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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
Graduação em Psicologia

Sabrina Peixoto Magalhães

O RETORNO DA DEUSA NA CONTEMPORANEIDADE: OS CÍRCULOS DE


SAGRADO FEMININO A PARTIR DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

Fortaleza
2017
1

Sabrina Peixoto Magalhães

O RETORNO DA DEUSA NA CONTEMPORANEIDADE: OS CÍRCULOS DE


SAGRADO FEMININO A PARTIR DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

TCC apresentado ao curso de graduação em


Psicologia da Universidade de Fortaleza como
requisito parcial para aprovação na disciplina
de Trabalho de Conclusão de Curso em
Psicologia. Grupo de Pesquisa: Psicologia.
Linha de Pesquisa: Articulação simbólica entre
sujeito, meio e sociedade, em abordagem
qualitativa de paradigma junguiano.

Orientador(a): Prof. PhD. Carlos Velázquez

Fortaleza
2017
2

Sabrina Peixoto Magalhães

O RETORNO DA DEUSA NA CONTEMPORANEIDADE: OS CÍRCULOS DE


SAGRADO FEMININO A PARTIR DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

TCC apresentado ao curso de graduação em


Psicologia da Universidade de Fortaleza como
requisito parcial para aprovação na disciplina
de Trabalho de Conclusão de Curso em
Psicologia. Grupo de Pesquisa: Psicologia.
Linha de Pesquisa: Articulação simbólica entre
sujeito, meio e sociedade, em abordagem
qualitativa de paradigma junguiano.

Data de aprovação: ____/____/____

Banca Examinadora:

______________________________________
Prof. PhD. Carlos Velázquez
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA

______________________________________
Prof. Ms. Maíra Maia de Moura
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA

______________________________________
Profa. Dra. Alessandra Alcântara
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
3

Ficha catalográfica da obra elaborada pelo autor através do programa de


geração automática da Biblioteca Central da Universidade de Fortaleza

Magalhães, Sabrina Peixoto.


O Retorno da Deusa na Contemporaneidade: Os Círculos de
Sagrado Feminino a partir da Psicologia Analítica / Sabrina
Peixoto Magalhães. - 2017
28 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Universidade


de Fortaleza. Curso de Psicologia, Fortaleza, 2017.
Orientação: Carlos Velazquez.

1. Círculos de Mulheres. 2. Sagrado Feminino. 3. Grupos. 4.


Psicologia analítica. I. Velazquez, Carlos. II. Título.
4

FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ


UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE – CCS
CURSO DE PSICOLOGIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

O RETORNO DA DEUSA NA CONTEMPORANEIDADE: OS CÍRCULOS DE


SAGRADO FEMININO A PARTIR DA PSICOLOGIA ANALÍTICA
Autor(a): Sabrina Peixoto Magalhães
Prof(a). Orientador(a): Carlos Velázquez Rueda

Palavras-chave: Sagrado Feminino. Círculos de mulheres. Grupos. Psicologia analítica.

Resumo
O interesse das mulheres contemporâneas pelos grupos do Sagrado Feminino, resgatando
práticas das sociedades matríticas, nos depara com um fenômeno novo, que nos aproxima da
visão junguiana arquetípica de anima e animus. Numa sociedade regida pelo patriarcado por
séculos, quando os aspéctos da anima são relegados à sombra, surge um desequilibrio visível
no mal estar social atual. Agora, as mulheres conquistaram espaço na sociedade e buscam
reencontrar sua anima nestes grupos. Como e porque tal fenômeno ocorre nesse momento
histórico é o que nos propomos a compreender a partir do paradigma junguinao de pesquisa.
Introdução
No ano de 2014 recebi um convite inusitado de uma amiga de caminhada
espiritual: vamos formar um grupo de Sagrado Femino? Eu não tinha o menor conhecimento
do que seria aquilo, ela me explicou vagamente, que estava “sentindo um chamado da sua
alma para estar em círculo com outras mulheres, para falar e ouvir”. Aceitei e iniciamos as
primeiras rodas de mulheres na casa dela, um pequeno sítio próximo à Fortaleza-Ceará, onde
tinhamos a privacidade necessária e o contato com a natureza pois, quando começamos a
pesquisar sobre o tema, entendemos que isto era importante. Descobrimos que as práticas
descritas nos sites que abordavam a temática, giravam em torno de uma Deusa, que era vista
como a própria terra: Mãe Natureza, Gaia, Pachamama. Independente do nome e da tradição
cultural, se tratava de uma reconexão com essa dimensão perdida, instintiva, natural do ser
humano com a vida viceral, com o meio ambiente, com o cosmos.

Nos demos o nome de Mulheres da Lua. Nos primeiros encontros, que fazíamos
sem nenhum planejamento de temas nem metodologia, nos encontrávamos pela vontade de
partilhar juntas e construir nosso entendimento sobre esse tal de Sagrado Feminino. Nos
sentávamos em círculo, fazíamos uma fala de abertura em forma de oração, onde cada uma
podia ir falando o que vinha ao coração. E falávamos. Falávamos do que achávamos ser o
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sagrado, o feminino, das pesquisas que estávamos fazendo e dos temas que estávamos nos
identificando: menstruação, ciclos, métodos contraceptivos alternativos, a ligação da mulher
com a lua, com a terra, falávamos das antigas tradições da Deusa como a Wicca, o culto às
Deusas Gragas, as tradições africanas com suas orixás como Iemanjá, Oxum, Nanã, ou as
deusas hindus, Sarasvati, Mahadevi, Lakshmi. Redescobrimos o uso das ervas e práticas
naturais de cura para evitar o uso de químicos e estarmos cada vez menos atravessadas por
substâncias que inibiam o fluxo natural do nosso organismo e nos desconectavam,
consequentemente, do fluxo natural da terra e do cosmos. Falávamos de nossas experiências e
fomos descobrindo que muitas coisas que já sabíamos, aprendidas com nossas mães, tias,
avós, ou mulheres sábias que cruzaram nosso caminho, eram práticas ligadas ao Sagrado
Feminino, só nunca tinhamos lhes dado esse nome.

Começamos a nos aprofundar e entender nossa força feminina, nos fortalecendo


juntas a partir do olhar acolhedor e empoderador da outra, o círculo virou um centro de poder
e conhecimento, um ninho que nos acolhia sem julgamentos, pois todas se identificavam com
a história umas das outras, se reconhecendo nelas, a partir de seus úteros, a partir do seu
feminino sagrado. Neste momento, depois de um ano de encontros, houve um grande
movimento de reordenação interna e externa do círculo. Tinhamos nos preenchido de muita
informação, tínhamos criado vínculos, tinhamos vivenciado, principalmente, esta experiência
de uma forma muito intuitiva, e percebemos que precisávamos integrar tudo isso. Até então as
rodas aconteciam de maneira aberta onde qualquer mulher poderia convidar outras para
participar. Um dia, tinhamos sessenta mulheres num encontro e não sabíamos o que fazer com
tanta gente. Sentimos que era hora de nos preparar como canais para sustentar algo que se
tornou muito maior do que tinhamos pretensão. Foi um movimento espontâneo essa chegada
de tantas mulheres, gradual, mas quando nos demos conta da magnitude e do alcace desses
círculos, resolvemos encarar nossas limitações.

Começamos a buscar outras mulheres que faziam trabalhos nesse sentido.


Participamos de ínumeros outros círculos, tanto em Fortaleza como fora da cidade. Encontros
pagos, estilo work shops de imersão de vários dias, encontros abertos, encontros que seguiam
linhagens de tradições mais específicas e outros que estudavam textos de livros, enfim,vários
formatos e novas possibilidades. Nos chegou assim o livro de Clarissa P. Estés Mulheres que
Correm com os Lobos. Começamos a fazer grupos de estudos desse texto, aprofundando
nosso autoconhecimento individual, enquanto grupo e enquanto potenciais facilitadoras.
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Percebemos neste momento que toda mulher tem o potencial de curar a outra, de várias
formas.

Esse empoderamento rendeu outros projetos filhos do Mulheres da Lua. As


participantes começaram a direcionar seus dons e talentos de forma a oferecer para mais
mulheres a oportunidade de experienciar o Sagrado Feminino das mais diferentes formas.
Uma fotógrafa do grupo começou a fazer ensaios de empoderamento feminino e em contato
com a natureza, criando imagens de mulheres ao natural com seus corpos que, até então
muitas delas não aceitavam totalmente, sendo mostrados no esplendor da Deusa. Estas fotos
vieram a ilustrar um projeto chamado O Diário da lua vermelha, parceria com outra mulher
geradora de círculos que morava na Europa, onde por mais de um ano foram postados textos
sobre a mulher os ciclos menstruais e o poder do sangue. Uma tatuadora desenvolveu uma
série de desenhos sobre essa temática o que virou sua marca registrada, pois expressava
imagens arquetípicas que povoavam os incosncientes de muitas de nós. Uma artista plástica
passou a criar mandalas e uma vivência em que se pode aprender a utilizar esses desenhos
como portais para o insconsciente. Eu mesma reencontrei uma tradição das minhas ancestrais
de origem indígena com as cura pelas ervas e desenvolvo um trabalho em terapias
complementares com isso. Outra chamado da minha alma foi facilitar grupos de estudo
teóricos-vivenciais sobre sobre Sagrado Femino para mulheres, aliado aos saberes da
psicologia socioeducativa, grupal e da psicologia Junguiana.

Diante disso, despretei para o interesse na pesquisa sobre o tema, que percebo
como um fenômeno social importante de nossa época, já que mobiliza tantas mulheres e
propicia para elas uma forma de potencializar seu desenvolvimento, além do bem estar
pessoal, que reverbera para todas as suas relações sociais. Assim nasce este estudo, em que
fomos aos primórdios das sociedades humanas, buscar referenciais para compreender tal
fenômeno dos círculos de mulheres que ocorre na contemporaneidade, destacando que se trata
de um recorte do momento social que vivemos, e, para este estudo, nos detivemos aos
aspéctos que dizem respeito mais às questões históricas e fundantes do fenômeno tentando
compreender seus possíveis impactos e desdobramentos atuais e futuros à luz da psicologia
analítica.

Ao longo do desenvolvimento da humanidade pudemos observar o declínio das


sociedades matrísticas, que, de acordo com Vieira (2011), com base em estudos
arqueológicos, eram culturas em que a religião era voltada para adoração de uma Deusa. Faur
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(2003), descreve que em todas as clturas antigas do mundo inteiro, esses achados
arqueológicos revelam representações da Deusa como “A Criadora Divina” .

A Deusa é a Grande mãe cósmica, celeste, telúrica e catiônica, que dá e tira a


vida, eterna Criadora, mas também Ceifadora e Regeneradora, a Tecelã
Divina, que entrelaça e conduz todas as forças da Terra e do Cosmos. Na sua
extensa e variada tessitura, tudo está interligado e é interdependente, pois
aquilo que afeta um dos fios se repercute vibratóriamente em toda a teia
cósmica. A Deusa é uma força imanente e permanente em tudo, onipresente
e abrangente do Todo; diferente da figura celeste e longínqua de Deus, Ela
impregna cada ato de criação e nutrição com Sua essência, por ser o Seu
corpo a própria Terra.(Faur, 2011, pp 24-25)

Neste modelo de sociedade matrifocal ou matrística, Oliveira (2005) ressalta que


o feminino não era tido como superior ao masculino e havia uma relação de parceria entre as
relações humanas evidenciando-se a colaboratividade. Eisler (2007) identifica dois tipos de
sociedade ou duas formas de relacionamento humano coletivo. A primeira baseada na
cooperação, seria exatamente as sociedades matrísticas ancestrais, que foram suplantadas pela
segunda forma, baseada na dominação, o patriacado, em que as características masculinas são
mais valorizadas que as femininas. De acordo com Naranjo (2006), essa mudança tem ínicio
há cerca de seis mil anos, destacando como caracteristicas do patriarcado valores como
competitividade, violência e distanciamento dos indivíduos de seus aspectos naturais pessoais
e do meio ambiente, o que causou um desequilíbrio nestas sociedades onde as mulheres foram
subjulgadas e até hoje experiencia-se um mal estar social decorrente dessas mudanças.

Muitos movimentos nascem a partir dessa percepção numa busca de igualdade de


gêneros onde a mulher possa ter direitos iguais aos dos homens. Segundo Frazão (2005), o
feminismo vem a ser um deles, figurando na luta por direitos civis e trabalhistas das mulheres
e seu reconhecimento como protagonistas na sociedade, obtendo várias conquistas nesse
sentido como direito ao voto, introdução na escolarização e ao mercado de trabalho, igualdade
salarial, politicas públicas específicas para mulheres. Para a autora, no feminismo há uma
busca por direitos onde a mulher, equivocadamente, introjeta que para conquista-los necessita
ser semelhante ao homem, desvalorizando seus aspéctos essencialmente femininos.

As mulheres entraram no universo masculino, vivendo valores masculinos


de poder, objetividade, competitividade, e abriram mão do seu feminino
para se valorizarem e serem valorizadas por isso. E os valores do feminino
que incluem o receptivo, o cooperativo, o intuitivo, passaram a ser vistos
como aspectos de segunda categoria. (SOUTO, 2005, p. 163)
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No entanto, recentemente em nossa história contemporânea, pudemos observar o


surgimento —ou ressurgimento— do movimento intitulado por suas seguidoras de Sagrado
Feminino, que se diferencia do feminismo e se aproxima mais das práticas das sociedades
matrísticas ancestrais. Para Faur (2011), um dos movimentos mais marcantes do século XX
foi o renascimento da religião da Deusa nas culturas ocidentais, a partir da década de 60,
quando homens e mulheres de diversos países da Europa, Américas e Oceania, privados do
simbolismo sagrado do feminino durante séculos de supremacia patriarcal, redescobriram e
passaram a praticar rituais das antigas religiões matrifocais. Segundo Barbosa(2014),
discussões sobre o resgate do feminino profundo estão ocorrendo a algum tempo, quando
mulheres vêm despertando sua conexão com espiritualidade por meio do arquétipo da Deusa,
e, consequentemente, sendo defrontadas com as evidentes dominações do patriarcado,
despertando questionamentos.

Esse novo movimento feminino, apesar de vivenciado e desencadeado


prioritariamente por mulheres, não tem fundamentação no gênero e nos remete mais à
definição junguiana de energia psiquica, enquanto anima (feminino) e animus (masculino)
buscando um equilíbrio entre as duas polaridades.

Para Jung (1987), o psiquismo é considerado em polaridades, portanto em termos


de energia psiquica, homens são dotados de aspéctos Yin, feminio, presentes em seu
inconsciente, que ele denomina anima, enquanto mulheres, possuem aspéctos inconscientes
Yang, masculinos, denominado animus.

Entendemos assim, que no contexto da sociedade patriarcal as qualidades da


anima, como intuição, sensibilidade, cuidado, por exemplo, são consideradas menos
importantes em relação às qualidades animus, a saber: racionalidade, dominio, lógica, que
foram sem dúvida muito importantes para o avanço da sociedade em termos tecnológicos,
mas que, se valorizadas em detrimento de sua polaridade feminina, acabam trazando
desequilibrios para os sujeitos, que vêm a manifestar seu feminino como Sombra, trazendo
esse desequilíbrio para o âmbito social também.

O conceito de Sombra na obra de Jung(1987), se caracteriza por ser um aspécto


não reconhecido pela consciência do individuo, que cresce e se manifesta à sua revelia dentro
da psique. Por não ser integrado à consciência, este aspécto não acompanha o seu
desenvolvimento, apresentando-se de forma arcaica, rudimentar, às vezes estacionando em
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estágios primitivos do sujeito. No lugar de se manifestar de forma saudável, em sua


polaridade positiva, o aspécto se manifesta de forma negativa, como sombra.

Desta forma, a partir da leitura da psicologia analítica, podemos perceber que a


anima vem sendo relegada à sombra nos indivíduos em nossa sociedade ao longo de seu
desenvolvimento. Mulheres se menosprezam em seus potenciais se deixando conduzir por
imposições que ferem sua natureza psiquica. Homens, da mesma forma, não desenvolvem seu
lado empático e sensível, trazendo prejuizos sérios ao contexto social como as várias
violências relacionadas ao gênero, visão de menosprezo ao que remete ao feminino,
imposição de limitações à sexualidade, dentre tantas outras.

O movimento do Sagrado Feminino surge nesse contexto da evolução da nossa


cultura, caracterizado por um resgate de práticas mais naturalistas, como estudo e utilização
de ervas e matérias primas naturais para tratamento da saúde; ritos de passagem; culto às
Deusas e representações arquetípicas de várias tradições, como a Deusa Tríplice das culturas
Celtas; relação mais integrativa com a natureza, onde a própria Terra é a Deusa Mãe que
nutre e sustenta, vendo todo o ecosistema como, portanto, sagrado e digno de cuidado e
respeito; reconhecimento da natureza cíclica macroscósmica que, consequentemente reflete a
pessoal e humana como microcósmica; conexão com o próprio corpo prezando por práticas
com menos atravessamento artificial; resgate das relações de colaboratividade entre homens e
mulheres, por exemplo. Lembrando que, como foi dito anteriormente, nosso foco se concentra
em responder como e por que este fenômeno ocorre agora, portanto o aprofundamento de
algumas das características citadas acima não será feito neste trabalho, havendo pretensão de
continuar a pesquisa futuramente.

O Sagrado Feminino vem sendo buscado por milhares de mulheres no mundo


todo nas últimas décadas. Elas se reunem em círculos com 10 ou até mais de 1000 mulheres,
no caso de eventos maiores, que se encontram periodicamente, às vezes seguindo as fases da
lua, para ritualizar, trocar experiências, se cuidar ou estudar as antigas tradições e suas
práticas.

Numa rápida pesquisa no Google com o termo Sagrado Feminino, encontramos


aproximadamente 567.000 resultados de páginas sobre o tema. O termo pesquisado Grupo
Sagrado Feminino facebook encontrou aproximadamente 7.660.000 resultados. Quando
pesquisamos em inglês pelo termo Female Sacred Facebook encontramos aproximadamente
10

33.100.000 resultados. Somente na cidade de Fortaleza-Ceará temos conhecimento informal


de cerca de 30 grupos dessa natureza.

Nossa inquietação nasce dessa observação e trás o questionamento que nos serve
de pergunta de partida nessa pesquisa: Por que surge nesse momento histórico da humanidade
o interesse das mulheres em grupos sobre o tema do Sagrado Feminino? A hipótese levantada
para responder esta questão é a de que a demanda social dos últimos séculos, de que a mulher
assuma papéis masculinos, a afastou de sua psique instintiva feminina e arquetípica trazendo
desequilibrio para os sujeitos e o meio externo. Agora, com a conquista de alguns direitos e
um maior equilíbrio de gênero, ela poderia buscar mais intensamente o resgate dos aspectos
femininos de sua psique, sendo os círculos de Sagrado Feminino um meio para tal.

O interesse pelo tema vem da proximidade com o mesmo que tive ao longo de
dois anos de vivências em grupos de Saragado Feminino, sendo experienciado um
desenvolvimento pessoal em termos do processo de individuação, assim como a observação
do mesmo nas demais mulheres com quem tive contato e que participam ativamente do
movimento. Para Jung (2011), a individuação é o processo de “tornar-se um ser único”, se
dando de forma processual, na medida que passamos a entender a nossa singularidade mais
íntima, última e incomparável. No aspecto coletivo, o interesse pelas experiências grupais e
suas possiveis relações com a psicologia analítica, o processo de individuação e uma possível
mudança social positiva, também motivam o interesse em estudar os círculos de Sagrado
Feminino.

Diante disso, entendemos que se faz importante para o psicólogo ter como
relevante esse fenômeno que ocorre na cultura, buscar compreendê-lo em suas peculiaridades,
já que o Sagrado Feminino traz um olhar novo sobre os sujeitos e suas relações com o meio e
consigo mesmos, o que pode apontar saídas para vários problemas atuais, tanto em âmbito
pessoal do desenvolvimento psiquico como no coletivo e social.

A partir da perspectiva da Psicologia Analítica Junguiana e autores que


corroboram com a sua visão como Erich Neumann, Emma Jung e a terapeuta arquetípica e
contadora de mitos Clarissa Pinkola Estés, buscamos um diálogo com autores de outros solos
epistemológicos como o psiquiatra Cláudo Naranjo, o filósofo Danilo Marcondes, a socióloga
Riane Eisler, as facilitadoras de círculos de Sagrado Feminino Mirella Faur e Jean Shinoda
Bolen, estas grandes nomes da literatura sobre o tema, a pesquisadora e terapeuta Mônika
Von Koss, a consultora em psicologia organizacional, social e do trabalho Maria Cristina
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Gattai que aborda a temática grupal na psicologia - nesta seara também autores como
Zimerman e Osório, dentre outros, na tentativa de abranger com diversos olhares essa
temática tão ampla e assim alcançar nosso objetivos nessa pesquisa, a saber, compreender
como e por que ocorre nesse momento histórico o interesse de mulheres pelos círculos em
torno do tema Sagrado Feminino a partir da perspectiva da Psicologia Analítica Junguiana.

Inicialmente, buscamos descrever o movimento Sagrado Feminino desde suas origens


nas sociedades matrísticas aos dias atuais a partir de minhas percepções do que foi
presenciado nos círculos dos quais participei desde 2014, assim como uma recapitulação
histórica dos principais marcos que nos trouxeram até este momento do resgate da Deusa na
contemporaneidade. Assim, procuramos conhecer a isnpiração das participantes dos círculos e
como se instaurou a problemática que culminou nesse fenômeno.
Analisamos o mesmo em suas caracteristicas e correlações, especificamente no que
tange às polaridades de anima e animus e o conceito de sombra, a partir do simbolismo do
conto Barba Azul, nos amparando nos conceitos junguianos para compreender o mal estar
oriundo do desequilíbrio do psiquismo de mulheres e homens na sociedade atual.
Finalmente, discutimos, a partir dos conceitos sobre grupos na psicologia, os círculos
de mulheres e seu papel como ferramenta do movimento compensatório desta psique, saída
homeostática da mesma em busca de seu reequilibrio saudável.

Metodologia
Esta pesquisa diz respeito a um estudo qualitativo com base no paradigma junguiano.
O caráter qualitativo apresenta-se como descritivo e compreensivo do objeto de estudo,
segundo Bawer e Gaskell (2002), é uma pesquisa que lida com interpretações das realidades
sociais. É um método indicado para o trabalho com grupos e vivências humanas, como traz
também Minayo (2010), o método qualitativo é o que se aplica ao estudo da história, das
relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das
interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a
si mesmos, sentem e pensam.

González Rey (2005), afirmam que a abordagem qualitativa volta-se para os processos
que constituem a subjetividade, um objeto complexo, no qual seus elementos implicam
diferentes partes de um todo, e que muda de acordo com o contexto.

Segundo Penna (2004) a aplicação da psicologia analítica à pesquisa científica nos


abre à perspectiva simbólica arquetípica, onde a subjetividade do pesquisador perpassa a
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compreensão da realidade, sem, no entanto, deixar de considerar que outros olhares possam
somar-se ao dele, minimizando assim, o risco da identificação projetiva que pode ocorrer
entre o pesquisador e o objeto pesquisado.

De acordo com Penna (2004), citada por Hauke (2001), as principais características do
paradigma junguiano de pesquisa são:

[...] pluralidade de pontos de vista, diversidade de epistemologias e métodos,


aceitação de paradoxos e contradições, inevitabilidade de imprecisão e
incerteza, ênfase na relatividade dos parâmetros e na polivalência de
significados, concepção de verdade transitória e relativa, valorização do
auto-conhecimento e, por conseguinte, da subjetividade na aquisição e na
produção de conhecimento e integração da individualidade na coletividade.
(Penna, 2004, p 74).

Para este estudo, tendo em vista tratar-se de um fenômeno cultural atual e


relativamente recente, mas baseado em práticas de antigas sociedades, o que acarreta um olhar
totalmente novo a partir do contexto atual sobre costumes e práticas ancestrais, entendemos
que podem faltar-nos dados baseados na ciência que exige a objetividade, sendo necessário
lançarmos mão dos recursos simbólicos da psicologia Junguiana. Outro fator que
consideramos no estudo e corrobora com o método proposto, é o conhecimento experiencial
da pesquisadora na vivência com o Sagrado Feminino em grupos de mulheres e eventos sobre
essa temática e a relação deste com o olhar de autores dos mais diversos solos
epistemológicos.

Resultados e Discussão
O Sagrado Feminino - da atualidade aos primórdios

O termo Sagrado Feminino vem sendo ultilizado amplamente na atualidade para


definir o fenômeno social em que mulheres buscam um encontro mais profundo e autêntico
consigo mesmas, seu empoderamento e autoconhecimento, por meio do resgate de saberes
ancestrais, geralmente em círculos grupais, formato onde elas encontram um espaço seguro de
acolhimento para realizarem práticas vivenciais que possibilitam experienciar, em níveis
cognitivo, sensorial, emocional e espiritual, o contato com as partes de si mesmas que foram
esquecidas em detrimento das exigências da cultura atual, e as dimensões arquetípicas e
simbólicas do inconsciente coletivo.

Estés(2014), em seu livro Mulheres que correm com os lobos, chama esse reencontro
consigo mesma de busca pela sua natureza ou Self instintivo selvagem, personifica isto como
a Mulher Selvagem que foi domesticada pela cultura e clama por ser reconhecida, vista,
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ouvida, para que se possa vicejar em sua totalidade enquanto entidade humana. Para autora a
repressão que a cultura vem impondo à esse aspécto da mulher, que poderíamos identificar
com um complexo arquetípico que, por ter vivido tanto tempo na sombra se tornou autônomo,
traz grande prejuizo e adoecimento psíquico à pessoa e à sociedade.

O pensamento junguiano versa que o ser humano nasce de um inconsciente


coletivo, que independe de experiências individuais como no caso do incosnciente pessoal,
e traz com ele conteúdos herdados dos ancestrais, sendo pré-existente ao consciente. Aí
residem traços funcionais, imagens virtuais, predisposições latentes, comuns a todos os
seres humanos, que podem ser concretizadas através das nossas experiências, os
arquétipos. Estes não podem ser observados em si, mas somente por representações
arquetípicas. (Hopcke, 2001).

Complexo é um conceito importante para a teoria junguiana, que foi descoberto


por Jung a partir da técnica da associação livre de palavras. Quando inconscientes se
tornam autônomos, agindo a revelia da cosnciência, ou seja, na sombra. Essa palavra,
Complexo, ao longo do tempo foi incorporada ao linguajar do senso comum como algo
pejorativo, mas Samuels(1988), ressalta que os complexos são fenômenos bastante naturais
que se desenvolvem ao longo de linhas positivas como também negativas. São ingredientes
necessários da vida psíquica. Desde que o ego possa estabelecer um relacionamento viável
com um complexo, uma personalidade mais rica e mais diversificada emerge. Segundo
Jung(CW 8, parág. 253), citado por Samuels(1988), “um complexo é como uma entidade
autônoma dentro da psique[...]se comportam como seres independentes. (CW 8, parág.
202).” Segundo Samuels(1988),

Um complexo é uma reunião de imagens e idéias, conglomeradas em torno de um


núcleo derivado de um ou mais arquétipos, e caracterizadas por uma tonalidade
emocional comum. Quando entram em ação (tornam-se “constelados”), os
complexos contribuem para o comportamento e são marcados pelo AFETO, quer
uma pessoa esteja ou não consciente deles.

Deste modo, o que se observou nas vivências de círculos de mulheres em que estive
como participante desde o ano de 2014 até então, é que estas mulheres partem de imagens
arquetípicas como mitos que são representados por meio de contos, músicas e ritos de
diversas tradições religiosas como a indígena, a grega, a celta, a africana, a hindu, a nórdica,
por exemplo, para acessar a sua mulher selvagem e a dimensão sagrada do feminino em suas
vidas, que é enaltecido nessas deusas e representações arcaicas. Traçam-se paralelos e
relações com a vida atual e as repressões as quais se sentem subordinadas, assim como as suas
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consequências em seus modos de ser no mundo, pensar agir, sentir. Desta forma, se
entrelaçam suas histórias pessoais, a história da mulher e os movimentos sociais ligados a elas
ao longo tempo, os saberes ancestrais oriundos desse material que é pesquisado e partilhado
em grupo entre elas e que vem representando para estas mulheres uma saída do mal estar que
experimentam e que se reproduziu ao longo das últimas gerações. Para elas, este mal estar é
atribuído ao modo de vida patriarcal, que desvaloriza a mulher, controla seus corpos e
características singulares, sejam ligadas ao feminio ou masculino.

Naranjo (2006), confirma essa afirmação, quando defende que o patriarcado


promoveu um desequilíbrio, tendo em vista que as mulheres passaram da posição de prestígio
e igualdade que tinham perante os homens e a sociedade na era matrística, para um lugar
menor, em que veio sendo considerada menos capaz que o homem; a relação passa de
igualdade e colaboração para o domínio do masculino sobre o feminino, o que acarretou um
mal estar social que se vive nos dias atuais.

Partindo desse empoderamento que resgata um estilo de vida em que o sagrado


permeia sua vida em vários aspéctos, as mulheres participantes destes círculos adotam um
modo de vida mais natural, com menos intervenções químicas e tecnológicas, assim, elas
podem se reconhecer livres desses atravessamentos e saber realmente o que lhe é próprio,
aprazivel, ou é apenas uma programação cultural imposta. Tendo esse conhecimento sobre si,
podem fazer escolhas mais conscientes, evitando ferir e reprimir suas caracteristicas
singulares, podendo atuar no ambiente ao seu entorno, descontruindo atitudes e modos de
pensar seus, de familiares e outros com que se relaciona. Reclamam seus direitos, criam
novos olhares sobre os papéis sociais de mulheres e homens, sejam adultos, jovens ou
crianças.

Primeiramente, para compreendermos a inspiração das práticas e conceitos adotados


por essas mulheres e atender um dos objetivos específicos desta pesquisa, iremos resgatar as
origens desses conhecimentos ancestarais advindos das sociedades matrísticas do período
compreendido ao final do paleolítico já adentrando no neolítico, que data de
aproximadamente 10.000 anos A.C., de acordo comVon Koss, (2000).

Segundo Von Koss(2000) os agrupamentos humanos desta época, identificados em


várias partes do mundo por estudos arqueólogicos, se organizavam em torno do culto a uma
Deusa, que era representada pela própria natureza e seus fenômenos. Essas sociedades
primitivas foram chamadas de Matrísticas e, segundo Eisler (2007), se caracterizam por
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valorizarem igualitariamente o feminino e o masculino, em relações de parceria sendo a


cooperação sua base. Difere substancialmente do modelo social vigente, denominado de
Patriarcado, que veio paulatinamente se instaurando a cerca de cinco a seis mil anos, como
traz Naranjo(2010), caracterizado pela dominação, em que o masculino subjulga o feminino, e
é centrado em torno de um Deus.

“Algo ocorreu faz uns seis mil anos que as lendas recordam como uma
queda e que a história celebra como o surgimento da civilização. A
arqueologia nos diz que somente apartir daquele tempo temos tido
desigualdade, escravidão e guerras, e parece que tudo começou quando em
resposta ao aquecimento da terra e à progressiva seca que se seguiu ao
derretimento das geleiras, as terras ocupadas pelas primeiras sociedades
agrárias já não puderam alimentá-las. Tudo indica que[...]nossos ancestrais
tiveram que voltar a uma vida de nomadismo predatório em que para
sobreviver precisaram se tornar agressivos e insensíveis.”(Naranjo, 2010,
p.17)
Von Koss (2000), traça um panorama sobre as origens primordiais dessa Deusa e sua
substituição por um Deus ao longo da história da humanidade. Inicialmente, “Os povos
arcaicos falam do surgimento do mundo a partir de uma deusa-mãe: a Grande Deusa Criadora,
ao mesmo tempo útero e força geradora do universo. A deusa, cujo próprio corpo é o céu, a
terra e as águas.” (p. 61) Essa deusa partenogênica não possuía características identificáveis,
era a que continha e era, ao mesmo tempo, a própria existência, potência e potencial de tudo,
“a vida dela emergia espontaneamente, do mesmo modo que as plantas brotam da
terra.”(p.62).

Entendemos, portanto, que essa deusa era uma força que representava o absoluto, a
totalidade, a mãe-matriz que contém e é tudo: o ser e o não ser, o feminino e o masculino, o
tempo passado, presente e futuro, a força vital do universo que habita todas as coisas. Zimmer
(citado por Von Koss 2000) afirma que apesar dessa realidade última ser inominável, sem
atributos, precisamos personifica-la, já que a compreendemos a partir da nossa racionalidade
e, para fins culturais, assume formas, nomes e um gênero, como a Shakti no hinduismo, por
exemplo, que representa essa força primordial; ou ainda se apresenta em personificações
multiplas, como a Deusa tríplice dos povos agrícolas que ao mesmo tempo tinha atributos de
virgem-mãe-anciã.

Neumann(1996) enfatiza que

“Quando a psicologia analítica se refere ao arquétipo da “Grande Mãe”, não


se refere a existência de uma imagem concreta, existindo com tempo e
espaço, mas a uma imagem interior existindo na psique humana. A
expressão simbólica desse fenômeno psíquico são as figuras e as imagens da
Grande Deusa, reproduzidas nas criações artísticas e nos mitos da
16

humanidade[...] O simbolismo do arquétipo é a maneira como ele se


manifesta sob a forma de imagens psíquicas específicas que são percebidas
pela cosnciência e peculiares de cada arquétipo.”(p.19)

Von Koss(2000), defende que essas faces da deusa, ao longo do processo histórico de
subordinação do princípio feminino ao masculino vão sendo subjulgadas e dominadas em
seus aspéctos por entidades masculinas, que tomam seu lugar, apesar de às vezes, nas
mitologias dos mesmos, estes apresentarem relações com a deusa. Podemos enteder esse
fenômeno apartir do que Neumann(1996) traz sobre a dinâmica do arquétipo:

“o efeito do arquétipo, manifesta-se, entre outros, por processos energéticos


no interior da psique, processos esses que operam tanto no inconsciente
como entre o insconsciente e a cosnciência. Esse efeito aparece, por
exemplo, [...] no sentimento de que o ego está sendo subjulgado[...]Dessa
forma, o aspécto assustador do arquétipo manifesta-se através de outras
imagens que não correspondem ao de seu aspécto vivificante e “bondoso”.
Contudo, o aspécto assustador de um arquétipo, por exemplo, a Mãe
Terrível, manifesta-se também nos símbolos de algum outro arquétipo como
o do pai terrível, por exemplo”(p.19)

Segundo Von Koss (2000), é perceptível que o que era cultuado não é o feminino
enquanto mulher, mas sim a maternidade:

Os povos coletores aborígenes já haviam desenvolvido uma agricultura


elementar e suas práticas religiosas eram essencialmente ligadas ao cultivo
da terra. [...] A organização das sociedades agrícolas primitivas giravam em
torno da mãe, responsável pela criação e transmissão dos valores culturais.
Nas fases iniciais da evolução social predominava a maternidade. A mãe
como geradora da vida, ocupava o centro da vida religiosa, na figura da
deusa criadora, “cujos estados de espírito eram refletidos pelos fenômenos
naturais, cujos amantes eram os espíritos das estações e cujas qualidades
foram especializadas pelas deusas mais tardias”. (p.30).

No entanto, essas sociedades agrícolas acabam sendo dominadas a partir de invasões


de povos que tinham um modo de vida pastoril e caçador, onde prevalecia a lei do pai, uma
representação da função dos animais machos como produtores de riqueza. Assim,
“gradualmente impuseram sua lei pela introdução do arado de tração animal, retirando o
poder das mulheres, associado ao cultivo da terra” (Von, Koss, 2000, p.30). Os povos
dominantes consideravam os dominados inferiores, estes não usufruiam do direito de
participar dos ritos religiosos, onde a figura do sacerdote como representante do deus
aparecia. Algo em comum nas duas culturas era que a união sexual era vista como “meio por
execelência de promover a fertilidade da terra, bem como o aumento do rebanho”, desta
forma alguns ritos das sociedades invadidas foram incorporados à cultura dos dominates,
17

permanecendo algumas características posteriormente, não sendo, portanto, erradicada de


todo a tradição centrada na Deusa.

Nas sociedades tribais os rituais eram meios de invocar aspéctos benéficos


dos elementos das divindades, trazendo segurança para as pessoas. Quando
do aniquilamento das formas tribais de organização e a introdução do poder
central sacerdotal, o sentimento de estar a mercê de um deus ou rei todo
poderoso, ou de seus representantes, fez com que as pessoas do povo se
apegassem ainda mais à deusa-mãe, associado ao fato de lhes ter sido
interditado o acesso aos rituais das tribos dominadoras. (Von Koss, 2000, p.
38)
Na Índia comtemporânea, por exemplo, apesar do culto ao falo prevalecer, sendo uma
sociedade patriarcal, as evidências dos achados arqueológicos apontam que a deusa precede o
deus como entidade de veneração e ainda podemos encontrar traços dessas reminicências do
culto à deusa em comunidades que preservaram caracteristicas agrícolas. Von Koss(2000)
destaca que em seus templos, o falo ou lingan, em forma de uma pedra negra e cilíndrica, não
penetra mas ‘emerge’ do centro de uma vasilha que representa a vulva ou Yoni. O termo
lingan, dá nome ao instrumento e objeto de culto em forma de bastão utilizado para perfurar a
terra e plantar a semente, esta que é fruto da própria terra, já que a deusa-yoni é ‘criativa’ e
matriz de tudo o que existe, incluindo o lingan. Essas representações “expressam a unidade do
ser. O falo que contendo a semente do ser, descansa em eterna união no útero da Grande Mãe.
No auge do prazer dessa união todos os opostos são eliminados”(p.46).

Da mesma forma, a autora traz que investigações arqueológicas feitas em regiões


como Europa Oriental, Oriente Médio e Norte da África concluiram que as sociedades que lá
viviam no período paleolítico se centravam em torno da deusa-mãe e a reverenciavam como
“eterno e contínuo ciclo sagrado do nascimento, vida, morte e renascimento, presente em todo
o universo” (p.80).

Anima e Animus em crise

Compreendendo as origens culturais e históricas que inspiram o fenômeno atual,


podemos partir para o entendimento de que, muito provavelmente, esse masculino patriarcal
que vem sendo demonizado, nada mais é que um aspécto não percebido desse feminino, dessa
Grande Mãe, que é boa, mas também terrível. Esta Mãe Terrível é um aspécto da sombra da
Grande Mãe e, projetada nos povos invasores, assume aspéctos de um masculino predatório,
que subjulga o outro. Desde então, nossa civilização, ao que parece, vem se desenvolvendo
com seus aspéctos anima e animus em desequilíbrio, por não serem estes percebidos em sua
totalidade.
18

Por conseguinte, há em nossa cultura uma deflação da anima e uma inflação do


animus, se apresentando como um estado em que prevalece um sentimento irrealistico, alto ou
baixo (deflação, ou inflação negativa), da identidade dos indivíduos, onde a consciência
regride para o insconsciente e o ego perde a faculdade de discriminação (Samuels, 2003).
Ora, para Jung(1987), a mulher ocupa na vida do homem adulto o lugar dos pais, assim como
influencia no ambiente próximo, sendo assim uma imago de natureza autônoma, mas que,
diferente da dos pais, não deve ser rompida, e sim conservada na cosnciência do homem e a
ela associada.

A mulher, com sua psicologia tão diversa da psicologia masculina, é e


sempre foi uma fonte de informação sobre as coisas que o homem nem
mesmo vê. É capaz de inspirá-lo e sua capacidade intuitiva, muitas vezes
superior à do homem, pode adverti-lo convenientemente. Seu sentimento,
orientado para as coisas pessoais, é apto para indicar-lhe caminhos; sem essa
orientação, o sentimento masculino, menos orientado para o elemento
pessoal, não os descobriria (Jung, 1987, p 75)

Sendo assim, em uma sociedade em que o masculino se impoê sobre o feminino,


mesmo essa imposição nascendo da permissividade inconsciente advinda da projeção do
feminino sombrio nos homens, não apenas há um prejuizo para os aspéctos da anima, mas
também do animus pois, consideramos aqui que, para que tanto anima quanto animus se
desenvolvam plenamente, precisa haver equilíbrio entre as duas polarides.Visto que a mulher
que deveria servir de guia para o homem no tocante aos aspéctos da anima, vem passando
uma imagem distorcida, estes desenvolvem sua anima de forma distorcida, o que afeta o
desenvolvimento do animus nas mulheres, que é desenvolvido a partir da figura masculina
externa, e esta vem a tratando de forma degradante, assim temos aí instalado um
desequilibrio.

Estés(2014), pesonifica essa parcela predatória da psique, que na mulher vem a ser seu
animus em sua polaridade negativa, como o mito do Barba Azul. Descreve o conto, que um
homem muito rico e de aspécto estranho e perigoso, recorre a uma família da região para
pedir uma das filhas em casamento. Eram três moças, e as duas mais velhas se negam,
enquanto a mais jovem, seduzida pela riqueza e promessas do homem, cede ao seus encantos,
negando a óbvia estranheza que emana do sujeito: “sua barba nem é tão azul assim”, diz ela.
Já na mansão do agora esposo, à moça é permitido que usufrua de todo o lugar, menos de uma
determinada sala. O marido lhe dá todas as chaves de todos os cômodos e sai em viagem, e a
moça chama as irmãs para desfrutarem do palácio com ela enquanto o esposo está fora. As
irmãs, desconfiadas, exigem que a moça abra o cômodo proibido com a chave, e lá esta se
19

depara com uma carnificina: cadáveres das ex-mulheres do Braba Azul. A moça tranca a porta
e tenta esquecer o ocorrido, mas da chave agora escorre sangue initerruptamente e é
impossível estancar a estranha emorragia. A jovem tenta de todas as formas esconder a
desobediência, esconde a chave em seu guarda roupas mas todos os seus vestidos ficam
manchados de sangue. O marido já se anuncia de volta e descobre a falta da esposa, revela-lhe
que agora que sabe a verdade terá o mesmo destino das esposas anteriores, a morte. A moça
pede que lhe conceda um instante para despedir-se de suas irmãs, enquanto isso, estas já
esperam seus irmãos que viriam busca-las e enchem-se de esperanças que estes as salvem. Os
irmãos chegam à tempo de impedir o assassinato da jovem irmã, matando seu algoz.

Neste conto, Estés(2014), descreve o movimento predatório interno do psiquismo


feminino, nomeando o Barba Azul de predador natural da psique, seu animus sombrio, que
relegado à sombra abre espaço para que seus aspéctos femininos sejam predados, distorcidos,
subjulgados. A sociedade patriarcal reflete exatamente esse movimento do psiquismo.
Enquanto mulheres se desenvolvem a partir do olhar masculino de uma anima que obscurece
seus aspéctos negativos, permite que isso se projete fora, e assim seu animus também se
desenvolve distorcido, havendo uma espécie de ciclo vicioso compensatório negativo, onde a
distoção do inconciente de um se projeta sobre o sexo oposto distorcendo o seu também.
Neste conto, a jovem esposa, representa a faceta infantil da mulher, inconsequente e ingênua
que age da perspectiva ou-ou ( bom ou mau, luz ou sombra); é amparada pelas irmãs mais
velhas, como guias, representando a mulher madura e sábia, que reconhece a parcela
masculina negativa, o Barba Azul, e já vive percebento a totalidade paradoxal da vida: as
coisas podem ser boas e más, tudo tem seu lado positivo e negativo. As sábias irmãs recrutam
ajuda do masculino positivo, na figura dos irmãos, para tirá-las da situação de risco,
percepção esta que falta à jovem, que só viu o lado bom e sedutor do consorte e assim
permitiu ser predada pela faceta negativa dele. No entanto, a partir do momento que se revela
a verdade ao se deparar com as ossadas das antigas esposas mortas, a chave desta porta, sua
consciência não mais para de sangrar, ou seja, é impossivel ignorar a verdade, lhe sendo
imposta a tomada de ação de barrar, fugir da situação predatória.

Ora, o que percebemos nisto é que numa sociedade que se desenvolveu por milênios,
impossibilitada de acessar a totalidade de seu Self por meio das diversas representações
arquetípicas da Deusa que lhes foram usurpadas, mulheres e homens se desenvolveram com
aspéctos seus empobrecidos, primitivos, infantis. O que presenciamos hoje é uma cultura
egocentrica, altamente pautada pelos desejos infantilizados, que não têm uma Mãe em sua
20

totalidade, boa, mas também terrível positivamente, já que em dado momento do


desenvolvimento a natureza selvagem impõe que a cria vá sozinha enfrentar o mundo, a mãe
realiza aí um movimento expulsório para lhes tirar do ninho e fazê-los crescer. Ao menor
sinal desta intenção, o masculino se volta contra esse feminino, seja na forma representativa
das mulheres ou da mãe natureza, quando testemunhamos agressões de todos os tipos.
Sabemos que a própria relação humana frente ao contato direto com natureza lhe impõe
desafios, que, devido a busca por sua evitação vem lhe trazendo prejuizos no seu
desenvolvimento psiquico e espiritual.

A partir do que Emma Jung (1991) discute em Anima e Animus, que corrobora com
nosso entendimento do distanciamento da humanidade da conexão com a natureza e a
percepção de sua sacralidade, podemos perceber que uma das qualidades do aspécto feminino
da psique, como sabemos, é a ligação com o que é espiritual. Para a autora,

quando a função espiritual não é assumida pela cosnciência, então a libido


determinada para isso cai no inconsciente e lá atinge o arquétipo do animus.
[...]aquela figura torna-se autônoma e tão poderosa que pode subjulgar o eu
consciente e, finalmente, dominar toda a personalidade.(Jung, 1991, p 20)

e, quanto mais nos distanciamos da experiência direta com a natureza, aos moldes das
sociedades matrísticas, em que percebemos determinados fenômenos numa perspectiva
espiritual e sagrada e sua ligação com nossas vidas, mais damos força para que esse complexo
se torne autônomo e não integrado ao desenvolvimento da consciência, se manifestando como
sombra. “Onde antes ela ascendia o fogo da lareira e, com isso, cumpria o ato prometeico,
hoje ela liga o gás ou comutador elétrico e não tem uma idéia do que perde com essas
inovações práticas e que consequências essa perda lhe traz”. (Jung, 1991, p. 21).

Marcos Históricos

O que pensamos que ocorre segundo nossa pesquisa é que, por todo esse tempo, as
mulheres não tiveram espaço para sequer sentir que essas parcelas de sua psique clamavam
por desenvolverem-se. Diante das demanas sociais advindas do processo histórico de
produção, onde desde os tempos remotos aos eventos subsequentes, só agora, depois de
algumas consquistas e certa estabilidade, as mulheres tiveram tempo para sentir que lhes
faltava algo que o modelo de sociedade em que vivemos não estava sendo suficiente para
suprir. Os homens por seu turno, tendendo ao movimento de evitação a saída do ninho e
manutenção da segurança no colo materno, representado também pelas facilidades
tecnológicas que são desenvolvidas a partir das características mais voltadas para a polaridade
21

yang, como a lógica presente no pensamento científico, não tenderiam a buscar naturalmente
um movimento como um Sagrado Masculino, por exemplo, sendo a tarefa de busca por
compensação de tanto tempo de desequilíbio, vem a ficar a cargo das mulheres de nossos
tempos.

Aqui se faz necessário uma observação mais incisiva sobre estes eventos históricos,
pois, o que desejamos compreender é como e por que o movimento grupal do Sagrado
Feminino fomentado pelas mulheres só eclodiu agora, e não nos anos 60, ou antes, quando se
iniciou o feminismo?

Retornando ao período mediavel mais tardio, bem depois da fase de estabelecimento


das novas culturas invasoras nas comunidades que cultuavam a deusa, Pinto (2010), nos
lembra que o período da inquisição foi implacável com as mulheres, onde a igreja católica
reprimia severamente qualquer movimento que desafiasse seus princípios dogmáticos. Desta
forma, entendemos que mesmo estando mais próximo dos resquícios do legado das antigas
civilizações, não era possivel naquela época o Sagrado Feminino florescer na sociedade pois
as mulheres que praticavam qualquer atividade ligada às religiões antigas eram levadas às
fogueiras.

A idade moderna que segundo Marcondes (2007), compreende os séculos XVII à XIX
chegaria norteada pelas noções de progresso e valorização do indivíduo com o humanismo
renascentista, a descoberta do Novo Mundo, a Reforma Protestante, e a revolucção científica.
Percebemos esta fase como um movimento voltado para as qualidades yang, o logos, o
racional, sendo enfatizado na busca do desenvolvimento científico, portanto, qualquer
movimento que enaltecesse as qualidades yin, como vemos nos círculos de Sagrado
Feminino, seria sobrepujado pela necessidade da humanidade dissociar o divino e a razão e
valorizar a individualidade.

Com a revolução industrial e as novas condições de trabalho e produção, as mulheres


passam a ocupar novos cargos nas fábricas e tendo que trabalhar em condições precárias,
acabam tendo uma demanda maior por reivindicações trabalhistas ligadas aos seus direitos
civis. Nstas condições, também não seria o momento em que seu psiquismo estaria voltado
para a busca da Mulher Selvagem, já que estavam buscando usufruir da modernidade e todas
as suas facilidades à plenos direitos.

Assim, Pinto(2010), ressalta que nas últimas décadas do século XIX nasce o
feminismo na Inglaterra com a busca das sufragetes pelo direito ao voto. Entendemos esse
22

movimento como diferente do Sagrado Feminino, apesar de nos círculos de mulheres, que são
o fenômeno que estamos estudando e, portanto, não é nosso intuito aprofundar os conceitos
que envolvem o feminismo, haver a presença de debates do feminismo também, já que ainda
estamos atualmente numa realidade social em que muitos direitos das mulheres precisam ser
revistos e ampliados .

“O movimento feminista tem uma característica muito particular que deve ser tomada
em consideração pelos interessados em entender sua história e seus processos: é um
movimento que produz sua própria reflexão crítica, sua própria teoria.” (Pinto,2010, p.15).
Assim, vemos essa interlocução como frutífera pois como o Sagrado Feminino é algo que
acontece hoje mas, baseado em práticas antigas, pode aprender muito com o processo
construtivo que carrega o feminismo, além de atribuirmos ao feminismo o grande pontapé,
dentre os demais fatores históricos, que possibilitou hoje que muitos direitos femininos
fossem conquistados e, sendo um retorno do formato de encontro entre mulheres para falar de
suas questões, se configura quase como um embrião do que viriam a ser os círculos de
Sagrado Feminino hoje.

Concomitante a isso, as duas grandes guerras mundiais impeliram as mulheres à


ocupar cargos masculinos devido à baixa de homens na sociedade.

[...]com as I e II Guerras Mundiais (1914 – 1918 e 1939 – 1945,


respectivamente), quando os homens iam para as frentes de batalha e as
mulheres passavam a assumir os negócios da família e a posição dos homens
no mercado de trabalho. Mas a guerra acabou. E com ela a vida de muitos
homens que lutaram pelo país. Alguns dos que sobreviveram ao conflito
foram mutilados e impossibilitados de voltar ao trabalho. Foi nesse momento
que as mulheres sentiram-se na obrigação de deixar a casa e os filhos para
levar adiante os projetos e o trabalho que eram realizados pelos seus
maridos. No século XIX, com a consolidação do sistema capitalista inúmeras
mudanças ocorreram na produção e na organização do trabalho feminino.
Com o desenvolvimento tecnológico e o intenso crescimento da maquinaria,
boa parte da mão-de-obra feminina foi transferida para as fábricas. (Probst,
2003, p.2)
A Década de 60 com a guerra do Vietnã e o movimento hippie na busca pela paz
proporciona um momento de retomada dos valores matrísticos e espirituais, como destaca
Faur (2003), já que se bucava acabar com a guerra e chegar a uma sociedade de paz, baseada
em princípios de colaboratividade e não mais na competição agressiva entre as nações que era
evidenciada com as guerras. Além disso, o boom dos grupos de terapia que aconteceu nesta
época, segundo a vasta literatura sobre a temática grupal, que iremos aprofundar adiante,
possibilita a experimentção de formatos de encontro vivenciais, terapeuticos, socioeducativos,
23

ou comunitários. Neste período se prenuncia o que hoje emerge abundantemente em termos


de Sagrado Feminino, devido também ao grande número de livros que veio sendo produzido
sobre a temática. A partir da pesquisa de referenciais bibliográficos, notamos que esse perído
dos anos 60 foi mais vivencial e em seguida, nossos achados apontam que em meados dos
anos 80 até hoje, começam a surgir autores, estudiosos e pesquisadores relatando essas
experiências, o que hoje serve de arcabouço para as praticantes desenvolverem seus grupos
embasadas nas experiências de autoras como Jean Shinoda Bolen e Mirella Faur, por
exemplo.

Os círculos de mulheres como movimento compensatório da psique

O self, clama por equilíbrio. Segundo Jung(1987), nossa psique é de natureza


compensatória onde a energia circula entre polaridades. Existe uma homeostase natural,uma
busca por equilíbrio, que pode manifestar-se como um sintoma ou de forma criativa, desde
que essas questões cheguem à cosnciência e a energia psíquica possa ser direcionada pela
vontade. Assim, acreditamos que o movimento grupal das mulheres em torno do Sagrado
Feminino, vem buscando atender esse movimento compensatório devido aos inúmeros anos
se submissão dos as péctos da anima na sociedade.

Segundo Zimerman e Osório (1997), o ser humano, sendo gregário por natureza,
existe em função dos seus relacionamentos e dos grupos que participa. A humanidade se
organiza em agrupamentos desde eras remotas, como descrevemos inicialmente nas
sociedades matrísticas. Os grupos são formas de organização que representam acolhimento,
segurança, união entre interesses iguais. Osório(1997), considera que um grupo é, portanto,
um conjunto de pessoas que são capazes de se reconhecer em sua singularidade e que exercem
uma ação interativa com objetos compartilhados. “Muito antes de ter aprendido a fazer fogo
ou a construir um abrigo, o homem percebeu as qualidades especiais que podiam ser obtidas
da reunião com seus semelhantes”. (Foulkes,1963, citado por Osório, 1997).

Para Moreno(1974), o ser humano desde a sua origem é um ser social e, como tal,
estabelece seus relacionamentos no contexto grupal. A ideia de grupo, portanto tem um papel
preponderante na sua estrutura social. O ser humano necessita desta interação para crescer e
desenvolver-se sendo o grupo social um espaço que possa gerar encontro e renovação do
individuo, do próprio grupo e na coletividade. É o lugar propício para estabelecer relações
estáveis, interagindo, confiando, compartilhando, amando e buscando realizar metas da vida
individual e coletivo (Gois, 2008).
24

Segundo Zimerman e Osório (1997), existem vários tipos de grupos que podem ser
divididos, primeiramente, entre grandes grupos e microgrupos. Para os autores, uma condição
chave para que um agrupamento de pessoas passe a se caracterizar como grupo é ter interesses
em comum, apresentado-se como uma entidade/ unidade/ totalidade com identidade própria,
com leis e mecanismos específicos. Partindo para uma classicação quanto à finalidade
destacam mais dois tipos: os operativos, grupos centrados numa tarefa que pode ser de
natureza socioeducativa, ensino aprendizagem, institucionais, comunitários e terapeuticos; e
os grupos psicoterápicos, que, de acordo com Moreno (1974), tratam de maneira sistemática e
consciente, as relações interpessoais e os problemas psíquicos dos indivíduos na interação
grupal.

No entanto, apesar de percebermos efeitos terapeuticos, educativos e de socialização,


os círculos de Sagrado Feminino que observamos não se enquadram tão facilmente nestas
características, tendo suas peculiaridades. Até mesmo a intitulação círculo e não grupo, dada
pelas participantes, já denota uma especificidade. “O círculo é uma forma arquetípica que
parece familiar a psique da maioria das mulheres. Ele é pessoal e igualitário”(Bolen, 2003, p.
20). Mesmo que haja uma facilitadora, esta se coloca numa postura de igual, daí a
denominação escolhida de círculo, pois este não possui arestas, cantos, nem alto nem baixo,
todas estão de igual para igual num mesmo nível de saber, considerando-se que toda mulher
sabe o que é ser mulher a partir de sua experiência vivida, incluindo alguns saberes que têm
relação com as práticas ancestrais.

De algum modo elas percebem essa dimensão do arquétipo enquanto um legado de


toda a humanidade passado de geração em geração, que está latente em cada mulher
esperando o toque de outra para ser despertado, reconhecido e nomeado, assumindo aí uma
representação arquetípica. Apesar desse processo não ser racionalizado desta maneira por
elas, há a consciência desse mecanismo, que por vezes é mencionada e descrita como um
sentimento que sempre se teve.

Desta forma estes espaços são de verdadeiras trocas de saberes, a mulher que abre o
círculo é tida como um canal da deusa para aquele encontro, em que ela própria cura enquanto
é curada, nos remetendo ao mito do curador ferido. Essa Imagem expressa bem as relações
entre as mulheres nos círculos, nos mostrando mais uma vez que essa percepção arquetípica
foi acessada a partir da experiência grupal, onde elas muitas vezes se denominam como
curandeiras de si.
25

Encontramos o arquétipo do curador ferido no conto de Quíron, da mitologia grega,


onde o personagem, um centauro metade homem metade cavalo, é atingido por uma flecha
envenenada na parte animal do corpo. Por ter vida eterna está condenado a viver com a ferida
incurável, Quiron passa a vida procurando remédios para amenizar sua eterna dor, e assim
torna-se um grande sábio, versado nas artes curativas e procurado por vários heróis para lhes
ensinar seu conhecimento. Este mito nos lembra, de acordo com a perspectiva de
Guggenbhül-Craig (1983), que quando a consciência se identifica com um dos pólos de um
arquétipo seu inverso será constelado inconscientemente. Numa situação como o contexto que
observamos em nossa sociedade e na dinâmica dos círculos de mulheres, o desequilíbrio entre
as polaridades muitas vezes é percebido conscientemente pelos abusos de poder e o mal estar
experimentado pelas mulheres, esse sintoma se manifesta como a ferida no corpo animal
enquanto dentro de seu insconsciente se constela a curadora. Normalmente, isso é projetado
na figura de um médico ou terapeuta, quando falamos em relações terapeuticas, mas no caso
dos círculos, essa projeção se dá entre as próprias mulheres, não somente com a que está na
posição de canal e abre o círculo para as demais. Para Guggenbhül-Craig (1983), é importante
a integração do polo do curador pela consciência para que se mobilize o potencial de cura do
próprio indivíduo. Vemos nos círculos de Sagrado Feminino um espaço que propicia essa
mobilização, pois, ao serem investidas desse olhar das outras como curadoras, esse complexo
pode ser percebido pela consciência e integrado.

Para Holanda(2012),

os fenômenos humanos são produzidos nos espaços discursivos socialmente


constituidos que possibilitam que emoções emerjam nos sujeitos que
convivem nesses espaços como forma de “[...]tensão e ruptura das pessoas
com os diferentes espaços sociais em que acontecem suas práticas. Essas
emoções são fontes de novos desdobramentos simbólicos que [...] vão
subverter a ordem discursiva hegemônica se articulando numa subjetividade
social que vai implicar a produção de novas alternativas subjetivas nas
pessoas.”(Holanda, 2012, p.50).

Percebemos nessa dinâmica grupal um forte direcionamento de mudança para um


âmbito além do individual e do grupo em que se dão estas relações. A mulher que desperta
sua curadora, extrapola o círculo e leva esse olhar para todas as esferas de que faz parte. A
familiar, a profissional, a das amizades e lazer. Começam a haver deslocamentos provocados
por esse empoderamento e os novos olhares sobre a condição humana e social que vivemos
que estas mulheres passam a carregar consigo e assim impactar outras pessoas para o que não
está sendo percebido. “É como jogar pedrinhas em um lago, cada uma tem um impacto e um
26

efeito; os anéis concêntricos vão evoluindo e afetando os outros relacionamentos”(Bolen,


2003, p. 32)

Ora, a condição de Quíron, nos remete à própria condição humana diante das feridas
existenciais com as quais, inevitavelmente, temos que conviver. Diante do desequilíbrio entre
as polaridades anima e animus, nos vemos frente a uma humanidae infantilizada, portanto
incapaz de lidar ou mesmo reconhecer suas próprias feridas e as dores e angústias que
derivam delas. Uma mulher que desperta essa dimensão arquetípica em seu ser, torna-se um
elemento catalizador de mudança nesse cenário. Ela passa a barrar certas atitudes que
contribuem para o ciclo vicioso de domínio/ subjulgação do masculino sobre o feminio se
perpetuar, pois sabe o que lhe fere, o que piora sua ferida e o que precisa para o alívio da sua
dor. Ela passa a integrar em sua cosnciência as dimensões multiplas da Grande Mãe e seus
aspéctos de vida-morte-renascimento, voltando a ser um referencial positivo para a anima nos
homens. Estes param de projetar um ser terrível e ameaçador nas mulheres e na natureza, que,
portanto, precisavam ser dominadas para não destruí-los. A partir disto, elas podem então
parar de dar voz ao seu Barba Azul, seu animus distorcido que era projetado nos homens que
as subjulgavam. Quebra-se o ciclo negativo e retorna-se ao equilíbrio positivo e criativo em
que as relações de parceria são privilegiadas.

Segundo Bolen (2003), quando a sociedade chegar ao milionésimo círculo de


mulheres, uma reação em cadeia irá ocorrer espontaneamente. Baseada na hipótese de que
“Quando um número crítico de pessoas transforma sua maneira de pensar e agir a cultura
também se transforma e uma nova era se inicia”(p.16). Existe uma experiência conhecida
relembrada pela autora, em que um grupo de pesquisadores estudava macacos em ilhas
distintas. Numa delas um indivíduo (do sexo feminino, claro!) começou a lavar as batatas das
quais se alimentava na água do mar e os demais começaram a imitar esse comportamento.
Quando um determinado número de indivíduos começou a realizar esse comportamento, os
pesquisadores que estavam observando os macacos de uma outra ilha começaram a perceber
que estes também começaram a lavar suas batatas na água salgada. Este experimento é
conhecido como a teoria do campo mórfico do biólogo Rupert Sheldrake.

Para Bolen(2003) “Estar em um círculo de mulheres é uma experiência de aprendizado


e crescimento que aglutina a sabedoria, a experiência, o compromisso e a coragem de cada
mulher que o compõe” (p.31)
27

Considerações Finais
A aventura de ser mulher numa sociedade carregada de um olhar baseado na
competitividade oriunda da cultura patriarcal não é tarefa fácil. Como vimos, estamos imersos
num ciclo vicioso de desequilíbrio energético que abre espaço para as projeções mais
sombrias do insconciente de homens e mulheres se materializarem na realidade.
A psicologia analítica nesse contexto aparece como uma forma de interpretar estes
fenômenos em sua magnitude, já que a abordagem nos dá o espaço necessário para traçar
interlocuções com os mais diversos solos epstemológicos e, principalmente, uma saída que
vem oferecer subsídios para angariarmos os recursos necessários para quebrar estes
mecanismos predatórios entre os sujeitos, e os mesmos e o meio ambiente, que, sendo a
representação viva da Grande Mãe, vem sendo degradado, exaurido, sugado até a última gota,
por uma humanidade que já tarda em deixar o seio materno, precisando reconhecer seus
próprios limites e responsabilidades para com aquela que os nutre, seja a muher ou a Terra.
Tais recursos, podemos identificar como a dimensão arquetípica, simbólica e
transcendente da vida, tão marcante no fenômeno dos círculos de Sagrado Feminino que
analisamos, espaços estes de promoção de saúde, em seu sentido amplo, além de apontar para
a possibilidade de uma reconfiguração do nosso modo de vida, nos reapropriando de práticas
e ideologias voltadas para a coletividade, a colaboratividade e as relações de parceria, onde
impera o respeito por todas as formas de vida e o ritmo natural do planeta e dos seres que o
habitam.
O estudo dos círculos de Sagrado Feminino, fenômeno humano representativo pelo
número de pessoas que vêm os buscando mas, no entanto, pouco estudado pela academia, nos
faz pensar que além dos círculos de Sagrado Feminino, possam existir outras saídas que
pormovam mudanças positivas nos mecanismos negativos que ocorrem em nossa sociedade,
talvez já estejam ocorrendo em algum lugar pelo mundo agora mesmo enquanto escrevo e
você lê este texto, porém, se faz necessário lançar luz sobre tais fenômenos, requerindo do
pesquisador a coragem para não se intimidar diante dos muros limitantes que por vezes nos
deparamos durante a trajetória acadêmica. Que possamos levar o olhar puramente curioso,
que se presentifica nos grandes nomes da ciência que trouxeram ao mundo as mais
deslumbrantes descobertas, mesmo diante do assombro do tradicionalismo científico clássico
frente aos grandes místérios que carregam a dimensão sagrada e espiritual da vida. Longe de
impossibilidade de articulações entre ambos, o que encontramos foi um solo profícuo de
conhecimento e descoberta, realmente instigante para quem pesquisa.
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Nosso estudo propiciou a compreensão de que este fenômeno emergiu nos dias de hoje
por não ter havido espaço em outras épocas para tal devido às questões sociais demandarem
outras necessidades e, principalmente, por que estes círculos são resultado de um processo de
construção histórico e suas consequências no âmbito psicológico, representando o movimento
compensatório do psiquismo das mulheres em busca de restaurar seu equilíbrio, já que
vivemos em dialética com o meio, e o resultado de tanto tempo de deflação, culmina no
movimento oposto; sempre na eterna dança entre as polaridades.
O tema é vastissimo e sentimos a falta de explorar assuntos subjacentes como as
relações com o sangue e a maternidade como símbolos de trasnformação, os arquétipos
presentes em variados mitos que perpassam os ritos que presenciamos nas várias vivencias
que participamos, o uso das curas naturais e a relação das mulheres com práticas como a
tecelagem, o feitio de instrumentos de poder, a relação de Sororidade, conceito muito presente
nas relações destes grupos, que trazem as mulheres para a dimensão da irmandade e não da
competitividade tão presente nos dias de hoje, por exemplo. Estes temas pretendemos
continuar pesquisando para futuros projetos literários, pois sentimos que é importante
fornecer tanto à comunidade científica, quanto às próprias participantes desses grupos, mais e
mais material onde possam encontrar embasamento e reconhecimento do seu papel de
curadoras e transformadoras de si mesmas e da realidade social.

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