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João Domingos Bomtempo (Lisboa, 28/12/1775 - Lisboa, 18/08/1842) e o Requiem à memória de Camões (1819)

1. Ambiente musical
Em 1816 é publicado na Alemanha o seguinte depoimento sobre o que se passava então na vida musical em Portugal:
“Exceptuando aqueles [portugueses], muito poucos, que são verdadeiramente instruídos na arte dos sons, o resto acharia por exemplo as sinfonias, aberturas e
quartetos de Mozart, Beethoven (…) ou mesmo Haydn, insípidos, maçadores, até mesmo antagónicos; pelo contrário, o Klingklang oco de triviais aberturas
italianas e outras composições do mesmo estilo é acolhido com prazer e retribuído com aplausos ruidosos.” [Allgemeine Musikalische Zeitungde, Leipzig, 1816, cit.
in Manuel Carlos de Brito e David Cranmer, Crónicas da Vida Musical Portuguesa na Primeira Metade do Século XIX, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1990, p. 38]
É neste contexto, de ignorância e hostilidade à actividade musical praticada há décadas no coração da Europa, que a figura de João Domingos Bomtempo (1775-
1842) emerge. As notas que se seguem salientam aquilo que distingue Bomtempo como o mais importante músico português do século XIX.

2. Paris e Londres
No século XVIII a abertura musical portuguesa ao exterior passou apenas por Itália: músicos como António Teixeira ou João de Sousa Carvalho, com o apoio de
monarcas como D. João V ou D. José I, estudaram em Roma e trouxeram a influência do bel canto para a música portuguesa.
A carreira de Bomtempo, pelo contrário, desenvolve-se no centro da Europa. Parte para Paris em 1801, desenvolvendo uma carreira de pianista virtuoso. Aí se
relaciona com o círculo de emigrados simpatizantes do liberalismo, e publica as suas obras musicais nas casas Leduc e Pleyel, nomeadamente um método de
pianoforte (1816) e o Requiem (1819). [nota: no final deste século XIX, Vianna da Mota procurará um novo centro musical, através da figura de Liszt, no centro da
cultura germânica]
A partir de 1810 estabelece-se também em Londres, onde prossegue a sua carreira de intérprete/compositor e inicia uma estreita colaboração com Muzio Clementi
– importante pianista, compositor, editor e construtor de instrumentos.

3. Compositor
Bomtempo é autor de um vasto conjunto de sonatas, fantasias, variações e concertos para o Piano, que ilustra toda a gama de recursos do instrumento. A
influência de Mozart ou Clementi é nítida, mas há peças que podem comparar-se com o próprio Beethoven. Se ouvirmos as variações sobre a ária de Paisiello
“Nel cor più non mi sento” dos dois autores podemos concluir que as de Bomtempo evidenciam igualmente enorme saber composicional e expressivo.
Para Paulo Ferreira de Castro, “a sua personalidade de compositor revela-se talvez mais plenamente nas duas sinfonias que dele se conhecem (as primeiras —
entendida a denominação no sentido moderno — compostas por um autor português), em algumas obras de música de câmara, e no referido Requiem,
evidenciando em geral uma assimilação, rara em músicos ibéricos da época, de certos elementos do estilo de Haydn e Mozart.” [Rui Nery e Paulo Ferreira de
Castro, História da Música (Sínteses da Cultura Portuguesa), Lisboa, I.N.C.M., 1991, p. 133]

4. Professor
Em 1816 publica em Londres a sua principal obra didáctica, os Elementos de música e método de tocar piano forte, dedicada «à Nação Portuguesa». Gerhard
Doderer refere a importância desta obra por ser “o primeiro Método de Piano em Portugal baseado numa concepção metódica e didáctica. Além disso, o op. 19
comprova claramente que se cultivava, no Portugal de então, um estilo pianístico orientado tanto pela evoluída técnica de construção de pianos daquela época
como pela maneira de tocar usada pelos mais avançados pianistas e professores de piano da Europa Central." [prefácio à edição em facsimile, Lisboa, Secretaria
de Estado da Cultura, 1979)

5. Divulgador musical
O regresso definitivo a Portugal ocorre em 1820, após o triunfo (provisório) da causa liberal. Cria a Sociedade Filarmónica, inspirada na Philarmonic
Society de Londres, cuja actividade se mantém de modo intermitente até 1828, devido às constantes oscilações de poder. Esta sociedade é apoiada por
membros da nobreza e da burguesia, tanto liberais como absolutistas, numa lista de 271 subscritores encabeçada pelo Duque de Cadaval. O repertório
incluía obras de Bomtempo, Boccherini, Hummel ou Pleyel, e sinfonias de Haydn, Mozart e Beethoven. A estreia em Portugal da 5.a Sinfonia de Beethoven
ocorreu neste contexto, cerca de 20 anos após a sua criação em 1808 – o que é notável para a época.

6. Conservatório
Em documento datado de 1834, Bomtempo fundamentava a sua proposta de criação de uma escola de música:
«Quando pois se considera que pela fundação deste Estabelecimento tão pouco dispendioso, como fica demonstrado, cessa a enorme despesa, que dantes se
fazia com engajamento de Músicos Estrangeiros e por outro lado se abre caminho ao desenvolvimento de génios nacionais no aperfeiçoamento de uma Arte tão
estimada e cultivada nos melhores países da Europa, é fácil reconhecer-se o proveito deste Estabelecimento, tanto mais vantajoso quanto menos gravoso se
apresenta.» [cit. in Maria José de La Fuente, “Bomtempo e o Conservatório de Lisboa”, in João Domingos Bomtempo – Catálogo da Exposição nos 150 anos da
sua morte, Lisboa, 1993, p.16].
A proposta incluía, além do Director, Professores para as seguintes disciplinas: Piano-forte, Canto, Violino, Violeta, «Rabecão Pequeno»
«Rabecão Grande» [violoncelo e contrabaixo], Oboé, Clarinete, Flauta, Fagote, Trompa, Rudimentos, Solfejo e Acompanhamento de Órgão e
Piano-forte, Língua Italiana e Língua Latina.

Após a vitória liberal de 1834, e por Decreto de 5 de Maio de 1835, é criado o Conservatório de Música, anexo à Casa Pia, e Bomtempo nomeado director,
cargo que exerceu durante 7 anos, até ao fim da vida. Esta escola foi integrada em 1836 no Conservatório Geral de Arte Dramática, criado por iniciativa de Almeida
Garrett, que abrangia também as escolas de Declamação e de Dança.
Refira-se a propósito que Garrett (Inspector Geral dos Teatros) admirava muito Bomtempo (Presidente da Direcção do Conservatório e director da Escola
de Música), o que não evitou atritos, como mostra uma carta de Garrett em 1841: “Pela simpatia que tenho e consideração com a nobre profissão dos
artistas, e pessoalmente com o talento de V. S., lhe escrevo estas linhas, para lhe fazer crer que está num erro incrível, e que não posso nem devo
condescender com a sua exigência que é inteiramente sem fundamento”. Tratava-se da adopção de um livro de registo de ordens, que Bomtempo recusava
mas que acabou por aceitar.
Do mesmo modo, surgem nesta altura problemas com os professores, nomeadamente relacionados com faltas, concursos e atrasos nos pagamentos.
Exemplifique-se com o seguinte depoimento sobre faltas, redigido em 1841 por Joaquim Larcher, que substituiu Garrett: “Falando das Escolas não devo
deixar de louvar a assiduidade e zelo da maior parte dos professores, assim como não devo deixar em silêncio que, não havendo multas estabelecidas para
as faltas dos professores, não tenho meio algum para corrigir e coibir um ou outro mais relaxado no cumprimento dos seus deveres”. [cit. in Maria José de La
Fuente, op. cit., p.18]

7. Requiem à memória de Camões (1819)


Em 1819 o Requiem é estreado publicamente em Londres, com grande impacto, logo após uma primeira apresentação privada em Paris. Na cidade-luz estavam
exilados ilustres partidários da causa liberal, como o Morgado de Mateus, que aí promoveu figura de Camões com uma edição luxuosa de Os Lusíadas, em 1817.
Neste contexto se enquadra a consagração do Requiem “à memória de Camões”, como afirma o frontispício da partitura, publicada em Paris pelo editor Auguste
Leduc: « MESSE DE REQUIEM/ / à Quatre voix / Choeurs, et grand Orchestre/ /avec Accompagnement de piano / à défaut d'Orchestre / Ouvrage consacré
à Ia Mémoire l /de CAMÕES l Par / J. D. BOMTEMPO / Oeuvre 23 ».
Esta obra usa os textos essenciais da Missa pro defunctis: Introitus-Kyrie, Dies irae (Sequentia), Offertorium, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei. O Agnus Dei inclui
o Communio e evoca no final o «Requiem aeternam» inicial, sugerindo o princípio cíclico que será tão caro aos compositores do romantismo. A tonalidade de base
é a de dó menor, como acontece no Requiem de Cherubini, que lhe é contemporâneo (1817).
Aquando da sua primeira edição discográfica, em 1980, Fernando Lopes Graça escreveu um expressivo depoimento: “Diremos para já que o Requiem de
Bomtempo é sem dúvida uma bela e nobre peça de música religiosa situada entre os dois marcos históricos do género que são o Requiem de Mozart (1791) e o
Requiem de Berlioz (1837). (…) Seja como for, a nós afigura-se-nos, porém, que o Requiem de Bomtempo, mais «ingénuo», se quisermos, que o de Cherubini,
leva vantagem ao do seu ilustre contemporâneo numa meia dúzia de pontos, que especificaremos: maior variedade das situações texturais — oposição de solos e
coro, que não existe em Cherubini; mais impressiva tradução do texto lítúrgico; maior fluência, maior transparência do tecido sinfónico--vocal; quase ausência de
formularismo, ainda que não discreto conhecimento dos «segredos» da escrita imitativa; enfim, nenhuns vestígios de estilo teatral, pecadilho em que com
frequência caía a música religiosa da segunda metade do século XVIII e princípios do século XIX, e de que não se acha completamente isento Cherubini, ou não
fora ele um notável compositor operático.” [Lopes Graça, notas incluídas na 1ª gravação moderna do Requiem, efectuada pala Orquestra Sinfónica e Coro da
Rádio de Berlim – disco LP, Secretaria de Estado da Cultura, 1980].
Logo após o falecimento de Bomtempo, ocorrido em 18 de Agosto de 1842, o Conservatório prestou-lhe homenagem num concerto realizado em 5 de
Novembro do mesmo ano, sendo interpretado o Requiem à memória de Camões e o Libera me à memória de D. Pedro IV. Este mesmo programa foi
apresentado mais tarde, nas exéquias da Rainha D. Maria II (1819-1853).
Francisco de Melo – Notas de Programa do CD Requiem: Orquestra da ESMAE, Coro da Sé do Porto, dir. António Saiote. 29/03/2009, 200 anos do desastre da Ponte das Barcas
(2ª invasão napoleónica, comandada pelo general Soult)

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