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UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
Graduação em Psicologia
Fortaleza
2017
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Fortaleza
2017
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Banca Examinadora:
______________________________________
Prof. PhD. Carlos Velázquez
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
______________________________________
Prof. Ms. Maíra Maia de Moura
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
______________________________________
Profa. Dra. Alessandra Alcântara
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA
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Resumo
O interesse das mulheres contemporâneas pelos grupos do Sagrado Feminino, resgatando
práticas das sociedades matríticas, nos depara com um fenômeno novo, que nos aproxima da
visão junguiana arquetípica de anima e animus. Numa sociedade regida pelo patriarcado por
séculos, quando os aspéctos da anima são relegados à sombra, surge um desequilibrio visível
no mal estar social atual. Agora, as mulheres conquistaram espaço na sociedade e buscam
reencontrar sua anima nestes grupos. Como e porque tal fenômeno ocorre nesse momento
histórico é o que nos propomos a compreender a partir do paradigma junguinao de pesquisa.
Introdução
No ano de 2014 recebi um convite inusitado de uma amiga de caminhada
espiritual: vamos formar um grupo de Sagrado Femino? Eu não tinha o menor conhecimento
do que seria aquilo, ela me explicou vagamente, que estava “sentindo um chamado da sua
alma para estar em círculo com outras mulheres, para falar e ouvir”. Aceitei e iniciamos as
primeiras rodas de mulheres na casa dela, um pequeno sítio próximo à Fortaleza-Ceará, onde
tinhamos a privacidade necessária e o contato com a natureza pois, quando começamos a
pesquisar sobre o tema, entendemos que isto era importante. Descobrimos que as práticas
descritas nos sites que abordavam a temática, giravam em torno de uma Deusa, que era vista
como a própria terra: Mãe Natureza, Gaia, Pachamama. Independente do nome e da tradição
cultural, se tratava de uma reconexão com essa dimensão perdida, instintiva, natural do ser
humano com a vida viceral, com o meio ambiente, com o cosmos.
Nos demos o nome de Mulheres da Lua. Nos primeiros encontros, que fazíamos
sem nenhum planejamento de temas nem metodologia, nos encontrávamos pela vontade de
partilhar juntas e construir nosso entendimento sobre esse tal de Sagrado Feminino. Nos
sentávamos em círculo, fazíamos uma fala de abertura em forma de oração, onde cada uma
podia ir falando o que vinha ao coração. E falávamos. Falávamos do que achávamos ser o
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sagrado, o feminino, das pesquisas que estávamos fazendo e dos temas que estávamos nos
identificando: menstruação, ciclos, métodos contraceptivos alternativos, a ligação da mulher
com a lua, com a terra, falávamos das antigas tradições da Deusa como a Wicca, o culto às
Deusas Gragas, as tradições africanas com suas orixás como Iemanjá, Oxum, Nanã, ou as
deusas hindus, Sarasvati, Mahadevi, Lakshmi. Redescobrimos o uso das ervas e práticas
naturais de cura para evitar o uso de químicos e estarmos cada vez menos atravessadas por
substâncias que inibiam o fluxo natural do nosso organismo e nos desconectavam,
consequentemente, do fluxo natural da terra e do cosmos. Falávamos de nossas experiências e
fomos descobrindo que muitas coisas que já sabíamos, aprendidas com nossas mães, tias,
avós, ou mulheres sábias que cruzaram nosso caminho, eram práticas ligadas ao Sagrado
Feminino, só nunca tinhamos lhes dado esse nome.
Percebemos neste momento que toda mulher tem o potencial de curar a outra, de várias
formas.
Diante disso, despretei para o interesse na pesquisa sobre o tema, que percebo
como um fenômeno social importante de nossa época, já que mobiliza tantas mulheres e
propicia para elas uma forma de potencializar seu desenvolvimento, além do bem estar
pessoal, que reverbera para todas as suas relações sociais. Assim nasce este estudo, em que
fomos aos primórdios das sociedades humanas, buscar referenciais para compreender tal
fenômeno dos círculos de mulheres que ocorre na contemporaneidade, destacando que se trata
de um recorte do momento social que vivemos, e, para este estudo, nos detivemos aos
aspéctos que dizem respeito mais às questões históricas e fundantes do fenômeno tentando
compreender seus possíveis impactos e desdobramentos atuais e futuros à luz da psicologia
analítica.
(2003), descreve que em todas as clturas antigas do mundo inteiro, esses achados
arqueológicos revelam representações da Deusa como “A Criadora Divina” .
Nossa inquietação nasce dessa observação e trás o questionamento que nos serve
de pergunta de partida nessa pesquisa: Por que surge nesse momento histórico da humanidade
o interesse das mulheres em grupos sobre o tema do Sagrado Feminino? A hipótese levantada
para responder esta questão é a de que a demanda social dos últimos séculos, de que a mulher
assuma papéis masculinos, a afastou de sua psique instintiva feminina e arquetípica trazendo
desequilibrio para os sujeitos e o meio externo. Agora, com a conquista de alguns direitos e
um maior equilíbrio de gênero, ela poderia buscar mais intensamente o resgate dos aspectos
femininos de sua psique, sendo os círculos de Sagrado Feminino um meio para tal.
O interesse pelo tema vem da proximidade com o mesmo que tive ao longo de
dois anos de vivências em grupos de Saragado Feminino, sendo experienciado um
desenvolvimento pessoal em termos do processo de individuação, assim como a observação
do mesmo nas demais mulheres com quem tive contato e que participam ativamente do
movimento. Para Jung (2011), a individuação é o processo de “tornar-se um ser único”, se
dando de forma processual, na medida que passamos a entender a nossa singularidade mais
íntima, última e incomparável. No aspecto coletivo, o interesse pelas experiências grupais e
suas possiveis relações com a psicologia analítica, o processo de individuação e uma possível
mudança social positiva, também motivam o interesse em estudar os círculos de Sagrado
Feminino.
Diante disso, entendemos que se faz importante para o psicólogo ter como
relevante esse fenômeno que ocorre na cultura, buscar compreendê-lo em suas peculiaridades,
já que o Sagrado Feminino traz um olhar novo sobre os sujeitos e suas relações com o meio e
consigo mesmos, o que pode apontar saídas para vários problemas atuais, tanto em âmbito
pessoal do desenvolvimento psiquico como no coletivo e social.
Gattai que aborda a temática grupal na psicologia - nesta seara também autores como
Zimerman e Osório, dentre outros, na tentativa de abranger com diversos olhares essa
temática tão ampla e assim alcançar nosso objetivos nessa pesquisa, a saber, compreender
como e por que ocorre nesse momento histórico o interesse de mulheres pelos círculos em
torno do tema Sagrado Feminino a partir da perspectiva da Psicologia Analítica Junguiana.
Metodologia
Esta pesquisa diz respeito a um estudo qualitativo com base no paradigma junguiano.
O caráter qualitativo apresenta-se como descritivo e compreensivo do objeto de estudo,
segundo Bawer e Gaskell (2002), é uma pesquisa que lida com interpretações das realidades
sociais. É um método indicado para o trabalho com grupos e vivências humanas, como traz
também Minayo (2010), o método qualitativo é o que se aplica ao estudo da história, das
relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das
interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a
si mesmos, sentem e pensam.
González Rey (2005), afirmam que a abordagem qualitativa volta-se para os processos
que constituem a subjetividade, um objeto complexo, no qual seus elementos implicam
diferentes partes de um todo, e que muda de acordo com o contexto.
compreensão da realidade, sem, no entanto, deixar de considerar que outros olhares possam
somar-se ao dele, minimizando assim, o risco da identificação projetiva que pode ocorrer
entre o pesquisador e o objeto pesquisado.
De acordo com Penna (2004), citada por Hauke (2001), as principais características do
paradigma junguiano de pesquisa são:
Resultados e Discussão
O Sagrado Feminino - da atualidade aos primórdios
Estés(2014), em seu livro Mulheres que correm com os lobos, chama esse reencontro
consigo mesma de busca pela sua natureza ou Self instintivo selvagem, personifica isto como
a Mulher Selvagem que foi domesticada pela cultura e clama por ser reconhecida, vista,
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ouvida, para que se possa vicejar em sua totalidade enquanto entidade humana. Para autora a
repressão que a cultura vem impondo à esse aspécto da mulher, que poderíamos identificar
com um complexo arquetípico que, por ter vivido tanto tempo na sombra se tornou autônomo,
traz grande prejuizo e adoecimento psíquico à pessoa e à sociedade.
Deste modo, o que se observou nas vivências de círculos de mulheres em que estive
como participante desde o ano de 2014 até então, é que estas mulheres partem de imagens
arquetípicas como mitos que são representados por meio de contos, músicas e ritos de
diversas tradições religiosas como a indígena, a grega, a celta, a africana, a hindu, a nórdica,
por exemplo, para acessar a sua mulher selvagem e a dimensão sagrada do feminino em suas
vidas, que é enaltecido nessas deusas e representações arcaicas. Traçam-se paralelos e
relações com a vida atual e as repressões as quais se sentem subordinadas, assim como as suas
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consequências em seus modos de ser no mundo, pensar agir, sentir. Desta forma, se
entrelaçam suas histórias pessoais, a história da mulher e os movimentos sociais ligados a elas
ao longo tempo, os saberes ancestrais oriundos desse material que é pesquisado e partilhado
em grupo entre elas e que vem representando para estas mulheres uma saída do mal estar que
experimentam e que se reproduziu ao longo das últimas gerações. Para elas, este mal estar é
atribuído ao modo de vida patriarcal, que desvaloriza a mulher, controla seus corpos e
características singulares, sejam ligadas ao feminio ou masculino.
“Algo ocorreu faz uns seis mil anos que as lendas recordam como uma
queda e que a história celebra como o surgimento da civilização. A
arqueologia nos diz que somente apartir daquele tempo temos tido
desigualdade, escravidão e guerras, e parece que tudo começou quando em
resposta ao aquecimento da terra e à progressiva seca que se seguiu ao
derretimento das geleiras, as terras ocupadas pelas primeiras sociedades
agrárias já não puderam alimentá-las. Tudo indica que[...]nossos ancestrais
tiveram que voltar a uma vida de nomadismo predatório em que para
sobreviver precisaram se tornar agressivos e insensíveis.”(Naranjo, 2010,
p.17)
Von Koss (2000), traça um panorama sobre as origens primordiais dessa Deusa e sua
substituição por um Deus ao longo da história da humanidade. Inicialmente, “Os povos
arcaicos falam do surgimento do mundo a partir de uma deusa-mãe: a Grande Deusa Criadora,
ao mesmo tempo útero e força geradora do universo. A deusa, cujo próprio corpo é o céu, a
terra e as águas.” (p. 61) Essa deusa partenogênica não possuía características identificáveis,
era a que continha e era, ao mesmo tempo, a própria existência, potência e potencial de tudo,
“a vida dela emergia espontaneamente, do mesmo modo que as plantas brotam da
terra.”(p.62).
Entendemos, portanto, que essa deusa era uma força que representava o absoluto, a
totalidade, a mãe-matriz que contém e é tudo: o ser e o não ser, o feminino e o masculino, o
tempo passado, presente e futuro, a força vital do universo que habita todas as coisas. Zimmer
(citado por Von Koss 2000) afirma que apesar dessa realidade última ser inominável, sem
atributos, precisamos personifica-la, já que a compreendemos a partir da nossa racionalidade
e, para fins culturais, assume formas, nomes e um gênero, como a Shakti no hinduismo, por
exemplo, que representa essa força primordial; ou ainda se apresenta em personificações
multiplas, como a Deusa tríplice dos povos agrícolas que ao mesmo tempo tinha atributos de
virgem-mãe-anciã.
Von Koss(2000), defende que essas faces da deusa, ao longo do processo histórico de
subordinação do princípio feminino ao masculino vão sendo subjulgadas e dominadas em
seus aspéctos por entidades masculinas, que tomam seu lugar, apesar de às vezes, nas
mitologias dos mesmos, estes apresentarem relações com a deusa. Podemos enteder esse
fenômeno apartir do que Neumann(1996) traz sobre a dinâmica do arquétipo:
Segundo Von Koss (2000), é perceptível que o que era cultuado não é o feminino
enquanto mulher, mas sim a maternidade:
Estés(2014), pesonifica essa parcela predatória da psique, que na mulher vem a ser seu
animus em sua polaridade negativa, como o mito do Barba Azul. Descreve o conto, que um
homem muito rico e de aspécto estranho e perigoso, recorre a uma família da região para
pedir uma das filhas em casamento. Eram três moças, e as duas mais velhas se negam,
enquanto a mais jovem, seduzida pela riqueza e promessas do homem, cede ao seus encantos,
negando a óbvia estranheza que emana do sujeito: “sua barba nem é tão azul assim”, diz ela.
Já na mansão do agora esposo, à moça é permitido que usufrua de todo o lugar, menos de uma
determinada sala. O marido lhe dá todas as chaves de todos os cômodos e sai em viagem, e a
moça chama as irmãs para desfrutarem do palácio com ela enquanto o esposo está fora. As
irmãs, desconfiadas, exigem que a moça abra o cômodo proibido com a chave, e lá esta se
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depara com uma carnificina: cadáveres das ex-mulheres do Braba Azul. A moça tranca a porta
e tenta esquecer o ocorrido, mas da chave agora escorre sangue initerruptamente e é
impossível estancar a estranha emorragia. A jovem tenta de todas as formas esconder a
desobediência, esconde a chave em seu guarda roupas mas todos os seus vestidos ficam
manchados de sangue. O marido já se anuncia de volta e descobre a falta da esposa, revela-lhe
que agora que sabe a verdade terá o mesmo destino das esposas anteriores, a morte. A moça
pede que lhe conceda um instante para despedir-se de suas irmãs, enquanto isso, estas já
esperam seus irmãos que viriam busca-las e enchem-se de esperanças que estes as salvem. Os
irmãos chegam à tempo de impedir o assassinato da jovem irmã, matando seu algoz.
Ora, o que percebemos nisto é que numa sociedade que se desenvolveu por milênios,
impossibilitada de acessar a totalidade de seu Self por meio das diversas representações
arquetípicas da Deusa que lhes foram usurpadas, mulheres e homens se desenvolveram com
aspéctos seus empobrecidos, primitivos, infantis. O que presenciamos hoje é uma cultura
egocentrica, altamente pautada pelos desejos infantilizados, que não têm uma Mãe em sua
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A partir do que Emma Jung (1991) discute em Anima e Animus, que corrobora com
nosso entendimento do distanciamento da humanidade da conexão com a natureza e a
percepção de sua sacralidade, podemos perceber que uma das qualidades do aspécto feminino
da psique, como sabemos, é a ligação com o que é espiritual. Para a autora,
e, quanto mais nos distanciamos da experiência direta com a natureza, aos moldes das
sociedades matrísticas, em que percebemos determinados fenômenos numa perspectiva
espiritual e sagrada e sua ligação com nossas vidas, mais damos força para que esse complexo
se torne autônomo e não integrado ao desenvolvimento da consciência, se manifestando como
sombra. “Onde antes ela ascendia o fogo da lareira e, com isso, cumpria o ato prometeico,
hoje ela liga o gás ou comutador elétrico e não tem uma idéia do que perde com essas
inovações práticas e que consequências essa perda lhe traz”. (Jung, 1991, p. 21).
Marcos Históricos
O que pensamos que ocorre segundo nossa pesquisa é que, por todo esse tempo, as
mulheres não tiveram espaço para sequer sentir que essas parcelas de sua psique clamavam
por desenvolverem-se. Diante das demanas sociais advindas do processo histórico de
produção, onde desde os tempos remotos aos eventos subsequentes, só agora, depois de
algumas consquistas e certa estabilidade, as mulheres tiveram tempo para sentir que lhes
faltava algo que o modelo de sociedade em que vivemos não estava sendo suficiente para
suprir. Os homens por seu turno, tendendo ao movimento de evitação a saída do ninho e
manutenção da segurança no colo materno, representado também pelas facilidades
tecnológicas que são desenvolvidas a partir das características mais voltadas para a polaridade
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yang, como a lógica presente no pensamento científico, não tenderiam a buscar naturalmente
um movimento como um Sagrado Masculino, por exemplo, sendo a tarefa de busca por
compensação de tanto tempo de desequilíbio, vem a ficar a cargo das mulheres de nossos
tempos.
Aqui se faz necessário uma observação mais incisiva sobre estes eventos históricos,
pois, o que desejamos compreender é como e por que o movimento grupal do Sagrado
Feminino fomentado pelas mulheres só eclodiu agora, e não nos anos 60, ou antes, quando se
iniciou o feminismo?
A idade moderna que segundo Marcondes (2007), compreende os séculos XVII à XIX
chegaria norteada pelas noções de progresso e valorização do indivíduo com o humanismo
renascentista, a descoberta do Novo Mundo, a Reforma Protestante, e a revolucção científica.
Percebemos esta fase como um movimento voltado para as qualidades yang, o logos, o
racional, sendo enfatizado na busca do desenvolvimento científico, portanto, qualquer
movimento que enaltecesse as qualidades yin, como vemos nos círculos de Sagrado
Feminino, seria sobrepujado pela necessidade da humanidade dissociar o divino e a razão e
valorizar a individualidade.
Assim, Pinto(2010), ressalta que nas últimas décadas do século XIX nasce o
feminismo na Inglaterra com a busca das sufragetes pelo direito ao voto. Entendemos esse
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movimento como diferente do Sagrado Feminino, apesar de nos círculos de mulheres, que são
o fenômeno que estamos estudando e, portanto, não é nosso intuito aprofundar os conceitos
que envolvem o feminismo, haver a presença de debates do feminismo também, já que ainda
estamos atualmente numa realidade social em que muitos direitos das mulheres precisam ser
revistos e ampliados .
“O movimento feminista tem uma característica muito particular que deve ser tomada
em consideração pelos interessados em entender sua história e seus processos: é um
movimento que produz sua própria reflexão crítica, sua própria teoria.” (Pinto,2010, p.15).
Assim, vemos essa interlocução como frutífera pois como o Sagrado Feminino é algo que
acontece hoje mas, baseado em práticas antigas, pode aprender muito com o processo
construtivo que carrega o feminismo, além de atribuirmos ao feminismo o grande pontapé,
dentre os demais fatores históricos, que possibilitou hoje que muitos direitos femininos
fossem conquistados e, sendo um retorno do formato de encontro entre mulheres para falar de
suas questões, se configura quase como um embrião do que viriam a ser os círculos de
Sagrado Feminino hoje.
Segundo Zimerman e Osório (1997), o ser humano, sendo gregário por natureza,
existe em função dos seus relacionamentos e dos grupos que participa. A humanidade se
organiza em agrupamentos desde eras remotas, como descrevemos inicialmente nas
sociedades matrísticas. Os grupos são formas de organização que representam acolhimento,
segurança, união entre interesses iguais. Osório(1997), considera que um grupo é, portanto,
um conjunto de pessoas que são capazes de se reconhecer em sua singularidade e que exercem
uma ação interativa com objetos compartilhados. “Muito antes de ter aprendido a fazer fogo
ou a construir um abrigo, o homem percebeu as qualidades especiais que podiam ser obtidas
da reunião com seus semelhantes”. (Foulkes,1963, citado por Osório, 1997).
Para Moreno(1974), o ser humano desde a sua origem é um ser social e, como tal,
estabelece seus relacionamentos no contexto grupal. A ideia de grupo, portanto tem um papel
preponderante na sua estrutura social. O ser humano necessita desta interação para crescer e
desenvolver-se sendo o grupo social um espaço que possa gerar encontro e renovação do
individuo, do próprio grupo e na coletividade. É o lugar propício para estabelecer relações
estáveis, interagindo, confiando, compartilhando, amando e buscando realizar metas da vida
individual e coletivo (Gois, 2008).
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Segundo Zimerman e Osório (1997), existem vários tipos de grupos que podem ser
divididos, primeiramente, entre grandes grupos e microgrupos. Para os autores, uma condição
chave para que um agrupamento de pessoas passe a se caracterizar como grupo é ter interesses
em comum, apresentado-se como uma entidade/ unidade/ totalidade com identidade própria,
com leis e mecanismos específicos. Partindo para uma classicação quanto à finalidade
destacam mais dois tipos: os operativos, grupos centrados numa tarefa que pode ser de
natureza socioeducativa, ensino aprendizagem, institucionais, comunitários e terapeuticos; e
os grupos psicoterápicos, que, de acordo com Moreno (1974), tratam de maneira sistemática e
consciente, as relações interpessoais e os problemas psíquicos dos indivíduos na interação
grupal.
Desta forma estes espaços são de verdadeiras trocas de saberes, a mulher que abre o
círculo é tida como um canal da deusa para aquele encontro, em que ela própria cura enquanto
é curada, nos remetendo ao mito do curador ferido. Essa Imagem expressa bem as relações
entre as mulheres nos círculos, nos mostrando mais uma vez que essa percepção arquetípica
foi acessada a partir da experiência grupal, onde elas muitas vezes se denominam como
curandeiras de si.
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Para Holanda(2012),
Ora, a condição de Quíron, nos remete à própria condição humana diante das feridas
existenciais com as quais, inevitavelmente, temos que conviver. Diante do desequilíbrio entre
as polaridades anima e animus, nos vemos frente a uma humanidae infantilizada, portanto
incapaz de lidar ou mesmo reconhecer suas próprias feridas e as dores e angústias que
derivam delas. Uma mulher que desperta essa dimensão arquetípica em seu ser, torna-se um
elemento catalizador de mudança nesse cenário. Ela passa a barrar certas atitudes que
contribuem para o ciclo vicioso de domínio/ subjulgação do masculino sobre o feminio se
perpetuar, pois sabe o que lhe fere, o que piora sua ferida e o que precisa para o alívio da sua
dor. Ela passa a integrar em sua cosnciência as dimensões multiplas da Grande Mãe e seus
aspéctos de vida-morte-renascimento, voltando a ser um referencial positivo para a anima nos
homens. Estes param de projetar um ser terrível e ameaçador nas mulheres e na natureza, que,
portanto, precisavam ser dominadas para não destruí-los. A partir disto, elas podem então
parar de dar voz ao seu Barba Azul, seu animus distorcido que era projetado nos homens que
as subjulgavam. Quebra-se o ciclo negativo e retorna-se ao equilíbrio positivo e criativo em
que as relações de parceria são privilegiadas.
Considerações Finais
A aventura de ser mulher numa sociedade carregada de um olhar baseado na
competitividade oriunda da cultura patriarcal não é tarefa fácil. Como vimos, estamos imersos
num ciclo vicioso de desequilíbrio energético que abre espaço para as projeções mais
sombrias do insconciente de homens e mulheres se materializarem na realidade.
A psicologia analítica nesse contexto aparece como uma forma de interpretar estes
fenômenos em sua magnitude, já que a abordagem nos dá o espaço necessário para traçar
interlocuções com os mais diversos solos epstemológicos e, principalmente, uma saída que
vem oferecer subsídios para angariarmos os recursos necessários para quebrar estes
mecanismos predatórios entre os sujeitos, e os mesmos e o meio ambiente, que, sendo a
representação viva da Grande Mãe, vem sendo degradado, exaurido, sugado até a última gota,
por uma humanidade que já tarda em deixar o seio materno, precisando reconhecer seus
próprios limites e responsabilidades para com aquela que os nutre, seja a muher ou a Terra.
Tais recursos, podemos identificar como a dimensão arquetípica, simbólica e
transcendente da vida, tão marcante no fenômeno dos círculos de Sagrado Feminino que
analisamos, espaços estes de promoção de saúde, em seu sentido amplo, além de apontar para
a possibilidade de uma reconfiguração do nosso modo de vida, nos reapropriando de práticas
e ideologias voltadas para a coletividade, a colaboratividade e as relações de parceria, onde
impera o respeito por todas as formas de vida e o ritmo natural do planeta e dos seres que o
habitam.
O estudo dos círculos de Sagrado Feminino, fenômeno humano representativo pelo
número de pessoas que vêm os buscando mas, no entanto, pouco estudado pela academia, nos
faz pensar que além dos círculos de Sagrado Feminino, possam existir outras saídas que
pormovam mudanças positivas nos mecanismos negativos que ocorrem em nossa sociedade,
talvez já estejam ocorrendo em algum lugar pelo mundo agora mesmo enquanto escrevo e
você lê este texto, porém, se faz necessário lançar luz sobre tais fenômenos, requerindo do
pesquisador a coragem para não se intimidar diante dos muros limitantes que por vezes nos
deparamos durante a trajetória acadêmica. Que possamos levar o olhar puramente curioso,
que se presentifica nos grandes nomes da ciência que trouxeram ao mundo as mais
deslumbrantes descobertas, mesmo diante do assombro do tradicionalismo científico clássico
frente aos grandes místérios que carregam a dimensão sagrada e espiritual da vida. Longe de
impossibilidade de articulações entre ambos, o que encontramos foi um solo profícuo de
conhecimento e descoberta, realmente instigante para quem pesquisa.
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Nosso estudo propiciou a compreensão de que este fenômeno emergiu nos dias de hoje
por não ter havido espaço em outras épocas para tal devido às questões sociais demandarem
outras necessidades e, principalmente, por que estes círculos são resultado de um processo de
construção histórico e suas consequências no âmbito psicológico, representando o movimento
compensatório do psiquismo das mulheres em busca de restaurar seu equilíbrio, já que
vivemos em dialética com o meio, e o resultado de tanto tempo de deflação, culmina no
movimento oposto; sempre na eterna dança entre as polaridades.
O tema é vastissimo e sentimos a falta de explorar assuntos subjacentes como as
relações com o sangue e a maternidade como símbolos de trasnformação, os arquétipos
presentes em variados mitos que perpassam os ritos que presenciamos nas várias vivencias
que participamos, o uso das curas naturais e a relação das mulheres com práticas como a
tecelagem, o feitio de instrumentos de poder, a relação de Sororidade, conceito muito presente
nas relações destes grupos, que trazem as mulheres para a dimensão da irmandade e não da
competitividade tão presente nos dias de hoje, por exemplo. Estes temas pretendemos
continuar pesquisando para futuros projetos literários, pois sentimos que é importante
fornecer tanto à comunidade científica, quanto às próprias participantes desses grupos, mais e
mais material onde possam encontrar embasamento e reconhecimento do seu papel de
curadoras e transformadoras de si mesmas e da realidade social.
Referências
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