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A musicalidade da fala
o objeto sonoro em Freud
Cláudio Munayer David
Resumo
No Projeto para uma Psicologia Científica, Freud descreve a estruturação do aparelho psíquico
a partir do grito do recém-nascido até a palavra socialmente compartilhada, identificando a
representação sonora como elo privilegiado com o objeto de desejo na origem das pulsões.
Os sons da fala que escapam à representação de palavra interferem na semântica do discur-
so e do pensamento, em um constante jogo pela busca da satisfação do desejo. Algumas
dessas representações podem ser traduzidas pela lógica própria da linguagem musical.
Palavras-Chave
Grito Pulsão Desejo Representação sonora Sons da fala
1
Instrumento feito a partir de uma tábua quantifi- 2
Leonardo da Pisa Fibonacci (1200) equacionou a
cada e uma única corda. Associa seqüências ma- série de números ordinários que levam seu nome;
temáticas às freqüências harmônicas dos sons. valioso esclarecimento para a Proporção Áurea.
ções de timbre, tonalidade, ritmo, inten- a sua fonte numa excitação corporal,
sidade, acentuação, enfim, um universo acaba por suprimir a tensão interna ao
de padrões acústicos que compõem a exigir da mãe a realização da ação espe-
fala. Vários desses objetos possuem uma cífica, traduzindo pela primeira vez a
representação gráfica que lhes atribui energia somática em psíquica. O inves-
um valor lingüístico, mas nem todos timento nas imagens sonoras tece uma
possuem um reflexo visual, o que lhes rede de representações associadas ao
priva de uma tradução gramatical. Es- grito que serão reativadas no estado de
sas expressões sonoras podem distorcer, desejo.
e até mesmo inverter o significado de um Através dos sons, a criança pode
discurso sem que haja, para tal, qualquer recriar o objeto de desejo no mundo in-
alteração do conteúdo semântico do terior e invocá-lo no mundo externo. Da
mesmo. mesma forma, o caçador primitivo pro-
Melodias pobres, cadência lenta, jetava sua voz sobre os sons emitidos
intensidade e tons baixos podem ser re- pelos animais, identificando-se com eles
flexos de uma estrutura depressiva na e, posteriormente, o elemento concreto
fala. Características opostas são prová- era separado de sua representação so-
veis de ser encontradas no discurso ma- nora, passando a ser o objeto da fanta-
níaco. A formalidade das imagens acús- sia que podia substituir o objeto real. A
ticas serve à estrutura obsessiva, en- reação do ambiente perante o objeto
quanto a fala do histérico se liberta do sonoro fortificava a crença na sua capa-
rigor, com variações sonoras mais ricas. cidade mágica.
A força pulsional pode silenciar o apa- Os significantes musicais também se
relho fonador na afasia motora em qua- qualificam como representações sono-
dros histéricos, ou criar padrões indese- ras. A voz é considerada o primeiro ins-
jáveis na fala, como na gagueira. Alguns trumento melódico e as mãos e os pés
casos de dissonância radical entre as re- os primeiros instrumentos de percussão.
presentações sonoras podem indicar O homem primitivo buscava harmoni-
uma falha estrutural grave no psiquis- zar seu próprio ritmo com o dos seus se-
mo. No artigo Análise de um caso de pa- melhantes. A dança e o canto se acom-
ranóia crônica (1896), Freud afirma que panhavam do bater das palmas e dos pés.
um detalhe característico do delírio pa- Ao associar a melodia cantada a uma
ranóico é que o tom do discurso pode representação de tempo, ele podia co-
suprimir por completo o conteúdo se- locar-se em uníssono com os demais,
mântico do mesmo (p.178). representando simultaneamente sua
Determinadas características rela- unidade e sua separação com um obje-
cionadas às percepções auditivas as apro- to.
ximam das pulsões mais do que outros A linguagem verbal e musical são
estímulos externos, que podem ser fa- códigos de comunicação originados da
cilmente evitados. As vibrações sonoras mesma forma de qualificação dos afetos.
são capazes de transpor e contornar pra- Dar forma aos sons na música tem o
ticamente todos os tipos de materiais, mesmo significado tranqüilizador que
deslocando-se por todo o ambiente com encontrar a palavra adequada para ex-
facilidade. A percepção auditiva desper- pressar um afeto ou uma impressão. A
ta precocemente a atenção, originando música se constitui em algo que pode ser
uma imagem sonora capaz de lembrar o descrito como uma modalidade de pen-
desprazer e, simultaneamente, reativar samento, uma idéia com uma lógica que
a experiência de prazer. O grito, que tem lhe é própria. Os sons compartilhados
110 Reverso Belo Horizonte ano 28 n. 53 p. 107 - 112 Set. 2006
A musicalidade da fala o objeto sonoro em Freud
RECEBIDO EM 30/05/2006
APROVADO EM 03/07/2006
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