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O MISTÉRIO DO ANTI

Autor
K. H. SCHEER

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
O destino do Império Arcônida está
nas mãos de um ladrão!

Com o descobrimento na Lua de uma espaçonave arcônida


acidentada, foram lançados os alicerces para a unificação de toda a
Humanidade terrana e, desta unificação, surgiu o Império Solar.
Ninguém podia supor, nem mesmo Perry Rhodan, quantos esforços e
firmeza de ânimo seriam necessários, no correr dos anos, para
manter este Império frente aos ataques internos e externos.
A mais séria ameaça à Humanidade, que teve seu clímax na
invasão dos druufs e na batalha em defesa do Império Solar, pôde ser
debelada graças ao eficaz auxílio de Árcon. E a crise na política
interna, provocada pelo desertor e traidor Thomas Cardif, foi
removida por Gucky.
Porém, um desenvolvimento constante da Humanidade será
possível quando houver uma paz definitiva na Galáxia — e até lá,
parece haver ainda um longo caminho...
O próprio Atlan, o imortal, que há pouco tempo substituiu a
gigantesca máquina eletrônica que costumava sufocar no nascedouro,
com suas frotas robotizadas, qualquer tentativa de revolução contra o
poder central de Árcon, é o primeiro a desejar a paz.
Atlan, agora com o nome de Imperador Gonozal VIII, e Perry
Rhodan, o administrador do Império Solar, já por simples instinto de
conservação, se apóiam mutuamente em suas aspirações.
Não faz muito tempo, foi assinado um pacto de assistência
mútua entre Árcon e a Terra. Assim, as velozes espaçonaves do
Império Solar estão preparadas para entrarem em ação em qualquer
lugar da Galáxia, onde a paz e a ordem forem perturbadas.
Ao voltar de sua excursão à Eternidade, Perry Rhodan
considera precária a situação política em Árcon. Então confia a John
Marshall, comandante do Exército de Mutantes, o cargo de oficial de
ligação junto a Atlan. Mas, ao dar esta ordem, Perry ainda não sabia
da existência do Anti.

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Atlan — Um imortal que só dispõe de sessenta horas para
conservar a imortalidade...
John Marshall — Não é sem motivo que um telepata exerce as
funções de oficial de ligação terrano em Árcon.
Perry Rhodan — Administrador do Império Solar.
Segno Kaata — Chefe do culto de Baalol, em Árcon.
Ivã Ivanovitch Goratchim — Um membro muito importante
do Exército de mutantes.
1

— Sua Alteza dos milhões de olhos, que tudo vê e tudo sabe, governante de Árcon e
dos mundos da ilha desolada, Sua Magnificência Imperial Gonozal VIII, divindade da
estirpe dos ancestrais do mundo, houve por bem declarar aberta a sessão do Grande
Conselho de Árcon.
Por vezes os passos dos robôs que mantinham as armas preparadas para disparar
abafavam as palavras solenes. O chefe do protocolo fizera o possível para que a
cerimônia corresse segundo o milenar ritual.
Os cientistas do Grande Conselho de Árcon levantaram-se. Segundo a tradição, os
governantes do império estelar deviam vir acompanhados de uma guarda pessoal. Mais
de um imperador já fora vitimado pelas intrigas misteriosas da corte.
Cometi uma infração grave ao protocolo, quando determinei que minha guarda
pessoal fosse formada por robôs especiais. Não estava interessado em sucumbir ao tiro
energético de um guarda naat, que tivesse sido subornado ou submetido a outro tipo de
influência.
Sabia que me odiavam! Odiavam-me com toda a intensidade de que ainda eram
capazes.
Eu era um intruso, um remanescente dos tempos passados, que aparecera de repente
e, graças aos dotes físicos e espirituais, superava em muito os últimos descendentes da
raça — antigamente tão ativa — dos arcônidas.
Sabiam que, com o auxílio de um comando terrano, eu conseguira desligar o grande
centro de computação, que até então parecia onipotente, para assumir o governo do
Grande Império.
Ainda teriam perdoado meu regresso, que se verificara com um atraso de dez mil
anos, e, com toda certeza, não se teriam tornado malévolos ou invejosos, apesar das
minhas pretensões ao poder, desde que me deixasse enfeixar no molde da decadência
geral. Ninguém teria levado a mal minha descendência da antiga família reinante, caso
me mostrasse disposto a aceitar a decadência dos costumes, a indolência mental e a
inatividade, com um sorriso de resignação dos lábios.
Mas, como não estava disposto a permitir que o Império, corroído pelas revoltas e
guerras coloniais que eclodiam em toda parte, decaísse ainda mais, fiz indiretamente
pesadas exigências àqueles sonhadores moral e psiquicamente degenerados, que durante
sete decênios se haviam sentido à vontade sob o governo-fantoche de psicopatas e
indivíduos neuróticos.
Na verdade, o poder fora exercido por um gigantesco centro positrônico de
computação, que os cientistas clarividentes de meu povo haviam programado com uma
sábia previsão.
Os habitantes dos três mundos de Árcon já se haviam acostumado à ditadura
implacável de uma máquina. Mas de repente eu apareci...
Parei na extremidade da tribuna arqueada. Tive, diante de mim, o gigantesco salão
no qual, em tempos idos, o Grande Conselho de Árcon fundara o Império, resolvera
ampliar suas fronteiras e fizera de meu povo a raça mais poderosa e opulenta dos setores
conhecidos da Via Láctea.
E agora as poltronas pneumáticas de muitas cores eram ocupadas pelos
descendentes desses pioneiros. E o que fora feito dos representantes de meu povo?
Não se podia dizer que os rostos fossem estúpidos. Mas tive a impressão de que em
todos os olhares havia um grande vazio e uma total falta de interesse. Sabia que se
sentiam indignados e indagavam por que foram perturbados na calma a que estavam
acostumados. Afinal, para que existia um computador-regente, que já provara que em sua
programação não havia nada que constituísse uma desvantagem pessoal para os
representantes do Império?
Os homens que ocupavam as confortáveis poltronas eram tão indolentes que eu
jamais poderia esperar qualquer colaboração de sua parte. Provavelmente já não seriam
capazes de mais nada. Os cientistas terranos manifestaram de forma clara e inequívoca a
opinião de que os membros do Grande Conselho estavam submetidos a um processo de
degenerescência... e não só estes.
A decadência espiritual era visível em todas as partes de Árcon I, o lendário mundo
de cristal. Os indivíduos dedicavam-se a prazeres insensatos, aos jogos simultâneos e a
doutrinas filosóficas alheias à realidade. Esse estado não encontrava nenhum equivalente
nos vinte mil anos de história do império estelar.
Todos acreditavam que deviam manter-se ocupados, para escapar do trabalho. Os
representantes de meu povo haviam chegado ao fim do caminho. Perderam tudo aquilo
que antigamente distinguia os políticos, cientistas e oficiais arcônidas.
O chefe do protocolo voltou a desfiar algumas frases cerimoniosas, em que eram
exaltadas minhas qualidades de divindade dos milhões de olhos e alteza que tudo vê.
Aquelas palavras, que há séculos eram adequadas e significativas, causavam-me
repugnância. Naquele ambiente perdiam todo sentido.
Os vinte robôs de guerra colocaram-se à direita e à esquerda do estrado do trono,
que flutuava sobre um campo antigravitacional. Os campos defensivos energéticos que
protegiam cada uma das máquinas provavam que minhas intenções eram sérias...
E uma demonstração ainda mais inequívoca das minhas intenções residia no
alongado aparelho de comando, que usava de forma perfeitamente visível no antebraço
esquerdo.
Tratava-se de um transmissor e receptor de impulsos regulado para minhas
vibrações orgânicas, que me permitia entrar em contato, a qualquer momento, com o
grande centro de computação instalado em Árcon III.
Todos sabiam que soma de poder estava ligada a isso. Ninguém, a não ser eu, estava
em condições de dar ordens ao regente.
Era a quarta sessão que estava sendo realizada no grande salão dos ancestrais.
Durante as três sessões anteriores, declarara e provara que eu, o Almirante Atlan, membro
da dinastia governante dos Gonozal, ficara retido num mundo estranho em virtude de
circunstâncias adversas.
Ainda relatara como conseguira escapar à catástrofe de Atlântida e por que só agora
me fora possível regressar ao sistema de Árcon, dez mil anos depois de minha partida.
Os oficiais de ligação terranos e Perry Rhodan em pessoa confirmaram minhas
alegações. Isso não teria adiantado muito, se o computador-regente não tivesse
confirmado integralmente as provas por mim apresentadas, tornando-as irrefutáveis.
O regente provara que eu era Atlan, membro da antiga família reinante dos Gonozal,
motivo por que achava-me plenamente capacitado a reivindicar as dignidades de
imperador.
Há quatro dias mudara-me para o palácio de cristal de Árcon I. Dispensara as
cerimônias da coroação, que consumiriam algumas semanas, e tentara imediatamente
localizar os membros do Grande Conselho, que residiam em locais bastante afastados.
Alguns dias depois estavam sentados à minha frente, os velhos e os jovens, os
nobres e os distintos, que sempre pensavam e agiam segundo o mesmo esquema.
Pouco antes se verificara o pouso das naves de transporte, que enviara a um sistema
solar distante. Os homens altamente competentes de Rhodan haviam conseguido
encontrar uma nave emigrante de meu povo, há muito esquecida, e resgatar seus
ocupantes.
Tratava-se de cerca de cem mil arcônidas, dos quais cinco mil partiram há alguns
milênios, mas foram colocados num estado de hibernação biológica, em virtude de um
acidente e de uma série de circunstâncias extraordinárias.
Aqueles homens e mulheres conservavam plenamente sua capacidade de ação,
embora tivessem partido depois do meu tempo.
Acontece que ainda não podia recorrer ao seu auxílio. Estavam esgotados e
precisavam de descanso.
De qualquer maneira, este achado representava um ponto positivo para mim.
Esperava que cem mil arcônidas arrojados e ativos me ajudassem reconstruir o Império.
Se, além disso, cuidasse para que a geração ainda não nascida fosse submetida a métodos
educacionais adequados, a fim de ser subtraída ao torvelinho generalizado da decadência,
devia ser possível renovar o Império dentro de alguns decênios.
Tratava-se, porém, de visões futuristas, que não poderiam ser concretizadas, sem o
auxílio dos terranos.
Fui sentando sobre o sofá largo e fiz com que o campo antigravitacional me
erguesse. Parei três metros acima da tribuna. Obtive uma excelente visão de conjunto.
Os membros do Conselho estavam sentados de novo. Acharam natural um
comportamento que eu não me permitia. Refestelaram-se confortavelmente nas poltronas,
cruzaram as pernas e esperaram apaticamente pelo que estava para vir.
Um tanto desanimado, olhei para o oficial de ligação terrano que Perry Rhodan
designara recentemente para Árcon.
Tratava-se de um homem esbelto e simpático, chefe do Exército de Mutantes do
planeta Terra. Seu nome era John Marshall, e sua extraordinária capacidade telepática
estava inteiramente à minha disposição.
Notou meu olhar, que parecia pedir socorro. Abri meu campo de bloqueio
parapsicológico, a fim de poder captar os impulsos telepáticos de Marshall. Meu cérebro
adicional, ativado há vários milênios, deu sinal de sua presença através de uma pressão
dolorosa na parte posterior do crânio.
— Muito bem, sir — dizia a manifestação consciente irradiada por Marshall e
captada por mim.
Mais uma vez lamentei não dispor de um dom natural desse tipo. Só entendia John,
quando ele se concentrava diretamente sobre minha pessoa. E era-me praticamente
impossível chamá-lo contra sua vontade. Só conseguia estabelecer contato telepático com
ele, no momento em que se concentrasse em mim.
— O que estão pensando? — perguntei.
— Não muita coisa, sir. Diria que os pensamentos habituais enchem suas cabeças.
— Perguntam por que ainda estou vivo, não é?
— Exatamente. Não compreendem como o senhor, que partiu há dez mil anos do
Império de Árcon, pode ter voltado sem maiores sinais de velhice. Alguns cientistas
deram-se ao trabalho de realizar pesquisas na biblioteca pública do Império.
Descobriram sua linha de ancestrais, sir. Dessa forma sabem que o senhor realmente é
Atlan.
Reprimi uma risada colérica. Ninguém desconfiava da existência do meu ativador
celular. Mesmo que revelasse meu segredo, essa gente não conseguiria conceber o
funcionamento do pequeno aparelho. Eu mesmo sabia apenas que o processo de
decadência natural das células e os fenômenos de envelhecimento dele decorrentes eram
detidos por meio de misteriosos impulsos estimulantes.
E isso já vinha acontecendo há muitos milênios. Fiz um movimento discreto em
direção ao peito do meu uniforme e tateei os contornos do ativador. O mesmo me
concedera, com base num processo biofísico, uma vida eterna, vida esta que estava
repleta dia por dia, ano após ano, de saudade ardente por Árcon.
Agora estava em casa, mas encontrara condições que me envergonhavam e
revoltavam ao mesmo tempo. Alguma coisa tinha de ser feita para que Árcon pudesse
conservar sua grandeza. Uma gigantesca frota robotizada não era suficiente para isso.
Abri a sessão do Conselho. Dali a dez minutos surgiram os primeiros protestos. No
princípio, os repeli em tom moderado, e depois de algum tempo por meio de claras
ameaças.
Dali a uma hora desisti. Seria inútil tentar obrigar esses homens a iniciar uma vida
ativa. Marshall me comunicou que os pensamentos e anseios dos presentes se dirigiam a
um único objetivo: eliminar o elemento perturbador, que não era outro senão eu. Todos
estavam indignados e refletiam sobre os meios de afastar do poder um imperador surgido
de repente.
Não houve qualquer sugestão sensata para o fortalecimento do Império. As raras
propostas constituíam um indício evidente de que nem sequer se possuía uma visão clara
da situação. Alguns membros do Conselho não conheciam sequer as condições reinantes
na frente dos druufs.
Ninguém deu atenção ao oficial de ligação terrano. Marshall me comunicou,
achando graça, que ele, o telepata altamente capaz, era considerado o representante de um
insignificante povo colonial.
Fiz descer o sofá e encerrei a sessão. Sem aguardar os cumprimentos devotos de
alguns cortesãos que se encontravam nas proximidades, afastei-me em companhia de
minha escolta de robôs.
Mesmo que no palácio de cristal não se soubesse fazer mais nada, ainda sabiam
celebrar festas.
Além disso estavam muito bem treinados em bajular o imperador e solicitar
privilégios.
Vi-me cercado por parasitas de todos os tipos, que exprimiam em palavras
grandiloqüentes a admiração que sentiam por minha pessoa e derramavam sobre minha
cabeça pomposas honrarias. O espetáculo quase chegou a enojar-me.
Um deles, que me foi apresentado como o maior filósofo vivo e um grande
compositor de jogos simultâneos, queixou-se porque o computador-regente mandara
suspender os pagamentos mensais realizados em reconhecimento às suas qualidades.
Já conhecia o que se falava a respeito desse cavalheiro, motivo por que rejeitei em
palavras ásperas as suas pretensões e convidei-o a dedicar suas faculdades a uma
finalidade mais útil.
Comecei a nadar contra a corrente. Provocava ressentimentos em toda parte. Era-me
difícil conseguir angariar amigos. Todos se entrincheiravam atrás de palavras corteses,
mas nos olhos dos que me cercavam brilhava a chama do ódio.
Recusei a festa de coroação que estava sendo planejada, o que provocou uma onda
de indignação. O chefe do protocolo me disse em tom de súplica:
— Permita-me, Vossa Alteza, a liberdade de ponderar que os artistas mais célebres
já anunciaram sua chegada. Peço a Vossa Alteza que tenha a bondade de considerar a
importância de uma...
Virei-me sobre os calcanhares. O corte-são recuou apavorado.
Encontrávamo-nos num grande compartimento que dava para a sala dos sábios.
— Sou de opinião que, na situação atual, uma série de festejos ruidosos seria
indefensável — gritei para ele. — Peço-lhe encarecidamente que convoque ao palácio os
oficiais superiores da frota. Não admitirei desculpas. Os que não comparecerem à hora
marcada serão destituídos dos seus cargos.
Minha guarda pessoal de robôs afastou as pessoas que me cercavam. O terrano John
Marshall seguia-me de perto. Seu rosto estava impassível e inexpressivo. Era provável
que, como telepata, sentisse ainda mais intensamente o ódio provocado por minha
presença.
Os sonhos ligados ao meu regresso ao mundo natal foram-se desvanecendo.
Naturalmente gostaria de festejar; com o maior prazer teria dado a festa do milênio.
O Império era rico. Durante a regência do grande computador voltara a florescer o
comércio com os inúmeros mundos coloniais, muito embora o trabalho antes
individualizado dos mercadores fosse submetido a padrões rígidos.
Mas agora a situação estava modificada. Não conseguia conformar-me com a idéia
de investir-me no meu elevado cargo com a pompa que todos esperavam. Minha
amargura crescia cada vez mais.
Diante do elevador privativo que levava aos recintos do pavimento superior do
palácio, a guarda dos ciclopes, seres de três olhos do planeta Naator, mantinha-se à
espera. Instruí os gigantes a manter afastado de mim tudo que pudesse perturbar-me.
Dali a vinte minutos cheguei aos aposentos em que antes de mim já haviam residido
outros imperadores. Preferi não usar as salas gigantescas e suntuosas. No curso dos
milênios tornara-me mais sóbrio, motivo por que mandara preparar um pequeno grupo de
aposentos com vista para o pátio interno do palácio. Onde me sentia mais à vontade era
no grande gabinete de trabalho, cujos quadros de comando me mantinham em contato
com o grande centro de computação e, através dele, com os centros administrativos do
Império.
Entreguei a vistosa ombreira com os símbolos de imperador a um robô de serviço
que me esperava. A máquina desapareceu silenciosamente, numa fenda que se abriu no
solo.
Embaixo de meu gabinete de trabalho havia um destacamento especial de guardas.
Era praticamente impossível penetrar, contra minha vontade, na parte do palácio de cristal
por mim ocupada.
John Marshall me seguira. Esperou até que lhe dirigisse a palavra. Coloquei-me à
frente da fachada interna, coberta por uma placa protetora transparente, que substituía a
galeria de janelas no lado aberto à visão.
Oitocentos metros abaixo do lugar em que me encontrava, ficava a área redonda de
mil e quinhentos metros de diâmetro do pátio interno. O palácio de cristal acompanhava
nossa arquitetura usual: possuía o formato de um gigantesco funil, que descansava sobre
um alicerce em forma de cabo, abrindo-se na parte superior por cima da linda área repleta
de parques.
O arredondamento interno do funil estava dividido em pavimentos dispostos em
formas de terraços, terraços estes que terminavam lá embaixo, no jardim.
Desfrutei o belo panorama. A base do funil media quinhentos metros de diâmetro.
As máquinas e estações de controle, que faziam do palácio de cristal um dos fenômenos
da Galáxia, estavam instaladas nos alicerces.
Os antigos imperadores utilizavam a gigantesca construção como residência. Havia
inúmeras salas, nas quais já haviam sido recepcionados espécimes de todas as
inteligências dos setores conhecidos da Via Láctea.
Marshall colocara-se a meu lado. Parecia sentir minha disposição, muito embora já
não pudesse captar o conteúdo consciente de minha mente, já que voltara a erigir o
bloqueio mental.
— Às vezes fico me perguntando se sou mesmo um verdadeiro arcônida — observei
inopinadamente. — John, os soberanos que me precederam em hipótese alguma teriam
dispensado a festa.
Marshall limitou-se a acenar com a cabeça, enquanto eu lutava para conservar o
autocontrole.
— Não sei, John, se Perry Rhodan me fez um favor ao cognominar-me
apressadamente de imperador. Na minha opinião teria sido mais conveniente se eu tivesse
continuado a agir em segredo.
— As circunstâncias pareciam contrárias a isso, sir.
A forma de tratamento me fez bem, embora por muito tempo tivesse sonhado com a
hora em que os outros usassem o título mais elevado ao se dirigirem à minha pessoa.
Agora chamavam-me de alteza, mas isso não me deixava orgulhoso.
— Posso fazer mais alguma coisa pelo senhor, sir? — perguntou Marshall.
— Não; muito obrigado. Preciso tentar arranjar-me sozinho. O senhor parece
cansado, John.
Marshall limitou-se a sorrir. De repente senti vontade de viver e atuar novamente em
companhia de homens de sua espécie.
Olhei para os terraços situados mais embaixo, cujas fachadas transparentes
brilhavam sob a luz forte do sol branco de Árcon. Era tudo muito belo, mas eu me sentia
deslocado.
A simples idéia parecia uma ironia do destino. Durante minha longa peregrinação
através de todos os estágios culturais do planeta Terra, tentara repetidamente promover o
adiantamento técnico e científico dos homens.
Finalmente, muito tempo depois do desaparecimento do continente Atlântida,
quando a Humanidade descobriu a navegação espacial, minha hora parecia ter soado.
Rhodan me trouxera para Árcon, onde o dispositivo de segurança do computador-regente
reagiu às minhas vibrações cerebrais. Ao que tudo indicava, era o único arcônida vivo ao
qual a gigantesca máquina entregaria o poder sobre o império estelar.
Os imperadores que me precederam não passaram de fantoches submetidos à
ditadura do regente.
Marshall sabia de meus pensamentos. Mantinha-se afastado, à maneira modesta que
lhe era peculiar, até o momento em que acreditou que devia arrancar-me das minhas
reflexões martirizantes.
— Descanse algumas horas, sir. Os últimos meses foram extenuantes.
Procurei controlar-me. Era inútil ficar agarrado ao passado. Tinha pela frente uma
gigantesca tarefa. E esta só poderia ser cumprida, caso dispusesse de todas as minhas
energias físicas e mentais.
Olhei para o relógio. Faltava pouco para o pôr do sol. A estrutura cristalina do
palácio iluminou-se. Luzes ofuscantes pareciam derramar-se sobre o pátio interno com
seus magníficos jardins e obras de arte.
Em algum lugar um animal não-arcônida soltou um grito triste e agudo. As amplas
vias elevadas antigravitacionais também iluminaram-se.
Árcon I era belo. Era meu mundo. Senti-me mais calmo e equilibrado. Deleitei-me
com o espetáculo do pôr do sol, até que as últimas torrentes de luz natural se apagassem
no horizonte.
As luzes artificiais acenderam-se em toda parte. As numerosas construções situadas
nas proximidades do palácio de cristal pareciam desenvolver uma vida independente e
fantasmagórica. Tratava-se dos inúmeros ministérios do Império, abrigados em
gigantescos edifícios. No interior desses edifícios, ninguém mais trabalhara seriamente no
curso dos últimos decênios.
O computador-regente, infalível e incapaz de fazer uma escolha errada, era-me de
uma utilidade incalculável. A idéia de confiar aos cansados funcionários e oficiais do
estado-maior o abastecimento da frota de guerra causava-me calafrios. Portanto, o centro
de computação continuava a cuidar disso. E eu me sentia grato. Nunca seria capaz de
dominar os milhões de aspectos dos problemas logísticos. Se não fosse o grande
computador, que agora me obedecia, poderia renunciar desde logo ao posto de imperador.
Aproximei-me da grande mesa de trabalho em ferradura e ativei as barreiras
energéticas que protegiam a parte do palácio em que residia. Ninguém mais poderia
passar pelos amplos corredores.
Marshall lançou-me um olhar preocupado. Quando examinei minha arma
energética, tornou-se ainda mais apreensivo.
— A cautela nunca é demais — disse. — Vá para a cama, John. Se quiser fazer
alguma coisa por Árcon, procure manter atentos seus dons parapsicológicos, mesmo
quando estiver descansando.
— O que é que o senhor receia, sir? Esquivei-me a uma resposta direta:
— Tudo e nada. Tenho certeza de que entre os homens do Grande Conselho, que
parecem tão indolentes, ainda existem algumas pessoas ativas, que apenas se
acomodaram, isto é, aceitaram o conforto atual. Estas podem tornar-se perigosas.
— O senhor goza de uma proteção extraordinária.
— Parece que sim. Mas ainda me lembro de que, há algum tempo, Rhodan
conseguiu com uma facilidade espantosa surpreender o imperador em seus aposentos.
— Participei da ação, sir. Tratava-se de uma ação muito bem planejada dos
mutantes.
— Isso não exclui a possibilidade de que certos arcônidas, familiarizados com o
local, também consigam penetrar aqui.
John Marshall despediu-se. Seu quarto de dormir ficava bem ao lado de meu
gabinete. Sentia-me satisfeito por saber que o amigo permaneceria a meu lado.
Fui deitar sem recorrer ao auxílio dos robôs de serviço. Escolhi um confortável leito
ortopédico, que ficava próximo à tela energética panorâmica transparente. O quarto
pomposo causava-me pavor.
Antes de adormecer, dei-me conta de que já não estava ligado ao meu mundo como
estivera antigamente, por ocasião de minha partida em direção ao sistema solar terrano,
que naquela época ainda era pouco importante e quase desconhecido.
Com um último movimento coloquei a mão sobre o ativador celular, que pendia
junto ao meu peito. Aquele aparelho, do tamanho de um ovo, pulsava com a mesma
segurança de sempre.
2

Acordei com fortes náuseas. Quando me levantei abruptamente do leito pneumático,


pensei que iria vomitar.
No centro do gabinete, junto à mesa em ferradura, estava deitado John Marshall. O
desintegrador caíra de sua mão. O corpo mole e contorcido do terrano jazia sobre o
revestimento do soalho. Seu uniforme estava queimado por cima do ombro esquerdo.
Embora o sistema de renovação de ar estivesse funcionando, sentia-se o cheiro de
plástico queimado. O sangue coagulado provava que John sofrerá um ferimento sério.
Dominei a fraqueza momentânea. Sem perder uma palavra, cambaleei em direção ao
homem ferido. Exausto, caí ao chão a seu lado.
— John! — gritei. — Acorde, John.
Marshall não se movia, mas sua respiração parecia normal. Provavelmente não
demoraria a acordar.
Fiquei sentado a seu lado, até que minha mente voltasse a funcionar com alguma
clareza.
“Gás!”, anunciou meu cérebro adicional numa série de impulsos que se tornaram
dolorosos. “Alguém o deixou inconsciente.”
Lutei para conservar o autocontrole. Meu setor de lógica nunca se enganara.
Obedecia a um cérebro adicional que não podia ser influenciado por mim, e por isso seu
funcionamento era mais claro e preciso que o do raciocínio por mim controlado.
Examinei a arma de John. O desintegrador, uma arma que dissolve as moléculas,
não fora disparado. O registro de carga mostrava a palavra “cheio”. O medidor de energia
não indicava qualquer descarga. Concluía-se que o telepata não tivera tempo de fazer
aquilo que provavelmente tencionava.
Comecei a refletir, o que me ajudou a vencer as náuseas.
Marshall achava-se em meu gabinete. Logo, ao contrário do que acontecera comigo,
ouvira alguma coisa. Provavelmente me encontrava mergulhado num sono profundo,
quando fui surpreendido pela carga de gás, que me narcotizou imediatamente. De onde
poderia ter vindo o gás narcótico?
Olhei cautelosamente em torno, até que meu cérebro adicional voltou a chamar.
“As instalações de condicionamento de ar, seu idiota! Você seguiu o costume
terrano, ligando o suprimento de ar do exterior.”
Era isso mesmo. Na Terra distante, eu me acostumara há muitos séculos a dormir
com as janelas abertas. Uma pessoa radicada em Árcon nunca teria tido a idéia de
modificar a regulagem do equipamento de condicionamento de ar pela forma que eu
fizera. O ar puro era aspirado do exterior. Mas depois disso, passava por controles
robotizados de primeira ordem, que o purificavam e eliminavam os componentes
nocivos.
Percebi nitidamente que na verdade já deixara de ser um verdadeiro arcônida.
Adotei muitos hábitos dos terranos.
Continuei a refletir. Alguém, que estava familiarizado com o meu modo de agir e
soubera interpretá-lo corretamente, fizera penetrar o gás nos bocais de sucção, a fim de
deixar-me inconsciente.
Até ali estava tudo claro, se bem que não sabia quem era responsável por isso. A
pergunta, que se impunha antes de qualquer outra, era esta: por que fizeram uma coisa
dessas? O ferimento no ombro de Marshall constituía uma prova evidente de que algum
“visitante” penetrara em meu gabinete. Por quê?
Não poderia ter sido um assassino, pois do contrário a essa hora não seria capaz de
fazer as reflexões que enchiam minha cabeça.
Teriam sido ladrões? Olhei em torno, perplexo. Não havia nada para roubar. Além
disso, o padrão de vida no mundo de cristal era tão elevado que já há muitos séculos não
ocorria nenhum furto. Era uma hipótese falha, pouco objetiva.
O que pretendiam conseguir ao deixar-me inconsciente? O gemido de Marshall
despertou-me da letargia. Sacudi os últimos vestígios da narcose produzida pelo gás. O
martelar na minha cabeça diminuiu.
Rasguei o plástico chamuscado que cobria o ombro de John. O ferimento era menos
grave do que eu supusera. Tudo indicava que a junta fora atingida de raspão por um
finíssimo raio térmico.
Descobri o local onde o disparo alvejara. O impacto térmico atingira minha mesa de
comando. Um precioso gobelino estava queimado. Na parede que ficava atrás do
gobelino, havia um buraco vitrificado de mais de dez centímetros de diâmetro.
Esperei até que os olhos de Marshall se abrissem. Quando isso aconteceu, levantou-
se com a mesma disposição com que eu o fizera pouco antes. Soltou um gemido e
tombou.
Segurei sua cabeça em meus braços e disse-lhe algumas palavras tranqüilizadoras.
— O.K., John, está tudo O.K. O senhor me compreende? Desta vez ainda
escapamos sãos e salvos. A ferida de seu ombro estará cicatrizada dentro de vinte e quatro
horas. Fale, John, reaja. Se estiver com vontade de vomitar, não se constranja. Ao que
parece, fomos narcotizados por algum gás. John...
Depois de alguns segundos seu cérebro começou a funcionar. Fitei seus olhos claros.
Com grande dificuldade conseguiu balbuciar:
— Atlan, che... cheguei tarde. Foram dois homens que vestiam capas largas. Seus
impulsos cerebrais me despertaram, mas quando abri a porta já havia respirado muito gás.
Eu... Atlan, o que aconteceu?
Com um sorriso tranqüilizador ergui seu corpo. A cabeça encostou em meu peito.
Trajava apenas as largas roupas de dormir, usadas pelos arcônidas.
Quando a expressão de seu rosto se alterou, comecei a inquietar-me. Girou
lentamente a cabeça. Fitei seus olhos arregalados.
— O que houve? — perguntei em tom alarmado.
— Sir, onde... onde está seu ativador celular?
Apressadamente afastei-o, para pôr a mão no peito. No lugar em que costumava
ficar o aparelho em forma de ovo, não consegui apalpar mais nada. Já sabia por que
haviam colocado o gás nos bocais de sucção.
Tive a impressão de que iria mergulhar num abismo. As náuseas voltaram de
repente. Fraco e desamparado, já não dominava meus atos. Vomitei.
Até o momento em que senti a mão de John pousada em meu ombro, permaneci
deitado no mosaico do soalho. Todos os sentimentos pareciam ter-se apagado dentro de
mim. Não queria compreender que o aparelho vital havia desaparecido.
— Não se exalte, sir — disse a voz do amigo terrano. — Tranqüilize-se. Moveremos
céus e infernos para recuperar o ativador. Os criminosos ainda não podem ter ido muito
longe. Chame imediatamente o centro de computação e pergunte que naves decolaram
nestas últimas horas. Ficamos inconscientes mais ou menos por três horas. Antes de ser
ferido, ainda lancei um olhar ligeiro para o relógio. Por isso posso determinar, com
exatidão, a hora do ataque. Pergunte ao regente quais foram as naves que saíram do
planeta nestas últimas três horas. Se nenhuma decolou, o aparelho ainda deve encontrar-
se neste planeta. Proíba a decolagem e o pouso de qualquer espaçonave em Árcon I. Com
isso, praticamente já teremos agarrado os sujeitos.
John Marshall parecia ser um excelente psicólogo. Compreendera que minha
depressão geral não poderia ser vencida por corriqueiras palavras de consolo. Recorrera a
um meio muito mais eficiente.
A análise imediata e a concatenação dos acontecimentos ajudaram-me muito mais
do que eu supusera.
Senti-me tomado pela esperança. Se é que ainda se podia fazer alguma coisa, a
iniciativa deveria ser tomada imediatamente.
Levantei-me. John já parecia ter vencido as náuseas.
— Obrigado, John — disse com a voz áspera de nervosismo. — A solução é esta. O
senhor sabe que, sem o ativador celular, passarei por um processo abrupto de
envelhecimento. E, mais tardar, dentro de mais alguns dias morrerei... como um ancião.
John, trata-se de alguém que sabia perfeitamente não haver necessidade de assassinar-me.
O furto desse aparelho bastaria para eliminar-me, num prazo extremamente curto...
John fitou-me com uma expressão pensativa e disse em meio às suas reflexões:
— Quem poderia saber que o senhor possui um aparelho desse tipo? Em Árcon
ninguém tinha a menor idéia disso. Ainda acontece o seguinte: Se a tal pessoa está
informada sobre a importância vital do aparelho, e o furto parece provar este fato, o crime
não terá sido praticado em vão. Muito em breve alguém formulará exigências. O Grande
Império está em jogo, Atlan.
— Exigências?
— Tenho tanta certeza disso como de que meu nome é Marshall. Chame o
computador-regente, sir.
Dali a cinco minutos já sabia que, durante aquelas três horas, nove espaçonaves
haviam deixado o planeta. Qualquer uma delas poderia ter transportado o ativador.
Ordenei ao centro de computação que verificasse com a maior precisão, recorrendo a
todos os meios de que podia dispor, para onde as naves se haviam dirigido.
Era a única coisa que se podia fazer. Enquanto raciocinávamos e formulávamos
conjeturas, tratei da ferida de Marshall. No quarto contíguo havia medicamentos de
sobra. Meus conhecimentos médicos eram mais que suficientes para limpar a ferida e
lançar-lhe o spray com o plasma regenerador de células. Uma injeção pressurizada livrou-
o das dores.
Antes que chegassem os resultados das investigações do regente, o telepata já havia
vestido outro uniforme. Eu também mudei de roupa. Preferi não dar o alarma, pois sabia
que os apáticos oficiais da guarda palaciana não poderiam prestar-nos qualquer auxílio.
Dali a três minutos, o regente chamou pelo comprimento de onda especial do
imperador. O modelo de linhas confusas surgiu na grande tela.
Ouvi com o maior interesse. Cinco das naves que haviam deixado o planeta eram
veículos de passageiros de linhas regulares, que se destinavam a planetas distantes,
situados fora do sistema de Árcon.
Outras quatro naves pertenciam a particulares. Todas elas haviam pousado em
Árcon II, o mundo do comércio intercósmico e da indústria privada.
— Vossa Alteza deseja que sejam realizadas investigações? — indagou o maior
centro de computação do Universo.
Respondi que não. John Marshall sorriu. Parecia adivinhar meus pensamentos.
Desliguei e virei a cabeça. O palácio estava em silêncio. Dava a impressão de que
ninguém tinha a menor idéia do que acabara de acontecer. Se por aqui havia algum
cúmplice do criminoso, este deveria manifestar um nervosismo cada vez maior. Por certo
estaria convencido de que não calcularam com meu procedimento tipicamente terrano.
Qualquer arcônida normal, desde que pertencesse à nova geração, seria dominado pelo
pânico e daria imediatamente o alarma.
Dirigi-me ao quadro de regulagem e reduzi a intensidade da luz. E a tela
panorâmica, regulada para o efeito reflexivo, não deixava escapar qualquer raio luminoso
para fora.
— Alguém no interior deste palácio deve estar muito nervoso, aguardando meu
pedido de socorro — disse em tom pensativo. — Não lhe faremos esse favor. Seria
insensato incumbirmos os guardas de qualquer tipo de investigação. Já aprendi bastante
para saber disso.
— Concordo plenamente, sir.
— O que sugere, John?
Marshall fitou-me atentamente e começou a falar:
— Sir, Perry Rhodan, que, depois de minha saída do planeta Peregrino, determinou
que eu desempenhasse as funções de oficial de ligação em Árcon, já se encontra na Terra
há alguns dias. Recomendaria encarecidamente que o senhor solicitasse imediatamente o
auxílio do Exército de Mutantes. Somos as únicas pessoas capazes de recuperar o
ativador.
— Acha que devo invocar a aliança que celebrei com Rhodan?
— Não, não é isso. Acho que o senhor deveria dirigir-se a Rhodan como amigo, e
não ao administrador do Império Solar.
— Como amigo? Como soa isso! — disse em tom pensativo. — John, agirei como
você pensa. Se não recuperarmos o aparelho dentro de sessenta horas, minha longa vida
chegará ao fim. Talvez deva assumir o risco.
— E o Império, Almirante Atlan?
A observação fora proferida em tom áspero. Além disso, ele me chamara de
almirante. Fitei-o com uma expressão irônica.
— Não se faça de altruísta, Marshall! Sabe perfeitamente que, se eu morrer, a Terra
estará perdida. Ou será que, depois de minha morte, o computador-regente, que voltaria a
investir-se na plenitude de suas funções, deixaria de dar a devida atenção a um perigo
como o que é representado pelo planeta Terra? Poucos dias depois da minha morte, dez
mil couraçados ou mais emergirão do hiperespaço, a fim de subjugar ou destruir a Terra e
todo o Império Solar. Acho que estamos de acordo neste ponto, não estamos?
— Perfeitamente, sir — respondeu Marshall em tom deprimido.
— Muito bem. Sei apreciar sua franqueza, John. É uma coisa que em Árcon parece
não existir mais. Para ser sincero, gostaria de acrescentar que também não gostaria de
morrer, ao menos na situação atual. Vamos entrar em contato com Rhodan. Ele
compreenderá imediatamente que é de seu interesse comparecer com todos os mutantes.
A Terra ainda não tem força para resistir a um ataque em grande escala. Todavia, faço
questão de ressaltar que não tenho a menor objeção a que a Humanidade continue a
evoluir. Se puder, continuarei a apoiá-la.
— Já sabemos disso, sir.
Já me recuperara do choque provocado pelo furto. Logo após essa palestra, chamei o
gigantesco computador positrônico e pedi-lhe que estabelecesse uma ligação de
hipercomunicação com a grande estação de rádio de Terrânia.
Desde o momento do ataque frustrado da frota dos druufs contra o sistema solar, o
regente sabia onde encontrar o planeta Terra, cuja posição até então ficara envolta em
mistério.
Sabia que em Árcon III, o mundo da guerra e da frota, as gigantescas antenas
direcionais — as maiores da Galáxia — estariam girando em direção a certo setor
espacial.
A Terra ficava a 34 mil anos-luz. Apesar disso, a transmissão de mensagens não
apresentava o menor problema.
Dali a pouco, a grande tela de meu gabinete iluminou-se. O rosto de um oficial
terrano apareceu. Imediatamente o terrano transferiu a ligação para o local de trabalho do
administrador.
Quando o rosto estreito de Perry Rhodan apareceu na tela, comecei a falar, sem o
menor intróito.
— Olá, barbarozinho, que horas são na Terra?
Perry riu. Seu rosto descontraiu-se. Tive a impressão de fitar diretamente seus olhos
cinzentos e irônicos. A ligação de rádio, que funcionava à velocidade superior à da luz,
estava excelente. Apenas a imagem sofria, vez por outra, uma distorção.
— Obrigado pela pergunta, arcônida. Estava almoçando.
— Sinto muito. Quero fazer uma pergunta, Perry: você poderia imaginar o que
aconteceria se alguém me roubasse o ativador celular?
Fiquei curioso para ver a reação de Rhodan. Foi aquilo que eu esperava. Seu rosto
transformou-se numa máscara inexpressiva.
— Sei. Não venha me dizer que alguém...
— Pois foi exatamente isso. Aconteceu há três horas e meia. Marshall e eu ficamos
inconscientes com uma carga de gás. Ainda não dei nenhum alarma por aqui. Já
descobrimos algumas pistas por meio das investigações realizadas pelo regente. Mas isso
é tudo. Marshall não conseguirá solucionar o caso sozinho. Tem alguma sugestão
aproveitável?
Perry limitou-se a sorrir. Não seria Perry Rhodan se, a essa hora, ainda perdesse
tempo com mais perguntas. Aquele homem inteligente, que nunca perdia o autocontrole,
compreendera o significado do acontecimento e sabia quais seriam as conseqüências.
Não deu maiores explicações. Limitou-se a dizer:
— O.K. Sem comentário. Dentro de duas horas decolarei acompanhado por todo o
Exército de Mutantes. Por enquanto controle os nervos e abra meu caminho. Não quero
ser detido pelas unidades de vigilância, nem obrigado a dirigir-me a Árcon III, a fim de
ser submetido a algum controle. Pousarei com a Drusus e dois cruzadores da classe
Estado no espaçoporto do imperador. Providencie para que não sejamos incomodados
com as perguntas de muitos dos arcônidas apáticos, que habitam o mundo de cristal.
Repito: controle seus nervos. Desligo.
Foi só isso que Rhodan teve a dizer sobre esse assunto, que, para mim, assumia uma
importância extraordinária.
Pensativo e ligeiramente nervoso, fitei a tela que se apagava. O símbolo do regente
surgiu imediatamente.
— A palestra foi concluída, alteza — disse a voz enfática saída do alto-falante.
Confirmei com um gesto e desliguei. Marshall disse em tom de elogio:
— Isso foi rápido. Daqui a 24 horas, Perry chegará. Já lhe disse que, sem o ativador,
o senhor só terá sessenta horas de vida?
— Ele sabe disso desde nosso segundo encontro. Naquela época, ainda éramos
inimigos. Era ao menos o que acreditávamos. Mostre seu ombro.
Verifiquei a atadura transparente de bioplástico. O efeito curativo já tivera início.
— Voltou a sentir dores?
John fez que não e respondeu com a voz controlada:
— Se não puder agüentar, avisarei. Durma mais um pouco, sir. Ainda teremos muito
em que pensar.
Dirigi-me ao meu leito e me sentei. Quem poderia saber que, para mim, o ativador
era uma peça insubstituível? E, principalmente, qual das pessoas familiarizadas com a
importância do mecanismo transmitira seus conhecimentos a algum arcônida traidor?
Tive a impressão de que esta pergunta era ainda mais importante.
Por enquanto consegui reprimir o nervosismo angustiante causado pelo roubo. Um
tanto pensativo, passei a ponta dos dedos pela cicatriz larga e feia que havia em meu
ventre.
Durante minha permanência na Terra, por mais de uma vez vira-me obrigado a
engolir o pequeno aparelho. Muitas vezes houve necessidade de operações, realizadas em
condições que ainda agora me causavam calafrios. Infelizmente não houvera outra
possibilidade de retirar o ativador do estômago.
Lembrava-me perfeitamente do médico de campanha, pertencente à oitava legião
romana. Este pretendera investir contra mim, sem qualquer tipo de anestesia e com
instrumentos que não haviam sofrido esterilização. No entanto, ainda consegui chegar ao
meu traje voador, cuidadosamente escondido, que me levou no último instante à cúpula
submarina, onde os robôs especializados se encarregaram da operação.
Das outras vezes não me fora possível voar até minha base de operações.
Agora, porém, as coisas eram diferentes. Meu ativador celular fora furtado.
— Como puderam entrar aqui? Estremeci. Marshall estava sentado numa poltrona
articulada, cujo dispositivo automático de reclinamento fora desligado.
— Como?
— Como foi que os ladrões entraram aqui? Vi o senhor fechar todos os acessos por
meio de barreiras energéticas.
Soltei uma risada amarga.
— John, você ainda não conhece Árcon. Na época em que este palácio foi
construído, os atentados eram uma coisa corriqueira. Provavelmente, ainda existem
numerosas passagens secretas, que deviam servir de caminhos de fuga aos imperadores
de então. É praticamente impossível descobrir todos os acessos camuflados, construídos
com todos os recursos da tecnologia arcônida. Os rastreadores de espaços ocos e outros
instrumentos seriam inúteis para isso. Os ladrões deviam saber da existência de ao menos
uma dessas passagens. Caso contrário, nunca teriam passado pelas linhas de vigilância
dos robôs e pelas barreiras energéticas.
— Hum, então é isso. Meus colegas encontrarão alguma coisa; não tenha a menor
dúvida. O senhor deveria mandar construir uma casa, apenas para seu uso, nas
imediações deste palácio.
Voltei a rir. Fitei o terrano com uma expressão que quase chegava a ser de
compaixão.
— Meu jovem amigo, você pensa em termos excessivamente terranos. Para um
imperador arcônida, seria inconcebível abandonar o palácio. Só aqui podem ser
instalados os controles concentrados. O que não aconteceria se todos estes conjuntos
mecânicos tivessem de ser reconstruídos? É bom desistir logo da idéia.
— Isso é uma vida infernal, sir. Para ser franco, não gostaria de estar no seu couro.
— Infelizmente não posso sair dele. Vá dormir, John. A ferida no ombro exige
descanso.
— Onde arranjou os medicamentos?
— Só neste palácio existem três salas de operações reservadas exclusivamente ao
imperador. Cada conjunto de quartos possui uma enfermaria para os primeiros socorros.
Os medicamentos deteriorados são substituídos regularmente pelos robôs médicos. Já
compreendeu que meus antecessores estavam muito preocupados com sua segurança?
Marshall ficou calado. Sacudiu a cabeça e ligou o dispositivo de reclinamento
automático, que adaptava a poltrona automática aos contornos de seu corpo.
O silêncio passou a reinar no grande gabinete de trabalho. Nas paredes e sobre a
mesa de controle, as numerosas telas pareciam grandes olhos traiçoeiros, nos quais estava
escrito o escárnio e a ameaça.
Assim que Marshall adormeceu, passei a cruzar o gabinete a passos nervosos. O que
esperavam conseguir com o furto do ativador? Por conta de quem teriam agido os
ladrões?
Por que não me assassinaram? Não poderia haver uma oportunidade melhor de
livrar-se do imperador.
Antes que o setor lógico de minha mente pudesse dar sinal de sua presença, eu
mesmo encontrei a solução. Não se arriscaram a matar-me, enquanto estava dormindo,
porque o computador-regente fora programado por mim, num trabalho de várias semanas.
Se eu morresse de repente, ele imediatamente assumiria o poder e restabeleceria as
condições reinantes antes do meu desaparecimento.
Ao que parecia, aqueles que arquitetaram o plano não estavam interessados em viver
novamente sob a ditadura de uma máquina. Alguém desejava conquistar o poder.
Com isso, a suposição de Marshall encontrava um fundamento lógico. Ao que tudo
indicava, acreditavam que eu era um homem que amava a vida como milhões de outras
pessoas. Portanto pensavam que poderiam fazer chantagem comigo. Era a única pessoa
que poderia reprogramar o centro de computação!
Comecei a caminhar ainda mais nervosamente. Naturalmente, era esta a solução do
problema. Alguém queria obrigar-me a fazer uma coisa que levaria inevitavelmente à
destruição do Império.
Comecei um solilóquio em voz alta. Marshall abriu os olhos.
— O senhor deveria descansar, sir — disse em tom de recriminação. — Tudo se
arranjará. Os arcônidas perdem os nervos com muita facilidade.
— Nos dez mil anos que passei na Terra deveria ter perdido esse hábito — respondi
em tom sarcástico. — Está bem; vou deitar.
Com isso teve início o período de espera por Perry Rhodan. Era estranho como
minha dependência do amigo terrano de repente se tornara tão forte. Quando me lembrei
da luta que travamos no museu terrano de Vênus, tive de sorrir.
Também me lembrei de uma moça chamada Marlis Gentner. Fora gentil, muito
gentil.
3

O espaçoporto destinado exclusivamente ao uso do imperador e das pessoas por ele


autorizadas ficava a poucos quilômetros das extensas colinas, sobre as quais fora
construído o palácio do imperador.
Mandara isolar a área por unidades de robôs fortemente armadas e uma divisão dos
naats.
Aqueles ciclopes, com seus três metros de altura e três olhos enormes na cabeça
redonda, eram mais ativos, fiéis e experimentados que as inúmeras tropas arcônidas de
desembarque especial. Praticamente, estas só existiam no papel.
John Marshall examinara os oficiais das unidades dos naats por meio de seus dons
parapsicológicos, investigando cuidadosamente o conteúdo do espírito consciente de cada
um desses seres.
Constatou-se de forma inequívoca que a guarda imperial de naats não tivera a menor
participação no furto. Os ciclopes não sabiam de nada.
Quinze mil habitantes do quinto planeta, dotados de equipamentos modernos, entre
os quais se incluíam trajes especiais de vôo e campos defensivos individuais, fecharam
hermeticamente o grande espaçoporto.
Era um contingente respeitável, que ainda era reforçado pelos tanques robotizados e
canhões energéticos autopropulsados.
Naturalmente, o fato chamaria a atenção de muita gente. Os cortesãos preocupados
sufocaram-me com perguntas, mas limitei-me a sorrir. Que pensassem o que quisessem.
O fato de pensar num homem chamado Perry Rhodan não correspondia à atitude de
suprema arrogância dos nobres. Nos círculos dos conspiradores devia lavrar o maior
desassossego. Marshall supôs que essa gente talvez estivesse pensando que eu possuía
outro ativador. Só assim se explicaria minha tranqüilidade.
Já havíamos recebido o resultado da interpretação dos dados, realizada pelo
computador-regente. A máquina confirmara integralmente o resultado das minhas
reflexões. Os criminosos não quiseram assumir o risco de assassinar-me. Queriam tudo
ou nada. Portanto, a probabilidade de uma tentativa de chantagem tornava-se cada vez
maior.
Encontrava-me ao lado do acampamento da divisão, que era móvel e capaz de voar.
Os oficiais dos naats pareciam quebrar suas enormes cabeças para descobrir o que
significava tudo isso.
Minha guarda pessoal de robôs formou um semicírculo em torno de mim. Os canos
das pesadas armas energéticas cintilavam.
Dez minutos depois de minha chegada ao espaçoporto, os avisos de localização
tornavam-se cada vez mais freqüentes. E os aparelhos do posto de combate estavam
ligados ao centro de computação.
Três naves de guerra desconhecidas, dois cruzadores ligeiros e um supercouraçado
da classe Império, acabavam de sair do hiperespaço de quinta dimensão bem no centro do
sistema de Árcon.
O décimo primeiro planeta sofrerá um forte abalo provocado por uma onda de
choque estrutural. Pelo que se dizia, em sua superfície rugiam tremores tectônicos e
furacões violentíssimos.
Isso não importava. Árcon XI era um planeta desabitado. E a atuação de Rhodan
fora coerente.
A distância de Árcon à Terra era tão grande que não poderia ser vencida num único
salto. Por mais que forçasse as máquinas de suas naves, teria de saltar pelo menos quatro
vezes.
Observei o pouso da Drusus, a nave capitania da Frota Solar, que media mil e
quinhentos metros de diâmetro.
O gigante pousou, com toda precisão, sobre as colunas de sustentação abertas. Logo
a seguir, pousaram mais dois cruzadores ligeiros da classe terrana Estado, cuja aceleração
enorme até então não fora alcançada por qualquer outro veículo espacial.
Uma onda de pressão provocada pelas massas de ar superaquecido passou
ruidosamente pelo terreno. Depois disso, as máquinas da Drusus silenciaram. Parecia
uma montanha de aço e preenchia o campo de visão a tal ponto que nem sequer a metade
visível da esfera podia ser abrangida com o olhar.
Conhecia perfeitamente o potencial combativo desse veículo espacial da classe
Império. E, ao lembrar-me disso, pensava menos nas máquinas, armamentos e instalações
eletrônicas que nos homens postados atrás desse equipamento. Mesmo nessa época, em
que a robotização chegara a noventa e oito por cento, tudo dependia em última análise do
espírito e da competência da tripulação viva.
Senti-me amargurado. Eu, que era o novo imperador do reino estelar dos arcônidas,
dispunha de mais de dois mil supercouraçados desse tipo. Bastaria uma ordem minha
para que esses titãns partissem para o espaço.
No entanto, dei-me conta de que uma frota terrana de apenas quinhentas naves desse
porte acabaria muito depressa com meu contingente gigantesco de supernaves, já que não
possuíamos as tripulações altamente qualificadas com que contava Perry Rhodan.
Voamos do acampamento da divisão até o couraçado. Quando as escotilhas
inferiores se abriram e o comando de sentinelas das comportas, chefiado por um jovem
policial, entrou em forma, senti-me muito mais à vontade.
Eram rostos e uniformes familiares. Eram os homens nos quais se podia confiar sem
restrições, fosse qual fosse a situação. Eram os especialistas altamente qualificados, que
sabiam usar o cérebro em conformidade com sua própria iniciativa. Tratava-se de
soldados que, numa situação imprevista, sabiam tomar decisões pessoais.
Naquele momento esqueci-me da dignidade recém-adquirida. Esqueci-me de todas
as convenções e precipitei-me sobre os homens do comando, para cumprimentá-los.
Mantiveram-se rígidos e imóveis à minha frente, conforme exigia a disciplina rigorosa
dos terranos.
Mas percebi o brilho dos seus olhos e o sorriso disfarçado que brincava em torno de
seus lábios. Estaria disposto a pagar alto, se pudesse entrar na nave e sair voando com
essa gente.
O oficial dos sentinelas era o Tenente Fron Wroma, um terrano alto e anguloso,
vindo do estado confederado da África. Por estranho que possa parecer, naquele momento
nem pensei em sua formidável voz de barítono. Seu canto já me salvara de uma terrível
crise de nervos...
As recordações precipitaram-se em minha mente. Não dei atenção aos oficiais do
estado-maior dos naats, mudos de espanto, nem me preocupei com o constrangimento dos
funcionários da corte.
Quando ainda estava conversando com Wroma, o ar começou a tremer à minha
frente. Um pequeno corpo, de um metro de altura, começou a mostrar seus contornos
apagados, e logo a seguir adquiriu sua estabilidade material.
Fitei um par de olhos grandes e inteligentes e um dente roedor muito branco de
dimensões respeitáveis. Gucky, o rato-castor do planeta Vagabundo, acenava com as
mãozinhas delicadas e gritou com sua voz estridente e inconfundível:
— Olá, seu velho teimoso! Como vão as coisas?
O mordomo de meu palácio, um arcônida muito conservador, pertencente à classe
degenerada, começou a cambalear. Perplexo e muito apavorado com esse crime de lesa-
majestade, procurou algum apoio, que lhe foi proporcionado por um terrano sorridente.
— O ambiente não está nada bom por aqui, não é, meu velho? — perguntou o
sargento em tom bonachão e bateu carinhosamente nas costas do cortesão que ocupava o
posto de ministro.
Tive de esforçar-me muito para não soltar uma risada.
Gucky, que usava o uniforme especialmente talhado para ele com uma abertura na
parte traseira, caminhou a passo balouçante em minha direção. Sua cauda, que terminava
em forma de colher, estava muito levantada.
Para espanto dos meus acompanhantes arcônidas, tomei nos braços aquela criatura
pequenina, à qual estava ligado por uma forte amizade, nutrida por uma série de
brincadeiras picantes. Acariciei o pêlo macio, logo abaixo do capacete.
— Isso que é classe! — suspirou Gucky, revirando os olhos. Seu rosto de rato
iluminou-se. — E que classe! Como esses dedos são macios. Quase chegaria a dizer que
são dedos de quem está acostumado a não fazer nada.
— Quer que aperte com mais força, seu convencido? — perguntei com uma risada.
— Seu bruto! Bem, o que é que se pode esperar de um imperador? Li nos livros que
essa gente gosta de matar seus súditos. Você conheceu um indivíduo desses que se
chamava Nero?
— Se conheci! Até fui membro de sua guarda pretoriana.
O rosto de Gucky tornou-se pensativo. Fitou-me atentamente. Continuava a
acariciar o pêlo de sua nuca. A poucos metros de distância, Fron Wroma fazia um esforço
tremendo, tentando convencer um dos oficiais dos naats que o rato-castor não era nenhum
monstro e nem um animal comestível.
Cochichei apressadamente ao ouvido de Gucky:
— Nem pense em fazer alguém voar. Faço questão de que suas faculdades
supersensoriais não sejam conhecidas.
— Faculdades supersensoriais? Que honra — disse o rato-castor com uma risadinha.
— Quem é esse sujeito de uniforme espalhafatoso?
Virei a cabeça. Bem atrás de nós havia um homem velho. Seus olhos atentos
chamavam a atenção.
— É o Almirante Tara, comandante da vigésima segunda frota de couraçados.
Continua muito ativo e é inteligente. Por quê?
— Ele o odeia. Neste instante estava pensando em sua família, que também quer o
seu emprego.
— Emprego?
— Isso mesmo, seu emprego. Sente-se muito indignado com seu comportamento.
Que inferno! Agora está pensando em mim. Diz que sou um pincel com olhos de peixe.
Imagine: um pincel com olhos de peixe! — acrescentou Gucky com um grito furioso.
Antes que a pequena criatura, profundamente ofendida, pudesse fazer alguma tolice,
ouviu-se uma voz conhecida. O tom da mesma era firme e exigia respeito.
— Silêncio! Controle-se, Gucky. Pensei que tivesse entendido minhas instruções.
Soltei o rato-castor, que esperneava fortemente. Ao que parecia teve de fazer um
esforço tremendo para não se vingar. Felizmente anunciara o resultado de seu exame
telepático da mente consciente em língua inglesa, da qual nem o Almirante Tara e nem
meus acompanhantes arcônidas compreendiam uma única palavra.
Era forte e musculoso, seu andar era elástico e, apesar do talho simples, o uniforme
verde-pálido do Império Solar caía-lhe muito bem. Talvez fosse mesmo a atitude discreta
que o distinguia dos outros homens. Era um dos homens que até um observador
apressado costuma olhar ao menos duas vezes.
Não usava condecorações ou distintivos vistosos. Na verdade, era apenas a arma de
impulsos trabalhada à mão que chamava a atenção para sua pessoa.
Rhodan colocou a ponta dos dedos no boné amassado. A estreita faixa dourada
estava gasta e desbotada.
Sorri. Como era fácil subestimar os terranos! Mas as pessoas que já o tinham feito,
logo tiveram de reconhecer seu erro.
O grande homem não gastou muitas palavras. Antes de mais nada, lançou um olhar
para meu relógio especial.
— Os cumprimentos ficam para depois, meu velho — disse com um sorriso. —
Quanto tempo ainda temos?
Era uma atitude típica de Perry Rhodan. Nunca perdia tempo, quando os segundos
eram preciosos. Olhei para o relógio.
— Dispomos de exatamente trinta horas e dois minutos, com uma tolerância de mais
ou menos duas horas.
— O.K.; era o que eu queria saber. Providenciou alojamentos para meus homens?
— Eles morarão nos aposentos de hóspedes do palácio.
— Muito bem. A equipe de combate ficará na nave, sob o comando de Bell. Será
necessário cumprimentar todos estes cortesãos?
— Eles sabem quem é você. É bem verdade que costumam subestimá-lo. Acham
que é um pequeno e bárbaro soberano, que conseguiu por acaso arranjar uma nave da
classe Império.
Rhodan soltou uma risada bonachona, o que fez com que eu me sentisse ainda mais
à vontade. Quando os mutantes surgiram na pequena comporta de passageiros, fiquei
completamente tranqüilo. Ivã Goratchim, o gigante de duas cabeças, provocou um
alvoroço ainda maior que Gucky, que ainda parecia refletir sobre o que deveria fazer com
o almirante.
Os cumprimentos foram lacônicos. Rhodan não perdeu muitas palavras. Agradeceu
pelo convite, mas disse que pretendia visitar as universidades arcônidas.
O Almirante Tara foi o único que examinou detidamente o terrano de estatura
elevada. Até esforçou-se para ser gentil, usando a palavra alteza.
— Vossa Alteza possui uma nave excelente — disse Tara em tom gentil. — Deve ser
de construção arcônida, não é?
Rhodan ofereceu-lhe o sorriso mais indiferente de que era capaz.
— Foi construída na Terra, sir — informou. — Já iniciamos a produção em série. A
situação junto ao front dos druufs exige um aumento rápido da capacidade de produção
dos estaleiros.
O comandante da vigésima segunda frota arcônida de couraçados lançou-me um
olhar: estava surpreso.
— Seria conveniente que no futuro o senhor se mantivesse mais bem informado
sobre o equipamento militar dos povos não-arcônidas — disse em tom de recriminação.
— Enquanto os senhores ficam repousando sobre os louros dos êxitos passados, celebro
alianças com soberanos poderosos. Acho que isso corresponde muito mais aos interesses
do Império do que celebrar diariamente uma festa pomposa.
Tara conseguiu dominar-se. Era um dos poucos oficiais e membros do Grande
Conselho, que se mantiveram ativos. Fez uma mesura irônica.
— Com soberanos poderosos, alteza?
Enquanto proferia estas palavras, olhou para Rhodan, que fez como se não tivesse
ouvido a alusão.
— Realmente, com soberanos poderosos — confirmei em tom frio. — Basta olhar
para os tripulantes deste supercouraçado para convencer-se disso.
— São bárbaros, alteza!
— É engano seu! São soldados, técnicos e cientistas altamente qualificados, que
ainda há pouco conseguiram destruir uma frota materialmente superior: a frota dos
druufs. O senhor não ouviu falar nisso, não é mesmo?
Minhas palavras foram suficientemente claras para fazê-lo empalidecer. Os
funcionários da corte e oficiais que nos cercavam retiraram-se cautelosamente.
Rhodan passou por eles, sem dar-lhes a menor atenção. Achou que não valia a pena
retribuir as honrarias dispensadas a contragosto. Divertiu-me a sua atitude
deliberadamente arrogante.
Entramos nos carros pomposos que nos esperavam e voamos em direção ao palácio
distante. Os mutantes seguiram-nos num grande planador de passageiros.
Quando nos vimos sós, Rhodan soltou um suspiro de alívio. Sua risada seca
despertou minha atenção.
— Com esta sociedade impregnada de decadência até a medula dos ossos, você não
conseguirá muita coisa, Atlan! Ouça um bom conselho. Livre-se deles, aposente-os, faça
qualquer coisa para afastá-los dos postos mais importantes. Por enquanto você ainda
detém o poder absoluto. Como estão os cem mil ancestrais que eu lhe trouxe? Já estão em
condições de entrarem em ação?
— A situação é mais difícil do que supúnhamos. Poucos deles possuem
conhecimentos atualizados. Não podemos esquecer que se trata de colonos. Dali se
conclui que noventa e nove por cento deles provêm das camadas populares. Já iniciei o
programa de treinamento. As estações hipnóticas de Árcon III estão trabalhando dia e
noite. O regente foi cuidadosamente programado.
Rhodan acenou com a cabeça; parecia pensativo.
— Você não poderá utilizá-los antes de um ano. Procure superar este lapso de
tempo.
— Será que daqui a um ano ainda estarei vivo?
Recostou-se na sua poltrona e fitou-me atentamente.
— O.K. Passemos à lastimável ocorrência. Não queria começar logo com isso.
Como se deu o assalto?
Fiz um ligeiro relato. Quando o plana-dor robotizado subiu num ângulo íngreme, a
fim de passar por cima da borda superior do palácio em forma de funil, o terrano já estava
informado.
Pelo radiofone ordenei ao chefe da divisão dos naats que continuasse a isolar o
espaçoporto. No momento em que pousamos no grande terraço suspenso, situado junto
aos meus aposentos privados, e outro grande planador, que trazia os passageiros, pousava
logo atrás de nós, recebemos uma mensagem do computador-regente.
A mensagem informava-nos de que o tráfego comercial intercósmico fora suspenso.
Árcon II acabara de ser declarada área interdita.
Houvera um ligeiro combate de artilharia entre um cruzador pesado do regente e
uma nave mercante dos mercadores galácticos. A dos saltadores fora atingida e estava
incapacitada para a manobra.
As investigações já haviam sido iniciadas. Por enquanto não haviam encontrado a
bordo da nave mercante qualquer coisa que tivesse a menor ligação com o ativador
furtado.
Rhodan aguardou o fim da mensagem. Depois disse em tom de elogio:
— Foi um trabalho bem feito. Na sua programação atual, o grande cérebro
representa um elemento insubstituível. Se não fosse o centro de computação, o caos já
estaria reinando por aqui.
Bem embaixo de nós ficavam os parques.
Rhodan inclinou-se por cima da amurada, até que a grade protetora energética o
deteve suavemente.
— Isto é lindo — disse — lindo mesmo. Não é de admirar que o invejem nessa
posição poderosa. Já devem estar refletindo sobre minha chegada logo após o furto. A
recepção fugiu demais às convenções. Não houve desfiles, nem longos discursos,
absolutamente nada. Os maquinadores devem estar dando tratos à bola. Até que ponto os
habitantes deste mundo estão informados sobre as faculdades dos mutantes? Afinal,
atuamos muitas vezes por aqui.
— O regente conhece-os muito bem, mas estes apáticos, que nunca estiveram em
contato com o computador-regente, nem sequer sabem como o dispositivo de segurança
reconheceu minha qualidade de imperador.
— Mas Gucky e Goratchim chamam a atenção.
Fiz um gesto de pouco caso e olhei para o mutante de duas cabeças.
— Soltei algumas observações a respeito. Por aí acreditam que o baixinho é uma
espécie de animal doméstico e Ivã...
— O quê? — gritou Gucky em tom indignado.
— Silêncio — disse Rhodan em tom apaziguador. — Trata-se de um simples
disfarce.
— Que disfarce! — repetiu o rato-castor, irritado. — Não permitirei que por aí
profiram ofensas em série contra mim.
O habitante do planeta Vagabundo saiu muito zangado, balouçando sobre suas
pernas curtas.
Deixamos o resto da discussão para o momento em que chegássemos à sala de
recepção, onde mandei que o chefe arcônida dos robôs de serviço se retirasse.
Só depois tive oportunidade de cumprimentar os membros do Exército de Mutantes.
Betty Toufry fora a única mulher que Rhodan conseguira alcançar na pressa.
Sentia-me satisfeito por saber que aquela telepata e telecineta competentíssima se
encontrava em Árcon I.
Uma vez ligadas as barreiras de segurança, realizamos a primeira conferência. Voltei
a relatar os acontecimentos e pedi sugestões, que foram fornecidas prontamente.
Pouco depois do jantar já estava mais esclarecido sobre a situação. As naves de
passageiros que haviam decolado no período crítico foram perseguidas e trazidas de volta
por unidades da frota. Encontravam-se em Árcon II.
Já se apurara quem eram os pilotos das quatro naves particulares. O regente não
recebera ordens para ir além dessas averiguações. Face às providências imediatas, todas
as pessoas suspeitas encontravam-se no mundo do comércio e da indústria.
— Excelente — disse Rhodan, em certa altura. — Ainda bem que não precisamos
dispersar nossos esforços. Por enquanto a Drusus ficará aqui. Partiremos no cruzador
Califórnia. A Togo permanecerá numa órbita ampla em torno de Árcon II.
Olhei para o mostrador de meu relógio. Desde o momento do furto, já haviam
passado 32 horas e 6 minutos. O tempo urgia.
4

Um homem cujo nome era quase desconhecido na Terra, e ainda mais na Galáxia,
começara a manipular os freios. Tratava-se de Allan D. Mercant, chefe do célebre Serviço
de Defesa Solar, semimutante e marechal do Império.
Ouvira em silêncio, formulara poucas perguntas e agira imediatamente.
Nessa oportunidade entendera mais uma vez que os impérios mundiais podem ser
conquistados por outros meios que não a força das armas. Aquilo que Mercant
demonstrava em silêncio e numa atitude de discrição pessoal era um jogo sofisticado com
os recursos de uma gigantesca organização.
Três horas após o pouso da esquadrilha terrana, comecei a representar em
conformidade com as instruções de Mercant.
Primeiramente, convoquei o Grande Conselho. Antes que aparecesse à frente do
grupo, Mercant me entregara pessoalmente uma excelente imitação do ativador celular, e
recomendara que usasse o aparelho de forma bem visível, por cima do uniforme.
Quando cheguei à sala dos sábios, tive de realizar um grande esforço para lançar um
olhar de triunfo em direção aos funcionários e oficiais mais graduados. Para um
moribundo — e precisamente isso eu era naquele momento — tornava-se difícil
demonstrar tranqüilidade.
Durante a conferência a respeito das questões de abastecimento, mencionei como
que por acaso, por recomendação de Mercant, que alguém roubara um dos meus
instrumentos mais vitais. Isso servia para fundamentar as medidas rigorosas que estavam
sendo adotadas em Árcon.
Depois que a sessão chegara ao fim, Mercant disse em tom de aprovação:
— Foi a primeira peça que pregamos neles. Tenho certeza de que certas pessoas se
recriminarão mutuamente. O senhor mandou medir rigorosamente a freqüência de suas
vibrações celulares?
Dali a mais uma hora, descobri que esse mestre no jogo oculto do Serviço de Defesa
Solar já começara a agir, mesmo antes da Drusus decolar da Terra.
Durante o vôo, os micro mecânicos mais competentes da Galáxia, os homens-pepino
de Swoon, começaram a trabalhar. Um rastreador de impulsos capaz de medir vibrações
individuais ultracurtas foi modificado e, por meio de um processo de ajustamento
extremamente complicado, adaptado às minhas ondulações pessoais.
De repente cheguei à conclusão de que o raciocínio de Mercant era simples. No
entanto, tive de confessar que provavelmente a idéia em que este se baseava nunca me
teria ocorrido.
Partiu do pressuposto de que o instrumento furtado também estava ajustado às
minhas vibrações. Por isso deveria ser possível localizá-lo, desde que eu possuísse um
goniômetro perfeitamente ajustado, que também reagisse às minhas vibrações orgânicas,
situadas na faixa das ondas ultracurtas.
Foram estes os preparativos.
Depois de uma rápida verificação, os cruzadores ligeiros da classe Estado chamados
Califórnia e Togo haviam decolado. A gigantesca Drusus permanecera no mundo de
cristal, sob o comando de Bell, pronta para entrar em combate.
Encontrava-me na Califórnia, quando esta pousou em Árcon II, o mundo mais belo
dos setores conhecidos da Via Láctea. Ali as construções não haviam seguido o esquema
arcônida, que não permitia a reunião de muita gente num espaço pequeno.
Árcon II era um planeta de grandes metrópoles, que abrigava os maiores conjuntos
industriais da Galáxia. As célebres ruas de lojas e silos das cidades eram percorridas há
dez mil anos por todos os seres inteligentes conhecidos. Em Árcon II podia-se comprar
tudo que já havia sido encontrado, descoberto ou cultivado nas amplidões do cosmos.
As transações que envolviam bilhões eram coisa corriqueira. Constantemente
realizavam-se operações no valor de duzentos bilhões de solares, e o fechamento de um
negócio que se aproximasse da marca dos trilhões não causava espanto a ninguém.
A cidade mais importante do planeta era Torgona. Era chamada assim em
homenagem ao primeiro mercador arcônida, que decolara dali com uma nave cargueira
armada, a fim de negociar em mundos estranhos. Isso fazia cerca de oito mil anos do
calendário terrano.
Assim que a nave pousou, Mercant voltou a agir. Mais uma vez aconteceu uma
coisa com a qual eu não contava.
Construído na Terra, um robô especial vestiu meu uniforme com os símbolos do
Imperador. Durante a viagem entre os planetas, a máquina fora adaptada à freqüência de
minha voz. O robô era cópia fiel de minha pessoa.
Mercant explicou em tom indiferente que na Terra essas máquinas eram usadas vez
por outra como sósia de personalidades importantes.
Minha máscara foi feita num instante. Meu cabelo arcônida branco-alourado foi
encoberto por uma peruca, e algumas modificações foram realizadas em meu rosto. Para
isso, Mercant trouxera os especialistas em máscaras.
Dessa forma, ao descer da nave, estava transformado num capitão terrano, enquanto
o robô cumprimentava a guarda de honra formada às pressas.
Falava como eu e seu comportamento era igual ao meu. Adotava atitudes frias e
reservadas e, vez por outra, soltava uma observação sarcástica. Eu mesmo não poderia
representar o papel, melhor que ele...

***

Nove horas já se haviam passado desde o pouso em Árcon II. Passara sete dessas
horas num sono pesado e pouco repousante.
Ao despertar, lancei meus olhos sobre o cronômetro. O mostrador não conhecia
compaixão. Quarenta e três horas e trinta e sete minutos já se haviam passado a partir do
furto.
O comandante do espaçoporto de Torgona fornecera aos visitantes terranos, por
ordem minha, excelentes alojamentos, situados junto ao campo de pouso. Poderíamos
deslocar-nos à vontade, pois ninguém nos incomodaria com perguntas fúteis.
Os visitantes não-arcônidas eram uma coisa tão corriqueira que não despertavam a
atenção de ninguém. As ruas amplas e belas da cidade comercial serviam de ponto de
encontro para todos os seres inteligentes da Galáxia. Quando um ser monstruoso, que
respirava metano, passava fungando sob a proteção de um traje espacial disforme,
ninguém lhe voltava a cabeça.
Rhodan aceitara os conselhos de Mercant. Viera como visitante oficial, e por isso
vira-se obrigado a participar de algumas recepções.
Quanto a mim, não tinha nada a objetar, pois, na situação em que nos
encontrávamos, Rhodan de qualquer maneira não poderia fazer nada.
O importante eram os mutantes, que, desde o pouso, desenvolviam uma atividade
incessante. Já os oficiais e tripulantes da Califórnia, que não participavam das
investigações, apareciam freqüentemente nos lugares que Rhodan, segundo dissera,
pretendia procurar.
E assim houve visitas a universidades e indústrias. Os funcionários do serviço
arcônida de informações às raças estranhas dispensaram a Rhodan o tratamento a que
fazia jus em virtude de sua graduação. Meus antepassados já haviam elaborado diretrizes
minuciosas a esse respeito, diretrizes estas que indicavam o tratamento que deveria ser
dispensado a este ou aquele ser estranho.
Rhodan enfrentou uma recepção atrás da outra. Diziam-lhe as palavras prescritas em
leis antiqüíssimas. Face à freqüência das homenagens fora enquadrado na categoria VI, o
que já representava alguma coisa. Essa categoria correspondia aos chamados Soberanos
Absolutos Imitadores. Para ser posto nessa categoria, o soberano deveria ter sob seu
domínio um sistema solar de pelo menos oito planetas.
Em Árcon II, ninguém desconfiava de quanto Rhodan se divertia com essa
classificação. Sentia-me tão fraco que era incapaz de fazer piadas a este respeito.
A ausência dos impulsos estimulantes começava a produzir suas conseqüências. De
início apenas me senti nervoso. O cansaço físico começaria abruptamente, dali a mais
quinze horas.
Já conhecia os sintomas pelas minhas amargas experiências. Por mais de uma vez
fora obrigado a esperar até o último instante.
Meu sósia robotizado funcionava impecavelmente. A máquina estava equipada com
um micro transmissor de televisão, motivo por que em nosso quartel-general podíamos
acompanhar todos os seus passos.
Naquele momento, meu “representante” se retirara para dormir. Estava deitado na
cama pomposa reservada ao Imperador e seu cérebro positrônico armazenava os dados
que o Dr. Ali el Jagat, chefe da equipe de matemáticos da Drusus, lhe transmitia. Dessa
forma foram programados os atos do falso imperador para o dia seguinte.
Perry Rhodan voltara há poucos minutos de um espetáculo cultural. Não tivera outra
alternativa, senão martirizar-se com o programa de um compositor de jogos simultâneos e
fora obrigado a fingir que se sentira muito entusiasmado.
Prefiro nem tentar explicar o que deve ter sofrido. Os símbolos luminosos que se
fundiam uns nos outros eram demais até para mim, e pior eram os terríveis uivos e os
sons estridentes que o artista deitado sob um mono transmissor “produzia” por meio de
seus reflexos nervosos.
Na sala contígua os membros do Exército de Mutantes entravam e saíam
constantemente. Pouco depois de uma hora da madrugada, quando o movimento nas ruas
mais célebres diminuiu um pouco, Allan D. Mercant apareceu em nossa sala de estar
confortavelmente instalada. Pedira licença para realizar só as investigações preliminares.
Por isso, eu me mantivera em segundo plano.
Rhodan estava tirando o uniforme de gala; vestiu o uniforme de bordo, do qual eu
gostava muito mais. John Marshall entrou atrás de Mercant.
O chefe do Serviço de Defesa do Império Solar, um homem de estatura delicada,
que quase sempre estava sorrindo, sentou-se lentamente numa poltrona articulada.
Parecia sentir minha tensão interna.
— Fale logo — disse Rhodan em tom irritado. — Descobriu alguma pista?
— Provavelmente, sir — respondeu Mercant na maneira tranqüila que lhe era
peculiar. — Cheguei à conclusão de que procedemos acertadamente ao não dar atenção,
por enquanto, aos numerosos passageiros e tripulantes das cinco naves de passageiros. As
naves foram examinadas com o detector. O ativador não se encontra em nenhuma delas.
Era o que se esperava.
Lançou-me um olhar pensativo, e procurei dominar o nervosismo cada vez mais
intenso.
— Um grupo de criminosos do gabarito desses desconhecidos não se disporiam a
transportar um aparelho que, para eles, é insubstituível numa nave de passageiros das
linhas regulares. Além disso, não existe nenhum motivo lógico para que o ativador fosse
levado do sistema de Árcon. Se os criminosos quiserem utilizá-lo para fazer chantagem,
poderão ver-se obrigados a exibi-lo ao legítimo dono, para provar a credibilidade de suas
alegações.
— Ele possui um cérebro eletrônico que raciocina segundo o sistema binário, Atlan!
— disse Rhodan, numa tentativa desesperada de descontrair o ambiente.
Limitei-me a acenar com a cabeça. A observação não produziu o menor efeito, ainda
mais que, excepcionalmente, Mercant não estava sorrindo.
Sem modificar o tom de voz, o homem com a auréola de cabelos dourados
prosseguiu:
— O fato de por ora não termos dado atenção aos passageiros das naves que faziam
linhas regulares não representava qualquer perigo para o êxito das nossas investigações.
O que me pareceu mais importante foram as pessoas que saíram de Árcon I no período
crítico, nas quatro naves particulares, e que acabaram pousando no segundo mundo deste
sistema admirável. São ao todo dezessete pessoas, que já foram identificadas pelo
regente.
— Há um minuto recebi uma notícia que, por assim dizer, fez-me ficar apreensivo.
Ouvi que Rhodan respirava pesadamente. Lançou um olhar furioso para Mercant,
que olhava para um canto, mergulhado em suas reflexões. Sem dar a menor atenção ao
estado de ânimo de Rhodan, o chefe do Serviço de Defesa prosseguiu em tom indiferente:
— O perigo de um fracasso estava na eventual falta de informação da partida de
alguma espaçonave. Caso o ativador ainda se encontrasse em Árcon I, nossa atuação
neste planeta representaria pura perda de tempo e, portanto, seria um procedimento
mortal para Atlan.
— Muito obrigado — disse quando minha paciência já chegara ao fim. — Não quer
fazer o favor de passar logo ao que interessa?
— Estava prestes a fazer exatamente isso, sir! As dezessete pessoas identificadas
pelo regente foram examinadas discretamente por nossos telepatas. Nenhuma delas tem
qualquer coisa a ver com o furto. Acontece, todavia, que o piloto da pequena nave Heter-
Ton se queixa de fortes dores de cabeça.
Mal e mal conseguia manter o autocontrole. Só quando vi os olhos inteligentes de
Marshall, comecei a desconfiar de que algo de importante havia acontecido.
— Dores de cabeça? — repetiu Rhodan. — Trata-se de um incômodo normal?
— Não. É justamente isso. Diria que para nossa sorte as dores não são normais —
disse Mercant em voz baixa. — O piloto, um homem chamado Ikort, sofre as
conseqüências de um bloqueio hipnótico mal executado e aplicado por meios mecânicos.
E o mais interessante: há uma lacuna em sua memória. Apesar disso já conseguimos
apurar que um personagem importante lhe ordenou que levasse dois oficiais da frota
arcônida para Árcon II. Por estranho que possa parecer, os oficiais nunca chegaram a este
planeta, ao menos em caráter oficial. No entanto, partiram na nave, e o piloto sabe que
penetrou na atmosfera de Árcon II. Supomos que os oficiais tenham saltado da nave.
Levantei-me. Meus olhos ardentes fitaram o chefe do Serviço de Defesa, em cujos
lábios brincava um estranho sorriso.
— Quem é o personagem importante que deu essa ordem ao piloto? — perguntei.
Mercant fitou-me prolongadamente.
— O senhor, sir. A ordem foi dada pelo imperador em pessoa.
Tive a impressão de que iria afundar no chão. Senti as mãos de Rhodan me
ampararem.
— Sente-se — disse Perry.
Ouvi o pedido como se eu estivesse sonhando. Cambaleei em direção ao meu leito
e, uma vez lá, gaguejei:
— Eu? Será que o senhor ficou louco, Mercant?
— Não senhor. Apenas repito aquilo que o piloto sabe, segundo revelam as
investigações telepáticas realizadas com todas as cautelas. Evidentemente trata-se de um
truque. O homem realmente tem a impressão de que recebeu a ordem do senhor em
pessoa. Não demoraremos a desfazer o bloqueio hipnótico. Gucky e Betty Toufry já estão
trabalhando. É de supor que alguns traidores, alojados no palácio de cristal, tenham dado
a ordem em seu nome. Será possível apurar quem são esses homens, mas no momento
não temos tempo para isso. O que mais importa é sabermos quem foram os dois
desconhecidos. O piloto deve tê-los visto.
— O que nos adiantaria isso? — perguntou Rhodan em tom pensativo. — A
descrição dos personagens será completamente inútil.
— Acredito que sim, sir. Mas podemos conseguir alguma indicação sobre a área do
planeta na qual saltaram da espaçonave. O piloto estava obedecendo estritamente às
ordens que recebera ao pousar no espaçoporto de Torgona, onde, ao passar pelos
controles, declarou que estava chegando só e saíra só. O regente já realizou suas
investigações. A estação de controle do palácio de cristal confirmou essa informação.
— É incrível! — admirei-me em voz tênue. — Como pode ser possível uma coisa
dessas?
— Os robôs que trabalham lá receberam uma programação correspondente da parte
de arcônidas autorizados, sir — explicou Mercant. — Trata-se de um jogo muito bem
urdido, que nunca seria desvendado, caso o senhor tivesse recorrido à polícia secreta
arcônida.
Voltei a olhar para o relógio. As cifras do mostrador continuavam a avançar
implacavelmente. Era claro que Mercant tinha razão. Foi justamente por isso que solicitei
o auxílio de Rhodan. Lembrei-me de uma coisa. Será que Mercant se esquecera?
— Pelos meus cálculos, dentro em breve, deverão entrar em contato comigo —
disse em tom hesitante. — Se os criminosos sabem que não posso viver sem o ativador,
também deverão saber que chegou a hora da chantagem. Por que não dão sinal de vida?
Perry Rhodan baixou os olhos. Ao que parecia, sabia mais que eu. Meu nervosismo
voltou a crescer.
— Mercant! — gritei em tom áspero para o Chefe do Serviço de Defesa.
Este olhou para as pontas dos dedos.
— O senhor não deveria contar mais com isso, sir. No âmbito de nosso
planejamento, eliminei essa possibilidade, com base em dados científicos. O senhor não
compareceu à sessão com a imitação do ativador? Além disso, o senhor mostrou-se
bastante cínico ao dar a entender que ainda possuía algumas peças de reserva. Face a seu
extraordinário autodomínio, não existe a menor dúvida de que acreditaram em suas
palavras. Ainda acontece que suas observações possuíam bons fundamentos lógicos.
Ninguém pode afirmar com segurança se o senhor realmente não possui ao menos um
aparelho sobressalente. Era o que indicavam suas atitudes. Qualquer homem, para o qual
a perda de um objeto insubstituível praticamente representa a condenação à morte, fará
todos os esforços para recuperar o exemplar perdido. O senhor não fez nada disso; apenas
escarneceu velada-mente dos ladrões. Estes acreditarão que perderam a oportunidade de
exercer pressão contra o senhor. No meu entender, os ladrões não se exporão ao risco de
serem descobertos por ocasião de uma tentativa de chantagem que de antemão estaria
condenada ao fracasso. Ninguém entrará em contato com o senhor.
Deixei-me cair lentamente sobre o leito pneumático. Rodas de fogo pareciam girar
no meu crânio. Meu raciocínio cessou e o setor lógico de minha mente não se manifestou,
o que provava que as explicações fornecidas por Mercant eram lógicas.
O cérebro desse homem parecia-se com um computador positrônico. Não esquecia
nada.
Demorou alguns minutos até que eu recuperasse o autocontrole. Quando voltei a
erguer-me, Rhodan estava sentado na beira do meu leito. Parecia desesperado. Começou
a falar, sem o menor intróito:
— Ainda não falamos a este respeito, Atlan! Mas sei que você suspeita da mesma
coisa que eu e todos nós. Os arcônidas deste sistema só podem ter recebido de uma
pessoa, que está bem inteirada, a informação sobre o papel importante que o ativador
desempenha para você.
Exibi um sorriso martirizado. Era claro que já me dera conta disso. E também não
achara necessário falar a este respeito. Com isso, o aparelho não voltaria às minhas mãos.
Mas Rhodan mostrou-se persistente. Parecia que fazia questão de martirizar-se a si
mesmo.
— Esqueça-se disso — pedi. — Não adianta pronunciar o nome.
— Além dos meus elementos de confiança, só havia uma única pessoa que sabia
disso — prosseguiu Rhodan, mantendo-se fiel ao assunto. — Meu filho, Atlan. O homem
que traiu a Terra e o Império de Árcon e celebrou um acordo traiçoeiro com os
mercadores galácticos. Esperava encontrá-lo aqui. Desta vez não terei mais a menor
complacência. Thomas Cardif é vítima de uma mistura de sangue que domina
inteiramente seus sentimentos e seu pensamento. Agradeço ao Criador por Thora não ter
de assistir a uma coisa dessas.
Perry Rhodan levantou-se e foi até a larga galeria de janelas. Uma vez lá, ficou
imóvel. Marshall já saíra da sala. Vozes soaram do lado de fora. Atlan D. Mercant
também se levantou. Fitou-me com uma expressão de indecisão e falou em tom hesitante:
— Sir, é bom que saiba que esta é a única possibilidade. Nenhum dos colaboradores,
que estão informados a este respeito, perdeu uma única palavra sobre o ativador.
— Acho que lá fora estão precisando do senhor — disse, esquivando-me às suas
palavras.
Mercant saiu. O sorriso já voltara aos seus lábios.
O rosto de Rhodan parecia uma máscara.
— Isso não poderia ter sido evitado? — perguntei em tom tranqüilo. — Um dia nós
o encontraremos, e então surgirá a solução do problema. Você deveria esquecer-se de que
tem um filho...
— Esquecer? — repetiu Rhodan em tom amargo. — Isso é fácil de dizer.
Mordi o lábio. Não escolhera a palavra certa.
Dali a alguns segundos, o sugestor Kitai Ishibashi entrou na sala. O mutante alto e
magro, nascido no Estado confederado do Japão, limitou-se a dizer:
— Descobrimos, sir! O bloqueio foi desfeito. Quer ver a imagem simultânea?
Talvez seja útil conhecermos os dois homens desaparecidos.
Esqueci minhas preocupações por Thomas Cardif. Também Rhodan forçou-se a sair
do estado de desânimo em que se encontrava.
Quando me fitou, parecia novamente repleto de energia. Um sorriso ameaçador fez-
me compreender que considerava a questão um problema seu. Parecia sentir-se
responsável por aquilo.
— Vamos andando, arcônida! De quanto tempo ainda podemos dispor?
Lancei um olhar para o relógio. O mostrador indicava quarenta e cinco horas e
cinqüenta e oito minutos.
— Mais ou menos quinze horas, bárbaro.
Rhodan e eu nos olhamos nos olhos. Ishibashi entregou-me o cinto terrano com a
arma de impulsos bastante simples. Estava na hora de agir.
5

O projetor simultâneo era um aparelho usado em todo o sistema de Árcon para a


produção de jogos coloridos.
Tal aparelho permitia a representação figurativa dos estados emocionais e das
impressões do espírito. Para isso dava nova conformação às vibrações cerebrais captadas
por seu detector e as projetava sobre uma tela. O processo possibilitava uma apresentação
exata de imagens de todos os tipos. A qualidade da imagem mudava de acordo com as
energias físicas do transmissor orgânico, que em nosso caso se chamava de Ikort.
Aquele jovem arcônida parecia ser descendente de nobres. Usava o uniforme da
frota e exibia as insígnias de tenente. O símbolo bordado no peito de seu uniforme
identificava-o como piloto da guarda palaciana, motivo por que pertencia ao círculo dos
meus colaboradores mais chegados.
Apesar disso nunca vira aquele rosto, agora enrijecido numa máscara.
Ikort estava esticado sob o capacete do detector. O aparelho pertencia ao
equipamento padronizado dos nossos alojamentos. A tela estava embutida na parede.
Gucky e Betty Toufry, que haviam desfeito o bloqueio hipnótico, estavam totalmente
exaustos ao lado do apático oficial.
Marshall incumbira-se do prosseguimento do interrogatório.
Dez minutos depois, alcançou o primeiro êxito. Um fluxo sugestivo emitido por
Kitai obrigou o tenente a revelar o que sabia.
Lancei um olhar tenso para a tela, na qual se desenhavam modelos coloridos. Ao
que parecia Ikort estava bem treinado no jogo mental com o aparelho simultâneo, fato
que confirmava minha suposição sobre sua descendência.
Seria de admirar se um jovem de uma família abastada ainda não se tivesse entregue
à mania generalizada da composição.
A voz de Marshall assumiu um tom mais insistente, e Ishibashi inclinou-se ainda
mais sobre o tenente.
As áreas coloridas desapareceram. Um espaçoporto apareceu na tela. Era o campo
de pouso particular do imperador em Árcon I.
Vimos dois homens. Estava escuro, mas seus rostos se tornaram visíveis à luz da
comporta, no momento em que entraram na pequena espaçonave.
Uma câmera emitiu um zumbido. Os especialistas terranos estavam fixando a
imagem.
A próxima cena mostrava o espaço livre situado entre os três mundos de Árcon
dispostos em triângulo eqüilátero, mundos estes que giravam em torno do sol branco,
segundo a vontade de meus ancestrais.
Dali a pouco assistimos à manobra de penetração no envoltório atmosférico de
Árcon II.
— Peço sua atenção toda especial — disse Mercant.
Outra câmera começou a zumbir.
Os controles da nave tornaram-se visíveis. Uma linha verde assinalava a rota sobre o
mapa em baixo-relevo.
De repente, a imagem simultânea tornou-se menos nítida. Era o momento em que a
hipnose devia ter começado a produzir seus efeitos. Apesar disso conseguimos
reconhecer dois homens equipados com mochilas antigravitacionais, que atravessaram a
cabina e abriram a escotilha interna da comporta. Desta vez os rostos eram nitidamente
perceptíveis.
Saltaram pela escotilha dianteira e desapareceram. A comporta fechou-se
automaticamente. Dali a pouco assistimos ao pouso.
As imagens que se seguiram não ofereciam maior interesse. Marshall suspendeu o
interrogatório simultâneo e passou a formular perguntas diretas. O piloto sabia em que
ponto os passageiros haviam abandonado a nave. Fora pouco antes da chegada a Torgona.
Dali a meia hora, Mercant dispensou o jovem oficial. Estava parado no meio da sala,
confuso e com os olhos vidrados. Ishibashi aplicou-lhe um bloqueio sugestivo que fez
Ikort esquecer-se de que um misterioso desconhecido, de pele escura, fora tirá-lo de seu
quarto de hotel.
Rhodan olhou para o relógio. Ras Tschubai, o africano alto e esbelto, aproximou-se.
— Ras, o senhor retirou este oficial de seus aposentos?
O teleportador fez que sim.
— O.K. Leve-o de volta, deixando-o no lugar em que foi recolhê-lo.
Ras soltou uma risada.
— Estava deitado sobre a cama, completamente vestido. Sentia dor de cabeça.
Rhodan limitou-se a confirmar com um gesto. Tratava-se de uma ação que só podia
ser qualificada de admirável, mas segundo os padrões terranos representava uma
ocorrência corriqueira. Tive a impressão de que Rhodan nem se dava conta do poder
representado pelos mutantes.
Dois homens levantaram o piloto, que parecia narcotizado, e colocaram-no nas
costas de Tschubai. Vi que o mutante se concentrava. Quando saltou, conforme se
costumava dizer, surgiu um ligeiro tremor no ar. Logo após, o teleportador desapareceu.
Dali a dez minutos, quando voltou tão subitamente como havia desaparecido, os
filmes já haviam sido revelados. Os mutantes receberam retratos coloridos dos dois
desconhecidos. Chamei o computador-regente com meu rádio de campanha e, recorrendo
à televisão, mandei que copiasse os negativos.
— Pronto, alteza — disse a voz saída do alto-falante. — Tem instruções especiais?
— Tenho — disse para dentro do microfone. — Verifique se conhece algum dos
homens que procuramos. Em caso afirmativo, entre imediatamente em contato comigo.
— Entendido. Desligo.
O gigantesco centro de computação, instalado no mundo vizinho, desligou. Rhodan
disse em tom obstinado:
— Tenho a impressão de que a máquina começou a funcionar. Ras, levou o piloto
são e salvo ao lugar do qual o tirou?
— Sim senhor. Está dormindo. Quando acordar pensará que não saiu do quarto.
Além disso estará curado da dor de cabeça.
— Excelente. O que houve, Gucky?
O rato-castor enrodilhara-se sobre uma das poltronas articuladas. Sua cabeça
descansava sobre o colo da mutante Betty Toufry. Esta parecia imersa em profundas
reflexões, enquanto acariciava o pêlo macio da nuca de Gucky.
— Não perturbe, por favor! Estou meditando — chiou o rato-castor com sua voz
aguda.
— Que sujeito convencido — disse a cabeça esquerda do mutante Goratchim. —
Você costuma livrar-se facilmente dos problemas. Diz que está meditando, e pronto!
Gucky ergueu-se. Seus olhos enormes chispavam.
— Então acha que estou pronto?
Desviou-se em tempo, e conseguiu evitar o impacto do corpo gigantesco que
atravessou o ar como um projétil. Dali a alguns segundos o colosso estava pendurado sob
o teto. Gucky soltou uma risada estridente. Suas energias telecinéticas eram
inimagináveis.
— Eu não disse nada — gritou a cabeça direita, que representava Ivanovitch, o
jovem. — O que é isso?
— Faço explodir seu dente roedor — ameaçou Ivã, o velho. — Seu pincel de olhos
de peixe!
— Deixe-o descer — ordenou Rhodan em tom indignado.
Gucky movimentou as mãos num gesto de resignação e deixou o gigante de dois
metros e cinqüenta descer lentamente ao chão. Assim que os pés tocaram no piso, as duas
cabeças logo começaram a brigar.
Ivã o velho afirmou que Ivanovitch oferecera indiretamente a capitulação.
Fascinado, acompanhei o espetáculo. Durante a disputa cada um dos dois cérebros
esforçou-se para controlar o enorme corpo.
Houve um duelo mudo, que prosseguiu até que Ivã conseguisse levantar o braço
esquerdo, contra a vontade da outra cabeça, e aplicar uma violenta bofetada em
Ivanovitch. Ouviu-se um forte estalido.
Com isso, a luta chegou ao fim. As duas cabeças concordaram em descansar o corpo
sobre o leito mais próximo. Só eu acompanhara o pequeno acontecimento. Para os
terranos, essas coisas pareciam corriqueiras.
O dom de Goratchim era uma das mais perigosas qualidades positivas dos mutantes.
O fluxo de impulsos de ordem superior expelido por seu cérebro produzia a desintegração
atômica no centro da área visada. Goratchim era capaz de desencadear,
independentemente de qualquer recurso técnico, a fissão de qualquer composto do cálcio
e do carbono. Seu treinamento já o habilitara a reunir os impulsos num feixe tão estreito
que só atingiam uns poucos núcleos atômicos. Os compostos do cálcio e do carbono eram
encontrados em toda parte. Com isso, a faculdade do gigante disforme, coberto de
escamas verdes, transformara-se numa arma terrível.
Olhei os outros mutantes, um por um. Conhecia-os todos e sabia de que forma
haviam sido recrutados por Rhodan. Para todos os efeitos práticos, encontrava-me num
círculo de pessoas imortais, pois Rhodan concedera a todos os mutantes o benefício da
conservação celular. Compreendi que essas pessoas seriam capazes de conquistar a
Galáxia. Rhodan já agia com excessiva benevolência quando no trato com os mutantes, o
que em minha opinião envolvia certos riscos.
Era espantoso que, vez por outra, os mutantes não se deixassem dominar pela
embriagues do poder. Certa vez já houvera uma pequena revolta, que Rhodan conseguiu
reprimir com o auxílio dos outros mutantes. Mas, se estes se rebelassem em conjunto, a
situação poderia tornar-se insustentável.
Betty Toufry, a telepata competentíssima, fitou-me atentamente. Provavelmente
negligenciara o bloqueio protetor dos meus pensamentos. Sorri para ela, e seu rosto
descontraiu-se. Ao que tudo indicava, apesar de seu dom parapsicológico, só conseguira
captar alguns fragmentos de idéias. Gucky dormia com a boca aberta. Rhodan e Mercant
realizavam uma conferência com alguns cientistas da Drusus. Tratava-se de revistar a
área em que os criminosos saltaram com seus aparelhos antigravitacionais, utilizando
uma nave que não chamasse a atenção.
Era de supor que o destino dos desconhecidos não ficasse muito longe desse ponto.
Ao menos não encontramos nenhum fundamento lógico, que justificasse a suposição de
que poderiam ter abandonado a nave arcônida, a milhares de quilômetros do seu
esconderijo. Os dois homens que praticaram o astucioso furto não teriam necessidade
disso. Por certo acreditavam que o piloto estivesse mudo, em virtude do bloqueio
hipnótico que lhe fora imposto.
Antes de mais nada tornava-se necessário ocultar as faculdades dos mutantes. Além
disso, o aparelho de rastreamento, adaptado à situação, teria de entrar em ação
imediatamente.
Esperava-se que, dentro em breve, seriam encontrados os primeiros indícios.
Dali a alguns minutos, o comandante da Califórnia, que se mantinha à espera no
espaçoporto próximo, recebeu ordem para fazer sair uma nave espacial pequena, do tipo
Space Jet, a fim de sobrevoar a uma altura de dez ou vinte quilômetros a área sobre a qual
os dois desconhecidos haviam saltado. O goniômetro era supersensível, e meu ativador
celular irradiava ininterruptamente os impulsos estimulantes destinados ao meu
organismo. A localização goniométrica era apenas uma questão de tempo. Porém não
tínhamos tempo. O Coronel Sikermann, comandante da nave capitania Drusus, assumira
o comando da Califórnia, durante a operação em que estávamos empenhados. Enquanto
isso, Reginald Bell assumira o comando do supercouraçado.
Tudo se achava muito bem organizado, mas estava na hora de recuperarmos o
aparelho que assumia importância tão vital para mim.
Voltei a olhar para o relógio. Quarenta e oito horas e trinta e seis minutos já se
haviam passado desde o furto. Ainda me restavam aproximadamente onze horas e meia.
No momento em que o Coronel Sikermann anunciou que o jato espacial acabara de
partir, chamei o computador-regente, a fim de instruí-lo a não molestar a pequena nave
terrana. De outra forma os controles automáticos a obrigariam a pousar ou até a
derrubariam. Ninguém podia “brincar” nos céus de Árcon II.
O centro de computação confirmou e desligou. Mas dali a um segundo, a luz verde
voltou a acender-se no painel de comando. Rhodan percebeu. Estava bastante tenso.
Lancei um olhar espantado para o transmissor especial achatado, que encontrava-se
preso ao meu antebraço. Por que o computador voltara a chamar tão depressa?
Quando comprimi o botão de contato e dirigi a micro lente da transmissão de
imagem para meu rosto, compreendi que outro setor do centro de computação me
chamava. Afinal, o grande cérebro era formado por milhões de circuitos, cada qual com
sua tarefa específica.
Naquele momento ninguém desconfiava de que todos os nossos planos se haviam
tornado inúteis. Acontecera alguma coisa com que nem sequer Mercant contara.
— Regente chamando Sua Alteza — disse a voz metálica e dura saída do micro alto-
falante. — Resultado da indagação 122-A, relativa a pessoas desconhecidas que saltaram
da espaçonave Heter-Ton. Os filmes por mim copiados foram transmitidos ao setor de
armazenamento. Um dos homens foi identificado. Sua fotografia e dados pessoais
encontram-se disponíveis, porque essa pessoa foi punida há dezoito anos por ter operado
sem licença um laboratório biofísico particular.
“Dados dessa pessoa. Nome: Segno Kaata, idade desconhecida, sacerdote-chefe do
templo de Baalol local, chefe do culto de Baalol no âmbito do sistema de Árcon.
“O culto de Baalol é a organização mais rica da Galáxia. Calcula-se que, só no
sistema de Árcon, existam duzentos milhões de adeptos, formados por arcônidas, naats e
outras inteligências aqui radicadas. O culto não venera nenhuma divindade. Os objetivos
da seita são duvidosos. Os dados disponíveis provam, com cem por cento de certeza, que
os diversos supremos sacerdotes do culto de Baalol nunca tentaram conquistar o poder
político ou militar. De outro lado, também sabemos, com cem por cento de certeza, que
os dirigentes do culto desempenham papel proeminente na área econômica. Ao que tudo
indica, mantêm contato com os mercadores galácticos e os aras. A doutrina da seita
proclama a sanidade física e mental do indivíduo em base cientificamente fundada, de
conotação ocultista. As ciências secretas da seita só são conhecidas por ouvir dizer, mas
ao que parece assumem certa importância.
“Atenção, este detalhe é importante.
Não temos elementos para verificar de onde vieram os baalols e qual o nome que se
dá a seus sumos sacerdotes. Ao que se supõe, são descendentes de colonos arcônidas
emigrados há muito tempo. Os baalols nunca colonizaram qualquer planeta. São
encontrados em todos os mundos da Galáxia.
“Dados sobre a estrutura do culto: Qualquer pessoa que não tenha nascido de um
casamento entre baalols jamais poderá ser um sacerdote da seita. As conclusões lógicas
extraídas desse fato, ao lado de outros dados, fazem supor que para isso se exigem
determinadas características físicas e espirituais. Sabe-se que os sacerdotes desse culto
fabricam os campos defensivos individuais mais aperfeiçoados e de maior conteúdo
energético. Minhas investigações por ocasião da prisão do sumo sacerdote Segno Kaata, à
qual já me referi, não trouxeram qualquer resultado concreto no que diz respeito aos
legendários campos defensivos energéticos. Trata-se de aparelhos iguais aos que são
usados em toda parte. Mas que, em outras pessoas, nunca geram um campo energético tão
impenetrável como num baalol.
“Existe a possibilidade de que os baalols possuam determinadas faculdades em
virtude de alguma mutação ainda desconhecida. Recomenda-se a maior cautela. Os
sacerdotes são considerados invulneráveis.
“Fim da transmissão, alteza.”
O alto-falante emitiu um estalido, mas o computador permanecia em recepção.
Rhodan fitou-me. Parecia perplexo. Um sorriso significativo brincou nos lábios de Allan
D. Mercant. Os mutantes presentes pareciam ser os primeiros a compreenderem que
alguma coisa não estava certa.
— O culto de Baalol? — disse John Marshall, esticando as palavras. — Caramba!
Apressei-me em ordenar ao regente que aguardasse novas instruções e desliguei. O
centro de computação me havia transmitido todas as informações armazenadas em sua
memória. Parecia impossível saber mais alguma coisa...
— O senhor conhece esses estranhos sacerdotes, sir? — indagou o chefe do Serviço
de Defesa Solar.
O tom suave de sua voz me fez empalidecer. Sim, já ouvira falar nos baalols.
— Não tenho nada a acrescentar às declarações do regente — confessei. — O culto
já existe há dez mil anos. Se este se basear em alguma mutação, tal fenômeno deve ter
ocorrido nos primórdios de nossa história. A partir do momento em que assumi o cargo de
imperador, não ouvi falar mais a este respeito. Já havia esquecido a existência dessa seita,
que cobriu toda a Galáxia.
Mercant confirmou com um gesto.
Rhodan parecia pensativo diante da tela escurecida do aparelho de jogos
simultâneos. Tive a impressão de que procurava alguma coisa.
— Há certas coisas que não entendi muito bem, Atlan! Como é que um aparelho
gerador de campo defensivo, igual a qualquer outro, pode produzir determinado efeito
num arcônida comum, enquanto num sacerdote produz um campo individual
impenetrável? Essa afirmativa encerra um verdadeiro paradoxo! Os micro projetores não
podem multiplicar seu desempenho pelo simples fato de estarem presos ao corpo de um
baalol. Se for assim, isso não depende dos aparelhos, mas de alguma qualidade especial
dessa gente. Se admitirmos esse pressuposto, torna-se quase certo que houve uma
mutação numa época muito recuada da história. Como se explica que até agora ninguém
tenha notado isso?
Virou a cabeça e fitou-me. Senti-me perplexo.
— Hum! — fez, e um brilho irônico surgiu em seus olhos cinzentos. — Acho que a
responsabilidade disso cabe mais uma vez à administração desleixada de Árcon, não é?
Mas pelo que se diz, há dez mil anos as coisas ainda eram diferentes. Por que nessa época
não se realizaram investigações mais detalhadas?
Não soube responder a essa pergunta.
— Por certo naquele tempo adotavam um comportamento mais discreto. Não me
consta que, durante os anos em que servi na frota, tenham acontecido coisas misteriosas
ou sequer inquietantes. Se tivessem acontecido, teríamos tomado providências imediatas.
Os arcônidas do meu tempo sabiam agir com uma tremenda rapidez e coerência.
No momento estes aspectos são secundários — disse Mercant em tom cortês, mas
firme. — Já sabemos por onde podemos começar. Não vamos perder tempo. A descrição
do personagem, realizada pelo piloto, revelou-se correta. Vejamos o que nos oferecem no
templo.
De repente, todos pareceram perder os nervos no quartel-general camuflado dos
terranos. As ordens atropelavam-se. O desempenho de Rhodan teria sido suficiente para
subjugar a população de um planeta.
Reginald Bell recebeu uma ordem pelo rádio: decolar imediatamente. Rhodan queria
que a Drusus permanecesse nas proximidades.
Dali a cinco minutos foi localizado o ativador tão procurado. Realmente se
encontrava no templo de Baalol situado em Árcon II. Face aos dados até então
conhecidos, dificilmente haveria outra possibilidade, ainda mais que sempre existia pelo
menos um templo dessa seita em cada mundo. Isso constituía outra peculiaridade da seita,
mas esta por certo também tinha um significado mais profundo.
Uma hora depois, a Drusus chegou. Cada um dos comandantes de campanha
recebeu ordens bem definidas.
Mobilizei as unidades robotizadas do regente. O planeta foi isolado por uma frota de
gigantescas naves. Pesados blindados voadores estavam estacionados nas pistas dos
depósitos, prontos para a ação.
No momento em que entramos no planador, acompanhados pelos mutantes, a fim de
procurar ocupar o templo, cinqüenta e uma horas e três minutos já se haviam passado
desde o furto.
O prazo ia-se esgotando!
Não sabíamos se os misteriosos sacerdotes dispunham de aparelhagem moderna de
localização. Por isso resolvemos aproximar-nos do templo, o mais discretamente
possível. A edificação ficava situada junto a uma colina baixa, nos arredores da metrópole
Torgona, mas era fácil alcançá-la pelas largas vias elevadas e expressas.
Éramos seguidos pelos destacamentos especiais dos terranos, que a qualquer
momento poderiam ser reforçados por tropas de robôs. A longa noite de Árcon II
facilitava a execução de nosso plano. Apesar disso era bastante duvidoso que
conseguíssemos cercar a área do templo, antes que alguém detectasse nossa presença.
6

Árcon II não possuía lua.


Quando meus antepassados arrancaram os planetas dois e quatro de suas órbitas
naturais, a fim de, num processo prolongado, agregá-lo ao de número três, eles preferiram
não enquadrar algumas luas no complicado sistema.
Apesar disso não era completamente escuro.
O próximo período de chuvas, segundo os planos do computador-regente, só
ocorreria na noite seguinte. Por isso não havia nenhuma nuvem e a luz das inúmeras
estrelas atingia livremente a superfície do planeta.
A luminosidade e cintilação era muito diferente daquela que se conhecia na Terra
distante, pois encontrávamo-nos no centro de um grupo estelar esférico, cujas
concentrações de sóis bastavam para iluminar o terreno, mesmo de noite.
Enxergávamos perfeitamente, sem recorrer aos aparelhos de luz infravermelha.
Os edifícios do templo transmitiam uma impressão deprimente. Não haviam sido
construídos segundo o modelo do funil, usado pelos arcônidas, mas em conformidade
com os conceitos arquitetônicos de uma raça desconhecida.
O templo de Baalol quase chegava a ser uma fortaleza, com as muralhas externas
circulares, os baluartes avançados e as estreitas vias de acesso. Os edifícios, que surgiam
atrás dos muros, pareciam ser esféricos. Os telhados pontudos, aparentemente feitos de
metais nobres, estendiam-se bem alto, em direção ao céu.
No cume do telhado mais alto havia uma lâmpada vermelha, cuja luz se derramava
pelo terreno circundante.
Os amplos parques, que rodeavam os edifícios, foram cercados em poucos minutos,
de acordo com nosso plano. Na escuridão, três mil homens de uma unidade terrana,
transportada pelo espaço, esperavam que Rhodan desse ordem para entrar em ação.
Robôs especiais revistavam uma larga faixa de terra em torno do templo, à procura
de passagens subterrâneas. Em pouco tempo, os rastreadores de espaços vazios, que
funcionavam com uma precisão extraordinária, descobriram oito galerias, situadas em
diversos níveis de profundidade.
Ao receber a notícia, um sorriso feroz surgiu no rosto de Rhodan. Seguiram-se suas
ordens, das quais se depreendia que não estava disposto a assumir qualquer risco.
Os pesados blindados energéticos caíram ao chão sob a proteção de seus campos
antigravitacionais. Desceram exatamente nos lugares em que os rastreadores de espaços
vazios haviam descoberto as passagens subterrâneas.
No mesmo instante, os canhões de impulso dos carros de combate, apontados para
baixo, quase na vertical, começaram a disparar. Subitamente, as fúrias do inferno
pareciam estar às soltas. Avançamos resolutos, uma vez descobertos os caminhos de fuga.
Em hipótese alguma, o homem que procurávamos devia escapar.
Fluxos energéticos de luminosidade solar penetravam no solo que se tornou
incandescente, para volatilizar-se em seguida. As galerias foram atingidas por penetração
direta. Foram parcialmente derretidas e, depois, algumas bombas de vibrações as fizeram
desmoronar de vez.
Aqueles homens altamente especializados, que sabiam o que estava em jogo,
passaram a trabalhar com uma rapidez e precisão extraordinárias.
No momento em que as luzes se acenderam no templo, as passagens subterrâneas já
haviam sido completamente destruídas. O ribombo dos canhões energéticos perdeu-se na
distância. Depois de um último rugido, o silêncio voltou a reinar.
No templo não havia sinal de vida. Mas as luzes continuaram acesas. Aguardamos
as tropas de robôs fortemente armadas. Os robôs de guerra, capazes de voar, formavam
um segundo círculo que cercava a área.
Estávamos convencidos de que pegáramos o sumo sacerdote na armadilha.
Rhodan esforçou-se para ouvir o que se passava no templo, mas tudo permanecia
em silêncio.
— Para meu gosto aquilo está muito quieto — disse Mercant de repente.
Achávamo-nos ao lado do jato espacial pousado, no qual se encontrava o aparelho
de localização especialmente adaptado. O chiado agudo que saía do alto-falante provava
que meu ativador celular estava no interior do templo.
Procurei o olhar de Rhodan e notei que em sua testa haviam surgido rugas
profundas.
— Que situação danada! — exclamou em tom nervoso. — Seria fácil atacarmos
com todas as forças, mas o que acontecerá com seu aparelho se o fizermos?
Ri um tanto sem jeito. Essa pergunta já ocupava meu espírito há uma hora.
Antes que pudesse dizer qualquer coisa, houve um tumulto à nossa esquerda. John
Marshall e o mutante Wuriu Sengu aproximaram-se. Wuriu apoiava-se em John. O
japonês baixo e robusto dava a impressão de estar totalmente exausto. Mal conseguia
manter-se de pé.
Um soldado aproximou-se rapidamente e abriu uma cadeira de campanha. Wuriu
sentou-se pesadamente. Dirigi-me ao local em que se encontrava. Rhodan passou por
mim correndo. De repente toda a nossa euforia se foi. Eu sentia um mal-estar indefinido.
Talvez pressentisse que algo de terrível estava para acontecer.
— O que houve com o senhor, Sengu? — perguntou Rhodan em tom áspero.
Segurou o mutante pelos ombros e sacudiu-o.
Wuriu levantou os olhos, que brilhavam à luz das estrelas.
— Sir, houve uma coisa que não consigo compreender — gaguejou.
— O que houve? Fale logo!
— Não consigo enxergar através das paredes. Devem ter ativado um campo
defensivo de natureza ainda desconhecida, ou então está acontecendo outra coisa que não
consigo superar. Minha faculdade nunca me abandonou, mas aqui está falhando.
Experimentei uma sensação dolorosa na parte posterior do crânio. Depois de muitas
horas de silêncio, meu cérebro adicional voltava a chamar.
“Pense na possibilidade da ocorrência de mutações nos baalols!”, transmitiu o setor
lógico de minha mente.
Muito surpreso, prendi a respiração. Rhodan também se manteve em silêncio.
Olhava nervosamente para o espia, que parecia estonteado. O dom parapsicológico
positivo de Sengu consistia na capacidade de enxergar através da matéria sólida e
compacta, como se fosse uma parede transparente. Até então o mutante nunca falhara.
Sempre pudera dizer exatamente o que estava acontecendo atrás deste ou daquele muro.
Son Okura, um homem franzino, que andava com certa dificuldade e era um visor
de freqüências, surgiu em meio à escuridão. Possuía a capacidade de enxergar as
radiações invisíveis ao homem, mesmo nas faixas de ondas extremas. De noite costumava
enxergar melhor.
Parou ao meu lado. Seu rosto também parecia cansado. Rhodan virou-se com uma
lentidão extraordinária. Tive a impressão de que receava o momento de fitar o rosto do
mutante.
— Son, o senhor também? — perguntou Rhodan em tom hesitante.
— Sim, sir. Uma coisa terrível está acontecendo. Estou captando uma radiação
semelhante às nossas hiperondas curtas, que se desenvolvem em outro plano espacial.
Mas desta vez é diferente: dói. Estou sentindo uma terrível dor de cabeça.
— Dor de cabeça — repetiu Rhodan, falando devagar.
Havia algo de inquietante em seu olhar.
De repente obtivemos a explicação que procurávamos. Betty Toufry, que se
encontrava mais longe, tomou a palavra.
— Também não consigo perceber mais nada, sir, nem um único impulso cerebral,
nenhum retalho de pensamento. Tenho certeza absoluta de que não se trata de um campo
defensivo. Por ali praticamente não está funcionando nenhuma máquina. Tanaka Seiko
não está localizando nenhuma fonte de energia.
— É verdade — disse um oficial da equipe de goniometria. — No templo, um único
reator está funcionando com o desempenho mínimo. São no máximo quinhentos
quilowatts, sir. É apenas o suficiente para a iluminação, o sistema de condicionamento de
ar e os elevadores. Porém nunca seria suficiente para alimentar um campo energético. Os
dados são corretos.
— Será que o diabo está solto por aqui?! — interrogou-se Rhodan, em tom furioso.
— Betty, tem mais alguma coisa a dizer?
A jovem mulher aproximou-se. À luz das estrelas, seu rosto estreito parecia pálido
como cera.
Comum tom de medo e pavor, Betty falou balbuciando:
— São antis, sir! Inteligências que possuem a capacidade de neutralizar nossos dons
por completo. Trata-se de antimutantes. Certa vez travei conhecimento com um ser dessa
espécie em Velogra VII, mas essa criatura nem desconfiava de suas qualidades de
absorção. Mas os que se encontram lá adiante sabem perfeitamente. Estão triunfando
sobre nós.
Senti um mal-estar. De repente notei minha fraqueza física. Os contornos dos
edifícios, que cercavam o templo, começaram a desmanchar-se diante de meus olhos.
Quando recuperei os sentidos, estava deitado numa maca. O médico de bordo do
cruzador Califórnia acabara de aplicar-me uma injeção nucal.
— É parastimulim, Atlan — disse em tom tranqüilo. — Sabe o que significa isso?
Sua verdadeira idade começa a manifestar-se...
— Quantas horas duram seus efeitos? — perguntei em tom tranqüilo.
De repente sentia-me muito forte e psiquicamente equilibrado.
— Normalmente oito ou dez. No seu caso, provavelmente será um pouco menos. O
senhor está acostumado aos estímulos proporcionados pelo ativador. A rigor está
totalmente viciado.
— Muito obrigado — disse um tanto ofendido. — Afinal, não sou culpado disso.
O médico riu. Ao que parecia, tinha um estranho senso de humor.
Olhei para o relógio. Cinqüenta e duas horas e quatorze minutos já se haviam
passado desde o furto.
Rhodan inclinou-se sobre mim. Ergui o corpo, sentei de pernas abertas sobre a maca
e olhei em torno. Minhas energias físicas pareciam ter retornado em toda plenitude. Esse
parastimulim era uma droga formidável.
— Nesse instante, seu colarinho está arrebentando! — disse alguém com a voz
aguda.
Gucky sentou-se ao meu lado. Para ele, a maca tinha a altura certa.
Até consegui rir. O rato-castor era uma criatura deliciosa à sua maneira.
— O.K., Perry. Não vamos esperar mais — disse, dirigindo-me a Rhodan. —
Disponho de apenas oito horas. Agora vou arriscar; é tudo ou nada.
— Vamos atacar? — limitou-se Rhodan a perguntar.
— Vamos, com todos os nossos recursos. Neste momento, declaro o estado de
emergência em Árcon II. As respectivas ordens serão transmitidas imediatamente ao
regente. Pouco importa que fiquemos parados ou façamos alguma coisa. Não tenho nada
a perder.
— Quando se sentir em situação periclitante, esse tal de Segno Kaata vai nos
ameaçar, dizendo que destruirá o ativador. Sob um ponto de vista prático, não podemos
fazer absolutamente nada.
— Podemos, sim. É possível que esses indivíduos pertençam à classe dos chamados
antis, que neutralizam as faculdades dos mutantes. Mas quero ver de que forma reagirão à
tormenta atômica desencadeada por meus canhões robotizados autopropulsados. Face a
isso, seus superdons não lhes adiantarão muito.
Já me conformara com a idéia de que minha vida chegara ao fim. O sumo sacerdote
me tinha nas mãos. Talvez fosse possível enganá-lo. Se conseguisse fazê-lo acreditar que
eu dispunha de outro aparelho, nossa ação ainda poderia ser bem sucedida.
Mas se ele já tivesse descoberto que nós havíamos blefado, poderia considerar-me
morto!
Levantei o braço esquerdo para chamar o centro de computação. Neste momento,
Gucky colocou-se à minha frente. Suas mãos suaves seguraram meu pulso.
— Não faça isso... ainda não — disse o pequeno ser com uma suavidade
extraordinária na voz.
Seus olhos grandes e leais, que tinham dado origem ao nome que lhe fora dado,
brilhavam à luz das inúmeras estrelas.
— Atlan, eu vou tentar... Sou o melhor teleportador do Exército de Mutantes. Espere
até que eu salte. Se conseguir penetrar no templo, o supremo sacerdote estará liquidado.
— Não, meu pequeno, não faça isso — respondi em voz baixa. — Você ouviu o que
seus colegas acabam de dizer. São antis! Sua vida estará em perigo. Antes de ser obrigado
a despedir-me deste mundo, não quero perder mais um amigo. Talvez seja bom que isso
tenha de acontecer. Já vivi demais, contrariando todas as leis da natureza. Isso não foi
previsto pelo Criador. Recorri a um truque para obter fraudulentamente alguns milênios
de vida. Agora o fim está chegando. Não salte, ouviu?
O rato-castor encostou seu corpo ao meu.
— Amigo? Você usou a palavra amigo? — chilreou em voz baixa.
— Naturalmente — confirmei com um ligeiro embaraço.
Gucky colocou-se, em posição de luta, à frente da figura alta de Rhodan. O ser
pequenino com as mãos na cintura oferecia um quadro esquisito.
— Irei, chefe. Não procure deter-me, pois nesse caso terei de recusar-lhe a
obediência. Tenho uma chance.
Rhodan concordou.
— Muito bem, tente. Segundo os resultados das últimas medições goniométricas, o
ativador encontra-se no mais alto desses edifícios esféricos. O recinto em que está
guardado deve ficar no terço superior desse edifício. Cuide-se, sim?
— Quer que eu salte com ele? — perguntou Tako Kakuta, que também era
teleportador.
Kakuta achava-se um tanto afastado do grupo.
— Nada disso! Irei só — disse o rato-castor, em tom violento.
A arma, especialmente fabricada para ele, surgiu em sua mãozinha. Tratava-se de
uma mortífera pistola de raios energéticos concentrados.
O inteligente habitante do planeta Vagabundo concentrou-se e teleportou-se com
tamanha força que mal se viu o conhecido fenômeno luminoso.
Aguardamos ansiosos. Subitamente viramo-nos com alguns gritos horríveis.
A uns cem metros do lugar em que nos encontrávamos, bem longe do ponto de
partida, Gucky voltara a tornar-se visível. Apenas, já não era ele mesmo.
Um monstro inchado, que tinha dez vezes as dimensões de Gucky, cambaleava aos
berros em nossa direção. As proporções modificavam-se constantemente. Por um
momento a cabeça aumentou assustadoramente seu volume, depois os braços tornaram-se
mais longos e, finalmente, o ventre inchado encolheu.
Os gritos não constituíam uma manifestação de agressividade, mas eram a expressão
de uma dor terrível. O gigante de dez metros caminhava em nossa direção, em busca de
auxílio. Sua pele parecia ser iluminada de dentro para fora. Vez por outra surgiam
pequenas descargas ruidosas, que iluminavam os arredores.
Enquanto corríamos em sua direção, o terrível efeito de gigantismo parecia diminuir
rapidamente. No momento em que o alcançamos, o rato-castor já havia desmaiado, mas
ainda media seus cinco metros. O processo de redução foi acompanhado das mesmas
distensões e deformações que já havíamos observado. A luminosidade da pele tornou-se
menos intensa.
Os médicos e os outros mutantes cuidaram do ser desmaiado. Profundamente
abalados, fitávamos o corpo que se contorcia em convulsões, até que Rhodan disse em
tom de desânimo:
— Atlan, o que acontecerá agora? Meus mutantes estão falhando. Santo Deus, eu
nunca teria contado com os antis. Nem sabíamos da existência de tais criaturas.
Allan D. Mercant conservara o sangue-frio. Aguardou o relatório de John Marshall,
que nos comunicou que, por ocasião do salto de Gucky, houve uma rejeição violenta da
massa desmaterializada. Assim, quando da rematerialização que se seguiu, as moléculas e
os grupos de átomos do corpo não se enquadraram corretamente no conjunto. Foi por isso
que ocorreu a triste cena que acabamos de presenciar.
A seguir Mercant disse, demonstrando uma avaliação correta da situação:
— Foi o último trunfo. E nós o perdemos. Mande atacar, Atlan! Como imperador, o
senhor tem autoridade para isso. Não gostaria que no futuro alguém viesse chamar-me de
criminoso. É o senhor quem dá as ordens.
— Tem alguma sugestão? — perguntei com uma estranha tranqüilidade.
— Sim, sir. Peço-lhe encarecidamente que conserve a calma. O nervosismo não
poderá adiantar muito. Ainda temos uma possibilidade. Mande bombardear as muralhas
externas e estenda o fogo até alguns dos edifícios. Procure certificar-se de que não estará
alvejando o edifício, onde se encontra o ativador. Faça uma demonstração de sua força,
mesmo que outras pessoas possam interpretar isso como um ato de desespero. Suponho
que, apesar de todas as faculdades supersensoriais, o supremo sacerdote é também mais
uma criatura que gosta de viver. Obrigue-o por meio do ataque a entrar em contato com o
senhor. Procure negociar. Ele não está em condições de saber se o senhor tem uma
duplicata do ativador ou não. Provavelmente está convencido de que está blefando. No
entanto, no fundo de sua consciência deve haver uma centelha de dúvida. Se conseguir
fazer com que converse com o senhor pelo rádio, muita coisa estará ganha. Aja logo!
Até parecia que Mercant tinha um computador no lugar do cérebro. Será que jamais
se enganaria? Dava mostras de não possuir a fraqueza humana de errar.
Dali a cinco minutos, meus blindados robotizados entraram em posição. Eram as
unidades mais pesadas das forças arcônidas transportadas pelo espaço.
Voltei a entrar em contato com o regente, que atendeu à minha ordem e confiou-me
o comando direto da operação.
Cinqüenta e duas horas e quarenta e oito minutos após o furto do ativador celular, os
canhões de impulsos começaram a trovejar. A noite transformou-se em dia. As
superaquecidas ondas de pressão obrigaram-nos a procurar um abrigo.
Mandei que os carros de combate avançassem mais um pouco. As muralhas estáveis
começaram a esfacelar-se. Seus restos, transformados em lava, foram atirados para o alto
em cascatas luminosas.
A salva seguinte destruiu os alicerces dos edifícios que cercavam o templo.
Quando o quarto e o quinto edifício desmoronaram e o calor começou a tornar-se
insuportável, o chefe da estação de rádio móvel transmitiu o sinal pelo qual tanto
ansiávamos.
O jovem oficial atirou os braços para cima e acenou-os vigorosamente.
Imediatamente mandei suspender o fogo e dirigi-me à viatura.
— Um certo Segno Kaata quer falar com o senhor — gritou o tenente. — Faça o
favor de usar a tela número três. Kaata está exatamente na nossa freqüência audiovisual.
Rhodan deu uma pancada animadora no meu ombro. Arrancou o revestimento de
bioplástico de meu nariz e bochechas. Recuperei meu rosto natural.
Mercant libertou-me da peruca escura. Passei os dedos pelos longos cabelos branco-
alourados e peguei a ombreira do imperador, que trouxera por uma questão de cautela.
Coloquei-me diante da objetiva. Na tela via-se o rosto magro e enrugado de um
arcônida de cabelos brancos e olhos avermelhados.
Usava o traje amplo e esvoaçante dos cientistas, mas este estava coberto de
símbolos que nunca vira. Obriguei-me a permanecer calmo.
Era o momento decisivo!

***

O sumo sacerdote riu. Foi uma risada estranha. Ouviam-se os sons, mas o rosto
severo com os olhos inteligentes permaneceu imóvel.
— Não acredito em vocês — disse com a voz grave e sonora. — Este ataque prova
que o senhor precisa do aparelho. Pois bem, não adianta mais negar. Esse aparelho está
em meu poder.
— O senhor nem poderia negar — disse em voz fria. — Esqueceu-se de que existem
aparelhos de localização. A esta hora os traidores, que se encontram no planeta de cristal,
já estão sendo presos. Desvendamos completamente o caso. O senhor apenas cometeu
dois erros, Segno Kaata.
“Em primeiro lugar acreditou nas informações de uma pessoa que só sabe das coisas
pela metade. Depois o senhor me subestimou. Ou será que acreditava que eu me
conformaria com tamanha desfaçatez? Para mim, a traição cometida pelo terrano Thomas
Cardif é um assunto de valor secundário. Não me interesso pelo fato dele ter contado a
alguém que importância o ativador celular assume para mim. Sempre possuo um aparelho
de reserva.”
— Será mesmo?
Tive de controlar-me ao máximo para não cometer um engano.
— Ninguém se importa que o senhor acredite ou não — respondi.
— Por que está atacando meu templo, alteza?
— Para obrigá-lo a entregar o aparelho. Não quero enfrentar as dificuldades ligadas
à obtenção de outro aparelho sobressalente.
Foram estas as palavras mais capciosas pronunciadas no curso de uma medonha
discussão com um homem que não poderia ser considerado normal, no verdadeiro sentido
da palavra. Naturalmente eu teria de fazer alguma coisa para conseguir o que realmente
pretendia. Teria de exigir a entrega do ativador, custasse o que custasse. Conforme
esperava, o sumo sacerdote reagiu imediatamente.
— Quer dizer que a perda lhe causa dificuldades? — disse em tom gentil. — Nesse
caso não se atreverão a destruir o edifício principal do templo, pois com isso também
destruiriam o aparelho.
Resolvi lançar mão do último recurso que me restava. Não tinha outra alternativa.
Meu interlocutor poderia declarar-se disposto a entregar o ativador em troca de certo grau
de impunidade, ou então arriscaria a fuga, a fim de salvar a vida em meio à tormenta que
se iniciava. Se optasse por esta última alternativa, provavelmente seria capaz de prendê-
lo.
Mas havia uma terceira hipótese: ele poderia esperar até o último instante, e destruir
o ativador...
Exibi um sorriso irônico e olhei para o relógio.
— O senhor deve estar contando com as célebres sessenta horas, não é mesmo?
— Isso mesmo, alteza — respondeu em tom tranqüilo.
Aquele homem parecia nem possuir nervos. Apressou-se em acrescentar:
— Se depois de decorridas sessenta e cinco horas, o senhor ainda estiver em
condições de negociar comigo, convencer-me-ei da existência de um aparelho
sobressalente. Nesse caso entregar-lhe-ei o original, a fim de evitar as dificuldades que,
conforme diz, teria de enfrentar. Acho que o objeto vale alguma coisa para o senhor,
motivo por que exijo salvo-conduto para minha pessoa.
— E seus sacerdotes?
— Eles são inocentes. Não tiveram a menor participação no ato.
— Com exceção de um, cuja entrega exijo.
— De acordo — respondeu meu interlocutor depois de ligeira pausa.
Aquele homem evidentemente era frio e calculista. Não tive outra alternativa senão
recusar a proposta. Se realmente possuísse uma duplicata do aparelho, a tal proposta seria
aceitável.
Obriguei-me a sorrir de novo. Olhei para o relógio com uma atenção exagerada. —
Dentro de quinze minutos mandarei abrir fogo. Naturalmente os recintos subterrâneos,
onde o senhor pensa sentir-se relativamente seguro, também serão destruídos. Se antes
disso entrar em contato para declarar-se disposto a devolver o aparelho furtado, deixarei
que se retire livremente, isto é, depois de passar por uma reformulação psíquica
operativa. Dessa forma salvará sua vida. Caso não se manifeste, o senhor será destruído
na fogueira atômica. É só o que tenho a lhe dizer. Só costumo dar uma chance a pessoas
de sua espécie.
Desliguei. Cansado e psiquicamente exausto, olhei para Mercant. O homem
baixinho fez um sinal de aprovação.
— Excelente, sir! Sua oferta tornou-se plausível a partir do momento em que aludiu
à reformulação da psique, a qual sofreu uma modificação patológica. Se tivesse
concordado com sua retirada sem quaisquer condições, o castelo de cartas teria
desmoronado. Aguardemos.
Para mim teve início o período de espera mais angustiante.
Qual seria a atitude do sumo sacerdote?
Será que acabaria por convencer-se de que realmente possuía um aparelho
sobressalente?
Acharia plausível que recuasse diante das dificuldades ligadas à obtenção de mais
um exemplar?
As perguntas amontoaram-se em minha mente. Não havia dúvida de que minha
situação era pior.
Rhodan comunicou que a Drusus, nave capitania da frota, acabara de pousar no
espaçoporto de Torgona. Já o cruzador Togo permanecia no espaço.
Os segundos pareciam transformar-se em eternidades. O sumo sacerdote não deu
sinal de vida.
O rosto estreito de Allan D. Mercant estava pálido. As preocupações pesavam em
sua mente. Depois de algum tempo, aproximou-se:
— Esse Segno Kaata é um homem inteligente. Já compreendo por que fez questão
de executar pessoalmente o furto, ou ao menos supervisionar sua execução. Tem
conhecimento de sua antifaculdade. Uma vez que o senhor, na qualidade de Almirante da
Frota e sobrinho do imperador de então, foi submetido ao processo de ativação celular,
seria perfeitamente possível que tivesse desenvolvido faculdades telepáticas ou outras
capacidades parapsicológicas. Foi por isso que os antis participaram do assalto.
— Compreendo, Mercant.
— O que me admira é que John Marshall afirme ter acordado em virtude de certos
impulsos cerebrais. É impossível que tenha sentido os impulsos dos antis. Provavelmente
outras pessoas, que não possuem essa qualidade, participaram do ato. Assim que o caso
esteja encerrado, cuidarei disso.
— Por precaução conferir-lhe-ei certos poderes — disse, enquanto sentia um acesso
de fraqueza.
— Isso não é necessário, Atlan! O sumo sacerdote tem que tomar sua decisão. Face
a seu grau de inteligência, ele não se deixaria levar a destruir o ativador, sem que
houvesse um motivo para isso. Provavelmente estará disposto a aguardar, a fim de
verificar se o senhor realmente dispõe de outro aparelho. Em caso afirmativo sentir-se-á
ainda mais inseguro em sua concepção já vacilante. A afirmativa da existência de um
exemplar sobressalente não é tão inverossímil assim. A esta hora, estará pesando os prós e
os contras. Penso que, no último instante, fará a exigência de ser libertado
independentemente da lavagem cerebral. Resta saber se dará o devido valor à sua
promessa.
— Será que ele poderia fugir?
Rhodan acompanhara a palestra em silêncio. E ainda sem dizer uma palavra,
apontou para os contingentes de tropas reunidos na área.
— Com esta concentração de forças? Sem dúvida ele nos vê numa tela de televisão.
Além disso, deve saber que o espaço enxameia de naves de todos os tipos. Então
procurará outro caminho.
Também acreditei nisso, mas essa crença foi um erro. Se já possuíssemos maiores
experiências com os antis, teríamos tomado outras precauções.
De forma alguma eu teria assumido o risco que aquela pessoa medonha assumiu dali
a pouco.
7

Quinze minutos passaram-se e nada aconteceu. Segno Kaata não entrou em contato
conosco. Comecei a acreditar que mesmo um homem como o chefe do Serviço de Defesa
Solar era capaz de enganar-se.
Há alguns minutos esquivava-se de meus olhares indagadores. Mercant parecia
saber que excepcionalmente cometera um erro.
Pensei em aceitar a espera de 65 horas, a fim de apresentar posteriormente ao sumo
sacerdote o meu sósia robotizado. A máquina especial já fora chamada de volta.
Estava nas proximidades do lugar em que nos encontrávamos.
Não havia dúvida de que poderíamos enganar Kaata com isso. Mas o que
aconteceria comigo durante as cinco horas em que o prazo fatal seria excedido? Estava
em condições de viver por sessenta horas, sem apresentar sinais de decadência, muito
embora já estivesse sentindo que as células de meu corpo começavam a rebelar-se.
Não; a oferta do baalol não poderia ser aceita, pois isso representaria meu fim.
Fazia dez minutos que entrara na cabina apertada do jato espacial, ao lado de Perry
Rhodan e o mutante Ivã Goratchim. A nave em forma de disco, de cerca de 35 metros de
diâmetro, pertencia à classe dos modelos mais recentes de fabricação terrana. Podia ser
pilotada e controlada por um só homem. Além disso, havia nela um aparelho capaz de
medir os saltos de transição executados por outras espaçonaves.
Estávamos sós. À nossa frente, achava-se o localizador de vibrações celulares, preso
à mesa de comando em ferradura. Seu chiado agudo provava que o ativador continuava
no templo. A localização goniométrica era impecável.
Os aparelhos de radiofonia estavam ligados. Mantínhamos contato com todos os
postos de comando. As tropas de robôs do computador-regente podiam ser alcançadas
pelo canal 7.
Allan D. Mercant retirara-se há poucos segundos. Ao que parecia, não suportava
mais meu visível desespero.
No momento em que se esgotou o prazo por mim fixado, cinqüenta e quatro horas e
onze minutos se tinham passado desde o momento do furto. Ainda dispunha de pouco
menos de oito horas. Era um prazo angustioso que quase me enlouqueceu.
Havíamos localizado o ladrão e o aparelho num excelente trabalho de investigação.
Mas daí para frente, éramos relativamente impotentes. O que me adiantaria atomizar o
templo? O ativador celular não resistiria à tormenta atômica.
Os mutantes, nos quais depositara minha confiança, estavam condenados à
inatividade. Os antis, com o sumo sacerdote à frente, podiam exultar numa sensação de
triunfo.
Era claro que Segno Kaata sabia perfeitamente que eu estava com as mãos atadas. Já
tivera de confessar um pequeno ponto fraco. A esta hora, aguardaria calmamente as
medidas que seriam tomadas por mim.
Se hesitasse, teria certeza de que não possuía nenhum aparelho sobressalente.
— Está na hora — disse Rhodan em tom de desânimo. Fitava as grandes telas, que
exibiam com toda nitidez os remanescentes dos edifícios do templo.
— Sugiro que, ainda durante o bombardeio, as tropas de robôs iniciem o assalto.
Talvez consigam prender o sacerdote.
Já brincara com a idéia de desistir do bombardeio e iniciar um ataque de robôs.
Acontece que o sacerdote, que sem dúvida era um homem inteligente, veria nisso uma
prova de que não estava disposto a arriscar a destruição do aparelho. As medidas mais
simples tinham de ser omitidas já que, ao que tudo indicava, o cérebro desse homem
funcionava impecavelmente.
Decidi assumir o único risco. Dali a alguns segundos, dei ordem de abrir fogo. Os
canhões de impulsos dos tanques alinhados à frente do templo voltaram a trovejar.
Explicara minuciosamente quais seriam os alvos. Por enquanto pretendíamos poupar
o grande edifício central.
Rhodan ativou as máquinas do jato espacial. Não dei a menor atenção ao uivo dos
conversores de energia. O campo antigravitacional absorvia a força de gravitação do
planeta a que estávamos expostos. Um ligeiro empuxo dos bocais inferiores fez com que
subíssemos rapidamente. De cima tínhamos uma melhor visão de conjunto.
Rhodan parou a mil e cem metros de altura. Próximo a nós, rugia a tormenta
atômica. Os edifícios entravam em incandescência e desmoronavam. Vários tanques
abriram fogo contínuo contra as instalações subterrâneas, dirigindo para baixo os raios de
impulsos ofuscantes e quentes.
Profundos desfiladeiros surgiram no chão. Penetrando cada vez mais
profundamente, os fluxos energéticos atingiram os alicerces e os fizeram desmoronar.
Sentado diante do videofone, assumi uma postura tensa. Mantinha contato direto
com o carro de rádio da tropa.
— O sacerdote ainda não chamou — anunciou o oficial de plantão.
Confirmei com um gesto. Não adiantaria perguntar sobre o por quê.
Embaixo de nós, os canhões de impulsos dos blindados abriam suas trajetórias
luminosas. Vistas de cima, formavam um anel cintilante, que numa área extensa
transformava a noite em dia.
— A Drusus daria conta disso num segundo — disse o mutante Goratchim.
Todos permaneceram calados. Sabíamos que não poderíamos utilizar armas pesadas.
Os radiadores portáteis dos soldados teriam produzido o mesmo efeito, mas tal efeito
demonstrativo seria menor.
Tudo dependia de simularmos um fato inexistente. Os ocupantes do templo deviam
ser levados a acreditar que, para mim, a perda da versão original do ativador não assumia
maior importância.
Três minutos depois do momento em que mandara abrir fogo, a gigantesca área
onde fora levantado o templo parecia um vulcão em erupção. O edifício principal, que até
então escapara ao bombardeio, estava balançando. Pedaços de argamassa desprendiam-se
da extremidade superior pontuda da construção esférica. Largas fendas abriam-se nas
cornijas. O desmoronamento do edifício era apenas uma questão de minutos.
O videofone chamou. Era o oficial que comandava o posto móvel de localização.
— Constatamos a presença de emanações energéticas, sir! No interior do templo,
devem ter sido ligadas potentes máquinas de fusão de elevado desempenho energético, ou
então o bombardeio fez com que alguns reatores nucleares se descontrolassem. As
indicações de nossos aparelhos são perfeitas. Alguma coisa aconteceu por lá.
De repente, Rhodan inclinou-se para a frente. O chiado do medidor de vibrações
tornara-se irregular. O oscilograma exibido na tela começou a modificar-se.
— Cuidado! — gritou Rhodan. — A localização do ativador está sendo modificada.
O sacerdote ainda não chamou, Atlan?
Antes que Rhodan concluísse, a extremidade superior do edifício, que ainda
continuava de pé, modificou-se. Abriu-se e dela saiu um objeto pequeno, do formato de
um pingo de água, que atravessou a luminosidade produzida pelos blindados e
desapareceu na escuridão.
Tomados de surpresa, seguimos o fenômeno luminoso com os olhos. Goratchim foi
o único a agir imediatamente. Com um movimento da mão, ligou o hiperlocalizador
inteiramente automatizado, girou-o na direção aproximada da área a ser rastreada e
empurrou o botão vermelho.
Dali a alguns segundos, a nave, que acabara de decolar, apareceu na tela. O pequeno
veículo espacial, que não media mais de quinze metros de comprimento, subia
verticalmente para o espaço, onde mais de mil naves esperavam o momento em que se
verificasse a tentativa de fuga.
— Será que esse sujeito ficou louco? — gritou Rhodan fora de si. — Vejam. Como
se depreende das indicações do goniômetro, o ativador encontra-se a bordo da nave. Pelo
amor de Deus, Atlan, transmita imediatamente uma ordem a todas as naves robotizadas
para que deixem passar o fugitivo.
No mesmo instante, os alto-falantes pareciam estourar. Os plantonistas das
numerosas estações de observação comunicavam-nos aquilo que acabáramos de ver.
Enquanto eu entrava em contato com o regente para ordenar que, em hipótese
alguma, ninguém deveria abrir fogo contra o veículo espacial, cuja rota e posição
deveriam ser registradas constantemente, Rhodan deu partida no jato espacial.
A nave de tipo supermoderno possuía a capacidade de aceleração dos cruzadores da
classe Estado. Rhodan compreendera imediatamente que nós mesmos teríamos de iniciar
a perseguição.
A Drusus e a Califórnia estavam estacionadas no espaçoporto de Torgona. A Togo
encontrava-se no espaço, mas longe do sistema. De qualquer maneira, seria insensato
mandar que as grandes naves fizessem a caçada. O sumo sacerdote ainda levaria certa
vantagem, pois voava de posse do ativador!
Uma luminosidade branco-avermelhada surgiu nas telas de observação externa.
Tratava-se das massas de ar incandescente produzidas pela forte compressão, resultante
da partida precipitada.
Mal e mal ouvi o trovejar dos superpotentes propulsores. Instantes depois atingimos
o espaço livre. Dali a mais alguns segundos saímos da sombra projetada pela face noturna
de Árcon II, penetrando na luz irradiada pelo grande sol de Árcon. Bem à nossa frente, a
mais de três milhões de quilômetros de distância, a nave em forma de pingo d’água
percorria o espaço.
Nosso dispositivo de localização energética reagiu prontamente aos impulsos
emitidos pelos propulsores da nave fugitiva, o que nos permitiu continuar em sua pista.
Rhodan levou à boca o microfone do telecomunicador. Enquanto abaixo dos nossos
assentos, as máquinas do jato espacial, ativadas à potência máxima, uivavam fortemente,
fazendo com que o indicador do neutralizador de pressão oscilasse junto à marca
vermelha de advertência, Rhodan chamava as três naves terranas:
— Rhodan chamando a formação. A Drusus e a Califórnia decolarão imediatamente.
Procurem captar nossos sinais goniométricos. É de supor que o fugitivo inicie a transição
assim que atingir a velocidade de salto, a fim de assegurar a fuga. Mantemo-nos em sua
pista por meio do rastreador estrutural. Pouco importa para onde vá. Provavelmente o
sacerdote não terá tempo para fazer um cálculo preciso do salto. Transitará ao acaso, para
escapar à zona de perigo.
“— Atenção: as unidades do computador-regente receberam ordem para não abrir
fogo. A situação modificou-se. Enquanto as sessenta horas não tiverem passado, em
hipótese alguma deve-se atirar para destruir a nave. Atlan e Goratchim estão em minha
nave. Procuraremos alcançar o fugitivo. Ainda não sei o que acontecerá depois disso.”
Os comandantes das unidades terranas confirmaram o recebimento da mensagem.
No mesmo instante, meu receptor captou um chamado do centro de computação. As
unidades de robôs haviam suspenso o ataque já iniciado.
Dali a pouco, Allan D. Mercant chamou. Utilizou o rádio instalado nos veículos que
se encontravam nas proximidades do templo.
— Mercant falando. Os robôs de guerra tomaram de assalto os restos do templo, em
cujo interior encontraram numerosos sacerdotes. Todos se haviam reunido no edifício
principal, que continuava de pé. É provável que o sumo sacerdote tenha fugido sozinho,
muito embora não tenhamos ouvido nenhuma declaração nesse sentido. As prisões estão
sendo efetuadas. Pergunta: o ativador está a bordo da nave?
— Sem dúvida. Neste instante estou captando os primeiros sinais goniométricos. A
nave de Kaata não é muito veloz. Também está acelerando à razão de quinhentos
quilômetros ao quadrado por segundo. Estou ligando a injeção da massa de apoio. Daqui
a três minutos alcançarei a velocidade da luz. O que acha do procedimento do sumo
sacerdote, Mercant?
Rhodan baixou o microfone. Quando o chefe do Serviço de Defesa voltou a falar, a
transmissão de imagem também estava funcionando. Seu rosto apareceu na tela do
hipercomunicador, que realizava a transmissão instantânea, à velocidade superior à da
luz.
— Sob o ponto de vista psicológico, sua conduta é interessante, sir. Age de forma
inesperada. Qualquer homem ou arcônida teria tentado conseguir salvo-conduto em troca
da devolução do produto do furto. O sumo sacerdote preferiu agir de outra forma, fato
que permite certas conclusões.
— Deixe para lá — interrompeu Rhodan. — Estes comentários não nos adiantam
muito. Ficaremos grudados nos calcanhares do homem. O certo é que o ativador
encontra-se em seu poder. Uma vez que sabe que Atlan teme as dificuldades ligadas à
obtenção de outro exemplar, calculou suas chances. Que diabo! Não deveríamos ter
aludido a isso.
— Se não o fizessem, como poderiam ter fundamentado o pedido de devolução do
aparelho?
— Seria simples. Poderíamos ter invocado o direito da vítima do furto.
— Nesse caso Kaata teria dado ainda menos atenção à exigência.
Rhodan desligou. Um brilho zangado surgiu em seus olhos cinzentos. Parecia
desmaiado no assento do co-piloto. Ivã Goratchim ocupara o lugar do radioperador de
bordo. As duas cabeças capazes de pensar de forma autônoma habilitavam o mutante bem
treinado a desempenhar duas funções ao mesmo tempo. E como piloto era inigualável.
Os propulsores de impulsos estavam funcionando a plena potência. Quando
atingimos 75 por cento da velocidade da luz, Rhodan injetou a massa de apoio. O rugido
da máquina tornou-se ainda mais forte e profundo.
Aproximávamo-nos muito rapidamente. Porém a essa hora, o intervalo de sete
minutos entre a decolagem do sumo sacerdote e a nossa partida tornava-se perceptível de
forma bastante agradável.
Rhodan fazia seus cálculos. Fitava ininterruptamente o ponto verde que representava
o eco do hiperlocalizador, corrigindo a rota de acordo com o mesmo. De repente disse:
— Já nos aproximamos à distância de tiro, mas se abrirmos fogo agora, aquela casca
de nozes arrebentará que nem um ovo de galinha pisado por um elefante.
Espantei a apatia que ameaçava apoderar-se de mim. Com os olhos ardentes fitei a
imagem do eco. Já nos aproximáramos o suficiente para que os contornos da nave se
destacassem na tela.
— Como pretende prendê-lo? — perguntei em voz baixa. — Esta nave não dispõe
de raios de tração.
Rhodan não respondeu. Ligou o rastreador estrutural e o acoplou ao dispositivo
automático de hipersalto. Tratava-se de um mecanismo recém-criado, que permitia a
perseguição pelo paraespaço, sem obrigar o perseguidor a esperar que a nave fugitiva
iniciasse a transição.
— Ele saltará antes que nos aproximemos. Já atingiu a marca dos cinco por cento
abaixo da velocidade da luz. Se injetarmos toda a massa de apoio disponível, poderemos
acelerar mais um pouco, mas isso não representaria qualquer aumento considerável. Não
me arriscarei a dar um tiro bem dirigido tão perto da barreira da luz. E o tiro terá de ser
bem dirigido, a não ser que queiramos esfacelar a nave. Apenas pretendo atingir a sala de
máquinas situada na popa. Depois disso, veremos se o anti tem amor à vida.
O anti! A palavra me causou um calafrio.
A cabeça esquerda de Goratchim virou-se em nossa direção. Ivã disse com uma
calma estranha:
— Atenção! Ultralocalização. Neste momento está iniciando a transição. Estamos
captando os primeiros hiperimpulsos.
Contorci-me na minha poltrona. Rhodan voltou a controlar o dispositivo automático
sincronizado que, no momento da transição, faria o mesmo salto da outra nave, com base
nas medições energéticas. Todas as naves terranas seriam dotadas desse dispositivo, já
que as perseguições pelo paraespaço eram bastante freqüentes.
O funcionamento do dispositivo automático sincronizado só se tornava perfeito, se a
transição da nave perseguida não era superior a dez anos-luz. Dali em diante, os dados
passavam a ser pouco precisos.
De repente ouvimos um estalo no rastreador estrutural. O anti desaparecera do
espaço normal.
Nossa transição foi realizada com um intervalo de 0,3 segundos. Foi o tempo que o
dispositivo automático positronizado gastou em calcular os ecos energéticos por ele
localizados, confrontá-los com a massa da outra nave e determinar os dados de nosso
salto.
Foram apenas 0,3 segundos, mas estes me pareceram uma eternidade. Seguiu-se o
choque da desmaterialização. Foi breve e pouco doloroso, tornando-se facilmente
suportável, o que constituía um sinal de que a transição do anti não o levara a grande
distância.
Os contornos do corpo de Rhodan desmancharam-se. Dissolvemo-nos e, por um
instante, transformamo-nos numa componente energética do espaço de cinco dimensões,
no qual um corpo da quarta dimensão não pode manter a estabilidade de sua
configuração.
A última coisa ouvida por mim foi a exclamação de Goratchim. Não cheguei a
compreender a mensagem que ele ainda pretendia transmitir.
8

Há dez mil anos da contagem de tempo terrana, quando tomaram a decisão de ativar
meu cérebro, a fim de propiciar o trabalho útil dos centros ociosos do mesmo, obtive, no
curso do respectivo programa, uma memória fotográfica. Jamais me esquecia de qualquer
coisa que tivesse visto ou experimentado.
Conhecia o sol que aparecia à minha frente. Era uma pequena estrela amarela, igual
a qualquer outro. Quase chegava a ser um sol anão e possuía um único planeta.
Tal planeta era enorme e, em sua atmosfera, imperava o metano. Assim sendo,
tornava-se inabitável para os seres que respiram oxigênio. Nem mesmo na época de
apogeu do Império, chegamos a instalar por lá uma base da frota.
O pequeno sol situava-se em ponto um tanto afastado do centro do grupo estelar. No
entanto, a estrela mais próxima ficava a pouco menos de 0,5 anos-luz. No interior do
grupo estelar, as transições acarretavam muitas dificuldades. Nos primórdios da
tecnologia do vôo à velocidade superior à da luz, houvera numerosos acidentes graves.
A estrela-anã figurava nos catálogos arcônidas com o nome de Gela. Como de
costume, seu planeta único foi designado pelo nome de Gelal.
Uma vez realizada a manobra de imersão e verificada a rematerialização,
procuramos imediatamente localizar o fugitivo. Enquanto eu ainda me sentia um tanto
nervoso, Goratchim avisou ter conseguido localizar o pequeno veículo espacial.
Saíramos do hiperespaço a pouco de meio milhão de quilômetros do barco do
fugitivo. Mas ao contrário deste, conserváramos a velocidade do salto, que correspondia
aproximadamente a 98,76 da velocidade da luz.
O veículo do anti não era de construção arcônida. Seu formato exterior levava a essa
conclusão. Os cientistas de meu venerável povo sempre haviam construído os veículos
espaciais em formato esférico.
Concluía-se que havia acentuadas diferenças entre as duas naves, fato que, no caso,
se revelava através da diferença de velocidade, que, no momento, se tornou bem
perceptível.
O anti desenvolvia apenas metade da velocidade da luz. Uma vez realizada a
localização, o goniômetro especialmente ajustado também voltou a entrar em
funcionamento. Meu ativador continuava a bordo do pequeno veículo espacial.
Rhodan resolveu jogar tudo, numa só carta. Espantei-me com minha indiferença.
Meus sentidos pareciam embotados. Nem mesmo a idéia do fim próximo conseguia
abalar minha mente. Demorei algum tempo para compreender que todas as células de
meu organismo já estavam bastante afetadas.
Sentia-me tão exausto e abatido que tive de fazer um tremendo esforço ao olhar para
o relógio. Cinqüenta e seis horas e cinqüenta e oito minutos, ou seja, quase cinqüenta e
sete horas já se haviam passado desde o momento do furto.
O tempo de que dispunha estava chegando ao fim. Meu interesse pelos
acontecimentos apagara-se quase por completo, embora, antes da transição, ainda me
mantivesse em plena atividade.
Um impulso débil de meu cérebro adicional informou-me de que isso tinha sua
causa na carga dupla, representada pela desmaterialização e pela subseqüente
rematerialização. Face a meu estado de saúde, essa tortura representara um veneno para
os grupos celulares gravemente afetados.
Fitei minhas mãos. A pele já começava a enrugar-se. Nos pulsos apareciam grandes
dobras e rugas. Tive a intenção de rir, mas não consegui emitir nenhum som. Apenas
cheguei a imaginar num recanto obscuro do cérebro que a temível decadência estava
ocorrendo mais cedo do que se esperava.
O vulto gigantesco de Goratchim surgiu à minha frente. Lancei um olhar indiferente
para as duas cabeças.
Por que não me deixavam em paz? Rhodan disse alguma coisa que não entendi
muito bem. Apenas percebi que sua voz era áspera e insistente.
Goratchim tomou impulso com a mão, como se quisesse arremessar uma pedra.
Senti uma dor aguda, que logo passou. Fitei a parte visível da grossa agulha que o
mutante me introduzira na musculatura do tórax. Ah, sim, antes disso abrira o uniforme.
Senti a pressão do líquido injetado. Por que Goratchim teria usado esse método
antiquado? Não apreciava as picadas de agulhas.
Preferi não protestar. Era indiferente que me picasse ou usasse as modernas seringas
pressurizadas.
Olhei para seu polegar, que continuava a empurrar o embolo da seringa. O líquido
desapareceu no interior de meu corpo. Quando só restava pequena quantidade do mesmo,
senti náuseas. A sensação tornou-se tão forte que perdi os sentidos.
Quando despertei, tive a impressão de que seria capaz de arrancar árvores. Ergui-me
abruptamente na poltrona. Já não me lembrava exatamente do que acontecera, mas o
estado de inconsciência só poderia ter durado alguns segundos.
— O que houve? — perguntei em tom mais áspero do que pretendia.
Em atitude agressiva, olhei em torno. Estava um tanto desconfiado e quase chegava
a sentir-me ofendido. Tive a impressão de que desempenhava um papel ridículo.
As duas cabeças de Goratchim sorriam em plena harmonia. Piscavam para mim.
Rhodan concentrou-se sobre a tela do rastreador, na qual se via nitidamente a imagem da
outra nave.
— Não faça perguntas — disse em tom contrariado. — Você está gasto. Ivã aplicou-
lhe uma dose reforçada de parastimulim. Espero que ainda agüente algumas horas.
Permita-me uma pergunta. Você sabe atirar, arcônida?
Entendi o significado irônico de sua pergunta.
— Sei atirar muito melhor do que você pensa. Nunca errei o alvo.
— O.K. Era o que eu queria ouvir. Estou ocupado com os controles da nave. O
barco do fugitivo está a menos de quatro mil quilômetros. Numa batalha espacial, esta
distância quase chega a ser ridícula. Na situação em que nos encontramos, porém, tal
distância torna-se considerável, já que você só poderá atingir a popa de raspão. Dispomos
mais ou menos de dois minutos. Depois disso atingirá uma velocidade que lhe permitirá
realizar outra transição, o que talvez lhe permitisse escapar. Compreendeu o que deve ser
feito?
Nossos olhares cruzaram-se. Seria agora ou nunca. Não tinha tempo a perder.
Liguei o suprimento de energia do canhão de impulsos. Tratava-se de uma peça
rigidamente montada na proa, cujas dimensões eram tamanhas que não faria má figura a
bordo de um cruzador de quinhentos metros de diâmetro.
Todos os jatos espaciais modernos dos terranos estavam equipados com tal arma
energética.
Face ao tipo de montagem, a pontaria tinha de ser feita por meio de movimentos de
toda a nave. Isso trazia vantagens quanto à precisão do tiro. Mas, de outro lado,
acarretava desvantagens táticas. Sabia como atirar com esse canhão.
A tela do visor de alvos iluminou-se.
Apesar da reduzida distância, a imagem não era muito boa. Mal e mal consegui
distinguir a popa da outra nave.
O canhão estava pronto para disparar. A carga catalítica de fusão injetada na câmara
de reação só precisaria do arco luminoso para iniciar o processo de fusão nuclear.
Os campos de compensação do cano da arma apresentavam a marca verde. Poderia
irradiar as energias liberadas numa direção única, sem correr o perigo de que o jato
espacial se transformasse numa bomba atômica.
Rhodan seguiu minhas indicações de correção da rota, a fim de colocar o alvo na
mira. Tratava-se de frações de grau na vertical e na horizontal.
A ponta verde da mira caminhava em direção à popa da outra nave, da qual não
sabíamos que seres a haviam construído. De qualquer maneira não era comparável aos
veículos arcônidas e terranos da mesma ordem de grandeza, embora seus técnicos
tivessem conseguido o milagre de instalar um hiperpropulsor num espaço tão pequeno.
Provavelmente fora por isso que o sumo sacerdote escolhera um veículo espacial
desse tipo. Em compensação, tivera de contentar-se com um desempenho medíocre por
ocasião do salto. Estava firmemente decidido a fazer com que essa circunstância
representasse sua desgraça.
Qualquer produto técnico-científico, seja qual for sua espécie, segue uma série de
leis em sua evolução. Qualquer vantagem evidente e sedutora só podia ser alcançada por
meio de concessões em outras áreas.
A ponta da mira cobriu o alvo. O bocal de popa da outra nave estava na linha de
fogo. Desviei-me mais um pouco, para comprimir o botão de disparo com a maior
cautela, a fim de não provocar qualquer abalo.
Diante do pesado canhão de impulsos, surgiu um anel ofuscante produzido pelas
energias atômicas liberadas. Nossa nave deslocava-se com suficiente rapidez para
comprimir a micromatéria bastante rarefeita do espaço. Foi assim que surgiram os
fenômenos luminosos, muito embora nos encontrássemos no vácuo, que normalmente
não é um meio condutor.
Pudemos acompanhar o raio energético de aproximadamente dez centímetros de
diâmetro a uma distância de cerca de cem metros. Dali em diante, desapareceu
repentinamente, já que a essa distância não havia mais nenhuma concentração de matéria.
Antes que o tiro de radiações, que se deslocava à velocidade da luz, atingisse a nave
que acelerava continuamente, um tempo apavorante passou-se. Quando isso aconteceu,
Goratchim soltou um grito.
Corríamos vertiginosamente em direção à luz irradiada da popa da nave perseguida.
No momento em que Goratchim constatou a presença da descarga energética, vimos a
mancha luminosa.
O minúsculo veículo espacial foi arrancado de sua rota. Só então percebi que Gelal,
o planeta de metano, encontrava-se bem na nossa rota.
Rhodan fez recuar a alavanca do acelerador. De repente, as máquinas passaram a
trabalhar em ponto morto. Em queda livre seguimos o veículo espacial, aparentemente
desgovernado.
— Excelente! — disse Rhodan com um sorriso irônico. — Acho que isso fez o anti
empalidecer um pouco. Veja! Seus jatos direcionais ainda estão funcionando.
Vimos os feixes de impulsos saídos da proa semi-esférica. A luminosidade azulada
aparecia nitidamente em nossa tela.
— Está freando — observou Ivanovitch, o jovem, em tom exaltado.
Rhodan também passou à desaceleração. A velocidade da outra nave diminuía
rapidamente. O anti já não tinha a menor chance de escapar no hiperespaço. Ao que
parecia, o impacto destruíra mecanismos importantíssimos.
Para nosso espanto, o sacerdote realizou uma violenta manobra de frenagem e, ainda
em alta velocidade, entrou numa órbita em torno do grande planeta de metano.
Graças às nossas máquinas superpotentes, conseguimos reduzir em tempo nossa
velocidade. Reunindo todas as energias disponíveis, Rhodan obrigou o jato espacial, que
parecia gemer, a entrar em órbita.
A nave fugitiva já desaparecera atrás da curvatura do planeta. Numa manobra tão
rápida, não poderíamos arriscar um segundo tiro.
Acreditávamos que o anti tivesse escapado, quando vimos um eco anguloso na tela
do rastreador. Compreendemos que o sumo sacerdote estava pousando na maior das três
luas do planeta.
Sua nave precipitou-se com o bocal de popa em chamas sobre o astro sem nome,
que media pouco menos de mil quilômetros de diâmetro, e cuja gravitação era de apenas
0,11 G. Não possuía qualquer envoltório atmosférico. Seu movimento de rotação era
extraordinariamente rápido, já que se completava em cerca de 21 horas.
Mal havíamos localizado a nave, esta desapareceu atrás do horizonte do satélite, que
se aproximava vertiginosamente. Rhodan voltou a forçar nossos propulsores. Com a
desaceleração máxima de 750 quilômetros ao quadrado por segundo, entrou numa ampla
órbita elíptica. Face à nossa velocidade, ainda muito elevada, a força centrífuga era tão
grande que a reduzida gravitação da lua praticamente não apresentava nenhuma
compensação.
Assim vimo-nos obrigados a recorrer aos bocais corretores de rota, a fim de manter-
nos em órbita, até que a velocidade fosse reduzida a ponto de atingir o nível normal.
— Se estiver com sorte, seu plano será bem sucedido — disse Rhodan com uma
calma apavorante. — Se eu fosse ele, saltaria da nave que está caindo, atiraria para longe
o ativador celular, que trairia minha posição, e procuraria um esconderijo bem longe dali.
Calcularia que os perseguidores estão mais interessados no aparelho que em minha
pessoa. Será que é bastante inteligente para raciocinar dessa forma? Não era!
Durante nossa terceira circunvolução em torno da luz, localizamos o sumo
sacerdote. Trazia o ativador junto ao corpo. Portanto, sua descoberta seria inevitável.
Naquele momento tive uma idéia. Virei-me num gesto nervoso.
— É apenas uma suposição — disse apressadamente. — Ele sabe que no momento
em que iniciou a fuga, nós nos encontrávamos no ar com o jato espacial. Será que tem
motivos para supor que, como encetamos imediatamente a fuga, não temos a bordo o
aparelho de localização a que aludi? Não tem meios de saber que o goniômetro estava
montado nesta nave.
Rhodan passou as costas da mão pelo nariz e fitou-me com uma expressão de
dúvida.
— Bem, com esse sujeito não se pode duvidar de nada. Já descobrimos isso por
experiência própria. É provável que não sabia, pois, do contrário, teria jogado fora o
ativador. O.K. Sinto-me satisfeito em saber que resolveu ficar com ele.
Naquele instante vimos uma forte explosão atômica na face noturna do satélite.
Ninguém deixaria de notar a coluna incandescente.
— Foi a nave dele! — disse Rhodan em tom de desânimo. — Caiu! A perda é total.
Será que ainda se encontrava no interior da mesma?
— Está vivo — disseram as duas cabeças ao mesmo tempo. — E está levando
consigo o aparelho. Provavelmente saltou com um planador antigravitacional, depois de
constatar que as avarias da nave eram mais graves do que supusera. Estou captando ecos
bem nítidos, sir. Não. Não prossiga. O anti encontra-se longe do local da queda.
Com um último empuxo do jato direcional de proa Rhodan fez parar o pequeno
veículo espacial.
Seguindo as indicações de Ivã, fomos descendo lentamente em direção à superfície
do satélite. Montanhas nuas, sem qualquer vegetação, surgiram à nossa frente. O anti
devia estar por ali.
Nossos aparelhos de absorção de gravidade regularam-se automaticamente para o
nível de gravitação do satélite. Os jatos especiais eram excelentes mininaves, com as
quais se podia arriscar muita coisa...
Ficamos planando sobre a superfície, até que Ivã informou que o ativador se
imobilizara. Isso significava que, se o aparelho se encontrava junto ao corpo de Kaata, o
antimutante já devia ter atingido a superfície.
Rhodan limitou-se a dar uma risada. O tom áspero da mesma não encerrava
nenhuma cordialidade.
Sem dizer uma palavra, levantei-me e fui ao depósito para procurar um traje espacial
apropriado. Lembrei-me que o mutante de duas cabeças não encontraria um artefato
apropriado a bordo do jato espacial. Parei à sua frente, em atitude pensativa.
— O que vamos fazer com você? Não poderá sair, pois por aqui não há oxigênio.
Goratchim teve uma idéia.
— A bordo desta nave existe um pequeno planador blindado, um veículo versátil,
para ser mais preciso. Eu me acomodarei em seu interior e dar-lhes-ei cobertura, usando o
canhão energético leve.
No momento em que a nave parou sobre um extenso complexo de montanhas,
fortemente entrecortado, Rhodan já havia concordado com o mutante. A superfície da lua
oferecia um quadro desolador. No entanto, as temperaturas ali reinantes pareciam ser
suportáveis. O sol pequeno e débil ficava a grande distância.
Enfiei-me num traje espacial de fabricação terrana. Era dotado de um dispositivo
antigravitacional, que neutralizava a força da gravidade. Esse aparelho não permitia
propriamente um vôo, mas possibilitava saltos a grande distância.
Arranjei um traje destinado a Rhodan. Goratchim trouxe duas grandes armas de
impulsos. Num mundo do tamanho de Árcon seriam muito pesadas para serem usadas,
mas nesta lua de pequenas dimensões poderiam ser facilmente manipuladas.
Controlei os pequenos projetores destinados à geração de um campo defensivo
individual. Haviam sido montados perto da mochila, destinada ao armazenamento do
oxigênio.
Os microrreatores funcionavam a plena potência. Não geravam mais de oitenta
quilowatts. Em virtude disso, os campos defensivos individuais também não eram muito
potentes. Mas, de qualquer maneira, seriam capazes de repelir tiros energéticos de
intensidade normal.
Goratchim comunicou que a intensidade dos sinais goniométricos chegara ao
máximo. Isso significava que nos encontrávamos exatamente sobre o lugar em que o
sacerdote saltara. Provavelmente ficaria muito surpreso ao notar que o descobríramos tão
depressa.
Se não fora privado de seu preciso raciocínio, deveria saber que, contra todas as
expectativas, trazíamos a bordo o goniômetro especialmente ajustado.
Rhodan preparou-se para pousar. Fez a nave descer na vertical e teve a cautela de
ativar os campos defensivos.
Pousamos suavemente, sem o menor solavanco. Os propulsores pararam. O reator
de fusão destinado ao suprimento energético dos diversos aparelhos permaneceu
funcionando.
Rhodan lançou um olhar sugestivo para meu relógio. Li a indicação do tempo
decorrido a partir do furto. Cinqüenta e oito horas e dezoito minutos já se haviam
passado.
— Ainda temos uma hora e quarenta e cinco minutos — disse com uma alegria
fingida. — Vocês não acham estranho que a gente se prenda tanto à vida?
Rhodan colocou o traje espacial. Goratchim desapareceu no apertado compartimento
de carga, situado atrás da cabina.
A luz ofuscante do sol amarelo entrava livremente. Nos lugares de sombra reinava a
noite escura. Acabáramos de pousar num astro inóspito, hostil à vida.
Esperamos até que Goratchim anunciasse que o veículo versátil estava pronto para
partir. Rhodan abriu a comporta e deixou que o mutante saísse. No momento em que
vimos o veículo achatado, desligamos o reator.
Quando já nos encontrávamos do lado de fora e a escotilha da comporta se fechou,
Rhodan perguntou:
— Onde está escondido o setor lógico de sua mente, Atlan?
Fitei o terrano com uma expressão de perplexidade. E ele mesmo acrescentou em
tom seco:
— Esquecemo-nos de enviar uma hipermensagem à frota que se mantém à espera.
Como poderão encontrar-nos caso surja alguma emergência?
Estas palavras fizeram-me soltar uma praga. Tentei abrir a escotilha da comporta
para reparar a falta, Rhodan disse em tom sarcástico:
— Ninguém é infalível, nem mesmo o anti. Abrigue-se, arcônida.
Num gesto instintivo atirei-me ao solo. A comporta ficava a uns vinte metros.
Um raio energético escaldante chiou pouco acima de minha cabeça.
Outros disparos derreteram o chão à minha direita e à minha esquerda. As trajetórias
de tiro desenvolviam-se em ângulo aberto, motivo por que cavavam sulcos no solo
arenoso.
Dali em diante limitamo-nos a correr, até alcançarmos a rocha mais próxima. O anti
isolara-nos da nave, e nós nos esquecêramos de transmitir uma mensagem de rádio.
Simplesmente esquecêramos, como se esta fosse a primeira vez que viajávamos pelo
espaço.
Era horrível!
9

Mesmo numa comunicação pelo rádio a voz sonora do sumo sacerdote era
inconfundível. Parecia mais grave, ao sair dos nossos alto-falantes de capacete.
Ainda me sentia disposto e ávido de ação. Naquele momento, o parastimulim
injetado por Goratchim atingia a plenitude do seu efeito.
Sob o ponto de vista tático, a situação era insustentável. Por ocasião do primeiro
ataque, o anti provara que realmente as inteligências de sua espécie possuem os melhores
campos defensivos da Galáxia.
No momento em que Segno Kaata mudou de posição, consegui um impacto direto
com minha arma de impulsos superpotente.
O sacerdote fora atirado violentamente para o lado, mas isso resultará
exclusivamente da força de impacto de seis mil quilogramas por metro quadrado. O
campo energético se conservara impecavelmente, refletindo as energias atômicas.
Rhodan também atirara, transformando o solo em torno do sacerdote caído num lago
de lava incandescente. Apesar disso Kaata conseguira escapar. Ficamos perplexos.
Depois de algum tempo, Goratchim encontrou a solução do enigma. Afirmou que a
faculdade do anti consistia, entre outras, na capacidade de fortalecer e estabilizar um
campo energético por meio de impulsos catalíticos individuais.
Era uma explicação complicada, mas parecia aceitável. Afinal, sabíamos
perfeitamente que o gerador de campo defensivo, usado por Segno Kaata, não era nem
um pouco melhor que os modelos usados por nós.
Estávamos deitados, atirando sem qualquer efeito. Enquanto isso, o tempo ia
passando. De repente esta concepção, que era a mais relativista de todas, assumira um
caráter muito realista para mim. Envolvia o ser ou o não ser.
Depois da última troca de disparos energéticos, subitamente ouvimos a voz de
Kaata. Provavelmente realizara a determinação goniométrica de nossas comunicações
radiofônicas. Utilizou a mesma freqüência.
Detive a respiração e fiz uma tentativa desesperada de encontrar na voz daquele
homem a solução de meu problema.
— Suponho que Vossa Alteza se tenha aventurado pessoalmente a esta lua —
começou o sumo sacerdote em tom objetivo — porque não possui qualquer duplicata do
ativador. Peço-lhe, então, encarecidamente que desista de suas pretensões absurdas. Sou
invulnerável.
Lancei um olhar para Rhodan, que se encontrava deitado atrás de um grande bloco
de pedra, a uns trinta metros de distância. No momento não se via o menor sinal de Segno
Kaata. Ao que parecia, abrigara-se numa depressão do solo.
Rhodan fez um sinal insistente. Vi que sacudia a cabeça, sob a semi-esfera do
capacete pressurizado.
Olhei para o relógio. Dispunha de pouco menos de uma hora. Por quanto tempo
duraria o efeito do parastimulim? Não havia dúvida de que esse medicamento seria
incapaz de evitar a decadência total de meu organismo.
Tomei a decisão de falar em tom firme e seguro. Comprimi lentamente a tecla de
transmissão.
— Atlan chamando Segno Kaata — disse. — O senhor encontra-se cercado. Atrás
do seu abrigo está aparecendo um carro de combate fortemente armado, cujos campos
defensivos nunca poderão ser rompidos por sua arma. Desista!
Sua risada me fez estremecer. Comecei a ficar nervoso. Não conseguia reprimir a
lembrança dos minutos que se escoavam, por mais que me esforçasse.
Percebi que estava perdendo o auto-controle. Quem dera que esse demônio não
tivesse dado essa risada de superioridade!
— Vossa Alteza acha que minha arma é muito fraca? Trata-se de uma versão
especial. Mesmo um impacto direto não consegue desmoronar meu campo defensivo.
Lembre-se: ainda lhe restam cinqüenta e oito minutos para aceitar minhas propostas.
Surpreso, contive a respiração. Lancei um olhar apavorado para o mostrador de meu
relógio.
Kaata estava muito bem informado. Cometera um engano de apenas três minutos,
pois o prazo de que dispunha terminaria dentro de cinqüenta e cinco minutos. Tive
vontade de gritar. O instinto de auto-conservação ameaçava tomar conta de minha mente.
A capacidade de raciocínio estava diminuindo. Apesar disso consegui controlar-me mais
uma vez.
— O senhor já conhece minha proposta — respondi. — Entregue o aparelho, e
deixarei que siga seu caminho, depois de submetê-lo a uma lavagem cerebral.
Voltou a rir. Bem ao longe, apareceu o blindado dirigido por Goratchim. Estava
equipado com um desintegrador, que agia por meio da destruição da estrutura molecular
da matéria. Com o impacto dessa arma, qualquer tipo de matéria dissolvia-se em pó.
Até parecia que o sumo sacerdote sabia ler os pensamentos. Voltou a falar:
— Não podemos cogitar de uma lavagem cerebral, alteza. Exijo livre retirada e a
entrega de sua espaçonave. Prometo que, pouco antes da decolagem, atirarei o aparelho
ao chão, onde Vossa Alteza o encontrará. Evidentemente não estarei disposto a entregar o
ativador, antes de entrar na nave.
Todo o meu ser estava ansioso para aceitar a proposta. Quase cheguei a levantar-me.
Rhodan fez um sinal. Repentinamente interveio na palestra radiofônica.
— Aqui fala Perry Rhodan, administrador do Império Solar — disse a título de
apresentação.
Sua voz parecia fria e ameaçadora.
— Rejeitamos sua proposta, Kaata.
Peço-lhe encarecidamente que desista de aplicar seus truques em minha presença. O
senhor foi descoberto e será destruído.
— Ora, é o bárbaro terrano — disse o sacerdote.
Desta vez foi Rhodan quem riu. Percebi que sabia lidar muito melhor com esse tipo
de gente do que eu. Era a resolução em pessoa. Irradiava um fluido que fazia com que
seus inimigos se conduzissem com cautela. Assim que Rhodan continuou a falar, o sumo
sacerdote também percebeu este fato.
— Dou-lhe mais cinco minutos, Kaata. Se até lá não sair de seu esconderijo com os
braços levantados, conhecerá aquilo que nós, os bárbaros, costumamos chamar de
inferno.
— O senhor está interferindo nos assuntos internos do Império — disse Kaata, em
tom de reprimenda.
— Para mim, o senhor não passa de um criminoso. Vamos logo; saia da toca. Exijo
que o senhor devolva o ativador.
— Venha buscá-lo — gritou o sacerdote. Desta vez sua voz já não parecia tão
tranqüila.
Rhodan não tomou conhecimento das palavras do anti e gritou:
— Ivã, vá mais pela esquerda. Aumente a velocidade. Ele não poderá destruir seus
campos defensivos.
Goratchim respondeu. Era claro que Segno Kaata ouvia e entendia cada palavra da
palestra, ao menos até que Rhodan de repente passasse a falar inglês:
— O.K., preste atenção. Esse sujeito não deve entender o inglês. Suponho que seu
campo defensivo tenha um ponto fraco. Deve haver algo de errado, pois do contrário
poderia aguardar tranqüilamente as medidas que pretendemos tomar. Possivelmente a
alteração estrutural das linhas naturais de força, causada por meios parapsíquicos, corre
algum perigo. Devemos descobrir qual é o ponto fraco. Ele está interessado em apoderar-
se da espaçonave. Se Ivã chegar mais perto, o sacerdote procurará atingir o jato espacial.
Devemos evitar a todo custo que isso aconteça. Mesmo que não consigamos matá-lo, é
provável que não escape incólume à tremenda força de impacto dos potentes raios de
impulso, ao menos por muito tempo. Poderá ferir-se em quedas. Talvez chegue a sofrer
alguma fratura. É claro que ele mesmo conta com essa possibilidade.
“Preste atenção, Ivã. Dificilmente, o campo defensivo reagirá ao seu desintegra-dor.
Por isso você deve atirar contra qualquer coisa que sirva de abrigo ao sacerdote. Destrua
os abrigos, abrindo o campo para nós.
“Atlan: depois que o anti estiver à vista, oriente o fogo de tal maneira que sempre
seja tangido em direção oposta à da nave. Dessa forma evitaremos que abra caminho para
lá. Tudo entendido? O.K., Ivã, pode começar. Você já se aproximou bastante.”
O plano de Rhodan era perfeitamente compreensível. Talvez, dentro de algumas
horas, conseguíssemos enfraquecer Kaata a tal ponto que se visse obrigado a desistir.
Acontecia que não podíamos dispor dessas horas.
O sumo sacerdote compreendera que sua situação se tornara perigosa.
De repente apareceu atrás da rocha que lhe servia de abrigo, e passou a dar saltos em
direção ao jato espacial, que estava a menos de cem metros. A reduzida gravitação da lua
de Gelai representava uma vantagem, mas esta foi neutralizada em parte.
O anti mal conseguia pôr-se de pé depois de cada salto. Não estava acostumado a
essa forma de locomoção.
Rhodan foi o primeiro a atirar. A trajetória do tiro, ultraluminosa e que se deslocava
quase à velocidade da luz, atingiu o sacerdote quando de um salto. Face à ausência do
meio condutor do som — o ar — tudo se passou num silêncio total.
Vi o raio energético de cerca de dois centímetros de diâmetro esbarrar no campo
defensivo do sacerdote, de onde passou a escorrer em cascatas.
O corpo foi arrancado da trajetória com uma força tremenda, arrastado alguns
metros para o lado e atirado contra uma rocha.
Naturalmente, o campo defensivo amortecia o choque, mas por certo alguns abalos
haviam atingido o organismo.
Numa cólera súbita dei vazão a todo meu desespero. Apontei a arma e abri um
tremendo fogo energético contra o sacerdote, que de repente parecia uma estátua cercada
de raios de fogo.
Estava encostado a uma rocha alta e firme, mas não conseguia fazer qualquer
movimento. Os raios energéticos, que o atingiam ininterruptamente e com muita precisão,
o mantinham pregado ao lugar, em virtude da tremenda força de impacto das pesadas
armas de impulsos.
Atirei até que a luz vermelha de advertência se acendesse. A arma energética estava
superaquecida. Rhodan pegou um de seus radiadores portáteis, que evidentemente
possuía um desempenho energético muito mais reduzido.
Atirei a enorme arma de impulsos para a sombra mais próxima do meu abrigo, onde
o esfriamento seria mais rápido, face à intensa radiação térmica.
Quando começamos a disparar com as armas portáteis, Kaata conseguiu desprender-
se da rocha. Cambaleando e caindo constantemente, retirou-se para trás de uma pequena
encosta, onde desapareceu. Rhodan soltou uma gargalhada. Kaata devia ter ouvido, pois
por certo não desligara seu rádio.
— Ivã, você o vê? Deve estar do seu lado.
— Está na minha alça de mira, sir.
— Muito bem. Fogo! Pulverize a ponta da rocha.
Os disparos do canhão do blindado eram invisíveis. Em compensação, seus efeitos
eram por demais perceptíveis. De repente a rocha estável dissolveu-se. Começou a
desagregar-se e, de repente, desmoronou de vez.
Segno Kaata voltou a tornar-se visível. Estava deitado sobre a montanha de pó
finíssimo que pouco antes fora um bloco de granito. No entanto, o raio de desintegração
não destruíra o campo defensivo individual de Segno.
Rhodan voltou a disparar imediatamente, enquanto gritava para nós:
— Não esmoreçam. Mantenham-no sob fogo.
Dali a alguns segundos alcançamos um êxito inesperado. Mais uma vez, o sumo
sacerdote foi soprado por cima do terreno. Seus tiros perdiam-se em vão.
Voltara a segurar minha arma pesada.
A luz vermelha apagara-se, de maneira que o radiador estava em condições de ser
usado.
Apontei para um bloco de pedra esférico, de dois metros de diâmetro que, segundo
parecia, Segno procurava atingir. Sob a ação do fogo contínuo, a rocha entrou em
incandescência e explodiu.
Aconteceu alguma coisa sobre a qual apenas poderia fazer conjeturas, já que não
vira nada. O microfone de capacete transmitiu um estridente grito de dor. Com a mão
direita, Kaata segurava o braço esquerdo, que parecia pender, molemente, junto ao corpo.
Esqueci de atirar. Olhei tensamente para o sacerdote, que naquele momento estava
desaparecendo numa profunda depressão do solo.
— O que foi isso? — perguntei em tom exaltado. — O que houve com o braço dele?
Você viu? Será que um dos nossos tiros conseguiu romper o campo defensivo?
— Não — respondeu Rhodan em tom hesitante. — Nunca. Isso aconteceu no
momento em que a rocha explodiu. Pedaços grandes voaram a uma velocidade
apreciável.
— Será que ele foi ferido com isso? Rhodan não respondeu. Ao que parecia estava
refletindo. Subitamente, o sumo sacerdote voltou a chamar:
— Se Vossa Alteza não aceitar imediatamente o acordo destruirei seu ativador.
Depende de Vossa Alteza!
— Entregue o aparelho e permitiremos que o senhor se retire — disse Rhodan em
tom frio.
Kaata usou uma expressão ofensiva. Rhodan prosseguiu:
— Se quiser negociar, fale comigo. Entendido? Mandarei tirá-lo da toca; não tenha a
menor dúvida. Apresento-lhe minha última oferta. Coloque o ativador sobre a rocha, em
lugar bem visível, e entregue-se. Garanto sua segurança pessoal. Largá-lo-ei em qualquer
planeta que lhe convenha.
— Independentemente de qualquer intervenção no cérebro?
— Independentemente de qualquer intervenção no cérebro. Reflita sobre minha
proposta. Saberei cumprir minha palavra.
— O senhor não tem poder de decisão, terrano.
— Tem, sim — intervim apressadamente.
Naquela hora pouco importava que aquele homem continuasse vivo ou não.
Precisava recuperar o aparelho. Ainda dispunha de trinta e um minutos.
Dali em diante, o anti teve certeza de que não possuía nenhum exemplar
sobressalente. Momentos depois, Rhodan preferiu não negar mais o fato.
— Vossa Alteza está prestes a morrer — disse o sumo sacerdote, dirigindo-se a mim.
— Eu sabia que não existia outro exemplar do aparelho. As informações que me foram
fornecidas eram dignas de confiança. Exijo a livre retirada e a aceitação de minhas
sugestões, quando da programação do regente.
— Já é tarde para dizer uma coisa dessas — observou Rhodan. — Sem o ativador,
Atlan morrerá. Se isso acontecer por sua culpa, Kaata, eu me vingarei. O senhor nunca
conseguirá entrar na nave. Mesmo que Atlan seja colocado fora de ação, o senhor ainda
terá de enfrentar a mim e ao meu mutante. E nós o perseguiremos por toda esta lua.
Reconheci o modelo de seu traje espacial. O senhor dispõe de oxigênio apenas para dez
horas. Já os nossos trajes terranos possuem regeneradores muito mais aperfeiçoados.
Poderemos respirar por vinte e quatro horas. O que lhe adiantará oferecer resistência?
Tem alguma coisa a ganhar com a morte de Atlan? Faça o favor de raciocinar. Ofereço-
lhe plena liberdade de movimentos. O que mais pode pedir? De qualquer maneira o
senhor já perdeu.
O anti manteve-se calado por alguns segundos, que aproveitamos para esfriar as
armas. Naquele momento não poderíamos usá-las.
De repente ouvimos a resposta de Kaata:
— Não posso confiar em sua promessa nem na de um moribundo. Prefiro procurar
uma chance real. Minhas possibilidades de derrotá-los são melhores do que os senhores
alegam. Não confio nas promessas de um bárbaro e nem nas de um imperador, que
conquistou o cargo por meios fraudulentos. O senhor morrerá, Atlan!
Sua risada quase me fez enlouquecer. Rhodan arrastou-se até o lugar onde eu estava
e obrigou-me a continuar abrigado. Um tiro disparado pela arma de Kaata fez entrar em
incandescência a rocha acima de minha cabeça. Ainda dispunha de vinte e seis minutos.
Os olhos de Rhodan estavam arregalados de espanto, o que me fez concluir que meu
rosto já sofrerá certas modificações. Provavelmente a pele se tornava enrugada e mole.
Comecei a ser tomado por um cansaço total. Sentia-me como um ancião prestes a
morrer...
Naquele momento conformei-me definitivamente com a idéia de morte. Até
consegui sorrir.
— Será que as coisas já chegaram a este ponto? — perguntei em voz baixa e em
inglês.
Sem dizer uma palavra, Rhodan puxou meu braço esquerdo para junto de seu corpo
e olhou para meu relógio.
— Ainda temos vinte e cinco minutos. Muito bem. Vou fazer alguma coisas. Não;
nada de objeções — disse em voz mais alta. — Segure sua arma, e também a minha, e
faça exatamente aquilo que eu mandar.
Fiz um gesto de resignação. Uma estranha tranqüilidade apossou-se de mim. Estava
pronto para desistir. Provavelmente já não tinha mais forças para quase nada. Se não
fosse o auxílio de Rhodan, há muito tempo estaria perdido. E agora as coisas apenas
iriam demorar mais um pouco, pois o terrano não desistia.
Prestei atenção às suas instruções, que saíram precipitadamente do alto-falante.
— Atenção, Ivã! Saltarei em direção à nave. O anti será encoberto com uma chuva
de fogo. Destrua seu abrigo e aproxime-se cada vez mais. Procure deixá-lo bastante
atrapalhado. Atlan abrirá fogo contínuo contra o anti. O bombardeio não deverá ser
interrompido por um segundo que seja. Entendido?
Goratchim confirmou. Eu disse em tom de desânimo:
— Você pretende usar o armamento pesado da nave, não é? Muito bem.
Provavelmente conseguirá destruir o campo defensivo individual do sacerdote. O que
adiantará isso? O ativador também se volatilizará.
Rhodan interrompeu-me com um gesto. Dali a alguns segundos, o canhão do
veículo blindado começou a disparar. Esperei até que o sumo sacerdote se tornasse visível
atrás da cobertura pulverizada. Comecei a disparar tranqüilamente. A trajetória do tiro
atingiu o ladrão e, mais uma vez, arrastou-o pelo solo acidentado. Se não fosse o campo
defensivo já teria sido despedaçado. No entanto, na situação em que se achava, sempre
encontrava outro abrigo, que tinha de ser pulverizado pelo mutante.
Rhodan aguardou o momento exato. Quando Segno Kaata se viu em meio a um
bombardeio mais cerrado, saiu correndo. Preferiu não dar saltos grandes, que só o teriam
levado para o alto. Sua técnica consistia em aproveitar a gravitação reduzida para dar
gigantescos saltos pouco acima da superfície. Praticamente voava por sobre o terreno
tostado pelo sol. Muitas vezes aterrissava de quatro, mas sempre conseguia manter o
corpo sob controle.
Antes que me desse conta do que estava acontecendo, Rhodan desapareceu sob a
máquina em forma de disco. A escotilha inferior abriu-se.
Dali em diante não soube mais o que Rhodan estava fazendo. Não o vi sair do jato
espacial. O que mais me admirou foi que não decolou com a pequena nave, nem tentou
um ataque com o canhão pesado.
O jato jazia calmamente no mesmo lugar.
O anti encontrara um bom abrigo. Estava deitado numa depressão cercada de
rochas. Até mesmo o desintegrador levaria algum tempo para destruir esse abrigo. Além
disso, minhas duas armas estavam superaquecidas. Suspendi o fogo.
Um olhar para o relógio revelou que ainda me restavam oito minutos. Depois disso,
a decadência orgânica seria extremamente rápida. Não morreria logo. Mas meu corpo
murcharia que nem uma flor, quando exposta subitamente ao calor de um fogão.
Rhodan continuava desaparecido. Ainda faltavam sete minutos! Tive a impressão de
que meus olhos se grudavam no mostrador que continuava a avançar inexoravelmente.
Quase tive a impressão de que estava sonhando, quando de repente ouvi a voz de
Rhodan no alto-falante de capacete.
— Atenção, não atirem. Estou nas costas do anti.
Ergui-me abruptamente. Bem atrás da encosta íngreme que cercava a depressão em
que o criminoso se abrigara, surgiu a figura de Rhodan. Reconheci-o perfeitamente, mas
não compreendi qual era o estranho aparelho que carregava.
Parecia um bastão. Quando Rhodan parecia usá-lo, o aparelho transformou-se num
semicírculo. Um objeto reluzente cortou o espaço e desapareceu na depressão. Ouvi um
grito pavoroso.
Era a voz do anti. Rhodan repetiu o movimento, e o sumo sacerdote voltou a gritar.
Depois do terceiro movimento de Perry, os gritos terminaram num gemido
profundo. A seguir, tudo ficou em silêncio.
O terrano manteve-se imóvel sobre o paredão de pedra. Levantei-me lentamente e
cambaleei em sua direção. Imaginava que o anti estivesse morto. Com isso, seu campo
defensivo devia ter-se desligado automaticamente.
O blindado de Goratchim aproximou-se velozmente. Parou junto à depressão.
Rhodan desaparecera do meu campo de visão. Quando apareceu de novo, dava largos
saltos em minha direção. Sua mão segurava um objeto do tamanho de um ovo. Era o
ativador celular.
Atingiu-me, atirou-me ao chão e comprimiu o aparelho fortemente contra meu peito.

***

Parece que fiquei inconsciente por algum tempo. Ao despertar, senti os impulsos
revitalizantes do meu ativador. Já podia raciocinar claramente e a fraqueza ia-me
abandonando. Só depois fui saber com que aparelho Rhodan matara o anti...
Goratchim cumprimentou-me por trás da cúpula transparente do blindado. Suas duas
bocas riam. Rhodan esperou que eu me levantasse. Senti o ativador em minha mão.
Comprimi-o contra o corpo, com uma força exagerada.
Rhodan foi o primeiro a começar a falar. Fez como se não tivesse acontecido nada.
— Quando lhe dei o ativador, você ainda dispunha de um minuto. Será que cheguei
em tempo para garantir a regeneração de suas células?
— Como estou? Muito enrugado?
— Um pouco, mas o aspecto rugoso está diminuindo.
Suspirei. Com uma sensação de alívio deixei-me cair para trás. Deitado de costas,
fitei o espaço salpicado de estrelas.
— Como foi que você o matou? — perguntei em voz baixa.
— Resolvi fazer uma tentativa, que poderia ter falhado. Tive a idéia, quando o anti
foi ferido pelo bloco de pedra. Este rompera o campo defensivo. Pensei que com uma
arma energética não conseguiríamos nada. Nem com qualquer tipo de projétil, cujo
envoltório pudesse ser influenciado por um campo magnético. Lembrei-me do
equipamento esportivo de nossas naves. Você deve saber que todos os veículos espaciais
levam certos objetos destinados à prática do esporte, a fim de manter os tripulantes
fisicamente em forma.
Limitei-me a confirmar com um gesto.
Virei a cabeça. A meu lado, um grande arco de fio de plástico estava jogado na areia.
A aljava com as longas setas ainda pendia sobre o ombro de Rhodan.
Fitei-o em cheio. Rhodan sorriu.
— É bom que você saiba que sou muito bom no arco e flecha. As hastes das flechas
são feitas de plástico não magnético, e as pontas afiadas de ligas de metal leve,
igualmente antimagnéticas. Consegui colocar-me atrás do abrigo do anti. Antes que ele
compreendesse a situação, disparei a primeira flecha. A seta rompeu, sem a menor
dificuldade, o campo defensivo. Precisei de três flechas para colocá-lo fora de ação. Foi
só!
Foi só, dissera Rhodan. Parecia que essas palavras ainda ressoavam em meus
ouvidos. Como é que esse homem incompreensível teve a idéia de romper um dos
envoltórios energéticos mais fortes e impenetráveis da Galáxia por meio de arco e flecha?
Uma decisão desse tipo só poderia ser tomada por um homem, cujos antepassados
há poucos séculos ainda investiam uns contra os outros com espada e machados.
Mal conseguia compreender, mas o resultado provava que o raciocínio de Rhodan
fora correto.
Sua voz arrancou-me das reflexões. Já me sentia forte e bem-disposto. O ativador
estimulava cada célula do meu corpo.
Rhodan olhou para a depressão, na qual jazia um cadáver. Nele estavam espetadas
três flechas compridas, que haviam sido fabricadas exclusivamente para fins esportivos.
— Quer saber de uma coisa? — disse Rhodan em tom pensativo. — Ele não deveria
ter-me chamado tantas vezes de bárbaro. Acredite se quiser, mas o fato é que isso me deu
a idéia de atirar contra ele de arco e flecha.
Ajudou-me a levantar-me. Goratchim ia à frente no carro blindado. Usando o arco
de plástico como bengala, Rhodan caminhava a meu lado.
Era estranho... Esses bárbaros do planeta Terra tinham cada idéia...

***
**
*

O anti foi derrotado, mas os verdadeiros


maquinadores do atentado contra Atlan, de cuja
existência o destino do Império Solar depende em larga
escala, ainda não foram postos fora de ação...
E qualquer pessoa que queira envolver-se com eles
terá de pagar O Preço do Poder. Aliás, é este o título do
próximo volume.

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