. Essas características diferen- A adoção do CEIA torna-se, portanto, priori-
ciadas expressam-se na alternância entre dois gru- dade do governo do PT, ao lado da priorização de
pos, ideologicamente distintos, no governo do políticas sociais como saúde, educação, empre-
município: um à direita, mais clientelista; e outro go. Com a ênfase em consolidar canais de partici-
à esquerda, mais programático e conectado aos pação da sociedade civil junto ao poder público, o
setores organizados da sociedade. projeto CEIA torna-se central para a estratégia do
governo de consolidar a democracia participativa
A experiência abordada aqui, como se disse,
no município. Um processo, diga-se de passagem,
foi desenvolvida no contexto de um governo do
que já estava em desenvolvimento. No governo
Partido dos Trabalhadores (PT), que, em coliga-
anterior, do mesmo PT, espaços de participação
ção com o Partido Comunista do Brasil (PC do
como orçamento participativo, gestão participativa
B), o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e o Parti-
das escolas, conselhos deliberativos de políticas
do Verde (PV), governou a cidade de 1993 a 2000.
públicas e Plano Diretor elaborado de maneira
Expressando essa origem de esquerda do go- participativa haviam sido implementados. Imagi-
verno municipal, o projeto CEIA foi inspirado nos nava-se, como no resto do país, que com a capa-
Comitês de Defesa da Revolução cubanos. A idéia cidade de mobilização desenvolvida como reação
do projeto surge de uma visita do Prefeito de Betim ao regime autoritário por amplos setores da soci-
a Cuba, especificamente de seu contato com os edade civil brasileira – no caso do município, es-
comitês. Assim, tal como a experiência cubana, o pecialmente o operariado industrial –, bastaria a
CEIA buscou organizar a população de Betim em criação desses canais de participação para que a
núcleos por quarteirões, no sentido de mobilizá-la democracia participativa desenvolvesse todo o seu
para discutir questões referentes aos serviços pú- potencial.
blicos. Cada quarteirão foi incentivado, pelo go-
Porém, os resultados alcançados, no primeiro
verno municipal, a eleger seus representantes e
momento, ficaram aquém do almejado. O Plano
seus suplentes, cujo papel seria intermediar as re-
Diretor, com prazo de vigência de 15 anos, foi
lações entre os moradores do município e o poder
discutido com a população por meio das oito regi-
público. Cerca de 90% dos quarteirões da cidade
ões administrativas da cidade, mas não conseguiu
chegaram a constituir seus representantes. Em
mobilizar suficientemente a população, talvez por
julho de 2000, o projeto contava com 4 456 re-
ser uma política regulatória cujos efeitos seriam
presentantes de quarteirões, entre titulares e su-
pouco percebidos pela maioria, por se fazerem
plentes, englobando 97 bairros e 300 000 habitan-
sentir no longo prazo. O orçamento participativo,
tes (LIMA, 2003, p. 93). Ou seja, quase a totali-
apesar da participação expressiva no seu início,
dade dos habitantes do município.
começou a se esvaziar pela escassez de recursos
O poder Executivo municipal fomentou a or- para cumprir as obras definidas pela população.
ganização da população em torno de cada quartei- Os conselhos de políticas setoriais foram criados,
rão, com o objetivo declarado de superar os tra- mas também apresentavam problemas em seu
ços clientelistas que caracterizariam a cultura po- funcionamento. O governo municipal acabava ten-
lítica da cidade. O projeto surgiu da percepção do controle sobre eles, comprometendo o seu
dos governantes de Betim de que os mecanismos objetivo de controle social. No geral, os conse-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 19, Nº 38: 171-185 FEV. 2011

lhos faziam poucas reuniões e, na prática, o seu dia resolvia seus problemas de saúde por meio de
caráter era mais consultivo do que deliberativo. seguros privados. Sendo assim, inseriu-se a dis-
Funcionavam, na verdade, segundo o interesse do cussão de um tema mais sensível para os setores
poder Executivo. Além do mais, percebeu-se que médios da população: o problema da segurança
a população mais jovem não participava em ne- pública. Para isso foi realizada uma parceria com
nhum desses canais de deliberação. a Polícia Militar do estado de Minas Gerais.
Sendo assim, partindo da percepção das insu- A estratégia de conectar os espaços de partici-
ficiências dos mecanismos participativos então pação com a discussão de políticas públicas es-
existentes, o projeto estabeleceu níveis de organi- pecíficas parece ter tido resultados diferenciados.
zação, partindo, primeiro, do CEIA por quartei- Com a saúde, começou a haver sobreposição de
rões, cujos representantes reuniam-se uma vez por espaços de representação com os conselhos mu-
mês com membros do governo municipal; num nicipais de saúde. No caso da segurança pública,
segundo nível, com representantes do CEIA por a parceria dos representantes de quarteirão com a
bairros; num terceiro nível, por regiões adminis- Polícia Militar parece ter logrado algum êxito, na
trativas; finalmente, com a representação de to- medida em que a mobilização potencializou a ca-
dos os CEIAs do município. Assim, as atividades pacidade de ação da polícia.
organizavam-se nos quarteirões, de acordo com
Em suma, se as políticas de segurança e saúde
um planejamento definido de maneira participativa
foram formas de atrair participação, a orientação
e iam se agregando por bairros, regiões adminis-
do Prefeito era de que todas as ações do governo
trativas, até alcançarem todo o município. Men-
deveriam passar pelo projeto CEIA. Como o pro-
salmente havia reuniões por bairros. Trimestral-
jeto era organizado pelo gabinete do Prefeito, isso
mente, os representantes regionais reuniam-se com
implicou em uma forte centralização das decisões
o Prefeito e seus secretários. Finalmente, havia
no chefe do poder Executivo municipal. E esse
um encontro festivo anual com todos os repre-
poder de controlar as relações com a população
sentantes da cidade, que chegou a reunir mais de
do município foi utilizado como forma de limitar
3 000 pessoas.
o espaço de ação política de outros grupos do pró-
A equipe de trabalho da prefeitura municipal prio partido do Prefeito, que disputavam o con-
foi organizada em uma coordenação geral, uma trole da legenda com o seu grupo. Sendo assim,
equipe interna, de apoio logístico, e uma equipe tal estratégia provocou reações de setores da pró-
externa, de trabalho de campo. O coordenador pria administração: alguns secretários municipais
geral do projeto ganhou status de Secretário Mu- rebelaram-se contra essa centralização, pois su-
nicipal, estando vinculado diretamente ao gabine- bordinava excessivamente as ações de suas pas-
te do Prefeito. A equipe externa trabalhava nas tas ao gabinete do Prefeito. E isso com a agravan-
regionais administrativas, com o objetivo de mo- te, na perspectiva dos secretários, de que essa
bilizar a participação nos quarteirões e mediar a centralização vinha legitimada como expressão da
interlocução do governo com a comunidade. Essa participação dos cidadãos. Esse embate pela dis-
equipe era formada por pessoas com atuação em tribuição do poder expressou-se, por exemplo, no
cada regional e composta por militantes do Parti- veto que os administradores regionais impuseram
do dos Trabalhadores – o que claramente revestia à idéia cogitada, no início do projeto, de formar
o projeto de um caráter partidário. conselhos populares para as administrações regi-
onais8. Os administradores regionais vetaram a
As reuniões e a escolha dos representantes de
idéia, já que em sua grande maioria, pretendendo
quarteirões eram organizadas pela prefeitura. Os
candidatar-se a vereador, viam nesses conselhos
representantes de quarteirões, que não tinham tem-
espaços para atuação de lideranças rivais ligadas
po estipulado de mandato, ganhavam carteira de
ao chefe do poder Executivo. Ou seja, o projeto
identificação para facilitar seu acesso às autorida-
influenciava na disputa de poder de grupos rivais
des municipais. Para atrair as pessoas para as reu-
dentro do próprio partido do governo.
niões, inicialmente foi colocada em discussão a
política de saúde do município, tema constatado
como prioritário para a população. Porém essa 8 A administração municipal era dividida territorialmente
estratégia era eficiente especificamente com as em regionais administrativas, cada qual com seu adminis-
classes populares, já que boa parte da classe mé- trador.

181
GESTÃO PÚBLICA MUNICIPAL E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NO BRASIL

Como se viu, pelo menos formalmente o CEIA cia. Nesse ponto, pode-se sugerir a hipótese de
consolidou-se em todo o município. Em avaliação que a democracia participativa caracteriza-se, não
realizada pela própria prefeitura, 56% dos repre- raro, pela participação de excluídos em decisões
sentantes participavam assiduamente das reuni- secundárias: as grandes questões seriam, essas
ões (idem, p. 111)9. Buscando avaliar os motivos sim, decididas em espaços insulados por grupos
que levavam os 44% restantes a não participar, a de interesses com acesso a recursos de poder mais
prefeitura apurou que um deles estaria relaciona- efetivos.
do com o problema de falta de segurança pública.
O caso do projeto CEIA fornece elementos
Como o horário mais viável para a participação
para outro tipo de questão bastante relevante na
das pessoas que trabalham é o noturno, justamente
discussão sobre participação democrática. Des-
o mais perigoso, diversas pessoas declararam não
locando o foco para uma perspectiva mais ampla,
participar das reuniões do CEIA por medo da vio-
uma questão crucial a ser enfrentada, nesse tema,
lência. Justificativa que remete às pressões
é qual o resultado da adoção de uma diversidade
desmobilizadoras, apontadas por Whitehead
de experiências participativas simultaneamente.
(1999), a que a sociedade civil está sempre ex-
Nesse sentido, havia a preocupação, pelo menos
posta, dentre elas a falta de segurança.
manifesta, dos formuladores do projeto CEIA, em
A incidência da questão de gênero no tema da não concorrer com outros canais de participação
participação, bastante evidente na bibliografia so- existentes, como os conselhos setoriais de políti-
bre o tema, faz-se notar no caso abordado. A cas públicas e o orçamento participativo. De qual-
maioria dos participantes do CEIA era de mulhe- quer forma, apesar dessa intenção expressa, esta-
res: 76,5%, contra 23,5% de homens. A maior va no horizonte dos formuladores do projeto a
parte dessas, 57%, estava na faixa etária situada idéia de que quanto mais espaços de participação
entre 30 e 50 anos e 86% eram mães. A maioria, difundissem-se, mais consolidada estaria a cida-
por sua vez, encontrava-se em condições desfa- dania democrática. Na prática, o que se viu foi
voráveis no mercado de trabalho: 45,4% declara- uma sobreposição de espaços participativos con-
vam-se desempregadas ou trabalhavam em casa correndo entre si. Algo que não é processado ade-
– mais especificamente, 31% como trabalhado- quadamente pelos formuladores de reformas
ras do lar, 5% como costureiras e 14,5% com institucionais é que a profusão desses espaços, de
serviços eventuais. Essas mulheres tinham, em sua alguma maneira, e em alguns casos específicos,
maioria, baixa renda: 46% ganhavam até dois sa- implica sobreposição e concorrência. Sendo as-
lários mínimos e 86,5%, até cinco salários. Ti- sim, ao contrário das esperanças de muitos, a di-
nham também baixo grau de educação formal: fusão além de certo limite desses espaços pode
71,9% haviam cursado até o ensino fundamental prejudicar a qualidade de participação. O caso de
(LIMA, 2003, p. 115-120). Betim, que não é exceção, demonstra que não há
um planejamento global de articulação desses es-
Portanto, dada a precariedade de sua inserção
paços. Na verdade, eles vão se constituindo a partir
no mercado de trabalho formal, a maioria dos par-
de demandas parciais e fragmentadas, cuja agre-
ticipantes do CEIA tinha disponibilidade de tempo
gação produz “efeitos não esperados”. Mesmo
para participar, solucionando um outro fator
porque, como constatado no caso em questão, as
desmobilizador bastante relevante nos tempos atu-
pessoas atuantes apareciam participando em di-
ais: a disponibilidade de tempo para o exercício da
versos espaços ao mesmo tempo. Ou seja, em
participação democrática. No caso de Betim, po-
Betim, o aumento dos espaços de participação não
rém, o requisito “disponibilidade de tempo” está
implicou necessariamente acréscimo na quantidade
presente de uma forma perversa: mulheres exclu-
e na qualidade da participação democrática.
ídas do mercado de trabalho formal, de baixa for-
mação educacional e pobres são as que mais par- Uma evidência dessa sobreposição de espaços
ticipam. Talvez por ser a única saída que lhes res- de participação e dos conflitos decorrentes foi a
tava para resolver seu problema de sobrevivên- reação negativa das associações de moradores do
município ao CEIA, já que se viram ameaçadas
9 Os dados foram levantados por meio de entrevistas com
pelo projeto e buscaram estratégias para garantir
sua autonomia em relação ao governo municipal,
cerca de 1 700 representantes de quarteirões, realizadas em
abril de 2000 (LIMA, 2003). boicotando a participação nos quarteirões, em al-

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guns casos, ou buscando eleger os seus repre- com sua lógica competitiva, estabelece inevitavel-
sentantes, em outros casos. Houve aí claramente mente o perigo da instrumentalização da partici-
uma disputa de controle de espaços sobrepostos pação para fins eleitorais.
entre grupos ligados ao poder público e outros
Outro aspecto a que o caso de Betim pode for-
atores representados na sociedade civil.
necer elementos de análise diz respeito à questão
De alguma forma, o potencial de conflito de de em que medida tais experiências de participa-
interesses do projeto era do conhecimento dos seus ção dependem da vontade dos governantes. Com
formuladores. Seja com setores da sociedade ci- a alternância posterior do governo municipal, der-
vil, como no caso das associações de moradores rotados os partidos de esquerda comprometidos
do município, seja com o próprio poder com a democracia participativa pelo grupo políti-
Legislativo, como se verá. Tanto que o projeto co do município mais à direta, nas eleições muni-
CEIA foi concebido em sigilo pelo núcleo do po- cipais de 2000, essas experiências refluíram: o
der municipal e implementado de maneira rápida, CEIA e o orçamento participativo acabaram e os
“para que os vereadores não manipulassem as reu- conselhos setoriais de políticas públicas passaram
niões de escolha dos representantes de quartei- a ser desconsiderados pelos novos governantes.
rão”, segundo palavras do Prefeito de então (idem, Com o Partido Liberal (PL) no poder, reforçaram-
p. 121). Mesmo assim, em resposta, os vereado- se as relações abertamente clientelistas entre po-
res buscaram cooptar os representantes de quar- pulação e poder municipal. Há, assim, forte evi-
teirão como cabos eleitorais, com muitos deles dência da dependência que as experiências de de-
inclusive passando a assessorá-los. Em outros mocracia participativa têm do poder Executivo,
casos, vários vereadores alegaram que os repre- sustentando a tese de que o capital social deriva,
sentantes de quarteirão estavam usurpando suas de maneira significativa, do comprometimento do
funções ao mediar as demandas da população di- poder público com a idéia da participação.
retamente com o poder Executivo municipal.
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim, havia o risco de instrumentalização da
Enfim, em referência ao que foi desenvolvido
participação tanto pelo poder Executivo como pelo
até aqui, podemos retomar algumas reflexões so-
Legislativo. A idéia de uma complementação vir-
bre o esforço de consolidação de espaços de par-
tuosa entre os diversos espaços de participação
ticipação e deliberação da sociedade civil sobre as
deliberativa e entre a democracia participativa e a
políticas públicas, nos anos recentes. Cremos que
democracia representativa não se mostrou tão fá-
as observações que se seguem, ainda que
cil no caso.
incipientes e sustentadas em evidências insufici-
Na verdade, o objetivo dos formuladores do entes, podem ajudar a pensar sobre os problemas
CEIA era dúbio. Ao mesmo tempo em que de- envolvidos no desafio da construção democráti-
monstraram acreditar na mobilização da popula- ca.
ção como meio de construção da democracia,
Topicamente, podemos ressaltar que: 1) As
pragmaticamente trabalharam no sentido de au-
experiências de participação abordadas demons-
mentar a base social de sustentação do governo,
tram a importância relativamente maior do papel
instrumentalizando a experiência do CEIA, com o
do poder público e do compromisso de seus diri-
objetivo de fortalecimento eleitoral do grupo no
gentes com os espaços de participação, em rela-
poder. Isso fica claro, por exemplo, na forma de
ção às características da sociedade civil. O papel
organização da reunião anual com todos os repre-
mobilizador do Estado é fundamental para o su-
sentantes do projeto – um evento com forte
cesso das iniciativas de participação. As diferen-
conotação eleitoral, com a escolha de militantes
tes características das sociedades civis de Lagoa
do PT para mediar os contatos com os represen-
da Prata e Bom Sucesso não são suficientes para
tantes de quarteirão e com o controle direto do
explicar um menor ou maior sucesso dos conse-
gabinete do Prefeito na coordenação geral do pro-
lhos de saúde. Por outro lado, concretamente, a
jeto. Buscavam mais que se abrir às reivindica-
mudança na orientação do governo municipal de
ções da população: buscavam difundir as ações
Betim, no sentido do seu não comprometimento
da prefeitura e arregimentar apoios políticos. E
com a democracia participativa, implicou refluxo
aqui, lançando um olhar mais realista aos fatos,
das diversas experiências de participação social
pode-se afirmar que a democracia representativa,
no município;

183
GESTÃO PÚBLICA MUNICIPAL E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA NO BRASIL

ples. A lógica da competição eleitoral acaba con-


2) A afirmação de que as mulheres têm maior
taminando os espaços de participação. A
propensão a participar mostrou-se verdadeira nos
instrumentalização desses espaços para fins polí-
casos abordados, mas não por características
tico-eleitorais deve-se tanto ao poder Executivo
“ontológicas” do gênero feminino. Essa tendên-
quanto ao Legislativo. Isso é bastante claro na
cia explica-se por fatores como maior tempo dis-
experiência do CEIA, mas também está presente
ponível, dada a sua exclusão do mercado formal
na experiência do conselho de saúde de Lagoa da
de trabalho, e necessidade de resolverem seus
Prata;
problemas pelas vias disponíveis;
7) Além disso, tomando como referência o
3) A relação positiva, proposta por parte con-
caso de Betim, não há uma visão de conjunto so-
siderável da literatura sobre o tema, entre maior
bre a institucionalidade democrática. Os espaços
nível educacional e de renda e maior disposição
de participação são criados de forma pontual e
de participar não é confirmada em todos os casos
fragmentada, redundando em conflitos e
abordados neste trabalho. Os espaços da demo-
sobreposições. Parece não bastar a difusão des-
cracia participativa são utilizados majoritariamen-
ses espaços para a “democracia se democratizar”.
te por grupos com baixa renda e escolaridade. Isso
Há que existir uma compatibilização desses espa-
suscita a questão, reiterada aqui, de se esses es-
ços, considerando uma medida equilibrada entre
paços de participação seriam para os setores
potencial participativo de dada sociedade e os es-
desprivilegiados da sociedade, enquanto as elites
paços participativos disponíveis;
atuariam de maneira mais eficaz por meio de ca-
nais menos transparentes; 8) Enfim, uma nota otimista. No geral, o grau
de participação efetivamente verificado está
4) Capital social é algo que pode ser realmente
aquém do desejado pelos defensores da demo-
afetado pelo que Whitehead (1999) chama de
cracia participativa, já que o critério de medida
“externalidades”, como disponibilidade de tempo
geralmente adotado é um padrão ideal difícil de
e condições de segurança pública. Ou seja, a falta
ser concretizado. No entanto, se olhamos a tra-
de segurança, tão comum nas grandes cidades, e
jetória histórica recente das nossas instituições
o tempo escasso funcionam como um fator
democráticas, apesar dos seus problemas, a de-
desmobilizador;
finição de espaços de deliberação pela socieda-
5) Maior capital social pode ser, em alguns de civil tem potencial inegável de aumentar a
casos, negativo para a democracia: a existência accountability do poder público, aumentando a
de grupos com grande capacidade de mobilização transparência de suas ações. Mas a consolida-
pode representar a captura dos espaços de deci- ção desses espaços não é solução para tudo. O
são em detrimento de outros grupos. É o caso, tema deve ser tratado, portanto, dentro de suas
por exemplo, do conselho de saúde de Lagoa da possibilidades reais. Não deve substituir, por
Prata, instrumentalizado pelo PT, como resultado exemplo, a crítica necessária, e hoje relegada
de sua relativa maior capacidade participativa; ao segundo plano, da lógica excludente dos
macro-processos políticos, sociais e econômi-
6) Compatibilizar democracia representativa
cos.
com democracia participativa não é algo tão sim-

Carlos Vasconcelos Rocha (carocha@pucminas.br) é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade


Estadual de Campinas (Unicamp) e Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 37: 295-300 OUT. 2010

which runs through the “national” space at all levels, represented,in particular, by Law and legislation.
The question of belief is seen as a basis for the legitimation of this new juridical order and of the
actions of specific agents in the social world. Thus, emphasis is given to the influence of a specific
life style shared by urban groups that tend to classify both “nature” and populations they consider
“traditional” as “others”, “exotic” vis-à-vis their urban environment. This brings us to the assumption
that the Brazilian State, responsible for environmental tutelage, plays a similar role with regard to
the populations that live within these conservation units, reserving for them a different type of
citizenship, one in which a series of particular rights and restrictions create a particular social
configuration. Through this case, it becomes possible to observe disputes regarding the legitimation
of territories instituted by the State and those that have been shaped by local collective action.
KEYWORDS: Environmental Conflict; Tutelage; Environmental Law.
* * *
PUBLIC MUNICIPAL MANAGEMENT AND DEMOCRATIC PARTICIPATION IN BRAZIL
Carlos Vasconcelos Rocha
This article looks at three cases of democratic participation in municipal administration in the state
of Minas Gerais, that is, Health Management Councils (Conselhos Gestores de Saúde), in the Bom
Despacho and Lagoa da Prata municipalities, and the Centers for Meetings and Integrating Actions
(Centros de Encontro e Integração de Ações (CEIA)), in the municipality of Betim. Over the last
few decades, political participation has been characterized by a growing presence of civil society in
processes surrounding the definition of public policy. Thus, the spaces in which civil society and
State actors participate in diverse arenas of decision-making on social policies tend to become
institutionalized. A substantial part of the existing literature places its wager on the democratic
virtues of political participation. This article, however, attempts to point to a series of problems
affecting the institutionalization of democratic participation. Results of the cases we look at here
show that the experiments analyzed do not indicate the evolution of Brazilian democracy in the
direction of its initial promise. In general, the degree of participation that is verified is less than that
which defenders of participatory democracy would desire, especially since the measurement criteria
that are adopted reflect an ideal standard that does not materialize easily. Nonetheless, if we look at
the recent historical trajectory of our democratic institutions, the definition of civil society’s deliberative
spaces, in spite of its problems, has the undeniable potential of reinforcing the accountability of
public power, thus increasing the transparency of its actions.
KEYWORDS: Democratic Participation; Municipal Administration; Public Policy.
* * *
WOMEN’S POLITICAL PARTICIPATION: A CASE STUDY
Amparo Novo Vázquez, Mercedes Cobo Carrasco and Luis A. Gayoso Rico
Over a century after the suffragists’ struggle to overcome women´s political inequality, there are
still significant, observable differences in women’s access to positions of political power, and
notwithstanding the quota system that the Spanish Partido Socialista Obrero Español (PSOE)
implemented in the mid 1980s in order to increase women’s representation and parity. In this paper,
we start from the hypothesis that although the quota system has favored women’s access to party
lists, they still experience difficulties in effectively gaining access to legislative positions. Thus, with
the goal of discovering what women’s presence really is within decision-making spheres, the present
article engages in empirical analysis of the relationship between militancy and participation in directive
organs and the relationship between militancy and access to positions of representation. We look at
how the PSOE has managed to establish a greater balance between militancy, participation in
directive organs and access to positions of representation using the quota system. Similarly, and

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 18, Nº 37: 303-309 OUT. 2010

présence humaine), sur la plage du Aventureiro, à Ilha Grande, région de Rio de Janeiro. La
perspective de l’analyse est basée sur la construction d’un monde symbolique à partir des centres
urbains - métropoles des régions nationales - et qui passe au-delà de toutes les échelles de l’espace
" national ", représenté, surtout, par le Droit et par la loi. La question de la croyance est travaillée
comme un fondement pour la légitimation de ce nouvel ordre juridique et des actions de certains
agents dans le monde social. Ainsi, devient importante l’influence d’un style de vie spécifique,
partagé par des groupes urbains, qui ont tendance à classifier la “nature” et les populations,
considérées comme “traditionnelles”, comme “les autres”, “ exotiques” à “l’environnement” urbain.
De cette façon, il est supposé que l’Etat brésilien, responsable par la protection de l’environnement,
finirait par assumer aussi le rôle de tuteur de ces populations qui habitent dans les unités de
conservation, en leur réservant un type différent de citoyenneté, où une série de droits et restrictions
particulières créent une configuration sociale caractéristique. A partir de ce cas, il est possible
d’observer des disputes pour la légitimation de territoires institués par l’Etat et de territoires configurés
par les actions collectives locales.
MOTS-CLES: conflit environnemental; tutelle; Droit Environnemental.

* * *

L’ADMINISTRATION PUBLIQUE MUNICIPALE ET LA PARTICIPATION


DEMOCRATIQUE AU BRESIL
Carlos Vasconcelos Rocha
Ce travail aborde trois cas de participation démocratique dans les administrations municipales de
Minas Gerais: les Conseils Gestionnaires de Santé, dans les villes de Bom Despacho et Lagoa da
Prata, et les Centres de Rencontre et Intégration d’Action (CEIA), dans la ville de Betim. Dans les
dernières décennies, la participation politique a été marquée par une croissante présence de la
société civile dans la définition des politiques publiques. Ainsi, sont institutionnalisés des espaces où
des acteurs de la société civile et d’Etats participent dans des nombreux domaines de décision de
politiques sociales. Partie substantielle de la littérature, ajoutée aux vertus démocratiques de la
participation. Ce travail, toutefois, vise à identifier une série de problèmes qui affectent
l’institutionnalisation de la démocratie participative. Les résultats des cas ici abordés, démontrent
que les expériences analysées n'indiquent pas une évolution de la démocratie brésilienne, selon les
promesses initiales. En général, le degré de participation effectivement vérifié est au-deçà de celui
désiré par les defenseurs de la démocratie participative, puisque le critère de mesure généralement
adopté est un standard idéal difficile a être atteint. Cependant, si nous observons la trajectoire
historique récente de nos institutions démocratiques, la définition d’espaces de délibération par la
société, malgré ses problèmes, a un potentiel indéniable de renforcer la reddition de comptes du
pouvoir public, en augmentant la transparence de ses actions.
MOTS-CLES: démocratie participative; administration municipale; politiques publiques.

* * *

LA PARTICIPATION DE LA FEMME DANS LA POLITIQUE: UNE ETUDE DE CAS


Amparo Novo Vázquez, Mercedes Cobo Carrasco et Luis A. Gayoso Rico
Plus d’un siècle après avoir commencé la lutte des suffragettes pour surmonter l’inégalité politique
féminine, encore aujourd’hui, des différences par rapport aux possibilités d’accès des femmes aux
postes de pouvoir politique sont observées. Quoique, à partir des années quatre-vingt, le système de
quotas a été introduit en Espagne, par la main du Parti Socialiste du Travail Espagnol (PSOE), pour
obtenir une augmentation de la représentation féminine et de l’égalité des sexes. Dans ce travail,

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