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Tese O Capital No Mundo e o Mundo Do Ca PDF
Tese O Capital No Mundo e o Mundo Do Ca PDF
Niterói (RJ)
2017
LEONARDO DE MAGALHÃES LEITE
Niterói (RJ)
2017
i
L533 Leite, Leonardo de Magalhães
O capital no mundo e o mundo do capital : uma
reinterpretação do imperialismo a partir da teoria do
valor de Marx / Leonardo de Magalhães Leite;
orientador: Marcelo Dias Carcanholo -- Niterói, 2017.
352 f
CDD330.122
ii
Para Marina, cuja chegada animou, com ternura e
afeto, a pesquisa que deu origem a esta tese.
iii
AGRADECIMENTOS
À professora Sara Granemann e aos professores Mathias Luce e Hugo Corrêa, cujas
contribuições na banca de avaliação foram riquíssimas, agradeço-lhes imensamente. Mesmo
que parte das críticas não tive condições de incorporar nesta tese, as estou amadurecendo e
certamente as desenvolverei na continuação desta pesquisa. Ao professor Hugo, agradeço
também pela participação na banca de avaliação do projeto de tese e pelos inúmeros e
construtivos diálogos travados em eventos do NIEP-Marx. Outro professor igualmente
competente que ajudou a moldar os rumos desta pesquisa, tanto na avaliação do projeto quanto
em aulas nas quais tive o prazer de participar, e que também devo um agradecimento especial,
é Alexis Saludjian.
iv
imperialismo e crítica ontológica”, com o professor Rodrigo D. Monfardini, e em apresentação
em disciplina da professora Daniela Franco. Agradeço aos participantes de todos esses
momentos. Ao amigo Rodrigo, à Mariana Braz e à Aline Silva devo agradecer-lhes ainda pela
prazerosa e fraternal companhia em Campos dos Goytacazes. À Maracajaro Mansor, com quem
dividi boa parte das viagens semanais Campos-Niterói durante os primeiros dois anos do
doutorado, momentos de franca troca de ideias, também fundamentais para esta pesquisa, e aos
demais companheiros do NIEP-Marx, dentre os quais Flávio Miranda e Patrick G. de Paula,
parceiros na pesquisa sobre mercado mundial e imperialismo, devo também uma profunda
gratidão pelos enriquecedores e estimulantes debates.
v
[Fausto e Wagner na cena Diante da porta da
cidade]
FAUSTO
Vês o cão nêgro ã êrrãr pêlo rêstolho ê sêãrã?
WAGNER
Hã têmpos jã o vi, não o julguêi dê montã.
[...]
FAUSTO
Vês como êm lãrgãs êspirãis nos rodã
E nos gãlopã pêrto ê mãis pêrto ãindã ã vistã?
E, cãso não mê iludã, brilhã-
Lhê um borbulhão dê fogo sobrê ã trilhã.
WAGNER
So vêjo um pêrro nêgro, um cão;
Dêvê sêr oticã ã ilusão.
[...]
FAUSTO
Rêstringê o círculo, êstã pêrto!
WAGNER
Pois vês! ê um cão, não ê nênhum fãntãsmã.
Hêsitã, rosnã, ãrrãstã-sê no chão,
Rãbêiã. Tudo isso hãbito do cão.
FAUSTO
Vêm pãrã cã! vêm têr conosco!
vi
Toda ciência seria supérflua se houvesse
coincidência imediata entre a aparência e a
essência das coisas.
(K. Mãrx, O Capital – Livro III)
vii
RESUMO
Procuramos defender a tese de que o imperialismo de nossos dias se manifesta sob várias
roupagens e que por trás de todas elas reside uma determinação invisível e essencial: a
transferência internacional de valor. Para chegar nessa caracterização, fizemos a releitura das
teorias sobre o imperialismo, o que nos permitiu constatar que seu desenvolvimento (das
teorias) ocorre em ondas, as quais se diferenciam entre si pela centralidade atribuída em cada
período histórico a um ou outro aspecto do objeto. A partir dessa constatação, sugerimos que
as metamorfoses da teoria refletem as transformações do objeto, conduzindo à conclusão de
que o imperialismo é multifacetado, ou seja, se apresenta historicamente de acordo com
determinados conjuntos de formas que funcionam como condutos para a transferência
internacional de valor. Após entender o que é o imperialismo, a segunda parte da tese consistiu
em reconstituí-lo partindo de sua determinação mais abstrata até as formas mais concretas, cujo
propósito foi capturar quais são as condições lógicas e históricas que garantem sua existência.
Demonstramos que, para ele existir, a condição mais simples é que existam capitais em
concorrência com níveis distintos de produtividade, que, em termos históricos, equivale ao
período que se abre com o advento da grande indústria e a constituição do mercado mundial
enquanto tal. Com isso, defendemos que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado
mundial na época capitalista.
viii
ABSTRACT
ix
LISTA DE FIGURAS
Figura 4 – Efeitos da concorrência dentro do ramo de produção sobre a taxa de lucro ..... 221
Figura 7 – Estrutura de custo no setor C (novas tecnologias versus antigas) ..................... 225
Figura 8 – Efeitos da concorrência entre ramos de produção sobre as taxas de lucro........ 225
Figura 9 – Concorrência e diversidade nas taxas de lucro entre nações ............................. 226
x
LISTA DE TABELAS
Tabela 5 – Diferenças entre taxas de lucro entre capitais com distintas taxas de mais-
valor ..................................................................................................................... 152
Tabela 6 – Formação da taxa média de lucro (sem depreciação do capital fixo) .................. 208
Tabela 7 – Formação da taxa média de lucro (com depreciação do capital fixo) .................. 210
Tabela 8 – Formação da taxa média de lucro e desvio do preço em relação ao valor ........... 211
xi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................... 15
xii
2.3 A RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE ESSÊNCIA E APARÊNCIA DO
IMPERIALISMO ..................................................................................................... 134
xiii
4.3 JURO E LUCRO DE EMPRESÁRIO: O PAR CATEGORIAL ADEQUADO
PARA INVESTIMENTO ESTRANGEIRO DIRETO E DÍVIDA EXTERNA ...... 250
4.3.1 Capital a juros: a forma irracional do capital ..................................................... 250
4.3.2 Capital-propriedade versus Capital-função: o enquadramento conceitual
da remessa de lucros e pagamento de juros ao exterior ..................................... 253
4.4 LUCRO FICTÍCIO: O IMPERIALISMO PARASITÁRIO .................................... 260
4.5 RENDAS DE PROPRIEDADE: IMPERIALISMO, MONOPÓLIOS E
MARCAS ................................................................................................................. 268
4.5.1 A teoria da renda diferencial em O Capital .......................................................... 268
4.5.2 A teoria da renda absoluta em O Capital ............................................................. 276
4.5.3 A renda monopolista como outra forma da renda absoluta............................... 281
5 A LÓGICA IMPERIALISTA DAS EXPROPRIAÇÕES: O LUGAR DA
VIOLÊNCIA EXTRAECONÔMICA .................................................................. 288
5.1 SOBRE A INCONTROLABILIDADE DO CAPITAL ........................................... 288
5.2 “ACUMULAÇÃO PRIMITIVA”, VIOLÊNCIA E ESTADO ................................ 293
5.3 IMPERIALISMO E O SISTEMA DE MÚLTIPLOS ESTADOS ........................... 304
5.4 EXPROPRIAÇÕES: O LADO PRIMITIVO DO IMPERIALISMO ...................... 312
5.4.1 Expropriações e a produção da relação imperialista .......................................... 313
5.4.2 Expropriações e a reprodução da relação imperialista ...................................... 315
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 323
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 331
APÊNDICE A – Mercado mundial, renda da terra e a tentativa de rejeitar
a teoria marxista da dependência ......................................................................... 347
xiv
15
INTRODUÇÃO
1
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto Comunista. Tradução de Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 41 et
seq.
16
Estamos de acordo com a tese de Corrêa (2012, p. 217), para o qual a “lei econômica do
movimento da sociedade moderna” a que Marx (2013, p. 79) se refere no prefácio da primeira
edição de O Capital é a lei do valor, na medida em que o valor, nos termos de Corrêa, “é a
própria expressão do caráter estranhado da sociabilidade humana na sociedade capitalista e que,
uma vez transubstanciado em capital, subjuga a humanidade a seus imperativos de expansão”.
O caminho da lei do valor ao imperialismo é, decerto, tortuoso. Enquanto o valor
situa-se em um nível elevado de abstração, o imperialismo é geralmente concebido no plano
fenomênico, de forma que é preciso uma série de mediações para estabelecer o vínculo de um
com o outro. Nosso procedimento, nesta tese, será percorrer dois movimentos simultâneos:
trazer a lei do valor do abstrato ao concreto e levar o imperialismo do concreto ao abstrato. Para
o primeiro movimento, iremos perseguir a lei do valor em O Capital desde o Livro I até o Livro
III, destacando os momentos em que se altera o nível de abstração – como da passagem do valor
individual ao valor social, deste ao preço de produção e ao preço de mercado; da fragmentação
do mais-valor global em lucro, juro e renda; e da introdução de determinações extraeconômicas.
Em cada mudança de nível abrem-se as possibilidades para o imperialismo através da distinção
entre produção e apropriação de valores. Ao mesmo tempo, esse próprio movimento engendrará
o segundo, qual seja, das possibilidades abstratas para as manifestações concretas do
imperialismo.
Se a lei do valor é a “lei econômica do movimento da sociedade moderna”, ela é a
lei do movimento do capitalismo. Logo, o imperialismo, a partir da lei do valor, só pode ser um
imperialismo de tipo capitalista. Na medida em que a sociedade capitalista possui uma dinâmica
“dominada por sua economia”, como diz Bonente (2016, p. 19), o desenvolvimento dessa forma
de sociedade significa “a operação das leis que emanam da organização própria da economia
regida pelo capital”, o que implica o reconhecimento de que o desenvolvimento do modo
capitalista de produção equivale a um processo de crescente dominação ontológica da economia
sobre as outras esferas da vida social. Do mesmo modo, o imperialismo capitalista está
envolvido em uma dinâmica histórica na qual suas formas econômicas tendem a predominar
sobre as formas extraeconômicas. A historiadora Ellen Wood, em O império do capital, parece
ser uma das poucas referências no marxismo a reconhecer e a aplicar essa concepção ontológica
de desenvolvimento no estudo do imperialismo. Como se percebendo a tensão criada pela
explicitação das formas tipicamente capitalistas, portanto econômicas, de imperialismo, diz a
autora:
18
Ainda não vimos uma teoria sistemática do imperialismo criada para um mundo em
que as relações internacionais sejam internas ao capitalismo e governadas por imperativos
capitalistas. Isso, ao menos em parte, é porque um mundo de capitalismo mais ou menos
universal, em que os imperativos desse sistema sejam um instrumento universal de dominação
imperial, é um desenvolvimento muito recente (Wood, 2014, p. 99).
Embora a falta de uma “teoria sistemática do imperialismo” para um mundo cada
vez mais governado pelas determinações puramente econômicas possa ser resultado de sua
gênese recente, como sugere a autora, nos parece que existe um outro fator que contribui com
esse vazio teórico. Como já dissemos, as teorias marxistas sobre o imperialismo se baseiam,
geralmente, em determinados recortes da teoria do valor adequados para compreender este ou
aquele fenômeno. Parte disso se deve a uma incompreensão muito difundida sobre a teoria de
Marx, a qual afiança que o mercado mundial não está no escopo de O Capital. Se esta percepção
fosse verdadeira, como alguns supõem, a teoria do valor seria adequada dentro de um sistema
teórico fechado, uma economia nacional. Se a teoria do valor não fosse capaz de explicar a
expansão desse sistema, também não serviria para explicar o imperialismo, de forma que
poderíamos retirar apenas insights de determinados aspectos de O Capital, como da tendência
à centralização, dos esquemas de reprodução do capital social, da formação dos preços de
produção, da análise do sistema de crédito e do capital fictício, da acumulação primitiva etc.,
mas nunca da integridade da lei do valor, a qual absorve todas essas questões.
A máxima pretensão que justifica nossa tese é mostrar que a lei do valor é
imprescindível para uma compreensão do imperialismo enquanto aspecto necessário da
realidade capitalista. Portanto, contribuir com o preenchimento do vazio teórico mencionado
anteriormente é o que mobilizou os esforços de pesquisa reunidos neste trabalho. Como o
chamamento de Wood à renovação da teoria do imperialismo foi feito em 2003, data da
publicação de Império do capital, seria injusto, por outro lado, desconsiderar que desde então
houve avanços relevantes na possibilidade de teorizar o imperialismo. Destaco, por ora, duas
grandes contribuições recentes no campo do marxismo. A primeira, de Callinicos (2009), escapa
do plano simplesmente fenomênico e desenvolve uma interpretação do imperialismo
considerando-o na interseção entre duas lógicas distintas: a econômica e a geopolítica. Apesar
de discordarmos da forma como o autor desenvolve a relação entre as duas esferas da vida
social, sua originalidade, compartilhada por Harvey (2003), trouxe para a reflexão a
necessidade de incorporar em um mesmo corpo teórico o econômico e o extraeconômico. Em
19
outros termos, essa abordagem revelou que a teorização de um objeto multifacetado deve ser
multidimensional.
No período recente ocorreram também novas publicações de cadernos de estudos
de Marx no âmbito da segunda edição histórico-crítica da Marx-Engels-Gesamtausgabe
(MEGA-2)2 que possibilitaram remover antigos nós que atavam as teorias do imperialismo.
Referimo-nos aqui à tese tradicional de Rosdolsky (2001), dentre outros, que sustentava,
conforme a famosa Introdução de 1857-58 de Marx, que o mercado mundial estava fora do
escopo de O Capital, já que o caráter inacabado da obra decorreria da não escrita dos últimos
livros da famosa sequência apresentada na Introdução, dentre os quais aquele sobre o mercado
mundial.
Tal concepção foi demonstrada errada apenas recentemente por Pradella (2015a)
através de sua pesquisa sobre os chamados cadernos de Londres (manuscritos de estudo de
Marx predominantemente sobre economia política e redigidos por ele próprio). A autora mostra
que as categorias esboçadas na Introdução de 1857-58, como Estado, mercado mundial e crises
já estão incorporadas no Livro I de O Capital: “a superação do plano de seis livros não envolveu
uma restrição do plano original ou uma desconsideração da esfera internacional, mas, ao invés
disso, uma integração mais sistemática da esfera internacional dentro da análise do capital”
(Pradella, 2015a, p. 128, tradução nossa3). O projeto de Marx, portanto, nos termos de Pradella
(2015a, p. 11), se traduz numa “crítica revolucionária do capitalismo como um sistema
imperialista”.
Quando constatamos que a leitura “nacional” de O Capital poderia estar
equivocada, percebemos que havia se aberto uma possibilidade real de reinterpretar o
imperialismo através da lei do valor em sua inteireza. Para tanto, nosso primeiro passo foi reler
as teorias mais difundidas sobre o imperialismo, quando então nos deparamos com divergências
entre elas que pareciam insolúveis pois cada uma parecia ser verdadeira num sentido restrito.
Nesse primeiro percurso, cujos resultados estão expostos na Parte I desta tese, partimos do
2
Hubmann (2012) oferece uma descrição histórica da MEGA-2 destacando o papel da “virada filológica” (p. 33)
ocorrida a partir de 1990. Para Bellofiore e Fineschi (2009, p. 1, tradução nossa), “a segunda edição da Marx-
Engels-Gesamtausgabe (MEGA), abre a possibilidade de um repensar radical, a partir de uma base filológica, o
pensamento de Marx na íntegra. [...] Um consenso crescente está se formando no debate contemporâneo,
especialmente na Alemanha: Marx foi amplamente lido através das lentes de Engels. Agora é possível ler Marx de
acordo com Marx”.
3
Por conveniência de estilo, lembraremos que a tradução é nossa sempre e apenas na primeira vez em que nos
referirmos a obras publicadas em língua estrangeira, o que é válido para Pradella (2015a) e todas as demais. Nos
casos em que as citações forem destacadas do texto, sempre lembraremos que se trata de tradução nossa, se for
este o caso.
20
truísmo segundo o qual a existência de várias leituras diferentes sobre o imperialismo sugere
que, por mais multifacetado que ele seja, ele continua sendo o imperialismo independentemente
do ângulo que o observe. Sendo assim, a primeira pergunta que norteou esta pesquisa foi a
seguinte: o que há de comum entre todas as teorias sobre o imperialismo? O desenvolvimento
da resposta nos permitiu perceber que a existência de diversas teorias reflete o fato de que ele
se apresenta no mundo das aparências sob várias roupagens, as quais chamamos de formas de
manifestação. Ao mesmo tempo, percebemos que por trás da aparência reside uma
determinação invisível, oculta, a qual chamamos de essência do imperialismo.
Após caracterizar o imperialismo através dessas duas dimensões (essência e
aparência), a questão que estimulou a segunda etapa desta pesquisa, exposta na Parte II, foi:
como reconstituir teoricamente os laços entre a essência e as distintas formas de manifestação?
Ou, em outras palavras, o que garante sua existência? Quais são as condições teóricas para que
o imperialismo exista enquanto um conjunto de manifestações reais e concretas de sua essência?
Em termos metodológicos, a primeira parte desta tese percorre o seguinte caminho.
Partindo da sugestão de Lukács (2012b, p. 300) de que a teoria é o “espelhamento de uma
realidade material que existe independentemente da consciência”, estudamos as teorias
socialmente mais relevantes sobre o imperialismo com a intencionalidade de capturar, através
delas, as formas de manifestação e a essência do imperialismo. Na sequência, no que constitui
a Parte II, tomamos a pista metodológica de Marx de reconstituir o real partindo do mais
abstrato e incorporando progressivamente determinações mais concretas de forma que, no final,
esperamos ter apontado para uma reconstituição teórica do imperialismo enquanto esfera
complexa da realidade social.
Do ponto de vista da organização em seções, operamos da seguinte forma. A Parte
I possui duas Seções. Na Seção 1, de caráter mais metodológico, apresentamos, inicialmente,
subseção 1.1, nosso entendimento sobre os pares categoriais forma/conteúdo e
aparência/essência. O propósito dessa exposição é desfazer eventuais confusões que possam
aparecer em virtude da utilização da palavra “forma” em dois sentidos distintos: o imperialismo
é a forma social e histórica do mercado mundial e, ao mesmo, possui variadas formas de
manifestação. Na sequência, subseção 1.2, desenvolvemos o argumento de Pradella (2013,
2015a) para demonstrar que o mercado mundial é pressuposto desde o Livro I de O Capital ao
mesmo tempo em que é continuamente posto como resultado da atuação da lei do valor. Por
fim, na subseção 1.3, defendemos que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado
mundial.
21
poder de monopólio sobre terras, marcas, etc., também gera relações imperialistas (subseção
4.5). O argumento desta Seção nos levou a discutir, no Apêndice A, as críticas à teoria marxista
da dependência que se utilizam da teoria marxiana da renda da terra.
Finalmente, a Seção 5 será dedicada à análise dos processos de imperialismo que
extrapolam a lógica estritamente econômica. Tentaremos mostrar, na subseção 5.1, que o caráter
incontrolável do capital aponta para um expansionismo ilimitado, o qual se manifesta
concretamente com as expropriações. Defenderemos, na subseção 5.2, que a análise de Marx
das expropriações não se refere apenas à pré-história do capitalismo, mas que, pelo contrário,
elas são permanentes e foram utilizadas pelo autor como uma forma de incluir a violência estatal
dentro de sua teoria do valor. Na subseção 5.3 mostramos que não existe o capital assim como
não existe o Estado, mas sim os capitais e um sistema de múltiplos Estados, responsável pela
construção e reparação contínua dos condutos para a transferência de valor. Por fim, subseção
5.4, mostramos que além de sustentar os condutos para a transferência de valor, as
expropriações, em última instância a violência estatal, referem-se a processos de transferência
de valor e, portanto, produzem e reproduzem a relação imperialista.
Encerrando, seguirão algumas considerações finais.
23
4
O caráter metodológico desse escrito pode ser evidenciado pelo fato de que, conforme nota de fim n. 604 de
Marx-Engels Collected Works Vol. 24, a primeira tradução para o inglês de Glosas marginais... foi reunida em
uma coletânea de textos de Marx intitulada Texts on method (MARX, 2010e, p. 666).
25
Nesta obra, Marx enuncia que sua exposição não começa pelos conceitos, motivo
pelo qual ele não precisa fornecer um “conceito de valor”:
alguma mediação para ser desvelada, para aparecer na superfície fenomênica. Note-se que, por
essa formulação, conteúdo e essência podem se equivaler, isto é, a essência pode ser comum a
várias formas históricas, o que não significa, por outro lado, que se equivalham em qualquer
situação. É importante deixar isso claro pois outros autores apresentam concepções distintas da
que estamos empregando aqui. Dussel (2012)5 por exemplo, partindo dos Grundrisse, utiliza
como se fossem sinônimas as categorias conteúdo e essência.
O primeiro caderno do conjunto de manuscritos que se tornariam o que conhecemos
como Grundrisse começa com a exposição da “produção em geral”6. Ali, seguindo os termos
de Dussel (2012)7, há “uma descrição marxista da essência (que será depois aplicada n’O
Capital inclusive em sua terminologia)”. Captar a essência (ou o conteúdo da coisa) e isolá-la
abstratamente é o procedimento de Marx, seguindo Dussel, para contornar as robinsonadas da
economia política clássica que acaba por naturalizar a produção burguesa. “O caçador e o
pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo, pertencem às ilusões
desprovidas de fantasia das robinsonadas do século XVIII” (MARX, 2011b, p. 39).
Sabendo que o ato de produzir integra a vida social de todas as civilizações
humanas, no caminho para compreender a produção em geral deve-se “considerar a produção
em suas ‘notas’ ou ‘determinações essenciais’, abstratas, comuns a tudo aquilo que se denomina
produção – seja entre astecas, incas, egípcios, europeus ou latino-americanos” (DUSSEL, 2012,
p. 33). Portanto, a busca do que há de comum entre os diversos modos de produzir não se baseia
no resgaste da forma de produzir de um produtor supostamente aistórico, como o pescador
ricardiano, mas no que há de comum entre todas as formas historicamente determinadas de
produção.
No estudo da produção em geral, Marx encontra algumas determinações comuns a
todas as épocas da produção:
5
DUSSEL, E. A produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse. Tradução de José Paulo Netto. São
Paulo: Expressão Popular, 2012. p. 31 et. seq.
6
Cf. Marx (2011b, p. 39-44).
7
DUSSEL, E. A produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse. Tradução de José Paulo Netto. São
Paulo: Expressão Popular, 2012. p. 31 et. seq.
27
Essa longa citação revela como o procedimento abstrativo é necessário para isolar
o “elemento comum” descoberto através da comparação entre as diversas fases históricas da
produção, que é o centro das atenções de Marx nesse contexto. O que complica a captura desse
“elemento comum” é o fato dele ter diversas determinações que podem ser comuns em épocas
distintas. Deve-se levar isso em conta já que o objetivo de Marx é compreender a especificidade
da produção capitalista – que só pode ser atingido se a captura da “diferença essencial” for bem-
sucedida.
Como desenvolveremos nas seções seguintes, pretendemos, nesta seção, isolar a
determinação constitutiva, o conteúdo do imperialismo capitalista, isto é, o mercado mundial,
de suas formas históricas, sendo o imperialismo uma delas. Na seção seguinte tentaremos isolar
a determinação essencial do imperialismo capitalista de suas formas específicas de
manifestação ao longo do tempo. O seguinte raciocínio de Dussel é útil para nossos propósitos
(embora a ressalva sobre sua identificação entre essência e conteúdo deva ser mantida):
A essência abstraída ou isolada dos fenômenos integra o real. Não enquanto tal, mas
apenas à medida que é necessária para compor um determinado aspecto da realidade em
conjunção com as instâncias mais concretas. Relacionando com nosso objeto de pesquisa, a
essência do imperialismo não pode se manifestar isoladamente. Ela precisa de mediações
concretas para se manifestar. Conforme os termos de Saad Filho (2011, p. 22, grifos do autor),
sendo a essência não-empírica, ela só pode ser revelada analiticamente: “a essência geralmente
existe nos fenômenos e através deles, e os fenômenos não são apenas a forma de manifestação
da essência, mas, mais precisamente, a sua forma de existência”.
A conclusão do raciocínio de Dussel de que “a essência se encontra num plano mais
profundo, ao passo que o que aparece (o fenômeno) é o superficial” nos leva a problematizar o
29
quanto a aparência mistifica a essência. A investigação científica que busca capturar a realidade
autêntica deve levar em consideração, nos termos de Lukács, que
Precisamente quando se trata das questões atinentes ao ser social, assume um papel
decisivo o problema ontológico da diferença, da oposição e da conexão entre
fenômeno e essência. Na vida cotidiana, os fenômenos frequentemente ocultam a
essência do seu próprio ser em lugar de iluminá-la. (LUKÁCS, 2012b, p. 294, grifos
nossos).
Para Arrizabalo Montoro (2014, p. 41-45, tradução nossa), como, na realidade, “os
fenômenos sempre estão em vias de converter-se em outros fenômenos”, a lógica dialética é
necessária como modo de pensar pois considera a realidade em seu “perpétuo devir”. Por outro
lado, a lógica formal pressupõe que a realidade é imóvel. Por isso, a debilidade do método
metafísico é conceber superficialmente a realidade, isto é, considerá-la apenas no nível dos
fenômenos. Nos termos do autor, esta debilidade é “concentrar o estudo na expressão
fenomênica dos fatos, ou seja, em suas expressões ou manifestações superficiais, sem
aprofundar nas suas causas e explicações, sem tratar de chegar em sua essência”
(ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 45).
Callinicos (2014, p. 148, tradução nossa) assegura que “aparências são
enganadoras, mas também são reais”. Nesta relação entre essência e aparência, o autor aponta
que Marx utiliza a distinção hegeliana entre Schein (essência ilusória) e Erscheinung
(aparência, fenômeno): a “essência se mostra ou aparece, mas ela permanece escondida sob um
véu de Schein”. Usando passagens de Hegel, Callinicos (2014, p. 148) reforça esse argumento:
a “essência deve aparecer”, “a essência ou a natureza de algo se manifesta essencialmente. A
essência é apenas uma essência em virtude de sua manifestação, e a manifestação é tão essencial
quanto a essência”.
Por exemplo, Marx usa essa distinção quando examina as categorias derivadas do
mais-valor, como lucro, renda e juros, que são “formas de aparência das relações de produção
capitalistas” (CALLINICOS, 2014, p. 149). Como estão na dimensão da aparência, são
enganadoras, por isso são representações ideológicas. Trata-se, segundo Callinicos (2014, p.
150), do “apogeu do fetichismo” mesmo tendo “realidade social”.
Nesse sentido,
8
Monfardini (2015) demonstra que o procedimento crítico empregado por Marx em O Capital refere-se a essa
crítica ontológica citada por Lukács. Medeiros (2013, p. 77-78) resume o que é esse procedimento crítico: “A
crítica explanatória ou ontológica refere-se, na verdade, a um tríplice procedimento crítico: (a) a demonstração da
falsidade das crenças ou teorias criticadas; (b) a simultânea apresentação de uma explicação alternativa e mais
abrangente da causalidade de fenômenos anteriormente significados através das crenças ou teorias em questão; (c)
a indicação dos motivos reais que levam à produção e sustentação das concepções equivocadas, mistificadas e/ou
ilusórias e, ainda, das condições sociais que facultam a própria crítica”.
31
tratava de uma aproximação em direção ao real, uma aproximação ontológica, mas sim de uma
externalização conceitual, ou seja, epistemológica. Em termos sintéticos, não podemos tratar o
conteúdo do Livro III como mais ou menos próximo da realidade capitalista que os Livros I ou
II. Trata-se, por outro lado, de um nível com mais determinações e, em função da natureza do
objeto – uma sociedade mercantil baseada na propriedade privada dos meios de produção – as
novas determinações fenomênicas introduzem um véu cujo resultado é mistificar as relações
sociais essenciais.
Callinicos (2014, p. 132) argumenta que ser mais abstrato ou mais concreto não é
uma propriedade inerente aos conceitos, isto é, um conceito não é mais ou menos abstrato em
função de características imanentes a ele. O que define o grau de abstração de um determinado
conceito é o lugar que ele ocupa dentro do discurso teórico como um todo. Para ilustrar esse
ponto, o autor apresenta a distinção entre valor e preço de produção. Nos termos do autor, não
se trata de uma relação
[...] entre pensamento e realidade de tal forma que o abstrato (valor) forneça um
modelo teórico para a realidade concreta (preço de produção). Preço de produção é
(para usar o vocabulário da Introdução de 1857) um ‘concreto em pensamento’,
definido em termos do discurso teórico de O Capital e não em referência a uma
realidade além da teoria. Abstrato e concreto é uma questão do lugar que os conceitos
ocupam dentro deste discurso. (CALLINICOS, 2014, p. 132).
O processo abstrativo de determinar e isolar a essência das coisas para, a partir daí,
investigar as conexões e oposições entre essência e aparência, situa-se no quadro da
compreensão metodológica de Marx. Para Ilyenkov, a dialética materialista – o método
marxiano – considera a existência de um fato real e, então, “tem que voltar para identificar as
condições que tornam possível esse fato” (ILYENKOV9 apud SAAD FILHO, 2011, p. 27). Tal
compreensão ancora-se, sobretudo, na “exata separação entre a realidade existente em si como
processo e os caminhos de seu conhecimento” (LUKÁCS, 2012b, p. 288).
Para percorrer os caminhos do conhecimento da realidade, usando os termos de
Lukács citados acima, deve-se levar em consideração que a realidade está em permanente
movimento. Nos termos de E. F. S. Prado (2011, p. 15), “é preciso ver que a dialética quer
apreender as esferas do mundo em seu modo de devir, como incessante processualidade, ou
seja, como realidades que mudam por lógica própria, sem fixá-las como inertes e sem tratá-las
9
ILYENKOV, E. The Dialectics of the Abstract and the Concrete in Marx’s Capital. Moscou: Progress Publishers,
1982. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/ilyenkov/works/abstract/index.htm>. Acesso em: 10
ago. 2015. p. 282.
32
como meramente históricas”. Essa “incessante processualidade” implica que não é possível
conhecer um determinado estágio de desenvolvimento da realidade no momento em que ela
está nascendo, isto é, em seu processo genético, em sua gênese. Pelo contrário, é possível
conhecer este estágio apenas a partir de seus resultados, ou seja, a partir de formas mais
desenvolvidas. É o que diz Marx nos Grundrisse, citado por Lukács (2012b, p. 288), onde ele
conclui com uma famosa passagem:
10
No Brasil, a íntegra dos Grundrisse e partes dos Manuscritos de 1861-1863 foram traduzidos e publicados
recentemente (Cf. MARX, 2010f, 2011b). As Teorias da Mais-Valia e o Livro III de O Capital foram editados
através, respectivamente, dos Manuscritos de 1861-1863 e 1863-65. Um panorama da produção teórica de Marx
nesse período pode ser encontrado em Deus (2010, p. 9-13), Duayer (2011, p. 11-13), Dussel (2012, p. 13-27) e
Heinrich (2014a, p. 17-20).
34
ainda primitivo da crítica marxiana da economia política. De fato, Marx modificou esse plano
no terceiro esboço preparado em 1863-65. Agora a obra passaria a ser composta por três livros
teóricos (processo de produção do capital, processo de circulação do capital e o processo global
da produção capitalista) mais um sobre a história da teoria, como relata Rosdolsky:
Como esse novo plano foi, de fato, aquele que serviu de base à redação definitiva
de O Capital, Rosdolsky interpreta que os últimos temas do plano original – dentre os quais o
mercado mundial – na foram incluídos na redação final11. Esta interpretação, portanto, sugere
que O Capital considera uma economia fechada, sem relação com o externo, já que o mercado
mundial foi, supostamente, excluído da exposição feita por Marx12:
Por último, no que diz respeito aos livros IV, V e VI iniciais (sobre o Estado, o
comércio exterior e o mercado mundial), remetemos o leitor à passagem já citada do
terceiro tomo de O Capital, na qual Marx excluía do âmbito de investigações de O
Capital o problema das ‘conexões no mercado mundial’. (ROSDOLSKY, 2001, p.
36, grifos nossos).
Esse argumento parece levar em conta uma certa linearidade no tratamento dos
manuscritos antecedentes a O Capital. Mesmo considerando a mudança no plano de seis livros,
Rosdolsky continua a considerar as transformações que dariam origem ao formato definitivo de
O Capital à luz da Introdução de 1857-58, ou seja, do primeiro e primitivo esboço. Entretanto,
a totalidade dos escritos de Marx divulgados no âmbito da nova edição crítica da MEGA
permitiram a Heinrich (2009, p. 78-82) argumentar em outra direção. Para ele, durante 1863 e
1864, isto é, na redação do que conhecemos como Manuscritos de 1863-65, “um segundo
projeto de crítica nasceu, nomeado O Capital”, cuja característica fundamental que torna
11
J. A. Paula (2005, p. 53-54), por exemplo, sustenta a tese de Rosdolsky, aceitando que O Capital utiliza a
distinção entre “capital em geral” e “vários capitais”. Mostraremos na Seção Três desta tese que a concorrência,
ou seja, a existência de vários capitais, integra o argumento do Livro I desde o princípio.
12
Para Pradella (2013, p. 138-142), esta interpretação de O Capital baseada no “nacionalismo-metodológico” foi
bastante influente no período que estende da morte de Marx até a primeira guerra mundial, coincidente com o
nascimento das teorias clássicas do imperialismo. Para a autora, Lenin, em O desenvolvimento do capitalismo na
Rússia, e Rosa Luxemburgo, em A acumulação do capital, supõem que Marx analisa uma economia fechada,
isolada do resto do mundo, em O Capital. Discutiremos as implicações dessa interpretação na seção seguinte.
35
possível tratá-lo como um novo projeto, e não como uma continuação do projeto original, é a
supressão da análise do capital em geral:
Marx não apenas nunca mais mencionou o ‘capital em geral’, mas também evitou
dizer qualquer coisa sobre seu plano original de seis livros; em ‘O Capital’ ele apenas
menciona ‘investigações especiais’ que se encontram fora do escopo de ‘O Capital’.
Este escopo foi definido de forma a apresentar ‘a organização interna do modo de
produção capitalista, sua média ideal’. (HEINRICH, 2009, p. 81-2, tradução nossa)
13
A dicotomia usualmente difundida entre os métodos de pesquisa e de exposição é, para Callinicos (2014), errada.
Apoiando-se em argumentos de Ilyenkov (1982), Callinicos (2014, p. 74) mostra que o movimento em ambos os
métodos é a ascensão do abstrato ao concreto. Mandel (1985), por outro lado, sustenta que a exposição de Marx
segue o método do abstrato ao concreto, enquanto que a pesquisa seguiria o caminho oposto, isto é, dos elementos
mais concretos até os mais abstratos. Gontijo (2016) também defende a existência dessa dicotomia entre
investigação e exposição. Callinicos discorda desse ponto pois, se fosse verdadeira, os fatos, por si, seriam
suficientes para uma apreensão correta da realidade. O autor sustenta que “o escrutínio dos padrões empíricos é
realizado por Marx em paralelo à crítica de teorias pré-existentes”, cujo exemplo mais notável desse procedimento
seria o Manuscrito de 1861-63. Callinicos apoia-se em Ilyenkov (1982, p. 148, tradução nossa), para o qual a
“massa de experiências empíricas acumuladas socialmente” reduz-se a expressões abstratas em gráficos, tabelas,
livros, etc. O teórico, portanto, faz a análise crítica dessas abstrações “do ponto de vista da realidade como um
todo, em sua concretude” (Ilyenkov, 1982, loc. cit.). Ou seja, o método de pesquisa também é o método de ascender
do abstrato ao concreto. Não há, como sustentava Mandel, uma contradição entre métodos de pesquisa e de
exposição. Para uma exposição detalhada desse tema, ver Callinicos (2014, p. 73-75).
36
Marx rejeitou a teoria quantitativa da moeda (TQM) nos primeiros cadernos escritos
em Londres em meados dos anos 1850. Isso significou, nos termos de Pradella (2015a)14, um
“turning point” no pensamento de Marx sobre o capitalismo, permitindo a ele superar a teoria
ricardiana do comércio internacional e, com isso, constatar que a lógica geral de
desenvolvimento do sistema é global, isto é, que o modo de produção capitalista deve ser
compreendido a partir da totalidade.
Essa crítica foi publicada por ele dentro da última seção do capítulo sobre o dinheiro
em sua obra Contribuição à crítica da economia política de 185915. Como Marx (1999)16 expõe,
a teoria quantitativa da moeda foi sustentada desde o século XVII por Hume e aperfeiçoada
com “verniz internacional” por Ricardo no século XIX (MARX, 1999, p. 175). Em síntese,
Hume concluía pela primazia do dinheiro (entendido como meio circulante) sobre o movimento
dos preços, ou, nos termos de Marx (1999, p. 166), que “a alta ou a baixa dos preços das
mercadorias depende da quantidade de dinheiro que circula”. Ricardo defendia que os
desequilíbrios no balanço de pagamentos seriam causados exclusivamente por fatores de
natureza monetária, isto é, ele negava decididamente que fatores reais poderiam determinar
esses desequilíbrios. Para ele, o movimento internacional de dinheiro teria o papel de equilibrar
14
PRADELLA, L. Globalisation and the critique of political economy: new insights from Marx’s writings.
London: Routledge, 2015a. p. 93 et seq.
15
Na edição brasileira que estamos seguindo, da coleção Os Economistas, essa obra foi intitulada Para a crítica
da economia política (MARX, 1999).
16
MARX, K. Para a crítica da economia política. Tradução de Edgard Malagodi. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
p. 162 et seq.
37
17
Cf. Marx (1999, p. 178 et seq.); Pradella (2015a, p. 96-97).
18
Embora tenha sido lido por Adam Smith, Steuart “permaneceu relegado ao esquecimento como um ‘cão morto’”
(MARX, 1999, p. 170).
19
Nas palavras finais de sua exposição sobre a teoria do dinheiro de Ricardo, Marx conclui com o “dogma”
ricardiano de que “o dinheiro não é mais que moeda, por isso, a quantidade de ouro que existe em um país deve
entrar na circulação” (MARX, 1999, p. 177).
38
se, assim, a teoria da circulação de Ricardo e supera-se a abordagem nacional dos clássicos
(PRADELLA, 2015a, p. 94-98), como argumenta a autora na seguinte passagem:
Graças à sua crítica da teoria quantitativa da moeda, Marx pode superar a implícita
abordagem nacional dos clássicos e começar sua análise a partir da circulação geral
de mercadorias no mercado mundial (MEGA2 IV/8:326)20. Isto permitiu a ele
identificar o trabalho universal, abstrato, como a fonte do valor e isolar os fatores reais
operando sobre a balança comercial de um país, entendendo assim as causas
subjacentes de sua riqueza e seu poder relativos. Marx pode conceituar também a
dinâmica universalizante do capital e sua tendência à crise. (PRADELLA, 2015a, p.
98).
Para Pradella, portanto, superar a TQM permitiu a Marx entender a natureza global
do capitalismo, decorrente, em última instância, da natureza autoexpansiva do capital. É por
causa disso que ele “começa sua análise [em O Capital] a partir da circulação geral de
mercadorias no mercado mundial” – o que lhe permite identificar o trabalho abstrato como fonte
do valor e, portanto, entender as causas da riqueza relativa. A “tendência universalizante do
capital” implica que o limite da produção capitalista, portanto, não está na capacidade de
consumo doméstico, mas na capacidade de consumo mundial: Marx registra nos cadernos de
Londres que o comércio dentro da Inglaterra, por exemplo, é limitado pelo comércio entre
comerciantes e consumidores no mercado mundial (PRADELLA, 2015a, p. 98).
Antes de chegar à O Capital, é digno de nota destacar que a teoria do dinheiro nos
Grundrisse e nos Manuscritos de 1861-1863 aponta, também, para a questão do mercado
mundial. No Capítulo do dinheiro nos Grundrisse, Marx esboça uma estrutura que será repetida
na redação da versão definitiva do Capítulo III (“O dinheiro ou a circulação de mercadorias”)
de O Capital. Nos comentários de Dussel aos Grundrisse, ele resume o movimento de
construção da categoria dinheiro nesta obra:
20
Referência da autora à página 326 da seção IV/8 da MEGA2, intitulada Exzerpte und Notizen (März bis Juni
1851) que, em tradução livre, seria Trechos e Notas (março a junho de 1851).
39
Nessa primeira seção, em que são considerados valor de troca, dinheiro, preço, as
mercadorias sempre aparecem como dadas. A determinação formal é simples.
Sabemos que elas exprimem determinações da produção social, mas a própria
produção social é pressuposta. Mas elas não são postas nessa determinação. Dessa
maneira, a primeira troca aparece, na verdade, como troca exclusivamente do
supérfluo, que não submete nem determina a totalidade da produção. É o
excedente existente de uma produção global, que se situa fora do mundo dos valores
de troca. Da mesma forma, também na sociedade desenvolvida as coisas se
apresentam na superfície como mundo de mercadorias imediatamente existente. Mas
essa própria superfície aponta para além de si mesma, para as relações econômicas
que são postas como relações de produção. Por isso, a articulação interna da produção
constitui a segunda seção; sua síntese no Estado, a terceira; a relação internacional, a
quarta; o mercado mundial, a conclusão, em que a produção é posta como totalidade,
assim como cada um de seus momentos; na qual, porém, todas as contradições
simultaneamente entram em processo. O mercado mundial, portanto, constitui ao
mesmo tempo o pressuposto e o portador da totalidade. As crises são, nesse caso, a
indicação universal para além do pressuposto e o impulso para a adoção de uma nova
configuração histórica. (MARX, 2011b, p. 170-171, grifos nossos).
Nesta passagem, Marx está mostrando como a relação entre produção e troca é
distinta no capitalismo (isto é, “na sociedade desenvolvida”) em relação a uma sociedade em
que a produção não é destinada conscientemente para a troca. Isso é uma ilustração importante
para a forma como Marx rejeita a concepção de Ricardo de naturalizar, tornar aistóricas, as
relações sociais capitalistas. Trata-se de evidenciar que a superfície mercantil na sociedade
desenvolvida “aponta para além de si mesma, para as relações econômicas que são postas como
relações de produção”, para uma configuração onde a troca submete a totalidade da produção.
21
Cf. Marx (2013, p. 169-219).
40
22
O termo desenvolvimento social deve ser entendido aqui como o “recuo das barreiras naturais” (Cf. Lukács,
2012b, p. 289, 319-320), ou seja, como a explicitação cada vez maior das determinações puramente sociais.
41
do valor existe apenas no interior desse movimento sempre renovado. O movimento do capital
é, por isso, desmedido” (MARX, 2013, p. 228).
Por isso, a lógica do capital se sobrepõe à lógica dos Estados-nacionais: o impulso
autoexpansivo do valor empurra o capital para fora de qualquer fronteira nacional 23. Sua
internacionalização, portanto, é um atributo imanente; e Marx (2013, p. 78) parece reconhecê-
lo quando toma a Inglaterra como sua “ilustração principal” em virtude de ser a “localização
clássica” deste modo de produção24.
Entender o mercado mundial como o momento onde a produção é subjugada à troca
permite compreendê-lo, também, como o momento onde a produção capitalista sobrepõe-se a
outros modos de produção, como Marx e Engels compreenderam desde o Manifesto comunista:
a pressão que a troca joga sobre os produtores impele-os ao aumento de produtividade25. O
comércio, portanto, é um pressuposto e um momento da produção: produz-se para a troca. Por
isso o valor não é criado na circulação, mas na produção, sendo a primeira um momento da
segunda (RUBIN, 1987, p. 166-167). O mercado mundial marca o momento onde esse processo
de valorização – de abstração do trabalho humano – se torna a norma das relações sociais, isto
é, o trabalho abstrato se sobrepõe universalmente ao trabalho concreto no âmbito do mercado
mundial.
Como o mercado mundial é o pressuposto para a abstração real do trabalho humano,
ele está pressuposto, abstraído de suas determinações mais concretas, desde o princípio de O
Capital. A rejeição de Marx à TQM o fez perceber a primazia histórica e conceitual do mercado
mundial dentro da teoria do valor trabalho: por um lado forneceu as condições materiais para a
acumulação de capital e, por outro, resulta da própria noção de estranhamento presente no
capital. Esta é uma constatação importante e necessária para o desenvolvimento de nosso
argumento. Devemos ressaltar, ademais, que a exposição de Marx se desenrola com o acréscimo
paulatino de novas determinações cada vez mais concretas que se articulam com os níveis mais
abstratos formando, em conjunto, a realidade capitalista. Nesse sentido, as abstrações das
determinações mais concretas não são de tipo idealista, mas materialista.
Seguindo em linhas gerais o argumento de Pradella (2015a, p. 153-154), a
conclusão obtida no parágrafo anterior explica porque o último item do último capítulo da
23
Desenvolveremos com mais detalhes esse ponto e o argumento do parágrafo anterior nas seções 5.1 e 5.2 desta
tese.
24
Cf. Miranda (2016) para uma oportuna análise através da lei do valor da relação entre o “caso clássico” e os
casos não-clássicos de desenvolvimento capitalista.
25
Na subseção 1.3 desenvolveremos essa questão.
42
26
Cf. Marx (2013, p. 215-219).
27
Cf. Marx (2013, p. 124-146).
28
Cf. Marx (2013, p. 119-124).
43
29
Essa passagem está inserida no Capítulo XXI das Teorias da mais-valia, em um contexto no qual Marx critica
um folheto anônimo publicado em 1821 que expõe uma posição baseada na teoria ricardiana mas que continha
“um avanço importante sobre Ricardo” (MARX, 1980, p. 1288), que era a vinculação direta entre mais-valor e
mais-trabalho (ou ‘trabalho excedente’ na tradução de Reginaldo Sant’Anna).
44
Além do argumento que vai da rejeição da teoria quantitativa da moeda até a teoria
do dinheiro em O Capital, há um segundo grande argumento para entender o lugar do mercado
mundial na obra-prima de Marx. Trata-se do grand finale do Livro I: sua teoria da acumulação
desenvolvida na Seção VII. Pradella (2013, p. 122, 2015a, p. 155) destaca a primeira nota de
rodapé do Capítulo XXII do Livro I (“Transformação de mais-valor em capital”) como o
momento em que Marx explicita o lugar do mercado mundial no nível de abstração em que a
exposição está situada. Marx literalmente escreve o seguinte:
Abstraímos, aqui, do comércio de exportação, por meio do qual uma nação pode
converter artigos de luxo em meios de produção ou de subsistência e vice-versa. Para
conceber o objeto da investigação em sua pureza, livre de circunstâncias acessórias
perturbadoras, temos de considerar, aqui, o mundo comercial como uma nação e
pressupor que a produção capitalista se consolidou em toda parte e apoderou-se de
todos os ramos industriais. (MARX, 2013, p. 656).
Com base nessa nota, devemos considerar que o processo de reprodução do capital
é analisado abstraindo o “comércio de exportação” e, portanto, concebendo “o mundo comercial
como uma nação”. De fato, Marx explicitamente expõe esse processo tomando por base o modo
de produção capitalista como um todo (ratificando, no final do livro, aquilo que havia posto no
Prefácio). Nos termos de Pradella (2015a, p. 147), esta abstração “é a única forma de conceituar
o mercado mundial, o qual inclui os mercados internos e externos de todas as nações
participantes dele”. Em outros termos, a interpretação de que Marx adota relações de produção
globais (e não nacionais) em sua teoria da reprodução pode ser ilustrada por uma passagem da
Crítica do programa de Gotha, escrito em 1875, onde Marx desafia a tese de que a classe
trabalhadora alemã deveria atuar “nos marcos do atual Estado nacional”:
Mas os próprios ‘marcos do atual Estado nacional’ do Império alemão, por exemplo,
situam-se, economicamente, ‘nos marcos do mercado mundial’ e, politicamente, ‘nos
marcos do sistema dos Estados’. Qualquer comerciante sabe que o comércio alemão
é, ao mesmo tempo, comércio exterior, e a grandeza do sr. Bismarck reside justamente
em sua forma de política internacional. (MARX, 2012, p. 35, grifos nossos)
mercadorias produzidas pelos trabalhadores contratados por ele. Portanto, produção para a troca
é produção para o mercado mundial. O mercado mundial se constitui com a divisão técnica,
social e internacional do trabalho que coloca a troca, ou a produção para a venda, como o
“fundamento universal de todas as indústrias”. (MARX, 2011b, p. 435).
Se o escopo de O Capital – conforme a sugestão de Heinrich (2009, p. 81-82) – é a
exposição da “organização interna do modo de produção de capitalista”, a categoria mercado
mundial expressa o capitalismo em sua totalidade, como já identificado nos Grundrisse. À luz
desse entendimento, podemos voltar à nota de rodapé do Capítulo XXII de O Capital que
expressa o nível de abstração em que a exposição está sendo conduzida. Quando Marx (2013,
p. 656) pressupõe “que a produção capitalista se consolidou em toda parte e apoderou-se de
todos os ramos industriais”, ele está, conforme Pradella (2015a, p. 147-148), supondo a
imposição tendencial do modo de produção capitalista espacial e setorialmente, portanto
considerando a economia mundial enquanto totalidade a partir da “lógica geral de
desenvolvimento do sistema” já identificada nas seções precedentes do Livro I.
Marx havia desenvolvido parcialmente sua teoria da reprodução nos Manuscritos
de 1861-63. Nos termos de Pradella (2015a, p. 148), ele introduz “alguns elementos da análise
da reprodução ampliada, os quais desenvolveu mais tarde em O Capital no capítulo sobre a lei
geral da acumulação capitalista”. O resultado dessa análise é a percepção da tendência à
universalização do modo de produção capitalista, cujo ápice é a própria lei geral da acumulação
na medida em que ela implica a tendência à concentração, ou seja, a tendência ao “controle da
totalidade das esferas de produção” (PRADELLA, 2015a, p. 148) pelo capital. Nos termos de
Marx em O Capital: “A acumulação é a conquista do mundo da riqueza social. Juntamente com
a massa de material humano explorado, ela amplia o domínio direto e indireto do capitalista”
(MARX, 2013, p. 667-668).
Na Seção VII de O Capital, sobre o processo de acumulação, Marx expõe uma
descoberta fundamental desenvolvida, pela primeira vez, nos Manuscritos de 1861-1863
(PRADELLA, 2015a, p. 145-148): como a acumulação é um processo ininterrupto decorrente
da transformação de mais-valor em capital adicional e o mais-valor, conforme a exposição em
O Capital, “não contém um só átomo de valor que não derive de trabalho alheio não pago”
(MARX, 2013, p. 658), infere-se daí que o capital, depois de vários processos reprodutivos, é
inteiramente constituído por “trabalho alheio não pago”. Em síntese, a teoria da reprodução
desenvolvida em 1861-63 explicita um duplo movimento: a tendência expansionista do capital
46
A intensidade das atividades de Marx na AIT, isto é, sua militância pela revolução
internacional (COGGIOLA, 2011, p. 169-170), são plenamente incorporadas no Livro I de O
Capital – revelando a complementariedade destacada anteriormente. A conclusão do Capítulo
XXIV (“A assim chamada acumulação primitiva”), como alerta Kohan (2003, p. 236-238), é
quase uma consigna política, uma “convocação à ação, à práxis, à revolução”:
30
RUBEL, M. Karl Marx: ensayo de biografía intelectual. Buenos Aires: Paidós, 1970.
48
para a abstração real do trabalho humano. Agora, na chegada, essa totalidade se manifesta em
permanente expansão, em um movimento histórico dependente do ritmo das expropriações,
determinado em última instância pela violência estatal: “A violência é a parteira de toda
sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica”
(Marx, 2013, p. 821) 31.
Seja na partida ou na chegada, tentamos defender que o Livro I se desenvolve
necessariamente no nível de abstração do mercado mundial, entendido como a representação
total do modo capitalista de produção e apropriação. O que diferencia os dois momentos é a
quantidade de determinações que o tornam mais ou menos complexo: enquanto na partida ele
é um pressuposto abstratamente considerado, na chegada ele é posto como o resultado histórico-
concreto do espraiamento das relações de produção capitalistas.
Em síntese, Marx desafia a economia política clássica colocando em xeque suas
contradições, sendo a maior delas a aceitação conjunta da teoria do valor trabalho e da teoria
quantitativa da moeda. A rejeição de Marx desta última o faz perceber a primazia histórica e
conceitual do mercado mundial dentro da teoria do valor trabalho: por um lado forneceu as
condições materiais para a acumulação de capital e, por outro, resulta da própria noção de
estranhamento presente no capital. Como fica claro em O Capital, o estranhamento é uma peça
fundamental da teoria do valor trabalho marxiana e indica a tendência imanente do capital em
se auto expandir.
Em parte da seção seguinte iremos discutir as implicações para as teorias do
imperialismo de considerar, erroneamente, O Capital como uma obra com escopo nacional. No
restante da tese, tomaremos como pressuposto as conclusões obtidas nesta seção, que, por sua
importância, devem ser destacadas: (a) O mercado mundial é a totalidade do modo capitalista
de produção, o que significa que ele é muito mais do que a esfera da circulação de mercadorias
em escala mundial. Ele é a lei do valor em escala global, portanto o capital industrial (no sentido
marxiano) em escala mundial, enquanto uma unidade contraditória (entre economias
imperialistas e dependentes, como ficará claro na subseção seguinte e na próxima subseção).
Ele representa, portanto, a circulação do capital e não apenas das mercadorias. (b) A exposição
em O Capital está logicamente construída sobre o pressuposto do mercado mundial, tal como
o descrevemos anteriormente. Assim sendo, a lei geral da acumulação capitalista, a formação
da taxa média de lucro e a lei que descreve sua queda tendencial devem ser compreendidas em
31
Retomaremos esse tema na subseção 2.1.4 e na Seção Cinco desta tese.
49
termos mundiais. Isso significa dizer, por um lado, que a polarização crescente entre
acumulação de riqueza e pauperismo contida na lei geral abrange a totalidade do modo de
produção capitalista. Por outro lado, a transformação de valores individuais em valores sociais,
em preços de produção e em preços de mercado, como pressupõe a formação da taxa média de
lucro, também é perfilada em termos globais32. (c) Entendido dessa forma, o mercado mundial
necessariamente se manifesta como imperialismo capitalista. É o que tentaremos demonstrar na
próxima subseção.
32
O exame minucioso da relação entre as leis de desenvolvimento do capitalismo e o imperialismo será feito na
Parte 2 desta tese.
33
Cf. subseção 1.2.1.
50
destinada para a troca no mercado mundial, o que lhe confere uma qualidade radicalmente
distinta e explica por que Marx e Engels, no Manifesto, o tratam no singular: “o mercado
mundial”.
A despeito do fato de que o Manifesto representa, nos termos de Hobsbawm (2011,
p. 105), “uma fase (relativamente imatura) da evolução do pensamento marxista” especialmente
nos aspectos de sua crítica da economia política, ele apresenta uma “formulação madura”
(HOBSBAWM, 2011, p. 105) da concepção materialista da história.
Em essência, essa análise [do Manifesto] era histórica. Seu cerne era a demonstração
do desenvolvimento histórico das sociedades, e, especificamente, da sociedade
burguesa, que substituiu as que tinha precedido, revolucionou o mundo e, por seu
turno, criou necessariamente as condições para a sua inevitável substituição.
(HOBSBAWM, 2011, p. 105, grifos nossos).
Não há como negar que a sociedade burguesa experimentou pela segunda vez seu
século XVI, um século XVI o qual, eu espero, soará como sua trombeta de morte
assim como o primeiro a conduziu ao mundo. A verdadeira tarefa da sociedade
burguesa é a criação do mercado mundial, ao menos em esboço, e da produção
baseada neste mercado. Como o mundo é redondo, a colonização da Califórnia e da
Austrália e a abertura da China e do Japão parecem ter completado esse proceso.
(MARX, 2010b, p. 346-347, tradução nossa, grifos nossos).
que passa a abarcar crescentemente todo o globo terrestre. Na mesma carta citada
anteriormente, Marx se refere em termos dinâmicos à sociedade burguesa:
A expansão geográfica do mercado mundial, por sua vez, significa a extensão das
distâncias percorridas pelo capital em seu ciclo. Isto equivale ao aumento do tempo de rotação,
“a menos que haja melhorias compensatórias na velocidade de circulação” (HARVEY, 2005, p.
50). O esforço para aumentar a velocidade de circulação é vital para evitar a redução da taxa
anual de mais-valor derivada do possível aumento do tempo de rotação. Nos Grundrisse, em
52
passagens parcialmente citadas por Harvey (2005, p. 50-51), Marx (2011, p. 444) argumenta
que “a própria distância espacial resolve-se em tempo; não depende, p.ex., da distância espacial
do mercado, mas da velocidade – o quantum de tempo em que se chega ao mercado”. Isto é,
para que a expansão das fronteiras do mercado mundial não reduza as taxas anuais de mais-
valor, a resposta capitalista é incrementar a produtividade: o tempo de circulação, como
corretamente enfatizado por Harvey, responde ao imperativo da acumulação. Nos termos de
Marx nos Grundrisse:
Assim, enquanto o capital, por um lado, tem de se empenhar para derrubar toda
barreira local do intercâmbio, i.e., da troca, para conquistar toda a Terra como seu
mercado, por outro, empenha-se para destruir o espaço por meio do tempo; i.e., para
reduzir a um mínimo o tempo que custa o movimento de um local a outro. Quanto
mais desenvolvido o capital, quanto mais distendido, portanto, o mercado em que
circula, tanto mais ele se empenha simultaneamente para uma maior expansão
espacial do mercado e para uma maior destruição do espaço pelo tempo. (MARX,
2011a, p. 445, grifos nossos).
Acresce por certo que há expansão permanente do mercado, e à medida que diminui
a duração do intervalo em que a mercadoria se encontra no mercado, aumenta o fluxo
no espaço, ou seja, o mercado se amplia no espaço, e um raio cada vez mais longo
delimita a periferia em relação ao centro da esfera de produção da mercadoria.
(MARX, 1980, p. 1335).
34
A citação literal dessa passagem conforme a edição portuguesa que estamos utilizando refere-se à palavra
“operário” no lugar de “trabalhador”. Fizemos a modificação pois julgamos ser o mais correto tendo em vista a
totalidade da obra de Marx e, especialmente, seguindo a tradução inglesa do Capítulo VI Inédito que utiliza a
palavra “worker” (MARX, 2010d, p. 439).
54
Não é casualidade que esta passagem esteja dentro da seção sobre a produção do
mais-valor relativo. É evidente, portanto, que o incremento de produtividade decorrente da
constituição da grande indústria teve um papel importante e fundamental na integração
produtiva internacional que baliza a formação do mercado mundial tal qual o conhecemos, isto
é, polarizado entre dois grandes territórios: centro e periferia. Decerto, a separação marxiana
entre campos de produção preferencialmente agrícola ou industrial tem como clivagem a
distinção entre os níveis de produtividade, pois só assim é possível “arruinar o produto
artesanal”. Marx retoma a tese do Manifesto, segundo a qual a “artilharia pesada” é
evidentemente municiada pelos incrementos de produtividade, no Livro III de O Capital
quando comenta sobre os “estúpidos” e “infames” experimentos econômicos britânicos na
Índia:
35
Cf. Miranda (2016, p. 118) para um estudo mais sistemático sobre o verdadeiro sentido das controversas teses
de Marx sobre os efeitos do colonialismo britânico na Índia.
55
36
Cf. Marx (1980, p. 729-730). Na seção seguinte retomaremos essa questão.
56
anterior. Tentaremos mostrar que por detrás das evidentes formas de manifestação do fenômeno
imperialismo, há uma essência, velada e oculta. Perceber a existência dessa essência
complementará o argumento de que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado
mundial. Nas demais seções – Parte Dois – tentaremos argumentar que a concorrência no
mercado mundial necessariamente envolve transferência de valor, que será necessário para
demonstrar que a essência do imperialismo é aquela que defendemos na Seção Dois. Em síntese,
o caminho que percorreremos no restante da tese é como de um argumento retroativo: o passo
seguinte da análise serve para sustentar o passo anterior e desafiar um passo posterior.
57
Assim como o capital exerce sua dominação sobre o trabalho sem o poder coercitivo
direto, porque os trabalhadores dependem do mercado e são obrigados a entrar nele
para vender a sua força de trabalho, coisa análoga aconteceu no plano global, onde
mais e mais partes do mundo foram submetidas a esses imperativos de mercado que
as tornaram dependentes. (WOOD, 2014, p. 9-10).
37
Cf. Wood (2014, p. 34-37).
38
WOOD, E. M. O império do capital. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 65
et seq.
59
39
Vale lembrar que no debate historiográfico sobre as origens do capitalismo, a posição de Wood, expressa, por
exemplo, em A origem do capitalismo (WOOD, 2001), é que o capitalismo nasceu em regiões agrárias do sudeste
da Inglaterra no final do século XVIII. Ela combate, usando os termos de Silva (2000, p. 9), as posições
historiográficas que defendem uma “transição natural”.
60
conduzida pelo Estado. Kohan (2003, p. 236-250) resgata uma passagem notória do Capítulo
XXIV do Livro I de O Capital na qual Marx diz que a violência “é uma potência econômica”
para argumentar que ela é “essencial para a reprodução e a acumulação de capital” (KOHAN,
2003, p. 244). Como as relações econômicas dependem de relações de poder, a violência integra
a estrutura da sociedade: subjetividade, política, relações de força e de poder também estão na
estrutura econômica da sociedade, e não apenas na superestrutura. Por isso, seguindo a
argumentação de Kohan, não há uma instância econômica ilhada das demais determinações da
vida social40. Nos termos de Wood (2014, p. 17), o uso do extraeconômico “é claramente
essencial para a manutenção da coerção econômica em si”:
40
Esse argumento será útil na subseção 2.1.4, quando discutiremos as teorias contemporâneas do imperialismo e
a redescoberta da acumulação primitiva.
61
Esta citação parece indicar uma primitiva teoria da concorrência de Marx. Como
este texto foi produzido em 1847, Marx ainda não havia desenvolvido sua própria teoria do
valor, o que justifica, evidentemente, a inexistência de qualquer menção à produtividade como
elemento que empurra os monopólios à concorrência41. Em O Capital, o Capítulo X do Livro I
explicita que o incremento de produtividade pelo capital individual é o que o compele à luta
concorrencial. Como este tema será desenvolvido em detalhes na Seção Três desta tese, por
agora podemos concluir parcialmente o argumento defendendo a posição de que a concorrência
é alimentada pela produtividade:
41
Cf. Marx (1985a, p. 135-143) para um exame completo dos comentários de Marx sobre concorrência e
monopólio em A miséria da filosofia.
42
Outros momentos da exposição de Bidet (2007) são desastrosos, como sua defesa do caráter não-dialético da
transição entre dinheiro e capital ou sua sugestão de que a concorrência entra na exposição de Marx a partir da
produção do mais-valor. Como vimos (subseção 1.2), Marx opera uma sofisticada transição dialética entre dinheiro
e capital e, como veremos (subseção 3.1), a concorrência já está presente desde o primeiro capítulo do Livro I.
63
Apesar desse problema teórico, esse entendimento sobre o papel dos monopólios
foi utilizado inconteste pela teoria clássica do imperialismo e está presente, inclusive, na famosa
definição de Lenin do imperialismo. Em texto publicado em outubro de 1916, portanto logo
depois em que finaliza a redação de O imperialismo43, mas antes de sua publicação, sua posição
estava clara: “a substituição da livre competição pelo monopólio é um atributo econômico
fundamental, é a essência do imperialismo” (LENIN, 1964, p. 1). Ao resumir a teoria leninista,
Lukács (2012a, p. 63) praticamente repete as palavras de Lenin quando designa “o capitalismo
monopolista e sua guerra” como a “essência do imperialismo”.
Em O imperialismo, Lenin (2008, p. 101) recorre à categoria monopólio para
justificar “uma tendência para a estagnação e para a decomposição” do capitalismo. Seu
argumento é que ao se desvincular do acicate da concorrência, o monopólio capitalista
tendencialmente se impõe sem a necessidade de buscar incrementos de produtividade:
43
Concluído em 1916, O imperialismo de Lenin é o resultado de uma pesquisa que se iniciou em 1912, no qual
ele estuda centenas de livros e artigos sobre o tema além de reler O Capital e retomar Hegel (SAMPAIO JÚNIOR,
2011, p. 31).
44
Cf. Bukharin (1988, p. 87 et seq.), Hilferding (1985, p. 293 et seq.), Lenin (2008, p. 61 et seq.) e Luxemburgo
(1976, p. 300 et seq.). Fora do que se convencionou chamar de teoria clássica do imperialismo, Grossmann (1979,
p. 343 et seq.) apresenta o papel das exportações de capitais como contra-tendência às crises.
64
pelas principais economias do mundo (EICHENGREEN, 2000), cujo contexto mais geral é de
reação à crise deflacionária.
A polêmica dentro da teoria clássica residiu em como explicar a necessidade de
exportar capitais. De um lado, tem-se um resultado lógico da lei geral da acumulação: a
tendência à queda da taxa média de lucro. Nessa interpretação, que se baseia sobretudo em
Hilferding (1985), mas também em Bukharin (1988) e Lenin (2008), a diminuição das taxas
médias de lucro nos países imperialistas força, impõe, que os capitais se dirijam às regiões
menos desenvolvidas para produzir e se apropriar de uma taxa maior de lucro.
Entretanto, se o nível de abstração com o qual Marx expõe seu argumento em O
Capital corresponde ao nível da totalidade, isto é, do mercado mundial – como já defendemos
nesta tese45–, a lei da tendência à queda da taxa média de lucro não pode ser uma explicação
para a necessidade de exportar capitais. Embora toda a problemática da formação da taxa média
de lucro encerre a Seção Três desta tese, precisamos oferecer, desde já, alguma resposta a essa
questão. Na economia capitalista, a coexistência de setores diversos produzindo diferentes
mercadorias leva à formação de taxas de lucro diferentes entre os setores. Isto posto,
considerando que os capitais buscam as maiores rentabilidades, existe uma tendência –
determinada pela concorrência – à equalização da taxa de lucro, à nivelação da taxa de lucro
entre os setores, formando, tendencialmente, uma taxa média. Esta, por sua vez, é utilizada
pelos diversos capitais na formação dos preços de produção46.
Pradella (2015a, p. 135-136) mostra que Marx rascunha a teoria da formação da
taxa média de lucro nos Grundrisse, desenvolvendo dois elementos fundamentais que estariam
na redação final do Livro III de O Capital: (a) o mais-trabalho total é apropriado em conjunto
pela classe capitalista, que (b) o distribui de acordo com o tamanho de cada capital individual.
Para a autora, esta é uma pista para o entendimento da apropriação de valor no mercado
mundial: Marx “deixa a base para o entendimento de como capitais nas nações mais avançadas
se apropriam de mais lucro no mercado mundial”. Uma passagem dos Grundrisse, parcialmente
citada por Pradella (2015a, p. 136) indica essa posição:
Tendo em vista que o lucro pode ser inferior ao mais-valor, ou seja, que o capital
[pode] trocar-se lucrativamente sem se valorizar no sentido estrito, segue-se que não
só os capitalistas individuais, mas também as nações podem trocar continuamente
entre si, e repetir continuamente a troca em escala sempre crescente, sem que por isso
precisem ganhar de modo uniforme. Uma pode apropriar-se continuamente de uma
45
Cf. subseção 1.2 (O lugar do mercado mundial nos níveis de abstração de O Capital).
46
Retomaremos a teoria dos preços de produção na Seção Três, Subseção 3.4.
65
parte do trabalho excedente da outra, pela qual nada dá em troca. (MARX, 2011b, p.
747, grifos nossos).
Marx está se referindo aqui ao fato de que a formação tendencial da taxa geral de
lucro implica que as mercadorias, “apesar de reguladas pelo ‘domínio do valor’, não se trocam
pelos seus valores” (CALLINICOS, 2014, p. 99), ou, usando uma expressão de M. D.
Carcanholo (2013a, p. 88), “as mercadorias não são vendidas por seus valores, nem poderiam
ser, ainda que sejam”47. Isto é verdadeiro inclusive no mercado mundial, caso haja alguma
migração internacional entre capitais. Como essa migração existe empiricamente, podemos
dizer que se forma, tendencialmente, uma taxa média de lucro mundial. Como decorrência
lógica, o aumento de produtividade pelos capitais mais produtivos, localizados, em geral, nos
países mais avançados, faz com que aumente o quantum de lucro apropriado no mercado
mundial vis-à-vis o quantum de mais-valor produzido por eles. Portanto, a queda da taxa média
de lucro está associada com o aumento da taxa individual de lucro apropriada pelos capitais
mais produtivos. Segue que a formação mundial de uma taxa média de lucro implica que os
países com maior composição orgânica média tendem a se apropriar de uma taxa de lucro maior
do que os demais. Esta proposição inviabiliza a tese de Hilferding, Bukharin e Lenin segundo
a qual os capitais dos países imperialistas obtinham uma menor taxa de lucro e, em função
disso, eram empurrados para os investimentos no exterior. De fato, a exportação de capitais é
pressuposto e não resultado da formação da taxa média de lucro.
A outra explicação para a necessidade da exportação de capitais foi formulada por
Rosa Luxemburgo (1976), para a qual esta é derivada de uma insuficiência de demanda nos
países imperialistas. Nos termos de Lukács,
47
Demonstraremos essa proposição de M. D. Carcanholo na Seção 3.
66
interação com formações sociais não-capitalistas. Essa tese já foi amplamente contestada,
conforme constatado em Brewer (1990)48.
Por fim, o terceiro nível da análise dentro da teoria clássica do imperialismo encerra
uma imensa polêmica. Trata-se da questão das partilhas territoriais e da definição do
imperialismo como uma fase particular do capitalismo ou como um conjunto de políticas
executadas. Grosso modo, Bukharin (1988), Lenin (2008) e Luxemburgo (1976) tinham
entendimentos similares: o imperialismo representava um estágio final do capitalismo na
medida em que constituía o aguçamento de suas mais profundas contradições. Nesse sentido, a
guerra entre Estados imperialistas seria inevitável. Por outro lado, Kautski (1914) via no
imperialismo um tipo de política e, como tal, passível de ser revertida. Neste sentido, ele lança
a hipótese da possibilidade de uma etapa superior ao imperialismo: o ultraimperialismo; uma
nova forma de “exploração internacional” baseado na aliança recíproca entre as principais
potências imperialistas49.
Em que pesem os defeitos da teoria clássica – principalmente, seguindo Corrêa
(2012), a falta de rigor com os níveis de abstração da teoria do capitalismo de Marx, gerando
confusões entre aspectos conjunturais e estruturais da realidade –, ela foi fundamental ao
fornecer um novo marco analítico que captasse as relações econômicas entre capitais operando
em distintas nacionalidades e, consequentemente, entre distintos Estados-nacionais.
Nesse novo marco analítico, a caracterização clássica – no sentido da que se tornou
célebre e amplamente difundida – foi aquela sintetizada por Lenin. As famosas cinco
características do fenômeno podem ser resumidas, nos termos do autor, na seguinte definição:
48
BREWER, A. Marxist Theories of Imperialism: a critical survey. 2. ed. London: Routledge, 1990.p. 63 et seq.
49
Foge ao escopo desta tese avançar sobre esse tema. Nossa interpretação dessa questão pode ser encontrada em
Leite (2014a).
67
50
O termo “prioridade ontológica” decorre de Lukács (2012b, p. 307). Para o autor, as relações corretas entre
categorias correspondem a “sobreordenação e subordinação” de forma que a prioridade explanatória seja
estabelecida pelo critério ontológico. No tocante ao ser social, há “prioridade da produção e da reprodução do ser
humano em relação a outras funções”, o que, em outras palavras, significa a prioridade da base econômica em
relação à superestrutura. Lukács está combatendo o que ele chama de “hierarquia sistemática idealista ou
materialista vulgar” cuja prioridade categorial é estabelecida por “juízos de valor gnosiológicos, morais, etc”. Seu
ponto pode ser resumido da seguinte forma: “quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada
categoria com relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda,
enquanto o inverso é ontologicamente impossível”. Cf. Lukács (2012b, p. 306-308).
68
A superioridade de Lenin consiste – e esta é uma proeza teórica sem igual – em sua
articulação concreta da teoria econômica do imperialismo com todas as questões
políticas do presente, transformando a economia da nova fase num fio condutor para
todas as ações concretas na conjuntura que se configurava então. (LUKÁCS, 2012a,
p. 61, grifos do autor)
Mesmo em Para uma ontologia do ser social, escrita muitos anos depois de sua
primeira publicação sobre Lenin, Lukács apresenta uma certa reverência ao bolchevique 51,
como pode ser observado na passagem abaixo:
51
Cf. Lukács (2012b, p. 299-302) para um exame dos comentários do autor sobre Lenin. As notas elogiosas de
Lukács podem ser constatadas nas seguintes passagens: “É só com Lenin que se inicia um verdadeiro renascimento
de Marx” (p. 299); “Lenin prossegue com sucesso a linha do Engels tardio, aprofundando-o e desenvolvendo-o
em muitas questões” (p. 299); “se o marxismo quiser hoje voltar a ser uma força viva do desenvolvimento
filosófico, deve em todas as questões retornar ao próprio Marx, sendo que tais esforços podem muito bem ser
apoiados de maneira eficaz por muitos elementos das obras de Engels e Lenin” (p. 302).
70
Esta importante passagem de Lukács deve ser interpretada à luz do debate político
em que ele, obviamente, esperava interferir. Sua conclusão de que o desenvolvimento burguês
nas regiões “coloniais” estimularia um “movimento combativo a favor da autonomia nacional”
está dialogando com a tese predominante na Internacional Comunista, ou III Internacional, a
favor da libertação nacional52. Nesse sentido, Lukács aponta para a consequência da exportação
de capitais sobre o desenvolvimento da luta de classes nos planos nacional – na luta pela
libertação – e internacional – na luta pela revolução mundial, a “luta de toda a classe contra a
burguesia mundial” (LUKÁCS, 2012a, p. 75).
Para concluir esse argumento, Bambirra (1977) oferece uma interpretação preciosa
sobre o papel que Lenin conferia à integração das regiões periféricas no capitalismo como
pressuposto para a integração revolucionária mundial:
En su Primer esbozo de las tesis sobre los problemas nacional y colonial para el II
Congreso de la Internacional Comunista Lenin llama la atención hacia la necesidad
de ‘una diferenciación igualmente clara entre las naciones oprimídas, dependientes y
sometidas, y las naciones opresoras, explotadoras y soberanas, para contrarrestar las
mentiras democrático-burguesas que ocultan esta esclavización colonial y financiera
de la gran mayoría de la población del mundo por la minoría insignificante de los
52
Uma rápida história das Internacionais pode ser encontrada em Johnstone (2001). A questão nacional foi inserida
no programa revolucionário por iniciativa de Lenin: “O Segundo Congresso aprovou as Teses sobre a questão
nacional e colonial, elaboradas por Lenin, que enfatizavam a necessidade de uma aliança anti-imperialista dos
movimentos de libertação nacional e colonial com a Rússia Soviética e os movimentos operários que combatiam
o capitalismo” (JOHNSTONE, 2001, p. 198).
71
países capitalistas más ricos y avanzados, rasgo característico de la época del capital
financiero y del imperialismo’. (BAMBIRRA, 1977, p. 19).
dessa limitação pode ser encontrado no “capital financeiro” de Hilferding (1985), que trata de
uma categoria própria do capitalismo alemão e, portanto, conforme Callinicos (2009, p. 10),
muito mais particular do que pretendida pelo autor. Harvey (2005, p. 70) aponta que “a
dependência de Lenin em Hobson e Hilferding o levou a certos erros factuais”.
2.1.2.1 Uma metamorfose no imperialismo e o caminho rumo à segunda fase das teorias a
seu respeito
53
Um debate importante, mas que não temos pretensão de fazê-lo aqui é se a União Soviética era um tipo de Estado
capitalista e, portanto, imperialista.
73
O ano 1945 constitui um ponto de inflexão a partir do qual se abre um lapso de vinte
e cinco anos muito particulares: definido por muitos como a prova de que no
capitalismo se pode resolver os problemas da humanidade, porque podem se
desenvolver as forças produtivas graças às possibilidades trazidas pela ciência e pela
técnica, seu estudo rigoroso, facilitado pela maior perspectiva de que se dispõe hoje,
permite contrastar o contrário: o período 1945-1970 tem um caráter excepcional e,
mais ainda, supõe em realidade uma oportunidade perdida para alcançar uma saída
verdadeiramente positiva para a humanidade. (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p.
277, tradução nossa).
54
Cf. Eichengreen (2000, p. 131-182) para um exame detalhado da arquitetura, do funcionamento e do colapso do
Sistema de Bretton Woods.
74
55
CIZE, P. et al. Le Fonds monétaire: une enterprise de pillage des peuples. Paris: Selio, 1990. p. 133.
56
Com dados disponíveis entre 1950 e 1953, Arrizabalo Montoro (2014, p. 323) mostra que os gastos militares
quase quadruplicaram-se nesse período.
57
Demonstraremos a relação entre imperialismo e sistema de múltiplos Estados na subseção 5.3.
75
Talvez seja precisamente por não ter nenhum objetivo claro e finito que o novo
imperialismo exija força militar tão pesada. A dominação ilimitada de uma economia
global e dos múltiplos Estados que a administram exige ação militar sem fim, em
propósito ou tempo. (WOOD, 2014, p. 109).
58
Um exemplo onde Marx explicitamente demonstra sua concepção materialista do conhecimento é o último
aditamento de Teorias da mais-valia, cujo título é “Lutero supera Proudhon no combate ao juro. As ideias sobre
juro mudam com o desenvolvimento das relações capitalistas”. Marx demonstra elegantemente como as
transformações materiais transformaram antigas concepções sobre o juro ou a usura: “No melhor período do
mundo antigo, proibida a usura (isto é, não se permitiam juros). [...] Na teoria prevaleceu sempre o ponto de vista
(sustentado por Aristóteles) de a usura ser em si má. Na idade média cristã é ‘pecado’ e proibida pelo ‘direito
canônico’. Era moderna. Lutero. Ainda a concepção católico-pagã. A usura se propaga muito [...]. Mas já vence a
legitimação burguesa. Holanda. Primeira apologia da usura. Inglaterra. Século XVII. Não se combate mais a usura
em si, mas a magnitude do juro [...]. Século XVIII. Bentham. Reconhece-se que a usura livre é elemento da
produção capitalista” (Marx, 1980, p. 1568-1569, grifos do autor).
77
59
Esta subseção ocupa um largo espaço dentro desta seção pois entendemos que esse tema é geralmente
subdiscutido em trabalhos acadêmicos sobre o imperialismo – Cf. Amaral (2012), Corrêa (2012), Franco (2015),
Leite (2010). Mesmo teses sobre a teoria de Ruy Mauro Marini, como Bueno (2016) ou Luce (2011), não
aprofundam esse tema. Portanto, julgamos ser necessário pormenorizar a crítica em mais detalhes do que feito com
as teorias clássicas ou contemporâneas do imperialismo.
60
Ao longo deste trabalho o termo “troca desigual” pode ser substituído por “intercâmbio desigual” sem alterar o
sentido que queremos fornecer ao conceito. Outros autores, como Borges Neto (2011), preferem referir-se apenas
a “intercâmbio desigual” quando se trata do comércio exterior.
78
desigual”. Este termo, portanto, ocupa lugar central nas principais reflexões teóricas que
tentavam entender o imperialismo pós-1945.
Através da transformação dos valores em preços de produção, Emmanuel (1990)
estabelece uma teoria sobre a tendência secular de deterioração dos termos de troca entre países
com maior e menor composição orgânica média do capital. Baseado nas descobertas empíricas
da Cepal61, a questão que norteia a pesquisa de Emmanuel é descobrir a lei que regula o
movimento dos preços na economia mundial e, especificamente, por que os países do assim
chamado Terceiro Mundo sofrem com o barateamento relativo de suas mercadorias
transacionadas com o exterior. Nos termos do autor, a deterioração dos termos de troca “se ha
convertido en el problema más candente del presente y el futuro de los países subdesarrollados”
(EMMANUEL, 1990, p. 27).
Publicado em 1972, reside no próprio período histórico a justificativa para esta
teorização. Os anos compreendidos entre a Segunda Guerra Mundial e até aproximadamente a
década de 1960 devem ser entendidos, como já destacado, à luz do intenso processo de
descolonização: grandes regiões do mundo deixam de ser formalmente subordinadas às
potências imperialistas. Se, em função do marco colonial, era possível às metrópoles explorar
diretamente suas colônias, que tipo de lei econômica emerge após a descolonização que facilita
a “exploração” de países desenvolvidos sobre outros, subdesenvolvidos?
Na construção do problema de pesquisa, Emmanuel (1990, p. 32) sugere que as
relações econômicas internacionais favorecem os países que são mais avançados em termos de
industrialização. O autor ainda indica que as vantagens auferidas por esses países estão mais
relacionadas ao “grau de industrialização” do que ao número e extensão dos países dependentes.
Essas vantagens parecem se materializar em um “fluxo de valores reais” do polo mais atrasado
para o polo mais avançado da economia mundial, de forma que entender esse “fluxo”, portanto,
é o que constitui a teoria da troca desigual de Arghiri Emmanuel.
Emmanuel (1990) denomina de “troca desigual” o movimento permanente de
desigualdade nos termos de intercâmbio – definido como preço médio das mercadorias
exportadas pelos países subdesenvolvidos dividido pelo seu oposto, isto é, das mercadorias
importadas – em benefício dos países desenvolvidos. Dessa forma o problema da troca desigual
refere-se a problemas na formação de preços e, como tal, devem ser teorizados com base nas
leis de funcionamento do capitalismo e especialmente com base na lei do valor.
61
Cf. Prebisch (2000a, 2000b) ou, para uma síntese do pensamento cepalino, Rodríguez (1981). Uma crítica
marxista pode ser vista em Caputo e Pizarro (1970).
79
Capital
Capital Investido ∑𝒎
consumido 𝑪𝒑 = 𝒄 + 𝒗
m 𝑽= 𝒄+𝒗+𝒎 𝒍′𝒎 = 𝒍 = 𝑪𝑰 ∗ 𝒍′𝒎
∑ 𝑪𝑰
cI v CI c v
A 850 50 900 200 50 50 300 10% 90 250
B 50 50 100 10 50 50 110 10% 10 60
900 100 1000 210 100 100 410 10% 100 310
Fonte: EMMANUEL, 1990, p. 43
62
A teoria de Marx dos preços de produção será apresentada na próxima seção. Cf. Subseção 3.4.2 desta tese.
80
(300:110) e, por proceder assim, desconsidera o fato de que quando a troca é feita em termos
de preços de produção, o capital B transfere gratuitamente valores para o capital A. Enquanto
o valor produzido por B (110) é maior do que o valor apropriado por ele (70), o capital A se
apropriou de um valor maior (340) do que produzido por ele (310).
Como Emmanuel (1990, p. 44) ignora esse fluxo de valores de B para A e verifica
que as mercadorias são trocadas por seus preços de produção, conclui que não há troca desigual
nesse caso: “Luego, en este modelo el producto de la rama A se cambia por el producto de la
rama B en la relación 340:70 y no hay intercambio desigual” (grifos nossos).
Já nesta primeira abordagem do problema, nos parece que a concepção equivocada
de Emmanuel está fundamentada em uma compreensão também equivocada da lei do valor de
Marx. Isso ajuda a entender o caráter ricardiano da teoria de Emmanuel, que, como Shaikh
(1990, p. 167, 172) destaca, aceita a teoria do comércio de Ricardo baseada na lei dos custos
comparativos. Na interpretação de Emmanuel, inexiste um mecanismo real que diferencie a
produção da apropriação de valores e, portanto, promova a troca desigual de valores. Enquanto
na motivação do problema ele se referiu a um “fluxo de valores reais”, na análise teórica
propriamente dita isso é desconsiderado, afinal, como sua conclusão do modelo 1 indicou, se
as mercadorias são trocadas por seus preços de produção, não existe, para ele, a troca desigual.
O autor desconsidera o que é fundamental para Marx: as mercadorias só deixam de
ser vendidas por seus valores pois, caso o fossem, as taxas de lucros auferidas pelos capitais
individuais seriam diferentes – maiores quanto menor a composição orgânica do capital. Em
função dessa diferença é que a concorrência entre os capitais promove o nivelamento (enquanto
tendência) das taxas de lucro por meio da formação dos preços de produção. Portanto, só se
formam os preços de produção à medida que os capitais mais produtivos (e que produzem taxas
menores de lucro) podem vender suas mercadorias por um preço acima do valor: a apropriação
é maior do que a produção de valores nestes setores em função exclusivamente da formação
dos preços de produção.
Nos termos da Tabela 1, se as mercadorias fossem vendidas pelos valores as taxas
de lucro dos setores A e B seriam, respectivamente, 5,5% e 50%. Essa diferença promoveria
uma migração de capitais do setor A para o setor B, aumentando a produção de capital-
mercadoria em B e diminuindo em A, promovendo, consequentemente, uma diminuição do
preço ofertado em B e o contrário em A. Esse movimento se interromperia quando os preços de
produção fossem tais que as taxas de lucros estivessem equalizadas. É o que ocorre quando o
preço de produção em A chega a 340 e em B a 70. Quando as mercadorias são trocadas nessa
81
Capital
Capital Investido ∑𝒎
consumido 𝑪𝒑 = 𝒄 + 𝒗
m 𝑽= 𝒄+𝒗+𝒎 𝒍′𝒎 = 𝒍 = 𝑪𝑰 ∗ 𝒍′𝒎
∑ 𝑪𝑰
cI v CI c v
Para o autor, seu modelo está de acordo com a lei do valor de Marx na medida em
que, na totalidade, valores e preços de produção continuam equivalentes. Em termos
esquemáticos, poderíamos resumir o argumento de Emmanuel da seguinte forma. As
necessidades sociais dos trabalhadores nos países subdesenvolvidos ainda estão no nível de
83
63
Mais uma vez temos uma diferenciação importante com Marini (2005), que não se refere a diferenças em termos
de valor da força de trabalho. Para ele, a superexploração é entendida como sendo a remuneração da força de
trabalho por um preço abaixo do seu valor.
84
Neste trecho podemos identificar que a interpretação de Mandel está – por enquanto
supondo que o trabalho a que ele se refere é o trabalho abstrato – idêntica à leitura de Marx
sobre transferências de valor entre setores. Enquanto o comércio internacional viabiliza essa
primeira forma de relação “exploradora” – a troca desigual – o advento do imperialismo clássico
será marcado pelo que Mandel (1985, p. 36) classifica como “mudança radical em toda essa
estrutura”. A partir de agora, continua o autor, “foi a exportação de capital dos países
imperialistas, e não o processo de acumulação primária impulsionado pelas classes dominantes
locais, que determinou o desenvolvimento econômico do que seria, mais tarde, denominado
‘Terceiro Mundo’”.
Esse controle do capital estrangeiro sobre a acumulação local de capital implicou
uma nova forma de transferência internacional de valores, um ‘escoamento’ dos recursos locais
64
Desenvolvemos um argumento parecido na subseção 1.3.
85
que se manifesta, por exemplo, nas remessas de lucro ao exterior: “esse escoamento passou a
assumir a forma de expropriação contínua, pelo capital estrangeiro, de produto excedente social
local” (MANDEL, 1985, p. 36).
A tese principal de Mandel é que a era do imperialismo clássico foi substituída,
depois da Segunda Guerra Mundial, pela era do capitalismo tardio. Do ponto de vista da
exportação de capital, este passa a ser transacionado entre os próprios países imperialistas e não
apenas entre imperialistas e subdesenvolvidos. O motivo para isso, na leitura de Mandel, foi o
aumento do risco de investimento em função da exacerbação das revoltas sociais como
resultado da crise econômico-social no assim chamado Terceiro Mundo. Apesar disso, a
exportação de capital para os países periféricos fortalece – junto ao barateamento das matérias
primas – o movimento de industrialização nestes países (MANDEL, 1985).
Nessa nova fase, a economia mundial estaria baseada em uma nova estrutura. Nos
termos de Mandel (1985, p. 43, grifos nossos), isso significa que “estão emergindo novos níveis
diferenciais de acumulação de capital, produtividade e extração de excedente – e estes, embora
de natureza diversa, mostram-se ainda mais pronunciados que os da época do imperialismo
‘clássico’”. As formas em que ocorrem essa “extração de excedente” ou, em outros termos,
“transferência líquida de valor”, são, basicamente, remessa de parte do mais-valor não
acumulado (dividendos, juros, etc.) e “agravamento da troca desigual” (MANDEL, 1985, p.
44).
Mandel (1985, p. 44) lembra que Marx já se referia à transferência internacional de
valor em O Capital, como um resultado de diferenças na produtividade ou, o que significa a
mesma coisa, na composição do capital: “a troca desigual no mercado mundial, como torna
claro Marx no Capítulo XXII do Livro I de O Capital, é sempre o resultado de uma diferença
na produtividade média do trabalho entre duas nações65”. Pode ser destacado que nada tem a
ver com o tipo de mercadoria produzida, se agrícola ou industrial, mas às diferenças nas
composições orgânicas do capital. Ao mesmo tempo, a transferência de valor também pode ser
resultado de uma diferença em termos de taxa de mais-valor entre as economias nacionais.
De fato, como alerta Mandel (1985, p. 46-47), toda a problemática envolvendo
transferências (distribuição) de valores – independentemente da forma em que ocorre – está
relacionada com o grau em que a lei do valor se expressa concretamente no mercado mundial.
65
Como Mandel está se baseando na edição inglesa de O Capital, o Capítulo XXII ao qual ele se refere é
“Diversidade nacional dos salários”, equivalente ao Capítulo XX da edição alemã e das traduções brasileiras do
livro.
86
Sobre esse ponto, o autor (MANDEL, 1985, p. 29), ainda no começo do capítulo sobre o
mercado mundial, levanta uma citação de Engels para indicar que, nas palavras do parceiro de
Marx, a lei do valor e a distribuição do mais-valor por meio da taxa de lucro “atingem sua
completa realização aproximada apenas com o pressuposto de que a produção capitalista tenha
sido completamente estabelecida por toda parte”66. Ou seja, se a produção capitalista estiver
“completamente estabelecida”, a lei do valor passa a vigorar plenamente. Como corolário deste
raciocínio temos que, se as trocas no mercado mundial ocorrem entre relações de produção
capitalistas, semicapitalistas e pré-capitalistas – como Mandel acredita –, a lei do valor não
opera plenamente (o autor parece não perceber que o próprio Marx (1980, p. 729-730) sugere
que a produção de valor pode se efetivar mesmo em condições de trabalho não-assalariado,
como por exemplo a produção de algodão no sul escravocrata dos Estados Unidos; portanto,
desde que se produza para o mercado mundial é possível visualizar casos formalmente
capitalistas).
Baseando-se nisso, Mandel (1985, p. 47) conclui este capítulo com uma indicação
que será fundamental na crítica a Emmanuel e que expõe, ao mesmo tempo, uma fragilidade de
sua teoria. Segundo ele, a equalização das taxas de lucro individuais (ou nacionais) só ocorreria
no mercado mundial caso existisse “completa mobilidade internacional do capital”, a qual seria
possível somente se existisse “um único estado mundial capitalista”. Ou seja, as fronteiras
representariam uma barreira à mobilidade dos capitais, gerando taxas desiguais de lucro e,
portanto, a não formação de preços uniformes de produção. As taxas de lucro se equalizariam
apenas no mercado nacional.
Mandel (1985, p. 248, grifos nossos) deixa claro que a troca desigual é derivada da
aplicação da teoria do valor-trabalho ao comércio internacional. Partindo disso, ele propõe a
existência de duas fontes de troca desigual. A primeira, nos termos do autor, refere-se ao “fato
de que o trabalho dos países industrializados é considerado mais intensivo (portanto, produtor
de mais valor) no mercado mundial do que o dos países subdesenvolvidos”. A segunda refere-
se ao fato da não equalização das taxas nacionais de lucro e a consequente coexistência de
“diferentes preços nacionais de produção”.
As duas fontes da troca desigual resultam em que as mercadorias, no mercado
mundial, tendem a ser vendidas pelos valores internacionais. Ou seja, se não há a formação de
uma taxa média de lucro global, não há diferenciação entre preços de produção e valores. Logo,
66
Carta de Engels a Conrad Smith, em 12 de março de 1895. Cf. Engels (2010, p. 462-467).
87
sendo fiel ao raciocínio do autor, precisamos assumir que os valores produzidos internamente
e inseridos no mercado mundial são iguais aos valores internacionais. Se, portanto, valores de
determinada magnitude são trocados por valores quantitativamente iguais, como definir o
“conteúdo da ‘troca desigual’”? Valendo-se da primeira fonte da troca desigual, seu conteúdo,
no argumento de Mandel (1985, p. 253-254), é a troca de “quantidade desiguais de trabalho”.
Para que isso seja verdade, a hora de trabalho no país imperialista tem que ser considerada
“mais produtiva e intensiva” do que no subdesenvolvido, de forma que a hora de trabalho
naquele produza mais valor do que a hora de trabalho neste. Dessa forma, uma mesma
quantidade de valor carrega quantidades desiguais de trabalho: esta é a troca desigual para
Mandel (1985, p. 253-254). Um problema desse argumento é que o autor não menciona se está
tratando de quantidades desiguais de trabalho concreto ou abstrato. Sendo trocadas quantidades
iguais de valores, o quantum de trabalho abstrato cristalizado nos pacotes de mercadorias
trocados deve necessariamente ser o mesmo. Deduz-se, portanto, que a troca desigual para
Mandel equivale ao processo em que são trocadas quantidades desiguais de trabalho concreto.
Em um exemplo numérico, Mandel (1985, p. 254) supõe que o pacote de
mercadorias do país A, imperialista, contenha 300 milhões de horas de trabalho enquanto o
pacote de B, dependente, contenha 1,2 bilhão de horas de trabalho e ambos são equivalentes em
termos de valor – já que “a hora de trabalho do país desenvolvido é considerada mais produtiva
e intensiva que a da nação atrasada” (MANDEL, 1985, p. 254). Aqui, a falta de rigor com o
tratamento da categoria tempo de trabalho se manifesta novamente. Mandel parece tratar
indistintamente os efeitos distintos da produtividade e da intensidade do trabalho sobre a criação
de valor: as 300 milhões de horas de trabalho de A só seriam equivalentes em termos de valor
às 1,2 bilhão de horas de trabalho de B se o trabalho em A fosse mais intensivo que em B. A
maior produtividade do trabalho em A do que em B não teria esse efeito pois a maior quantidade
de mercadorias produzidas por A seria compensada pela diminuição do valor individual de cada
uma, de forma que a quantidade total de valor produzida com mais ou menos produtividade não
se altera67.
Se, então, o que ocorre no mercado mundial é transferência de trabalho concreto,
como apontamos anteriormente, qual a relevância disso? Conforme a argumentação de Mandel
(1985, p. 254), se não houvesse troca desigual, A deveria desembolsar o equivalente a 1,2 bilhão
de horas de trabalho no lugar das 300 milhões. Nesse caso, haveria uma “redução considerável
67
M. D. Carcanholo (2013a, p. 90-93) e R. Carcanholo (2011a, p. 82-84) examinam o tratamento marxiano sobre
a distinção entre intensidade e produtividade do trabalho. Desenvolveremos esse ponto na Seção Três.
88
68
Uma conceituação breve de superlucros tal qual utilizado por Mandel (1985, p. 415) pode ser a seguinte: “todos
os lucros superiores à taxa de lucro social média”, ou seja, a apropriação de uma taxa particular de lucro superior
à taxa geral. Como bem colocado por R. Carcanholo (2013, p. 103), o fundamento do superlucro é a mais-valia
extra obtida pelo desvio do valor individual em relação ao valor social. Cf. subseção 3.4.3 desta tese.
69
Que é a mesma coisa que a categoria “superexploração” de Marini (2005).
89
Embora houvesse essa “grande diferença” entre as taxas médias de lucro, isso não
acelerou a acumulação de capital nas colônias. Houve o contrário – o que nos ajuda a
compreender a constituição das economias subdesenvolvidas – em função da forma em que o
mais-valor era apropriado, o que significa, nas palavras de Mandel (1985, p. 244), que “uma
parte substancial da mais-valia capitalisticamente produzida nesses países (não só os
superlucros, mas todos os lucros) era drenada para as metrópoles, onde era usada para
impulsionar a acumulação ou distribuída como renda excedente”.
Além dos superlucros, outro mecanismo de exploração é a troca desigual, que,
conforme Mandel (1985, p. 244), se tornou a “regra geral” na era do capitalismo tardio. O
significado que o autor põe para a “troca desigual” já havia sido fornecido anteriormente e fica
reforçado na seguinte passagem: “Troca desigual significa que as colônias e as semicolônias
tendiam a trocar quantidades cada vez maiores de trabalho nativo (ou produtos do trabalho) por
uma quantidade constante de trabalho metropolitano (ou produtos do trabalho)”. Mandel se
aproxima de Emmanuel quando diz que uma das formas de identificar a troca desigual é através
da deterioração dos termos de troca.
A crítica central à tese de Emmanuel diz respeito a sua hipótese de que existe
“imobilidade internacional da força de trabalho e uma mobilidade internacional do capital” que
implicaria o “nivelamento internacional das taxas de lucro”. Se isso fosse verdade, aponta
Mandel (1985, p. 249), haveria uma tendência para o capital migrar em direção às regiões com
menores salários (ou maiores taxas de lucro), fomentando a acumulação de capital nessas
regiões, o que implicaria, portanto, a “impossibilidade do subdesenvolvimento” (grifos do
autor). Ou seja, a hipótese inicial de mobilidade internacional do capital – que “não se sustenta
nem teórica nem empiricamente” (MANDEL, 1985, p. 249) – faria a teoria da troca desigual
de Emmanuel entrar em contradição.
Mandel (1985, p. 249) contesta a hipótese da mobilidade de capital fundamentando-
se na “lei do desenvolvimento desigual e combinado” que determinaria a existência de “ritmos
irregulares de acumulação de capital” no modo de produção capitalista70. De passagem, cumpre
destacar que o autor utiliza essa “lei” sem demonstrá-la. Toma como verdadeira e, baseando-se
nela, sustenta a existência de regiões com baixo nível de acumulação de capital em função da
troca desigual, que implica “vasto exército industrial de reserva”, “subemprego colossal” e
70
Contribuição de Trotsky aos estudos sobre o imperialismo. Um resumo competente dessa lei pode ser encontrado
em Lowy (1998).
90
“baixos salários”. Portanto, os baixos salários não são, para Mandel, causa, mas sim
consequência:
Capital
Capital Investido 𝒎 ∑𝒎
consumido 𝒍′ = l
m 𝑽 = 𝒄+𝒗+𝒎 𝒍′𝒎 =
𝑪𝑰 ∑ 𝑪𝑰
cI v CI c v
A 5000 4000 9000 5000 4000 4000 13000 44% 51,78% 4660
B 200 2000 2200 200 2000 1800 4000 82% 51,78% 1140
pré-requisito, Mandel aponta que ocorreria o seguinte: “o fluxo de capital para B será
relativamente pequeno e a perda de valor sofrida por B em benefício de A, em decorrência da
‘troca desigual’ reduzirá a velocidade da acumulação de capital produtivo em B”, explicando
“o crescimento do subemprego em B” (grifos do autor). Aqui, corretamente, o autor situa a
troca desigual como transferência de valor, sendo o baixo salário um resultado e não ponto de
partida.
Mesmo que esse fluxo de capital seja “relativamente pequeno” para o país
subdesenvolvido, há, de alguma forma, um aumento na produção de mercadorias e uma
diminuição do preço de produção em relação ao valor. Ou seja, mesmo que as taxas de lucros
não se nivelem, existe uma tendência para a taxa de lucro cair em B e aumentar em A. Vamos
refazer o modelo apresentado por Mandel considerando essa situação:
Capital
Capital Investido 𝒎 ∑𝒎
consumido 𝒍′ = l
m 𝑽 =𝒄+𝒗+𝒎 𝒍′𝒎 =
𝑪𝑰 ∑ 𝑪𝑰
cI v CI c v
A 5000 4000 9000 5000 4000 4000 13000 44% 47% 4230
B 200 2000 2200 200 2000 1800 4000 82% 71% 1562
precisaríamos de outras mediações e outras hipóteses que não estão presentes na análise de
Mandel.
Na polêmica com Emmanuel sobre a relação de causa e efeito entre salários e
acumulação, Mandel (1985, p. 256) aponta – corretamente em nosso entendimento – que os
salários respondem, no longo prazo, à dinâmica da acumulação de capital. Nesse sentido, os
salários nos países imperialistas e nos dependentes “representam dois movimentos
complementares de um processo mundial único de acumulação de capital, ou dois aspectos
fundamentais das repercussões desse processo no desenvolvimento social e econômico da
humanidade sob o controle do capital”. Ou seja, a acumulação de capital deve ser entendida em
termos de um processo global com impactos diferenciados sobre as distintas formações sociais;
em uma abordagem próxima à apresentada em Pradella (2013, 2015a).
Em nosso entendimento, a fragilidade do argumento de Mandel é considerar
impossível a formação de uma taxa geral de lucro mundial. O ponto aqui se refere a uma
diferenciação entre a realidade e o conceito sobre esta realidade. Quando Mandel afirma que
não se forma uma taxa geral de lucro mundial pois, dado que existem barreiras à mobilidade do
capital, coexistem taxas nacionais desiguais de lucro, ele está se desfazendo de um conceito (a
taxa geral de lucro) a partir de uma suposta não aderência deste conceito à realidade (as taxas
desiguais de lucro). O problema desta interpretação é que parece se esquecer que as categorias
baseadas na lei do valor de Marx devem ser entendidas sempre em termos tendenciais ou
aproximados.
Em nossa leitura, se capitais de determinado lugar migram para outros lugares –
mesmo com barreiras, dificuldades, etc. – ou se os capitais já instalados aumentem a escala de
produção em busca de taxas maiores de lucro, forma-se, tendencialmente, uma taxa geral de
lucro entre os países, mesmo que, na realidade, as taxas de lucros nacionais sejam desiguais.
Neste caso, a distância entre as diversas taxas nacionais de lucro e a taxa geral de lucro tem o
papel concreto de estimular ou emperrar as movimentações de capital ao redor do globo.
Seguindo este raciocínio e reduzindo o nível de abstração, poderíamos entender que as
migrações de capital para a China, por exemplo, só ocorrem porque a taxa de lucro produzida
ali é maior do que a taxa mundial de lucro. Aliás, como o período histórico em que Mandel
viveu foi um dos momentos com menor fluxo internacional de capitais e com economias
93
relativamente mais fechadas71, isto poderia ser uma pista para entender para a forma como o
autor interpretou esta questão.
Na mesma carta de Engels citada por Mandel, há uma passagem que fundamenta
nossa posição e que foi negligenciada pelo autor. Ao discutir a diferenciação entre realidade e
conceito nos termos, segundo ele, hegelianos, Engels afirma:
[...] o conceito de uma coisa e sua realidade correm lado a lado como duas assíntotas,
sempre se aproximando mas nunca se encontrando. Esta diferença entre ambos é uma
diferença que impede que o conceito seja direta e imediatamente a realidade e que a
realidade seja imediatamente seu próprio conceito. Mas apesar do conceito ter a
natureza essencial de um conceito e não poder, portanto, prima facie diretamente
coincidir com a realidade, a partir da qual ele deve ser primeiro abstraído, [o conceito]
é ainda algo mais do que uma ficção [...] e mesmo assim corresponde à realidade com
aproximação assintótica. (ENGELS, 2010, p.463-464, tradução nossa)
Essa digressão metodológica de Engels é útil para compreender que a taxa geral de
lucro deve ser compreendida “como uma tendência, aproximação, média, e não como a própria
realidade”. Portanto, sabendo que a migração de capitais é um pressuposto para a taxa geral de
lucro e conhecendo as dificuldades mencionadas por Mandel para a migração de capitais, se
existe alguma mobilidade que, de alguma forma, se fundamenta em desvios das taxas nacionais
de lucro em relação à média, podemos inferir que se forma, tendencialmente, uma taxa geral de
lucro global. A formação de uma taxa média de lucro não significa que todos os capitais terão
iguais taxas de lucro. Ao contrário, a formação de uma única taxa média de lucro pressupõe que
os capitais apresentem distintas taxas de lucro72. Constatar empiricamente isso não nega a taxa
média de lucro, ao contrário, a comprova. Mandel aqui adota uma posição mais próxima de
Ricardo que de Marx.
Sobre esta polêmica, Saludjian (2014) alerta que o próprio Marx levantou o
problema – sem o responder explicitamente – da formação da taxa geral de lucro mundial. De
acordo com Saludjian (2014, p. 13), no Livro III de O Capital existem várias indicações sobre
“o caráter imediatamente e inerentemente mundial do capitalismo”. Na discussão sobre as
contra tendências à lei da queda tendencial da taxa de lucro, Marx lança uma questão que,
segundo Saludjian, é de grande importância: “outra questão que, a bem dizer, ultrapassa, por
seu caráter especial, os limites de nossa pesquisa: sobe a taxa geral de lucro em virtude da taxa
mais alta obtida pelo capital empregado em comércio exterior e particularmente no comércio
71
Cf. Eichengreen (2000, p. 132-134).
72
Cf. Seção Três desta tese.
94
colonial?” (MARX, 2008, p. 313). Em outros termos, o que Marx está se perguntando é se o
capital aplicado no exterior contribui para a formação de uma taxa geral de lucro mundial ou se
se formam taxas gerais de lucros nacionais e autônomas. Nos parece que, conforme indicado
anteriormente, a formação da taxa geral de lucro mundial só pode ser operada em termos
aproximados e se, e somente se, considerarmos a possibilidade de migração entre capitais de
distintas nacionalidades.
Sobre os problemas da teoria de Emmanuel, além do que já foi detectado nesta
seção, acreditamos que muito já foi esclarecido em outras ocasiões 73. Por esse motivo, iremos
nos deter na concepção (e na crítica) de Mandel tentando identificar onde está a centralidade da
polêmica e os pontos que merecem ser reavaliados à luz de uma formulação atenta com a
natureza dialética da teoria de Marx e com a polêmica contemporânea.
Como já discutido, Mandel rejeita a teoria da troca desigual de Emmanuel com base
na não aderência à realidade de seu mais importante pressuposto: a hipótese da perfeita
mobilidade internacional do capital (junto com a hipótese da imobilidade da força de trabalho).
O problema da posição de Mandel é que, quando ele desconsidera a perfeita mobilidade do
capital em troca de sua hipótese de que, no mercado mundial, valores são idênticos aos preços
de produção, ele apenas desloca a irrealidade da hipótese para o outro extremo; simplesmente
faz um giro de 180 graus na hipótese de Emmanuel. Em nosso entendimento, ambos os autores
estão restritos a uma dicotomia entre mobilidade perfeita versus imperfeita que,
independentemente da posição a ser seguida, não é satisfatória.
Nos parece claro que a realidade do capitalismo (principalmente a partir do advento
da grande indústria e especialmente durante e após a era do imperialismo clássico) é que existe
alguma mobilidade internacional do capital e alguma mobilidade internacional da força de
trabalho. Se não fosse assim, os países na periferia do sistema não seriam receptores líquidos
de capitais e, por outro lado, exportadores líquidos de mão de obra.
Isto posto, para que sejamos coerentes com a crítica da economia política de Marx,
parece-nos plausível assumir que a migração de capitais é orientada por diferentes
possibilidades de valorização do capital, ou seja, diferentes possibilidades de lucratividade que
respondem, em última instância, às diferenças quantitativas entre as composições orgânicas dos
diversos capitais ao redor do mundo. Aqui precisamos, de passagem, fazer duas observações.
A primeira refere-se às diferenças nas composições orgânicas entre capitais que produzem
73
Cf. Carchedi (1991, p. 222-225) e Shaikh (1990, p. 167-171).
95
VI VS PP PM
Fonte: O autor
Partindo dessa esquematização, fica mais fácil perceber as três dimensões em torno
das quais gravita o problema da troca desigual, as quais serão objeto da próxima seção. A
primeira dimensão diz respeito à transformação de valores individuais em valores sociais e a
possibilidade de transferência de valor na produção de uma mercadoria homogênea. A segunda
dimensão – da transformação de valores (sociais) em preços de produção – é aquela onde se
situou a polêmica de Mandel contra Emmanuel. A questão aqui é se se formam (ou não) preços
de produção internacionais através dos quais podemos fazer a comparação com os valores
sociais de cada ramo ou país. Embora a abordagem de Emmanuel tenha problemas no
encaminhamento da questão, ele assume a formação de preços de produção internacionais;
diferentemente de Mandel, para o qual não ocorre esse processo. De uma forma ou de outra,
96
De forma sintética, a situação dependente se caracteriza pelo fato de que uma parte
do (mais) valor produzida nessa economia não é apropriada nela, mas nas economias
centrais, e passa a integrar, portanto, a dinâmica de acumulação de capital das últimas,
e não das primeiras. O processo de transferência de (mais) valor ficou conhecido na
discussão dos anos 1960 como troca desigual. (CARCANHOLO, M. D., 2013b, p.
194).
74
Katz (2011, p. 142) cita Kalecki, Steindl, Joan Robinson, dentre outros.
75
Um balanço dessa retomada pode ser encontrado em F. C. Prado e Castelo (2013).
76
Retomaremos brevemente essa polêmica na seção seguinte. De antemão, podemos adiantar que a essência dessa
divergência reside na explicação da mais-valia extraordinária, isto é, se ela ocorre via transferências de valor de
capitais menos produtivos para aqueles mais produtivos; ou se ela ocorre porque os trabalhos mais produtivos
98
equivalem a uma quantidade maior de trabalho abstrato e, portanto, produtores de maior valor. Uma tentativa de
síntese desse debate está em Cipolla (2003).
77
Cf. Martins (2013, p. 41-48) para um resumo comparado dessas duas vertentes.
99
avançaram para além do plano empírico, [...] sem um maior aprofundamento do ponto de vista
categorial, deixando à teoria da dependência, portanto, o espaço para levar a cabo essa
construção” (AMARAL, 2013, p. 82).
Santos (1970, p. 41), em passagem citada por Bambirra (1977, p. 17), reivindica
para a teoria da dependência o papel de compreender o imperialismo, ou o processo global, sob
a ótica própria dos países dependentes:
[...] debe ser ampliada con el objeto de que, en su contexto global, sea insertada,
englobada, la teoría de la dependencia. [...] Es decir, Santos insiste aquí en que países
capitalistas desarrollados y países capitalistas dependientes, al constituir una misma
unidad histórica, deben producir una misma unidad teórica, vale decir, la teoría del
imperialismo debe originar la teoría de la dependencia. (BAMBIRRA, 1977, p. 18).
78
Cf. M. D. Carcanholo (2013a) para uma apreciação sobre esta categoria. Alguns autores da teoria da
dependência, inclusive Bambirra e Marini, utilizam o termo superexploração do trabalho, o que é incorreto. M.
Carcanholo demonstra que o correto seria usar “superexploração da força de trabalho” ao invés de
“superexploração do trabalho”: “o rigor teórico e metodológico exige utilizar o termo superexploração da força
de trabalho, uma vez que explorar – no sentido de usar, utilizar, consumir, realizar – aquilo que já é o resultado
desta exploração (utilização), o trabalho, não parece fazer muito sentido” (CARCANHOLO, M. D., 2013a, p. 75-
6). Manteremos “superexploração do trabalho” apenas quando necessário para ser fiel ao original em algumas
citações literais.
102
entre nações ao invés do plano da luta entre classes, o que, de fato, seria um erro. Não é esse,
contudo, o procedimento de Marini em específico ou da teoria marxista da dependência em
geral:
[...] à medida que o mercado mundial alcança formas mais desenvolvidas, o uso da
violência política e militar para explorar as nações débeis se torna supérfluo, e a
exploração internacional pode descansar progressivamente na reprodução de relações
econômicas que perpetuam e amplificam o atraso e a debilidade dessas nações.
(MARINI, 2005, p. 150, grifos nossos).
Trata-se de uma imprecisão que pode alimentar a confusão categorial entre classe
e nação. Mas uma observação no conjunto da obra permite constatar que essa noção de
“exploração internacional” está vinculada, necessariamente, à transferência de (mais-) valor.
Com efeito, está vinculada às relações de exploração da força de trabalho no polo dependente
e no polo imperialista da economia mundial, ou, o que dá no mesmo, à luta de classes no plano
da economia mundial.
A conexão entre transferência de valor via troca desigual com a superexploração
sugere, conforme destacado por Pradella (2015a, p. 152), que a classe trabalhadora dos países
dependentes está sujeita a uma dupla exploração: das burguesias nacional e internacional.
Tentando recuperar o argumento de Marini, a autora destaca que “em função das possibilidades
limitadas de aumentar a produtividade do trabalho, o capital em regiões dependentes recorria à
métodos de extração de mais-valor absoluto tal como [...] a compressão dos salários, incluindo
sua redução abaixo do valor da força de trabalho” (PRADELLA, 2015a, p. 152). Existem duas
imprecisões na argumentação de Pradella que precisam ser destacadas. Por um lado, sua
afirmação pode dar a impressão que o capitalismo dependente apenas produz mais-valor
absoluto, o que é incorreto. Por outro lado, a autora trata a superexploração da força de trabalho
como se fosse uma forma específica de extrair mais-valor absoluto, o que também é incorreto.
Na realidade, como enfatiza M. D. Carcanholo (2013a, p. 78), a produção de mais-valor
103
É a maior exploração relativa dos trabalhadores nos países mais desenvolvidos que
resulta na transferência de valor a partir dos capitais nos países menos desenvolvidos,
o que, por sua vez, impacta negativamente sobre as condições dos trabalhadores e
sobre as formas de exploração do trabalho, e também sobre as possibilidades gerais
de reprodução ampliada nesses países (PRADELLA, 2015a, p. 153, tradução nossa).
as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar
a reprodução ampliada da dependência” (MARINI, 2005, p. 141).
A dependência está inserida no quadro de acentuação da divisão internacional do
trabalho resultante da Revolução Industrial e do surgimento da grande indústria na Inglaterra.
Há, portanto, uma vinculação estreita entre a explosão de produtividade na produção fabril com
o maior entrelaçamento entre capitais dentro do mercado mundial, como Marx já havia
adiantado no Livro I de O Capital79, e que forma uma “nova divisão internacional do trabalho”
articulada em torno da desigualdade tecnológica entre países avançados e atrasados. Permite,
assim, a existência da transferência de valor através da troca desigual. Embora Harvey (2005,
p. 57) não conceitue o fato dessa maneira, é sobre isso que ele se refere quando afirma que
[...] nos países avançados, os capitalistas talvez também obtenham uma maior margem
de lucro, vendendo seus bens acima do valor na concorrência com as ‘mercadorias
produzidas em outros países com instalações inferiores de produção [...] da mesma
maneira que um fabricante explora uma nova invenção antes que ela se torne
universal’. (HARVEY, 2005, p. 57, grifos nossos).
Harvey utiliza aqui uma passagem do Capítulo XIV do Livro III de O Capital onde
Marx aponta para o comércio exterior como uma tendência contrariante à lei da queda
tendencial da taxa de lucro. Diz Marx:
[...] capitais empregados em comércio exterior podem conseguir taxa mais alta de
lucro, antes de mais nada, porque enfrentam a concorrência de mercadorias
produzidas por outros países com menores facilidades de produção, de modo que o
país mais adiantado vende suas mercadorias acima do valor, embora sejam mais
baratas que as dos países competidores. (MARX, 2008, p. 313, grifos nossos).
Marx (2008, p. 313-314) ainda relaciona esse processo com o superlucro obtido pelo
capitalista inovador, retomando, claramente, os resultados do Capítulo X do Livro I onde
apontava para a apropriação de mais-valor extra. Na realidade, Marx está indicando que os
resultados expostos por ele naquele momento do Livro I valem para o comércio exterior:
O mesmo se dá com o fabricante que utiliza invenção nova antes de ela generalizar-
se, vendendo mais barato que os competidores, e, apesar disso, vende a mercadoria
acima do valor individual, isto é, faz valer como trabalho excedente a produtividade
79
Cf. Marx (2013, p. 523), citado na subseção 1.3 desta tese.
105
Primeiro: trata-se de verdadeiras colônias como nos Estados Unidos, Austrália etc. Aí
a massa dos colonos agricultores, embora traga da terra natal montante maior ou
menor de capital, não constitui classe capitalista, nem sua produção é a capitalista.
São mais ou menos camponeses que trabalham autonomamente, para os quais o
fundamental, antes de tudo, é produzir o próprio sustento, os meios de subsistência, e
cujo produto principal portanto não se torna mercadoria e não se destina ao comércio.
Na segunda espécie de colônias – as grandes fazendas (plantations) – destinadas desde
o início à especulação comercial e com a produção voltada para o mercado mundial,
verifica-se a produção capitalista, embora formalmente apenas, uma vez que a
escravatura negra exclui o assalariado livre, portanto o fundamento da produção
capitalista. Mas são os capitalistas que fazem o tráfico negreiro. O modo de produção
que introduzem não provém da escravatura, mas nela se enxerta. (MARX, 1980, p.
729-730).
Nessa longa passagem, fica claro que o caráter não-capitalista dos colonos de
primeiro tipo decorre do fato de que sua produção não é destinada para a troca, mas sim à
subsistência. Portanto, eles não produzem valores. Já na segunda espécie de colônia, ela é
formalmente capitalista pois produz para a troca, produz para o mercado mundial. (Reforça-se
80
O termo ‘faz valer’ aqui tem o mesmo sentido do termo “funciona como” / “opera como” do capítulo do mais-
valor relativo do Livro I, reforçando a posição de R. Carcanholo (2013, p. 108) sobre a apropriação de mais-valor
extra, via transferência de valor. Este tema será tratado extensivamente na próxima seção.
106
a assertiva de que produzir para a troca equivale a produzir para o mercado mundial ou produzir
de forma capitalista). Ou seja, esses trabalhadores, embora escravos, produzem valores.
Portanto, pode haver, desde as colônias, transferência de valores, ou seja, imperialismo. Esta é
uma passagem que indica que as chamadas ‘colônias de exploração’ integravam o modo
capitalista de produção a partir do momento em que este assume sua especificidade, qual seja,
a subsunção real do trabalho ao capital. O Brasil escravagista, por exemplo, a partir de sua
integração à divisão internacional do trabalho forjada pela Revolução Industrial era
formalmente capitalista. Considerando que a relação imperialista se desenvolve entre duas
regiões capitalistas, ou entre dois Estados-nação capitalistas, a relação desenvolvida, por
exemplo, entre Inglaterra e Brasil no século XIX, era uma relação imperialista. Um
imperialismo de tipo colonial, pode-se dizer, mas, ainda assim, um imperialismo. Com isso,
estamos antecipando a defesa de que o imperialismo não nasce no final do século XIX, como
sustentava Lenin, mas nasce com a própria constituição do mercado mundial capitalista
decorrente da revolução na produtividade fabril.
Retomando o fio da meada da teoria marxista da dependência, podemos afirmar que
a existência da superexploração da força de trabalho nas regiões dependentes como “mecanismo
de compensação” à transferência de valor repercute permanentemente sobre a estrutura dessas
sociedades. No movimento real da formação do capitalismo dependente, esse fardo histórico
equivale, empiricamente, à estratificação social que implica duas esferas relativamente
autônomas de circulação: “da circulação [i.e., troca desigual] à produção [i.e., superexploração],
da vinculação ao mercado mundial ao impacto que isso acarreta sobre a organização interna do
trabalho, para voltar então a recolocar o problema da circulação [em duas esferas]” (MARINI,
2005, p. 161). Esta característica de uma economia dependente e subdesenvolvida moldou o
processo de industrialização.
Forjada através da importação de maquinário estrangeiro, a industrialização latino-
americana no pós-guerra ilustra os reflexos sobre as economias dependentes da exportação de
capital imperialista. Se entrelaçam aqui os dois modos de existência tipicamente econômicos
do imperialismo: troca desigual e exportação de capital. Para resumir o argumento de Marini
(2005), a industrialização foi impulsionada pela elevada concentração de capital em escala
mundial pelas grandes corporações que necessitam de aplicar lucrativamente seu capital. Ao
mesmo tempo em que a superexploração nas economias dependentes gerava uma alta taxa de
lucro, o desenvolvimento do setor de bens de capital nas economias imperialistas exigia
107
mercados para esta indústria, especialmente para o maquinário que se tornava rapidamente
obsoleto para os padrões da concorrência nas regiões centrais (MARINI, 2005).
Com essas características, a industrialização latino-americana não sobrepujou a
velha divisão internacional do trabalho baseada em desigualdades tecnológicas. Ao contrário,
a intensificou, posto que “são transferidas para os países dependentes etapas inferiores da
produção industrial [p. ex.: siderurgia] [...], sendo reservadas para os centros imperialistas as
etapas mais avançadas [...] e o monopólio da tecnologia correspondente” (MARINI, 2005, p.
174-175). Portanto, se desenvolve uma nova hierarquia da economia capitalista mundial na qual
se aprofunda a relação imperialista à medida que se enraíza a desigualdade tecnológica.
A propósito dessa nova hierarquia, cumpre mencionar que os principais países
receptores do capital imperialista se transformam em centros subimperialistas pois adquirem
um patamar intermediário na escala da produtividade social do trabalho. O subimperialismo
“não é nada mais do que uma forma particular que assume a economia industrial que se
desenvolve nos marcos do capitalismo dependente” (MARINI, 2005, p. 180). No emaranhado
de relações imperialistas, a existência do subimperialismo pode ser visualizada quando a
concorrência no mercado mundial defronta vários capitais de origens diversas. A cadeia
imperialista torna-se mais complexa e abrange relações de transferência de mais-valor entre
capitais particulares que na hierarquia global são definidos como dependentes. Ora, se a questão
for tomada nesse nível elevado de abstração, aquele país dependente cujos capitais se
relacionam com outros capitais também de países dependentes apropriando-se de mais valores
do que produzem é o país chamado de subimperialista.
A partir desse entendimento fica bastante evidente o motivo pelo qual Marini
(1977) se referiu aos países subimperialistas como “centros medianos de acumulação”, cuja
composição orgânica (ou produtividade) média deve estar em um patamar intermediário na
integração hierarquizada dos centros de acumulação ou, em nossos termos, na cadeia
imperialista global. O subimperialismo, portanto, é uma categoria subordinada e relativa.
Subordinada, pois só pode ser definida após a caracterização da cadeia imperialista global e
especificamente após a caracterização dos dependentes. Relativa, pois só é definido a partir da
relação bilateral entre dois países ou entre um país e um grupo de países de acordo com os
níveis de produtividade.
Isso posto, a ênfase da teoria marxista da dependência na caracterização dos fluxos
de transferência de valor e na ampliação da cadeia imperialista global, considerando as relações
108
81
Este é um termo de Corrêa (2012) para designar as teorias de Bukharin e Lenin.
82
Cf. Luxemburgo (1916): “Nós estamos colocados hoje diante desta escolha: ou bem o triunfo do imperialismo
e a decadência de toda a civilização tendo como consequências, como na Roma antiga, o despovoamento, a
desolação, a degenerescência, um grande cemitério; ou bem vitória do socialismo, ou seja, da luta consciente do
proletariado internacional contra o imperialismo e contra seu método de ação: a guerra. Eis aí o dilema da história
do mundo, sua alternativa de ferro, sua balança no ponto de equilíbrio esperando a decisão do proletariado
consciente. O proletariado deve jogar resolutamente na balança a sua espada do combate revolucionário: o futuro
da civilização e da humanidade dependem disto”.
83
Cf. Frank (1968).
109
Por outro lado, apesar desse certo teleologismo de uma parte das teorias marxistas
da dependência, sua vinculação explícita com a práxis é uma virtude que, certamente, não
deveria ser estranha ao marxismo. Nos termos de Lukács: “Para os marxistas, a análise
concreta da situação concreta não constitui nenhuma oposição à teoria ‘pura’, mas, ao
contrário, o ponto culminante da autêntica teoria, o ponto em que a teoria é verdadeiramente
realizada e, por essa razão, transforma-se em práxis” (LUKÁCS, 2012a, p. 62, grifos do autor).
O contexto latino-americano sob o qual se ergue a teoria marxista da dependência,
com a polarização explícita entre socialismo e capitalismo, propiciava esse acerto de contas
entre teoria e prática. No retrospecto dos pontos altos e baixos do marxismo latino-americano,
Portantiero afirma: “Não há dúvida de que, com os anos 60, inicia-se uma nova etapa na história
do marxismo latino-americano. O principal ponto de ruptura é assinalado, obviamente, pela
vitória da Revolução Cubana e pela proclamação por Fidel Castro, em abril de 1961, do ‘caráter
socialista’ do novo regime” (PORTANTIERO, 1983, p. 333).
Apenas para dar um exemplo, no clássico ensaio de Florestan Fernandes, a
exposição da dominação externa e dos efeitos sobre as sociedades dependentes culmina com a
posição de duas alternativas políticas: capitalismo de Estado, por uma saída “dentro da ordem”,
ou socialismo, por uma saída “contra a ordem”:
Como veremos na próxima subseção, a partir dos anos 1990 diminui o ímpeto com
que as teorias marxistas do imperialismo reivindicam o socialismo. Na maioria das vezes essa
vinculação não será posta nem pressuposta. Independentemente disso, essa nova fase de
reflexão teórica irá contribuir com a descoberta – ou a devida ênfase – de uma nova forma de
manifestação do imperialismo: a acumulação primitiva ou a expropriação de recursos por
mecanismos de coerção extraeconômicos.
110
84
Tentativas de interpretação do imperialismo contemporâneo podem ser encontradas em Callinicos (2009),
Duménil e Lévy (2004, 2007), Harvey (2003), Sakellaropoulos (2009), Went (2001), Wood (2014), entre outros.
Uma crítica destas teorias pode ser encontrada em Corrêa (2012) ou Leite (2014b).
85
Por outro caminho, menos conectado ao imperialismo, outro autor que defende a contemporaneidade das
expropriações é Lapavitsas (2009, 2013) ao tratar das “expropriações financeiras”.
111
precisando, pois, vender, em parte ou totalmente, sua força de trabalho e, em muitos casos, sob
quaisquer condições”. Esse enorme contingente populacional torna-se subitamente dependente
do mercado, o que sugere que estamos “diante de uma formidável expansão das bases primárias
sobre as quais assenta a relação social capitalista” (FONTES, 2010, p. 51). Esse é o processo
que a autora denomina de expropriações primárias e que possui o mesmo significado da
acumulação primitiva marxiana: “A massa profundamente desigual de trabalhadores
disponíveis urbanos assim constituída, por um lado, abriu formidável manancial de exploração
da força de trabalho para capitais e capitalistas de porte variado” (FONTES, 2010, p. 53-54).
Trata-se de um processo permanente de “produção generalizada e caótica de trabalhadores cada
vez mais ‘livres’, expropriados de todos os freios à sua subordinação mercantil”, despojados
das suas próprias condições de subsistência (FONTES, 2010, p. 42)86.
Como a produção de mais-valor depende da existência desse conjunto de
trabalhadores livres que vendem sua força de trabalho no mercado em troca dos salários,
podemos assegurar que “das expropriações emanam as condições de possibilidade do capital”
(FONTES, 2010, p. 44). Nos termos da autora:
O tema das expropriações, destaca Fontes, foi tratado por Marx em diversos
momentos de O Capital. No Livro I, ele adquire um caráter de pressuposto da relação-capital
na medida em que garante a existência do conjunto de trabalhadores livres, prontos para serem
explorados. “O crescimento da concentração do capital corresponde a um incremento desigual
e difuso, porém avassalador das massas de trabalhadores, que constituem sua base social
contraditória e tensa.” (FONTES, 2010, p. 42). As expropriações constituem o “lado oculto” da
concentração, que atinge seu máximo desenvolvimento, conforme a argumentação da autora,
com o capital portador de juros. Podemos problematizar o fato de que sendo o capital fictício
um desenvolvimento do capital a juros (CARCANHOLO, R.; NAKATANI, 1999), o ápice da
concentração atingir-se-ia com aquele e não com este. Seja como for, Marx retoma o tema das
expropriações quando examina o capital portador de juros:
86
Cf. Seção Cinco desta tese.
112
O período que medeia do final da Segunda Guerra Mundial até a década de 1980 foi
marcado por uma situação histórica única, na qual a divisão do mundo entre países
pós-revolucionários e países capitalistas impôs modificações substantivas no ritmo,
na extensão e na forma da expansão do imperialismo, e trouxe uma sobrecarga retórica
e ideológica que dificulta a percepção real das transformações então em curso. Falar,
pois, de capital-imperialismo, é falar da expansão de uma forma de capitalismo, já
impregnada de imperialismo, mas nascida sob o fantasma atômico e a Guerra Fria.
Ela exacerbou a concentração concorrente de capitais, mas tendencialmente
consorciando-os. Derivada do imperialismo, no capital-imperialismo a dominação
interna do capital necessita e se complementa por sua expansão externa, não apenas
de forma mercantil, ou através de exportações de bens ou de capitais, mas também
impulsionando expropriações de populações inteiras das suas condições de produção
(terra), de direitos e de suas próprias condições de existência ambiental e biológica.
(FONTES, 2010, p. 149, grifos nossos).
87
Cf. subseção 4.3 desta tese.
113
88
Um dos exemplos apontados por Fontes (2010, p. 55-58) de ataques aos direitos sociais é a elevação das idades
mínimas para aposentadoria. Funcionam como “uma das formas de expropriação de direitos” que obrigam a
população trabalhadora a ceder por mais tempo sua força de trabalho ao capital. Nas reformas previdenciárias,
“realizava-se um duplo movimento, de ameaça diante das aposentadorias e do estímulo às agências privadas de
previdência (fundos de pensão e similares), entidades convertidas em gestoras não bancárias de capital portador
de juros e de seu complemento, o capital fictício” (FONTES, 2010, p. 58).
114
a partir do final do século XX, onde “ocorreu um extenso desmantelamento de direitos sociais
e trabalhistas que contou com forte apoio parlamentar” (FONTES, 2010, p. 55). Nesse caso,
efetiva-se uma transferência do valor de uso da força de trabalho do produtor para o apropriador.
Além da expropriação de direitos, as expropriações contemporâneas “incidem
também sobre o controle direto dos Estados capital-imperialistas sobre matérias-primas
estratégicas” (FONTES, 2010, p. 58). O exemplo sintomático recente é a expropriação das
fontes do petróleo iraquiano executadas por forças militares estadunidenses. A conjunção das
diversas formas de expropriação secundária desvela um aspecto crucial: as expropriações
equivalem à transferência de valor de uso de um polo a outro. Nas expropriações primárias, por
exemplo, o produtor direto transfere o valor de uso de sua força de trabalho ao capital. Nas
expropriações secundárias, utilizando o exemplo anterior, empresas iraquianas transferem o
valor de uso do petróleo às companhias internacionais. Não há necessariamente uma
transferência de valor posto que o expropriado pode não ser, de antemão, produtor de valor. Há,
de fato, uma transferência de riqueza mediada pelo valor de uso que pode, na sequência, integrar
um processo produtor de valor.
Em síntese, a relação entre expropriações primárias e secundárias é a seguinte:
A resposta capitalista à crise dos anos 1970 fez com que a acumulação por
espoliação se tornasse “a forma dominante de acumulação” (HARVEY, 2003, p. 126-127).
Portanto, combater esse processo é, seguindo a interpretação de Harvey na passagem
supracitada, o dever principal do movimento dos trabalhadores. O corolário dessa posição é a
diminuição da importância do trabalho assalariado e da exploração, que atinge seu ápice quando
Harvey, em seu compêndio sobre o Livro I de O Capital, conforme destacado por Callinicos
(2014, p. 198), enquadra a própria exploração como um processo de expropriação, de roubo:
89
Desenvolveremos esse argumento na subseção 5.2.
116
reforça a crítica à posição de Harvey e indica, de passagem, uma concepção de mercado mundial
ao apontar a centralidade da “relação-capital”:
Desiguais segundo os países e regiões nos quais nasceram, forjadas segundo direitos
e costumes tradicionais diversos, constituem extensa massa de força de trabalho
desigualmente liberada para o capital internacional, diferenciadamente formada, mas
igualmente disponível (e necessitada) para as variadas formas de exploração de mais-
valor e para as mais diversas modalidades de concorrência entre os próprios
trabalhadores. (FONTES, 2010, p. 45).
90
Adiante, na Seção 5, mostraremos que essa interpretação de Marx feita por Harvey está incorreta.
118
garantizaría, si esto no fuera así, que se respeten - como mínimo - las normas del
cambio, los contratos entre poseedores de mercancías, la validez del curso legal del
.ropaje nacional del dinero, (la moneda), etc.? (KOHAN, 2003, p. 244).
Também não é novidade que esse foi um dos temas principais com o qual Rosa
Luxemburgo se deparou. Além dela, Hilferding (1985, p. 299) também capturou a necessidade
da violência: na falta de trabalhadores livres, “o capital apela à violência estatal, empregando-
a a serviço da expropriação violenta, que arranja o proletariado livre necessário”.
Entretanto, assumindo um elevado nível de desenvolvimento do mercado mundial,
a acumulação capitalista pode decorrer sem o uso da tradicional violência expropriatória?
Quando Marini (2005, p. 150), em passagem citada anteriormente, afirma que a “violência
política e militar” se torna supérflua com o desenvolvimento do mercado mundial, ele está
pressupondo um mundo predominantemente dominado pela reprodução ampliada do capital,
onde o recurso às forças extraeconômicas de dominação deixa de ser o modus operandi do
capitalismo. Mesmo assim, nesse mundo abstratamente considerado, a violência econômica não
desaparece. Pelo contrário: a agudização da concorrência intercapitalista através da batalha pelo
mais-valor extraordinário deixa como legado vencedores e perdedores. A disputa mercantil faz
com que as expropriações de capitalistas por capitalistas sejam um atributo permanente do
capitalismo. Assim a violência econômica torna-se cotidiana e é possível perceber que “a
expropriação massiva é, portanto, condição social inicial, meio e resultado da exploração
capitalista” (FONTES, 2010, p. 21-22, grifos nossos). Ademais, na medida em que a batalha
intercapitalista redunda na redução da taxa média de lucro, a luta de classes se objetiva na maior
ou menor taxa de exploração – com o braço capitalista permanentemente a empurrando para
cima:
Para dar conta do processo real em curso, é preciso incorporar as formas específicas
de interpenetração de capitais no plano internacional, sob o predomínio do capital
monetário contemporâneo, que conduziu a um aprofundamento da “união íntima”
apontada por Lenin [em O imperialismo], em direção a uma fusão pornográfica de
capitais das mais diversas procedências, cuja valorização exige e impõe as mais
variadas formas de extração de sobretrabalho e de expropriação. (FONTES, 2010,
p. 359, grifos nossos).
Independentemente das formas com as quais se manifestam as expropriações, o certo é que elas
existem e são fomentadas a serviço dos capitais – ou, melhor dizendo, parafraseando Fontes
(HARVEY, 2003, p. 124), a serviço da “fusão pornográfica de capitais das mais diversas
procedências”.
Essa “fusão pornográfica” aparentemente descoordenada faz com que seja difícil
mapear origem e destino do fluxo de valor e/ou valor de uso sendo expropriado. Quando
falamos em fluxo de valor via expropriações, estamos nos referindo ao processo em que uma
massa de valor cristalizada em algum ativo é roubada, pilhada, expropriada e, em função disso,
ocorre uma mudança na propriedade desse determinado quantum de valor. Talvez o exemplo
mais ilustrativo sejam as privatizações, onde um estoque de trabalho morto objetivado em meios
de produção, portanto, valor, é cedido às empresas privadas: “apossar-se desses ativos e vendê-
los como se fossem estoques a empresas privadas é um processo de despossessão bárbara numa
escala sem paralelo na história” (ROY91 apud HARVEY, 2003, p. 133).
Por outro lado, ocorre uma transferência de valor de uso via expropriações quando
uma determinada coisa ainda não mercantilizada é roubada, pilhada, expropriada. É o típico
exemplo da força de trabalho, por cujo valor de uso os produtores são obrigados a cederem
quando seus meios de produção são expropriados. Antes de acontecer, não faz sentido falar em
valor da força de trabalho, mas sim, e apenas nesse sentido, de valor de uso da força de trabalho.
Outro exemplo é a conversão da natureza em mercadoria, via, por exemplo, patenteamento de
material genético de sementes (HARVEY, 2003, p. 123). Não é valor haja visto que não fora
produzido pelo trabalho humano, mas é valor de uso, riqueza. Neste caso, ocorre transferência
de riqueza via expropriações.
A consideração da existência de transferência de valor e/ou valor de uso é suficiente
para considerarmos as expropriações como uma forma de manifestação do imperialismo.
Mesmo já tendo sido enfatizada por autores clássicos do marxismo, como Rosa Luxemburgo,
apenas o desenvolvimento concreto do objeto e o aguçamento da extração de valores baseado
nas forças extraeconômicas como um aspecto constitutivo da globalização neoliberal é que
permite considerá-la como uma forma permanente de imperialismo; e não meramente fortuita
ou ocasional.
A crítica de Callinicos (2014) a Harvey, centrada na inter-relação global entre
diversos capitais (“expansão de capitalismos industriais no Leste Asiático produzindo para o
91
ROY, A. Power politics. New York: South End Press, 2001. p. 43
120
Em geral, o problema com a teoria marxista do imperialismo é que ela se tornou uma
teoria ‘em si mesma’, divorciada da teoria da acumulação de capital de Marx. Em
consequência, o argumento sobre o que é o imperialismo se degenerou num
argumento sobre quais dos diversos princípios rivais devem ser utilizados para defini-
lo. (HARVEY, 2005, p. 70).
Como uma tentativa de síntese do que foi argumentado até aqui, podemos dizer que
o imperialismo capitalista se manifesta basicamente de três formas, as quais serão expostas a
seguir ordenadas segundo os níveis de abstração em que se situam (que será diferente da
ordenação desenvolvida anteriormente, baseada no momento histórico em que tiveram a devida
ênfase). Lembremos que o grau de concretude de determinada categoria depende de seu lugar
no sistema teórico como um todo, ou seja, uma categoria é mais ou menos concreta se ela possui
mais ou menos determinações do que outra. Todas as formas descritas a seguir serão
esmiuçadas na Parte II desta tese.
Nesse sentido, a forma de manifestação mais abstrata do imperialismo é a troca
desigual. Para que ela se efetive são necessários capitais industriais que se diferenciam de
121
O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é
em tais valores que consiste propriamente a riqueza material!), tanto quanto o é o
trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho
humana. (MARX, 2012, p. 23).
92
Para M. D. Carcanholo (2013a, p. 81), Dussel confunde, como se tivessem o mesmo sentido, fundamento com
essência. Trata-se de um equívoco que se torna explícito, por exemplo, quando Dussel (1988, p. 313) critica o
tratamento dado por Marini à superexploração do trabalho.
124
A noção de padrão de reprodução do capital surge para dar conta das formas como o
capital se reproduz em períodos históricos específicos e em espaços geoterritoriais
determinados [...]. A categoria de padrão de reprodução do capital estabelece, assim,
mediações entre os níveis mais gerais de análise (modo de produção capitalista e
sistema mundial) e os níveis menos abstratos ou histórico-concretos (formação
econômico-social e conjuntura). (OSORIO, 2012, p. 40-41, grifos do autor).
[...] a mais relevante delas se refere à imbricação que estabelece entre núcleos
econômico-espaciais, o chamado centro, com a capacidade de se apropriar – mediante
diversos mecanismos – de valores produzidos em outras extensões econômico-
espaciais, as chamadas periferias ou economias dependentes. Assim, temos um
sistema mundial que opera com núcleos de acumulação de valor em contraste com
amplos territórios que sofrem de desacumulação. (OSORIO, 2012, p. 76).
93
Julgamos que Osorio está equivocado quando identifica a deterioração dos termos de troca com o intercâmbio
desigual. Ao fazer isso, ele está utilizando a interpretação equivocada de Emmanuel que já criticamos na subseção
2.1.3.1. A evolução dos termos de troca pode ser vantajosa para a periferia e mesmo assim haver troca desigual.
94
Cf. subseção 1.3.
95
Cf. subseção 2.1.2.
126
consiga reproduzir seu próprio valor e incorporar um valor excedente na mercadoria, ela
necessita de meios para efetivar a produção. Com a transformação material operada pela força
de trabalho, o valor dos meios de produção reaparece integralmente no valor da mercadoria. Ao
longo dos três livros, Marx refere-se várias vezes à transferência de valor utilizando esse
sentido96. Obviamente que o processo de transferência de riqueza a que estamos nos referindo
enquanto determinação essencial do imperialismo não guarda relação com a transferência de
valor nesse primeiro sentido, isto é, dentro de um mesmo capital.
Para nos aproximarmos da transferência de riqueza precisamos usar o segundo
sentido da transferência de valor: aquela que se efetiva entre distintos capitais. Aqui, há que se
ressaltar que o capitalismo não é apenas um modo de produção de riquezas, mas também, e
sobretudo, um modo de apropriação. A lógica de um não coincide com a lógica do outro e é
exatamente essa não coincidência que garante a existência da transferência de riquezas. O
Capital, como uma obra dedicada ao estudo do capitalismo, precisa reconstituir teoricamente o
modus operandi daquilo que se quer investigar. Callinicos (2014) foi bastante preciso ao afirmar
que o capitalismo e seu reflexo teórico – O Capital – se articulam em torno de duas relações
fundamentais: a que opõe o trabalho assalariado ao capital e a que opõe os diversos capitais
entre si. Enquanto a primeira tem como momento principal a exploração e a produção do mais-
valor, a segunda compreende a esfera da concorrência e a distribuição do mais-valor. Essa
divisão permite visualizar que na relação com a classe social produtora do mais-valor os
diversos capitais agem como um só, afinal importa-lhes apenas extrair o máximo possível de
mais-trabalho. A partir do momento em que a massa global de mais-valor está constituída, os
capitais repartem-no entre si.
A distinção dialética entre produção e apropriação de valores se efetiva nas duas
relações fundamentais. O mais-valor só é apropriado gratuitamente pelo capital pois precisou
ser produzido pela classe trabalhadora sem que esta recebesse uma contrapartida. Pelo fato de
ser obrigada a vender sua força de trabalho no mercado, a classe trabalhadora é obrigada a
ceder, transferir, parte do valor total produzido por ela. Isso ocorre pois o que se transaciona é
o valor de uso da força de trabalho, qual seja, a capacidade de produzir valor. O capital paga o
seu valor para adquirir o direito de se apropriar do resultado do consumo do valor de uso da
força de trabalho. Em outros termos, é a dialética da mercadoria força de trabalho que permite
96
Por exemplo: “A transferência de valor pela depreciação do capital fixo calcula-se com base no período médio
de vida deste último” (MARX, 2014, p. 257); “Por meio do tipo apropriado do trabalho despendido em 666,6
jornadas de dez horas, transferiu-se para o produto o valor dos meios de produção consumidos” (MARX, 2008, p.
44).
129
Finalmente, uma última parte dessas transferências pode ocorrer sob a chave das
expropriações. Tomemos o exemplo do capitalista pouco produtivo que, em função de uma
crise, opta (ou é coagido) a se desfazer de seu capital. Independentemente da forma com a qual
ele cede seu capital a outrem, geralmente um grande capitalista, ocorre uma transferência do
estoque de meios de produção; uma transferência de valor, portanto.
Estamos de acordo com a concepção de Pradella (2015a, p. 159), para a qual “a
acumulação de capital é um processo imperialista”. O reconhecimento original da autora de que
a lei do valor tem uma dimensão “inerentemente internacional” e que a análise de Marx em O
Capital está no nível de abstração do mercado mundial97, permitem concluir que a acumulação
de capital concentra valor nos polos mais competitivos do sistema. Esse argumento vale a pena
ser destacado nas palavras da própria autora:
97
Defendemos essa posição na subseção 1.2.
131
relação dos Estados-Nação com o imperialismo? Até agora, o papel estatal estava oculto ou
reduzido às margens do argumento. Entretanto, sabemos que, de fato, na realidade concreta do
capitalismo, o Estado está quase sempre presente nas teorias sobre o imperialismo. Nas
interpretações mais vulgares, inclusive, se associa o imperialismo com um tipo de política
externa de uma nação específica, os Estados Unidos. As intervenções militares unilaterais após
o fim da Guerra Fria e especialmente após os atentados de 11 de setembro de 2001 contribuíram
para o fortalecimento de interpretações desse tipo.
Quando associamos a dimensão mais abstrata do imperialismo com a transferência
de valor, não estamos dizendo que o Estado e o sistema de múltiplos Estados não são
importantes ou supérfluos. Pelo contrário, como desenvolveremos na Seção Cinco, sabemos
que na maioria das vezes o aparato estatal é precondição para a expansão do capital. Ele é capaz
de influir decisivamente no processo de reprodução do capital: o Estado “funciona como o
grande organizador tanto da acumulação como da ordem capitalista na medida em que atua na
construção de elementos institucionais e econômicos favoráveis à acumulação do capital”
(PINTO; BALANCO, 2014, p. 41)98. É por esse motivo que, segundo Pradella (2015a, p. 157),
Marx conferiu um papel vital ao Estado, “cuja intervenção não é uma exceção, mas uma parte
integral do processo de reprodução do capital”. No final do Livro I de O Capital, na exposição
da acumulação primitiva, “Marx apresentou alguns elementos que seriam direcionados ao livro
sobre o Estado” conforme o plano original – e abandonado – de seis livros (PRADELLA,
2015a, p. 157):
98
Pinto e Balanco (2014) resgatam o debate marxista sobre o Estado, apontando para a relevância da contribuição
de Poulantzas sobre o bloco no poder. “A compreensão do papel do Estado na acumulação e reprodução do
capitalismo não pode ficar restrita apenas à acumulação do capital em geral (nível maior de abstração ou objeto
abstrato-formal), mas sim também deve incorporar a percepção das maneiras como as frações e as classes (em suas
lutas políticas) exercem seu poder na busca pela manutenção ou ampliação da sua fatia da renda e da riqueza e de
sua legitimação por meio da influência exercida nos aparelhos do Estado e, por conseguinte, da proposição das
políticas públicas” (ibidem, p 44-5). Sobre a relação entre bloco no poder e imperialismo, os autores apontam o
seguinte: “A economia capitalista mundializada apresenta como uma de suas normas principais a procura
permanente da expansão da dominação do bloco no poder dos países capitalistas centrais para além dos seus
espaços nacionais” (ibidem, p. 59).
132
O autor está correto nesta questão, afinal se trata de especificar como o nível muito
abstrato das leis gerais da acumulação relaciona-se com o nível concreto do fenômeno,
considerando, ademais, a existência de uma superestrutura de relacionamentos com influência
99
CORRÊA, H. F. S. Teorias do Imperialismo no Século XXI: (in)adequações do debate no marxismo. 2012. 247
f. Tese (Doutorado em Economia)– Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. p. 191 et seq.
100
Callinicos (2009, p. 15) oferece uma descrição sucinta que caracteriza as duas “formas de competição”:
“competição econômica mostramos que é uma das duas interconectadas relações constitutivas do capital.
Competição geopolítica refere-se às rivalidades entre Estados em relação a segurança, território, influência, e temas
correlatos”. Desenvolveremos uma crítica a essa postura na subseção 5.3.
133
101
Um dos exemplos em que Marx demonstra a subordinação do Estado à lei do valor refere-se à relação entre
papel moeda e ouro. Ele aponta que qualquer moeda (símbolo) representa uma quantidade de ouro, ou seja,
representa uma quantidade do equivalente universal. O dinheiro pode circular dentro dos países – diretamente ou
representado por papel moeda – ou no mercado mundial. A utilização de papel moeda, entretanto, não é
despossuída de limites. Para Marx, na interpretação de Pradella, “Estados podem emitir qualquer quantidade de
moeda, mas, uma vez em circulação, o símbolo de valor é subordinado às suas leis (da circulação)” (PRADELLA,
2015a, p. 144). Isso reforça nosso argumento de que o imperialismo reside na lei do valor e que suas manifestações
políticas são subordinadas àquela lei (ou à distinção produção/apropriação).
134
história nos mostre que a força mantenedora do status quo se sobrepuja, em geral, à contra
tendência.
Para Pradella (2015a)102, o processo de acumulação de capital em escala mundial
“serve de premissa para a emergência de novos centros de acumulação”. A acumulação de
capital envolve múltiplos padrões de desenvolvimento desigual e combinado, subordinados,
sempre, à lógica unitária do capital que interliga as variadas formas de exploração, opressão e
expropriação ao redor do mundo. Portanto, do ponto de vista da ação política, a autora concebe
a revolução internacional como revolução permanente ao frisar que as lutas proletárias e
anticoloniais estão necessariamente interligadas (PRADELLA, 2015a). Há, portanto, uma
proximidade molecular entre a essência do imperialismo, o desenvolvimento desigual e
combinado e a revolução permanente.
102
PRADELLA, L. Globalisation and the critique of political economy: new insights from Marx’s writings.
London: Routledge, 2015a. p. 159 et seq.
135
crises. Ao mesmo tempo – e contraditoriamente – ele potencializa as crises à medida que integra
ciclos de capitais que anteriormente não se relacionavam. Nos termos de Marx (1980), as crises
do mercado mundial representam o “fenômeno mais intrincado da produção capitalista” (p.
937); ou “têm de ser concebidas como a convergência real e o ajuste à força de todas as
contradições da economia burguesa” (p. 945, grifos nossos).
A contribuição de Grossmann (1979) também é clássica para a demonstração da
relação entre crises e imperialismo. Ele assume que o imperialismo tem uma função econômica
que se opera através do mercado mundial e se constitui como uma contra-tendência às crises
(seguindo fielmente a terminologia de Grossmann, o imperialismo seria uma contra-tendência
ao “derrumbe del sistema capitalista”). Em termos lógicos e históricos, o imperialismo se
manifesta como um resultado da tendência às crises e da constituição do mercado mundial no
capitalismo. Independentemente da forma sob a qual ocorra essa manifestação, ela significa,
essencialmente, uma apropriação/expropriação de valores no plano internacional e, por isso,
tem o poder de acelerar a acumulação de capital nos países ditos imperialistas e/ou postergar,
atenuar, a realização das crises.
Por representar a expansão à última potência da esfera da circulação, a constituição
do mercado mundial implica a potencialização da concorrência. Consequentemente, conduz à
concorrência entre capitais que atuam contribuindo para o nivelamento da taxa de lucro
mundial. A criação, ao menos tendencialmente, de uma taxa de lucro mundial, equivale à
afirmação de que ocorre, também em nível mundial, transferências e apropriações de valores
entre capitais industriais operando em distintas economias nacionais com diferentes
composições orgânicas. À medida que o desenvolvimento do capitalismo ocorre de forma
desigual, algumas regiões constituem composições orgânicas médias superiores às outras.
Segue, portanto, uma tendência à sistemática transferência de valores de capitais de algumas
específicas regiões para capitais de outras regiões. Tem-se, com isso, a determinação mais
abstrata do imperialismo e o que estamos chamando de essência do imperialismo.
As crises representam momentos de retomada da unidade dialética entre produção
e apropriação de valores a qual periodicamente é rompida pela superprodução de capital. Esta,
por sua vez, é impulsionada pelo desenvolvimento das forças produtivas que se revoluciona
com o advento da grande indústria. Portanto, produção capitalista sob a grande indústria e crises
são aspectos organicamente imbricados, o que significa dizer que a necessidade lógica de
consolidação do mercado mundial responde simultaneamente a ambos os fatores. Como o
136
mercado mundial possibilita uma transferência sistemática de valores entre regiões, nasce a
dimensão mais abstrata do imperialismo a partir da imbricação entre grande indústria e crises.
O imperialismo – que, partindo de sua possibilidade geral, se desdobra em
manifestações mais concretas – representa, portanto, uma decorrência necessária da grande
indústria e das crises. Se isso é verdade, caímos numa contradição: o imperialismo decorre da
produção (grande indústria) e da superprodução (crises). Sendo uma contradição real, existente,
vamos incorporá-la na interpretação que estamos defendendo através de uma análise post-
festum do imperialismo mediada pelas teorias sobre ele.
Conforme sugerimos nesta seção, o desenvolvimento em fases das teorias do
imperialismo reflete, em alguma medida, com imprecisões, as metamorfoses, as mudanças de
forma, do próprio objeto: um movimento que reforça a proposição lukácsiana segundo a qual
uma teoria do conhecimento subordinada à ontologia materialista é equivalente a um
“espelhamento da realidade material que existe independentemente da consciência” (LUKÁCS,
2012b, p. 300)103. Esse desenvolvimento formal, por seu turno, é impulsionado pela eclosão
periódica de crises estruturais. Não é coincidência que as três fases históricas da teoria sucedem
a irrupção das três crises estruturais do capitalismo: no último quarto do século XIX, na década
de 1930 e na década de 1970104.
Se as formas de manifestação do imperialismo são funcionais para a acumulação de
capital, uma crise estrutural – isto é, a interrupção do processo de acumulação – demonstra
exatamente sua não funcionalidade. A crise de um determinado padrão de acumulação – ou de
um padrão de reprodução do capital, para usar os termos de Osorio (2004, 2012) – significa que
as formas predominantes de imperialismo não foram suficientemente fortes para evita-la. Se a
manifestação do imperialismo conforme a lógica do padrão anterior fosse suficiente para manter
a dinâmica normal da acumulação de capital, a crise não ocorreria. Logo, quando uma
determinada estrutura do capitalismo entra em crise, revela-se, também, uma crise da lógica ou
das formas predominantes de imperialismo do período anterior. O resultado é que a superação
da crise estrutural traz consigo e como elemento de recuperação uma nova predominância
histórica de um determinado agrupamento de formas de imperialismo. Em suma, as crises são
potências transformadoras na aparência do imperialismo, ou, em outros termos, o imperialismo
se constitui na aparência como um desenvolvimento em nível mais elevado das crises. Segue,
103
Já nos referimos à essa proposição ao comentar a transição entre as fases dos imperialismos clássico e do pós-
guerra no final da subseção 2.1.2 desta tese.
104
Essa cronologia das crises estruturais baseia-se em Panitch e Gindins (2011).
137
como corolário, que teorizar o imperialismo a partir das crises faz com que o foco da análise
recaia sobre suas formas de manifestação.
Pelo exame das teorias, também foi possível perceber que todas as formas de
manifestação do imperialismo apresentam uma determinação oculta e velada, uma essência.
Isso significa que a essência percorre, histórica e logicamente, todas as formas de imperialismo
sem ter sua natureza abalada pelas crises estruturais. Ela permanece com as mudanças105. Com
isso, o caminho da teoria do valor de Marx para a essência do imperialismo não repousa sobre
a teoria das crises.
A conclusão do parágrafo anterior nos fornece legitimidade para defender que a
gênese histórica do imperialismo antecede a primeira crise estrutural do capitalismo. Como uma
síntese lógico-histórica do que desenvolvemos nesta primeira parte da tese, podemos sustentar
que se a essência do imperialismo é a transferência internacional e sistemática de valores, então
estamos pressupondo, em termos lógicos, a existência de um desnível estrutural de
produtividade entre os dois polos do mercado mundial. Tal desnível é uma condição necessária
para que a essência do imperialismo assuma formas concretas de manifestação, isto é, para que
o imperialismo se apresente historicamente como um fato da realidade capitalista. Sendo assim,
a gênese histórica do imperialismo está situada no período no qual aquele desnível estrutural de
produtividade se estabelece historicamente, qual seja, no período de constituição da grande
indústria (coincidente, como já vimos, com a descolonização americana). É por esse motivo
que defendemos, na Seção Um, que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado
mundial.
Para avançar em direção à segunda parte desta tese, reconheçamos que sendo as
crises uma fundamentação insuficiente para compreender o imperialismo, deve haver um outro
caminho teórico que permita a mediação entre lei do valor e imperialismo: trata-se da análise
da concorrência entre capitais. É o que tentaremos demonstrar na segunda parte, onde
examinaremos detalhadamente os fundamentos da essência do imperialismo percorrendo as
105
Conforme Medeiros (2016, p. 187-188, grifos nossos), isso nos remete à noção de historicidade de Lukács:
“Um objeto é dotado de historicidade se sua própria constituição determina um trânsito irreversível pelo tempo no
qual o objeto preserva-se como objeto por intermédio de suas próprias transformações. O processo histórico, em
outras palavras, é um processo marcado pela “permanência na mudança”, sendo essa permanência dinâmica
apreendida exatamente pela categoria da substância. Com isso, Lukács resgata a categoria da substância, livrando-
a da posição equivocada que a concebe estaticamente com um substrato fixo do ser. Ademais, e muito mais
importante, o autor emprega essa categoria como abrigo da ideia imprescindível de que movimento e permanência
não são determinações excludentes, mas, justo ao contrário, momentos antitéticos sem os quais nenhum dos polos
poderia ser sequer definido (pois, obviamente, não há como definir a mudança sem a permanência ou vice-versa)”.
Agradecemos a Hugo Corrêa por nos alertar sobre esse ponto durante uma apresentação dos resultados
preliminares desta pesquisa no Fórum-NIEP “Marx, imperialismo e crítica ontológica”.
138
distinção dialética entre produção e apropriação de valor, que, por sua vez, é o fato nuclear,
parafraseando Guerrero, da teoria da concorrência de Marx106.
Do ponto de vista do capital social total, Marx reconhece no começo do Livro III
de O Capital que “a magnitude do lucro é igual à magnitude pré-determinada do mais-valor”
(MOSELEY, 2015, p. 8, tradução nossa, grifos nossos). Em carta a Engels de 30 de abril de
1868 – que, segundo Moseley (2015, p. 3), resume o conteúdo do Livro III e constitui o único
material que Engels usou para lhe auxiliar na árdua tarefa de editorar este livro –, Marx anota
o seguinte: “como um resultado, o mais-valor assume a forma de lucro, sem haver qualquer
diferença quantitativa entre um e outro. Este é apenas uma manifestação ilusória do mais-valor”
(MARX, 2010c, p. 21, tradução e grifos nossos). Logo, se no âmbito da totalidade, isto é, do
capital social total, presume-se que não ocorre nenhuma distinção quantitativa entre mais-valor
e lucro, ela só pode ocorrer a partir da interação entre os capitais individuais. Nessa mesma
carta, há uma expressão pitoresca utilizada por Marx para descrever o critério com o qual os
capitalistas industriais repartem o mais-valor total: “comunismo capitalista”.
106
No bem-humorado “manual de instruções” ao pensamento de Marx, Bensaïd (2013) projeta uma imagem de O
Capital como se fosse um romance policial, no qual cada livro da trilogia cumpre um papel especial na narrativa:
“no Livro I, o mais-valor foi roubado. No Livro II, ele passou de mão em mão. No Livro III, chega a hora de
dividir o butim, do acerto” (BENSAÏD, 2013, p. 111).
107
Se lermos essa expressão à luz de sua formulação de 1875 na Crítica do Programa de Gotha, na qual a bandeira
da sociedade comunista seria “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”
(MARX, 2012, p. 32), o “comunismo capitalista” parece estar propositadamente invertido, já que quanto mais
forte se é, mais lucro é capaz de se apropriar.
142
108
Cf. Subseção 1.2 desta tese.
109
Cf. Subseção 1.3 desta tese.
143
do mais-valor relativo, faz com que o capital detenha todas as condições para a realização da
capacidade de trabalho (ou força de trabalho110). Além de já possuir as condições objetivas do
trabalho (a propriedade dos meios de produção), agora o capital possui “as condições sociais
do trabalho subjetivo”. O mecanismo que torna isso possível é o fato da divisão do trabalho
unilateralizar o trabalho do então produtor da mercadoria, isto é, transformar a capacidade de
trabalho em “mera função de uma parte do mecanismo completo”, “um acessório do capital”,
“elo de um mecanismo que é a existência do capital a ele contraposta” (MARX, 2010f, p. 316-
317). Em uma passagem elucidativa, Marx contrapõe a subsunção formal com a novidade
observada na subsunção real do trabalho ao capital:
110
Há uma mudança de terminologia entre os escritos preparatórios de 1861-63 e a publicação da obra em 1867,
quando Marx então passa a se referir exclusivamente ao termo “força de trabalho” no lugar de “capacidade de
trabalho”.
144
um modo de produção especificamente capitalista. Em outros termos, isso nos permite constatar
que Marx lida com este modo de produção desde o primeiro parágrafo da Seção I do Livro I.
Demonstrado, portanto, o caráter crucial da Seção IV, resta-nos responder a segunda
pergunta levantada anteriormente: por que a concorrência tem um papel explanatório nesse
estágio? Mesmo nos Manuscritos de 1861-1863, onde Marx ainda se baseava na distinção entre
capital em geral e vários capitais, algumas vezes ele se encontra tendo que fornecer algum papel
explicativo à concorrência dentro do capítulo do capital em geral. Em uma passagem desse
texto – que parece inspirar a subseção “divisão do trabalho na manufatura e divisão do trabalho
na sociedade” do Capítulo XII do Livro I de O Capital –, Marx expressa sua preocupação em
tratar da concorrência nesse nível da exposição:
Mesmo com a cautela, Marx não deixa despercebido que a livre concorrência
enquanto representação da divisão do trabalho na sociedade condiciona e é condicionada pela
grande indústria. Ainda não é o momento para lidar exaustivamente com esse ponto111, embora
algumas indicações preliminares sejam necessárias. Algumas páginas adiante, Marx (2010f, p.
370) oferece uma interpretação parcial desta relação ao afirmar que “o emprego da maquinaria
aumenta a divisão do trabalho no interior da sociedade, a multiplicação dos ramos de atividade
particulares e as esferas de produção independentes”. Na medida em que a maquinaria é uma
“força produtiva produzida” (MARX, 2010f, p. 371), seu desenvolvimento abre novos campos
de investimento ao capital. Aumentam a diversidade dos valores de uso produzidos e, assim, a
complexificação da divisão do trabalho na sociedade. Isso indica, evidentemente, que a
maquinaria contribui para a constituição e consolidação de uma divisão internacional do
trabalho (por ser uma instância da divisão do trabalho no interior da sociedade).
111
A subseção 3.3 (Troca desigual dentro de um ramo de produção) tratará pormenorizadamente das consequências
da concorrência dentro de um ramo de produção.
145
A outra condicionante (da concorrência sobre a grande indústria) pode ser explicada
pela coerção fornecida pela concorrência para o aperfeiçoamento das técnicas produtivas com
vistas à obtenção de mais-valor acima do que seria considerado normal. Há, aqui, dois
movimentos: a concorrência força os capitais individuais a reduzirem o tempo de trabalho
necessário para a produção de determinada mercadoria para usufruírem daquele mais-valor
adicional; e, uma vez que tal valor individual se diferenciou em relação ao valor social, os
capitais menos produtivos se veem coagidos a uniformizar seu processo de trabalho em relação
àquele aplicado pelos concorrentes mais avançados tecnologicamente. Este segundo
movimento provoca uma tendência de convergência do valor social (que se expressa no preço)
em direção aos menores valores individuais. Quando isto ocorre, ou seja, “tão logo a
concorrência tenha reduzido ao seu valor o preço da mercadoria produzida por meio da
maquinaria” (MARX, 2010f, p. 385-386), desaparece o mais-valor adicional apropriado pelo
capital inovador e o aumento do mais-valor repousa sobre o prolongamento relativo do mais-
trabalho através da redução do tempo de trabalho necessário para a reprodução da força de
trabalho.
Podemos notar que a organização da Seção IV do Livro I de O Capital é
severamente parecida com a seção dos Manuscritos de 1861-1863 dedicada à produção do
mais-valor relativo. Por exemplo, em ambas redações, esse assunto se divide em quatro
capítulos (tópicos), o primeiro conceitual e os três seguintes dedicados à cooperação, divisão
do trabalho e maquinaria. Mesmo que na redação da obra de 1867 Marx tenha eliminado a
distinção entre capital em geral e vários capitais, Callinicos (2014, p. 142) nota um “desconforto
de Marx em conceder à concorrência um papel explanatório tão cedo em sua análise”,
textualmente expresso no Capítulo X do Livro I. Entretanto, ele reconhece a necessidade de
expor a concorrência em um nível tão abstrato pois entende o papel crucial da rivalidade entre
capitalistas na explicação da produção do mais-valor relativo.
Nos termos de Callinicos (2014, p. 140-142), o papel da concorrência nesse
processo é definir uma “norma de eficiência [produtiva] média que constitui o tempo de
trabalho socialmente necessário adequado para produzir um dado tipo de mercadoria,
representada por seu valor de mercado [ou social]”. Os capitalistas que conseguem fazer
inovação tecnológica e produzir com uma produtividade acima da média diferenciam o valor
individual de suas mercadorias do valor de mercado, gerando, com isso, um lucro extra, desde
que o preço de venda da mercadoria esteja acima do equivalente ao valor individual e abaixo
do valor de mercado. Quando a nova tecnologia é copiada “em larga escala” pelos demais
146
capitalistas, continua Callinicos, “há uma variação na norma setorial de eficiência e o valor de
mercado se reduz, eliminando o lucro extra do inovador, mas refletindo um maior nível de
produtividade do trabalho e desenvolvimento tecnológico”.
A título de síntese, chegamos a dois resultados fundamentais: a concorrência é o
motor de um processo que promove a abstração do trabalho humano e, ao mesmo tempo, a
nivelação tendencial dos valores individuais em torno de um valor de mercado. Quando, no
Capítulo I do Livro I, Marx descreve o trabalho humano abstraído de suas determinações
particulares como a substância do valor, ele está, portanto, tomando como pressuposto a
existência da concorrência. A necessidade de vários capitais para a exposição adquire um papel
ainda mais ativo quando constatamos que o valor só existe se puder se manifestar, como valor
de troca, em uma segunda mercadoria. Necessita-se, portanto, para que o argumento do Capítulo
I faça sentido, de vários valores de uso, ou seja, de vários capitais.
É digno de nota destacar que Callinicos compara indistintamente preço e valor,
remetendo à interpretação “macro-monetária” de Moseley (2016), para o qual as categorias da
aparência e da essência podem ser equiparadas em termos monetários. Defendendo que o
famoso problema da transformação é na realidade um não-problema112, Moseley argumenta que
a teoria do mais-valor no Livro I é um “pré-requisito essencial para a teoria da distribuição do
mais-valor e dos preços de produção no Livro III” (MOSELEY, 2016, p. 13, tradução nossa)
por determinar a quantidade total de mais-valor que poderá ser distribuída. Nesse sentido, o
“comunismo capitalista” a que Marx se referiu em carta supracitada a Engels é o resultado da
interação entre os temas principais do Livro I (produção do mais-valor social total) e do Livro
III de O Capital (distribuição dessa massa de valor entre os diversos capitais individuais).
O plano da distribuição do mais-valor pressupõe que uma abstração que acompanha
a exposição marxiana desde o começo seja superada. A partir de agora, as mercadorias podem
(e devem) ser trocadas desconsiderando-se a troca de valores equivalentes. Nesse nível mais
concreto, as mercadorias se trocam pelos preços de mercado mediados pelos preços de
produção. Desde o Livro I, aliás, Marx já apontava para a possibilidade dessa distinção
quantitativa entre valores e valores de troca; a qual se torna agora, no Livro III, uma necessidade
teórica. Em outros termos, podemos reescrever esta característica própria da economia
capitalista da seguinte forma: o quantum de valor que determinado capital individual produz se
distingue dialeticamente do quantum de valor apropriado por ele mesmo. Para que isso ocorra,
112
Aprofundaremos esse argumento ao debater a troca desigual entre diferentes ramos de produção. Cf. Subseção
3.4 desta seção.
147
isso devem ser encontradas no estudo do processo de circulação do capital. É o que faremos na
próxima subseção.
Trata-se aqui, por um lado, da ideia de que o capital se encontra num processo
ininterrupto de circulação. O objetivo desse movimento é aumentar o valor do capital.
Observado desse ponto de vista, o processo D-M-P-M’-D’ não é outra coisa senão o
‘processo de circulação do capital’. Nele está subsumida a fórmula geral do capital D-
M-D’, discutida no Livro I. Na outra definição, o processo de circulação propriamente
dito é contraposto ao processo de produção. Ora, se a troca de mercadoria por dinheiro
é um grande problema, um ‘salto mortale’, como diz Marx em outro lugar, então a
realização do capital-mercadoria com o mais-valor nele contido, ou seja, o ‘processo
de circulação do capital’, é um processo muito mais difícil. (HEINRICH, 2014b, p.
33).
Como se sabe, Marx estuda o ciclo do capital industrial sob três óticas distintas,
cada uma das quais lança luz sobre distintos enlaces do processo de circulação do capital.
Esquematicamente, podemos representa-las assim:
Importante destacar que, nos termos de Marx (2014, p. 180-181), a diferença entre
os ciclos é “meramente formal” ou “meramente subjetiva, existente apenas para seu
observador”. Cada capital industrial individual percorre os três ciclos “simultaneamente” e eles
“consumam-se continuamente e lado a lado”. Em outros termos, os ciclos do capital industrial
carregam duas características: simultaneidade e continuidade entre as três formas. Isso significa
que enquanto uma fração do capital industrial está comprando meios de produção, outra está
produzindo a mercadoria utilizando o estoque de meios de produção e uma terceira está
vendendo as mercadorias em estoque. Trata-se de um “traço característico da produção
capitalista, condicionado por sua base técnica, embora nem sempre exequível de forma
incondicional”. Marx distingue, assim, a produção capitalista da pré-capitalista, que, por não
possuir a base técnica assentada sobre a maquinaria, não consegue levar a cabo todas as três
fases do processo continuamente, apenas em saltos, de forma discreta. Esse raciocínio permite
a Marx (2014, p. 181-182) concluir que o capital industrial é “um todo em movimento”, ou “a
totalidade dessas partes”:
entre formas funcionais gera perturbações sobre todo o ciclo. Ao invés de estancamento
completo, ou seja, engessamento integral do valor de capital em determinado estágio do ciclo,
podemos reproduzir esse argumento de Marx levando em consideração um estancamento
parcial, que ocorre, por exemplo, quando o valor cristalizado em determinada forma não
consegue se metamorfosear sem ter alguma parte de si subtraída. Estamos dizendo, ainda
preliminarmente, que o imperialismo (através da troca desigual) pode efetivar um estancamento
parcial do ciclo do capital industrial dependente. A possibilidade teórica para isso foi levantada
por Marx na seguinte passagem, na qual complementamos, por nossa conta em itálico e entre
colchetes, certas orações:
Se, por exemplo, o movimento M’-D’ se estanca numa de suas partes e não se
consegue vender a mercadoria [ou não se consegue vender pelo valor que foi
produzida], o ciclo dessa parte é interrompido [ou subtraído] e a reposição pelo seu
meio de produção não é realizada; as sucessivas partes que resultam do processo de
produção como M’ tem sua mudança de função bloqueada pelas partes anteriores. Se
isso persiste por certo tempo, restringe-se a produção e o processo inteiro é suspenso.
Cada estancamento da sucessão provoca uma desorganização da justaposição [das
partes]; cada estancamento num estágio causa um estancamento maior ou menor em
todo o ciclo, não apenas da parte do capital imobilizado, mas também do capital
individual em sua totalidade. (MARX, 2014, p. 182, grifos e inserção nossos).
Para que haja um estancamento da forma como estamos lidando aqui, precisamos
pressupor alguma diferença quantitativa entre o valor produzido e o valor apropriado pelo
capital individual, seja na compra de meios de produção ou na venda do capital-mercadoria.
Em outros termos, é preciso superar aquela abstração segundo a qual as mercadorias são
vendidas pelos valores. Ao mesmo tempo, é preciso ainda estudar o ciclo do capital industrial
sob uma forma que permita entender as condições para o entrelaçamento entre vários capitais,
ou seja, é preciso estudar a forma do ciclo que melhor se encaixa na perspectiva da
concorrência. A partir disso poderemos investigar os resultados do entrelaçamento entre
capitais individuais com distintos níveis de produtividade.
Das três formas do ciclo, duas começam pelo valor de capital e terminam com valor
de capital valorizado (D...D’ e P...P) e uma começa já com o valor de capital valorizado
(M’...M’). Esta característica do ciclo do capital-mercadoria lhe confere uma especificidade
importante aos nossos propósitos. Como é indiferente se consideramos reprodução simples
(M’...M’) ou ampliada (M’...M’’), iremos representar esse ciclo por M’...M’ para tornar a
representação mais simples:
152
[...] precisamente porque o ciclo M’...M’ pressupõe, dentro de seu percurso, outro
capital industrial em forma de M (=FT+Mp) [...] ele exige que o consideremos não
apenas como formal geral do ciclo, isto é, como uma forma social sob a qual pode ser
considerado todo capital industrial individual (fora de seu primeiro desembolso) –
portanto, não apenas como uma forma de movimento comum a todos os capitais
industriais individuais –, mas, ao mesmo tempo, como a forma de movimento da soma
dos capitais individuais e, portanto, do capital total da classe capitalista, um
153
113
Cf. M. D. Carcanholo (2003).
114
A vinculação entre o ciclo do capital-mercadoria e a reprodução do capital social é apontada em outros lugares
do Livro II, como, por exemplo, no Capítulo VII: “A última forma [M’...M’] é importante para a última seção, na
qual o movimento dos capitais individuais é concebido em conexão com o movimento do capital social total”
(MARX, 2014, p. 236).
154
concentrar apenas com as mudanças de forma do valor quando expõe os ciclos do capital.
Entretanto, a possibilidade de que tais metamorfoses não percorram seu “curso normal”, para
usar um termo do próprio autor115, se torna realizável – embora, analiticamente, nunca seja
levada adiante – em qualquer momento no qual Marx (2014) representa os desdobramentos de
uma determinada operação de compra e venda ou vice-versa. Quando argumenta (MARX,
2014, p. 167-169) que, na venda do capital-mercadoria, o valor de capital valorizado pode ser
decomposto em tantas frações de valor quanto sejam desejáveis independentemente das
características naturais do tipo de mercadoria produzida, ele exemplifica com uma produção de
fios que pesam 10 mil libras e se vendidos a 500 libras-esterlinas recompõem todo o valor de
capital adiantado e o mais-valor integralmente. Sendo assim, o valor de uma libra de fio
equivale a um xelim116.
No cotidiano mercantil, entretanto, o que ocorre é a possibilidade real de que cada
libra de fio seja vendida por um preço que apenas fortuitamente coincida com um xelim. É o
que Marx (2014, p. 169, grifos nossos) nos informa quando diz que se o comprador “decompõe
o valor total em seus elementos constitutivos [c + v + m], é com a capciosa intenção de
demonstrar que mesmo se a libra fosse vendida abaixo de 1 xelim o vendedor ainda faria um
bom negócio”. Ora, o vendedor “faria um bom negócio” mesmo se vendesse sua libra de fio
abaixo de um xelim pois parte do valor desta libra decorreu da apropriação gratuita de trabalho
vivo por parte do capitalista. Em outros termos, Marx coloca em foco o fato segundo o qual o
mais-valor apropriado na troca da mercadoria por dinheiro pode ser retraído em relação ao que
fora produzido por determinado capital. Esta assertiva também pode ser lida com sinal trocado:
o mais-valor apropriado pode ser superior ao produzido.
Um pouco adiante, Marx novamente marca o nível de abstração:
Aqui [...] está pressuposto que M’ é vendida pelo seu valor e que, portanto, trata-se
apenas de sua transmutação de forma-mercadoria em forma-dinheiro. Para M’, como
forma funcional no ciclo desse capital individual, com o qual o capital produtivo tem
de ser reposto, o decisivo é, naturalmente, saber se e até que ponto o preço e o valor
diferenciam-se um do outro na venda; mas isso não nos interessa neste momento, em
que nos ocupamos somente com as diferenças de forma. (MARX, 2014, p. 170, grifos
nossos).
115
“Na forma M’...M’, o consumo do produto-mercadoria inteiro [em termos de valor e valor de uso, segundo
nossa interpretação] é pressuposto como condição do curso normal do próprio processo de capital” (MARX,
2014, p. 171, grifos nossos).
116
Pela unidade monetária utilizada em O Capital, uma libra-esterlina é igual a 20 xelins.
155
O fato de que o capital social é = a soma dos capitais individuais (inclusive dos capitais
em ações e do capital estatal, na medida em que os governos empregam trabalho
assalariado produtivo em minas, ferrovias etc. e, assim, funcionam como capitalistas
industriais), e de que o movimento total do capital social é = a soma algébrica dos
movimentos dos capitais individuais, não exclui aqui de modo algum a possibilidade
de que esse movimento, como movimento do capital individual isolado, ofereça outros
fenômenos distintos do mesmo movimento, considerado como uma parte do
movimento total do capital social e, portanto, em conexão com os movimentos de suas
outras partes, nem que, ao mesmo tempo, resolva problemas cuja solução tem de estar
pressuposta na consideração desse ciclo de um capital individual isolado, em vez de
resultar dele. (MARX, 2014, p. 175, grifos nossos).
117
Este é um resultado lógico da transformação de valores em preços de produção e será demonstrado ainda nesta
seção (subseção 3.4). Por ora, tomamos a igualdade entre a totalidade de valores e de preços de produção como
pressuposto. Abstraímos, ademais, da diferença entre preços de produção e preços de mercado, de modo que
assumimos que os primeiros representam a norma de intercâmbio.
156
Marx indica aqui que no mercado mundial deve haver uma conexão entre os valores
de uso produzidos por uns capitais e aqueles desejados por outros para realizar o processo de
produção em sua inteireza. A abstração do comércio exterior serve para marcar esse nível de
abstração – assim como o autor fez no começo do Capítulo XXII do Livro I119. Se
desconsiderarmos esse pressuposto, isto é, se analisarmos o ciclo do capital-mercadoria
considerando a existência do comércio exterior, acrescentaremos determinações mais concretas
à análise: as diversas formações sociais nacionais tornam-se totalidades mais complexas
(subjugadas à totalidade abstrata do mercado mundial) posto que trazem consigo a influência
da categoria nação sobre o processo capitalista de reprodução, que se manifesta com a
diversidade de taxas de câmbio, de políticas econômicas, de poderes militares, etc. Apenas
assim é possível discutir, por exemplo, o entrelaçamento entre o ciclo de um capital industrial
dependente e o ciclo de um capital industrial imperialista cujo resultado possível é a
transferência de valor do primeiro para o segundo.
118
Do contrário, teríamos transferências de valor dentro de um país. Embora existam realmente, não se configuram
como imperialista exatamente por não cruzarem a fronteira nacional. Sobre as implicações da transferência de
valor dentro de um país específico, cf. R. Carcanholo (1981, 2013, p. 177 et seq.).
119
Sobre isso, ver subseção 1.2 desta tese.
157
120
O ano é a unidade de tempo à qual Marx predominantemente se refere ao longo do Livro II, especialmente a
partir do estudo da rotação do capital, sendo assim justificado: “Assim como a jornada de trabalho é a unidade de
medida natural para a função da força de trabalho, o ano é a unidade de medida natural para as rotações do capital
em processo. A base natural dessa unidade de medida repousa sobre o fato de que os mais importantes frutos da
terra na zona temperada, que é o seio da produção capitalista, são produtos anuais” (MARX, 2014, p. 237-238).
158
121
Em outros lugares, Marx também pressupõe que o comércio exterior não altera as “relações de valor”. Ver, por
exemplo, Marx (2014, p. 512).
159
ouro, é produzida em pouquíssimos lugares do mundo: o próprio autor cita apenas Estados
Unidos, Rússia, México, América do Sul e Austrália como os lugares nos quais o ouro é
produzido (MARX, 2014, p. 575). Reconhecendo isso, a afirmação de que se deve tratá-lo como
“elemento direto da reprodução anual” e não como elemento “importado do exterior” é uma
indicação explícita de que o nível de abstração no qual a exposição está sendo conduzida
considera todo o mundo como o espaço da reprodução do capital. Nesse sentido, os esquemas
de reprodução do capital social desenvolvidos na última seção do Livro II referem-se ao plano
do mercado mundial enquanto uma totalidade abstrata na qual a existência de fronteiras
nacionais está, por suposição, ainda ausente.
Essa totalidade, por outro lado, abarca um tipo de relação especificamente histórica,
a relação de produção capitalista, que conecta dois tipos de relacionamentos distintos,
representantes, nos termos de Arrizabalo Montoro (2014, p. 152), dos “dois grandes conflitos
sociais” de nossa era: entre capital e trabalho assalariado; e, através da concorrência, entre
capitalistas entre si. Poderemos perceber o imperialismo como uma categoria subsumida a esse
“nexo de relacionamentos”, para usar um termo de Callinicos (2014, p. 16-17)122, se
adicionarmos uma determinação mais concreta à exposição, qual seja, a existência das
fronteiras nacionais. Um indício dessa percepção pode ser encontrado no próprio Marx quando
ele explica – em uma passagem escrita em tons metodológicos, em um contexto de crítica à
naturalização burguesa do modo de produção capitalista, dentro do capítulo sobre a reprodução
simples no Livro II – a sua concepção de totalidade:
122
Callinicos (2014) desenvolve um sofisticado argumento para demonstrar a centralidade de ambas as relações
em O Capital, o que o leva a sustentar que o capital deve ser apreendido como um “nexo de relacionamentos” (p.
16-7).
160
sabe o quanto contribui, mas não sabe o quanto pode retirar dela. Essa indicação está
relacionada com a concorrência, afinal, ela gera a incerteza quanto às possibilidades de
apropriação de valor. Por outro lado, o capitalista enquanto um ser coletivo se choca,
necessariamente, com seu oposto, isto é, com o trabalho assalariado, produtor do mais-valor
que se distribui desarmonicamente entre os vários partícipes da exploração.
Ao expor o problema da mediação do intercâmbio de mercadorias pela circulação
monetária, também é possível perceber o caráter geral, totalizante, da interpretação de Marx.
Diz o autor que o capital monetário transformado em capital variável, isto é, o pagamento de
salários, “desempenha o papel principal na própria circulação monetária” pois “em todos os
países de produção capitalista, o capital monetário assim adiantado constitui uma parte
proporcionalmente decisiva da circulação total, tanto mais porque o mesmo dinheiro, antes de
seu refluxo ao ponto de partida, corre pelos canais mais variados e funciona como meio de
circulação para um sem-número de negócios” (MARX, 2014, p. 518). Se o argumento é válido
para “todos os países de produção capitalista”, não há por que, como salientamos anteriormente,
reduzir a análise a um ou outro país.
Pode-se, por conseguinte, lidar nesse nível de abstração com o mercado mundial. O
próprio Marx – em uma passagem relativamente desconhecida, posto que fora excluída por
Engels da edição final do Livro II, mas trazida à tona em função da nova edição de O Capital
a partir da MEGA-2123 – indica claramente a natureza global, mundial, de seu sistema teórico:
“Para cada capital individual existe, do lado de fora, um mundo de mercadorias. Mas o capital
social e seu produto abarcam em si o mundo inteiro das mercadorias” (MARX, 2014, p. 670,
grifos de Marx). Nos parece que essa é uma passagem definitiva para concluir esse raciocínio
a favor da tese segundo a qual a reprodução do capital social, segundo a interpretação de Marx,
é a reprodução do capitalismo mundialmente considerado.
A constatação de que a reprodução do capital social ocorre no âmbito do mercado
mundial não é suficiente para identificar o imperialismo como uma relação social imanente a
essa reprodução. Isso porque Marx (, 2014, p. 496-497), naquele momento do texto, mantém o
pressuposto de que não há variação na base técnica na qual os capitais operam: “não só se
pressupõe que os produtos se trocam por seu valor, mas também que não ocorre nenhuma
123
Na transição entre as seções VII (Capital variável e mais-valor nos dois setores) e VIII (O Capital constante
nos dois setores) do Capítulo XX do Livro II, os tradutores indicam em nota de rodapé à página 532 que “Engels
deixou de incluir um trecho do manuscrito II” o qual está reproduzido na íntegra como Apêndice 10 desta edição
do Livro II de O Capital (MARX, 2014). Vale destacar que este manuscrito está datado pela MEGA-2 como
redigido entre maio de 1868 e meados de 1870 – Cf. Marx (2014, p. 72-75).
161
revolução de valor nos componentes do capital produtivo”. Do ponto de vista do capital social,
esse pressuposto é perfeitamente coerente, tendo em vista que preços e valores das mercadorias
se igualam quando se considera o todo. Entretanto, e aqui está uma pista para o imperialismo,
as revoluções de valor, ou as revoluções de produtividade, exercem influência sobre o
movimento dos capitais individuais em concorrência:
Embora os preços divirjam dos valores, essa circunstância não pode, de resto, exercer
nenhuma influência no movimento do capital social. Tal como antes, trocam-se, no
total, as mesmas massas de produtos, ainda que a participação dos capitalistas
individuais nas relações de valor deixem de ser proporcionais a seus respectivos
adiantamentos e às massas de mais-valor produzidas individualmente por cada um
deles. (MARX, 2014, p. 497, grifos nossos).
perturbações é que o valor equivalente ao capital variável e ao mais-valor do setor I “tem de ser
igual” (MARX, 2014, p. 517) ao valor do capital constante do setor II124.
Podemos inverter o raciocínio de Marx desenvolvido no parágrafo anterior,
mantendo sua lógica, e inferir que se a troca for de não equivalentes, uma troca desigual, há o
enriquecimento através do comércio de uma das partes envolvida. Mesmo que os pressupostos
da exposição não permitam ao autor esmiuçar essa questão, iremos destacar dois pontos que
sugerem sua importância. O primeiro deles vem de um trecho do manuscrito II de Marx
excluído por Engels da redação final do Livro II, o qual, segundo os tradutores, continha uma
“análise diferenciada do produto social, dividida em seis setores” (MARX, 2014, p. 594). Nesta
análise, depois de desenvolver um processo de reprodução na base da troca pelos valores e com
setores com diferentes composições orgânicas, Marx (2014, p. 729) abre repentinamente um
parêntese: “Vejamos, de passagem, como a questão se apresenta sob o pressuposto da taxa geral
de lucro”. Após fazer alguns cálculos elementares, ele indica que apenas no setor onde a
composição orgânica é média, o produto é vendido por um preço idêntico ao valor; e fecha o
parêntese com um lembrete a si próprio: “Examinar isso mais adiante” (MARX, 2014, p. 729,
grifos do autor).
Se apenas o setor com composição orgânica média vende suas mercadorias pelo
valor, segue que para os demais cuja composição difere da média há necessariamente diferença
entre preço e valor. Enquanto redigia esse manuscrito, entre 1868 e 1870125, Marx já havia
desenvolvido a explicação para a transformação de valores em preços de produção nos
Manuscritos Econômicos de 1864-1865126, os quais se tornariam o suporte fundamental para a
versão final do Livro III. Portanto, é com base em sua teoria dos preços de produção que aquela
passagem excluída do Livro II deve ser analisada, o que nos leva à constatação que já nos
esquemas de reprodução do capital social seria possível perceber a existência da transferência
de valor entre capitais individuais operantes sob distintas composições orgânicas e distintos
setores. Que Marx não avance na explicação desse fenômeno na Seção III do Livro II justifica-
se pois ali não é (ainda) o lugar de explicá-lo. Sua preocupação evidente é explicar a reprodução
124
Foge ao escopo de nosso trabalho demonstrar por que Iv + Im (capital-mercadoria produzido pelo setor I
equivalente ao valor do capital variável [Iv] e do mais-valor [Im]) igual a IIc (capital-mercadoria produzido pelo
setor II equivalente ao valor do capital constante) é a condição para que a reprodução do capital social em escala
simples ocorra sem perturbações. Para este propósito, Cf. Marx (2014, p. 502-505), M. D. Carcanholo (2003) ou
Ribeiro (1979).
125
Cf. Marx (2014, p. 72-75)
126
Cf. Marx (2015, p. 265 et seq.)
163
do capital social em sua pureza, livre de distúrbios que possam embaçar aquilo que é o central
naquele momento.
Para comprovar esse ponto, vejamos o que diz Marx após tecer longos comentários
sobre várias supostas possibilidades para fechar o esquema de reprodução após a introdução da
depreciação do capital fixo:
127
No nível de abstração em que a exposição está situada, o mais-valor ainda não se fragmentou em renda, juro
etc. Em função disso, relações de crédito não podem ser incluídas na análise, motivo pelo qual os tesouros
cumprem um papel importante nessa altura da exposição (HEINRICH, 2014a, p. 20-22). Por exemplo, no contexto
da conversão do mais-valor em capital constante, Marx se questiona de onde surge o dinheiro adiantado pelos
capitalistas. Sua resposta: “é preciso supor a existência, nas mãos do capitalista e ao lado do capital produtivo, de
certas reservas de dinheiro” (MARX, 2014, p. 503). Para Heinrich (2014a, p. 20-22), “a existência de tesouros é
apenas um pressuposto auxiliar; na realidade, são as relações de crédito que possibilitam a circulação do mais-
valor”.
164
128
Conforme explicação dos tradutores, “deus ex machina” é “um elemento externo que resolve uma história sem
seguir sua lógica interna”, sendo originária dos teatros greco-romanos da Antiguidade. Cf. Nota dos tradutores em
Marx (2014, p. 561).
165
129
Em outro lugar, Marx (2014, p. 516-517) havia desenvolvido uma “lei geral” segundo a qual “sempre que a
circulação transcorre normalmente, esse dinheiro retorna aos produtores de mercadorias que adiantam dinheiro à
circulação”. “Do que se segue, diga-se de passagem, que quando detrás do produtor de mercadorias em geral se
encontra um capitalista monetário, que, por sua vez, adianta capital monetário (...) ao capitalista industrial, o
verdadeiro ponto de retorno desse dinheiro é o bolso desse mesmo capitalista monetário”.
166
monetário” ou exportação caso a situação seja de excesso de mercadorias a realizar. Nos termos
de Marx:
exportação do capital fixo em excesso das economias centrais, que se desenrola historicamente,
segundo o autor, a partir dos últimos decênios do século XIX (FURTADO, 2000, p. 248-
249)130.
Apesar de já termos sustentado que a gênese histórica do imperialismo antecede
este período131, é fato que ele adquire um status diferente no fim do século XIX pois é o
momento em que o desequilíbrio na produção de capital fixo se manifesta com maior gravidade.
É por isso que os capitalistas precisam recorrer à exportação de capital fixo – como, além de
Lenin e da teoria clássica, os próprios economistas burgueses reconhecem. Fazendo isso,
entretanto, conforme a passagem de Marx citada anteriormente, a ação individual dos grandes
capitalistas eleva a esfera em que as contradições deste modo de produção podem se manifestar.
Em outro lugar do Livro II, no Capítulo VIII, Marx aponta para algumas relações
entre capital fixo e mercado mundial. Ao mostrar que o caráter de capital fixo não se define
pela mobilidade ou imobilidade espacial dos meios de trabalho, ele fala de “economia das
nações” e “mercado mundial”:
Nem a imobilidade lhe confere, num caso, o caráter de capital fixo, nem a mobilidade
o priva desse caráter, no outro. No entanto, a circunstância de que os meios de trabalho
sejam espacialmente fixos, enraizados na terra, confere a essa parte do capital fixo um
papel especial na economia das nações. Eles não podem ser mandados ao exterior,
para circular como mercadorias no mercado mundial. Os títulos de propriedade sobre
esse capital fixo podem ser trocados, permitindo a esse capital ser comprado e vendido
e, nessa medida, circular idealmente. Tais títulos de propriedade podem até mesmo
circular em mercados estrangeiros, por exemplo, na forma de ações. Mas com a
mudança das pessoas que detêm a propriedade desse tipo de capital fixo não se altera
a relação entre a parte permanente, materialmente fixa da riqueza num país, e a parte
móvel dessa mesma riqueza. (MARX, 2014, p. 245, grifos nossos).
Partindo do entendimento de que o caráter fixo do capital não se define por sua
mobilidade ou imobilidade espacial, Marx mostra como esse capital pode ser duplicado em
títulos de propriedade de tal forma que ganhe possibilidades de circulação no mercado mundial.
Ainda não é a hora nem o lugar de examinar detidamente as consequências desse ponto pois
demanda as reflexões desenvolvidas no Livro III sobre o capital fictício. Entretanto, já é
130
Furtado mostra que havia na Inglaterra desse período uma queda da taxa de lucro decorrente de dois fatores
principais – “grande massa de bens de capital em permanente produção” e a melhora da “posição de barganha da
classe trabalhadora” – que estariam conduzindo a economia inglesa à “eutanásia precoce”. Para evitar esse
resultado, ela lançou-se “numa grande ofensiva internacional. Foi quanto bastou para que tivesse início a fase de
total liberalização do comércio inglês, das maciças exportações de capital, que mantinham a indústria de
equipamentos funcionando a plena capacidade, e da ofensiva comercial sob a forma do audacioso imperialismo
vitoriano” (FURTADO, 2000, p. 248-249).
131
Cf. seções 1.3 e 2.3 desta tese.
168
possível apontar desde aqui, mesmo de passagem, uma possibilidade de imperialismo através
da circulação no mercado mundial desses títulos: essa circunstância permite que o proprietário
dos meios de trabalho espacialmente fixos receba rendimentos produzidos em qualquer lugar
no qual os meios de trabalho estejam enraizados132.
3.2.3 Repercussões da troca desigual sobre os ciclos dos capitais industriais imperialistas
e dependentes
132
Voltaremos a esse ponto na quarta seção desta tese. Cf. subseções 4.3 e 4.4.
169
quantidade menor de valor. Ou seja, o valor representado em M’ é maior do que o valor de D’.
Seguindo o exemplo numérico de Marx, o capital-mercadoria de 500 libras-esterlinas (£500)
seria trocado por £500 menos o valor transferido (vt) ao capital imperialista (£500 – vt). Sendo
o mais-valor dividido entre uma parcela destinada ao consumo do capitalista (mC) e outra
destinada à acumulação (mA), o ciclo do capital dependente pode se desenrolar, supondo que
não haja distinção entre preço e valor em nenhuma das demais mudanças de forma dentro do
ciclo, com as seguintes alternativas: (a) se vt>mA, o capital dependente entra em um processo
de “desacumulação” e não consegue realizar nem a reprodução simples; (b) se vt=mA, o capital
dependente realiza apenas a reprodução simples; (c) se vt<mA, o capital dependente consegue
realizar reprodução ampliada.
Se acrescentarmos a possibilidade de novas distinções entre preço e valor no correr
do ciclo, o capital dependente pode compensar a primeira transferência de valor caso (a) os
meios de produção (Mp) que ele compre com D’ sejam produzidos por outros capitais cujas
produtividades sejam ainda menores (a transmutação D’-Mp, sendo o valor de D’ inferior ao
valor de Mp); ou (b) caso ele remunere a força de trabalho (FT) por um salário menor que o
próprio valor desta mercadoria (D’-FT, sendo o valor de D’ inferior ao valor de FT). Esta última
possibilidade é o clássico mecanismo de compensação da troca desigual via superexploração
da força de trabalho (MARINI, 2005, p. 164-71)133. Esses mecanismos de compensação ao
longo do ciclo funcionam como contratendências dentro da tendência geral à qual o capital
dependente está subordinado.
Do ponto de vista do capital industrial imperialista, a troca desigual ocorreria com
sinal contrário, isto é, o valor inicial representado no capital-mercadoria (M’) seria trocado por
um preço superior representado por D’. Mais uma vez seguindo o exemplo de Marx, o valor de
£500 seria trocado por £500 + vt. Evidentemente, isso reforçaria o processo de acumulação
desenvolvido por esse capital. O capital-mercadoria do final do ciclo (M’’) seria, portanto,
maior do que o que seria esperado caso esse capital não se envolvesse em uma troca desigual.
Mais do que as possibilidades esquemáticas de troca desigual, o que é fundamental
nesse pequeno exercício é destacar como o imperialismo reforça a polarização entre regiões do
133
Em Dialética da dependência, de 1973, Marini (2005) coloca a troca desigual como a forma de transferência
de valor que gera a superexploração da força de trabalho como mecanismo de compensação para os capitais
operantes nas economias dependentes. Por outro lado, em O ciclo do capital na economia dependente, de 1979, a
troca desigual é vista, da perspectiva da economia dependente, como uma das formas de transferência de valor
para o exterior, as quais, em conjunto, engendram o processo de superexploração da força de trabalho (MARINI,
2012a). As demais formas de transferência de valor citadas por Marini (2012a, p. 26-28), como remessa de lucros,
pagamentos de juros, royalties, etc., serão analisadas na seção seguinte.
170
mundo. Mesmo ainda nesses termos abstratos, o exame da troca desigual no ciclo do capital-
mercadoria permite visualizar como sua realização altera profundamente o desenrolar da
reprodução do capital. Em função disso é possível falar, inspirado em Osorio (2004, 2012), de
um padrão de reprodução típico do capital dependente diferente daquele padrão típico do capital
imperialista. As implicações disso sobre os territórios nos quais os capitais industriais
dependente e imperialista executam suas funções de capitais produtivos são diversas e
profundas, “incidindo nos níveis de acumulação, condições de exploração e superexploração
da força de trabalho, nos tamanhos e modalidades de constituição dos mercados internos e
externos, enfim, no conjunto de fatores que incidem na reprodução do capital” (OSORIO, 2012,
p. 77).
134
Na próxima subseção desenvolveremos a teoria dos preços de Marx.
135
Cf. subseção 3.1.
173
Supondo, como o faz Marx, que a força de trabalho é remunerada pelo seu valor,
isto é, que este é igual à parte variável do capital, e mantendo a jornada de trabalho intacta, a
única forma de aumentar socialmente a extração de mais-trabalho é aumentar a produtividade
nos setores ligados à produção de meios de subsistência para os trabalhadores. Com isso, reduz-
se o tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho e, ao mesmo tempo,
aumenta o tempo de trabalho excedente. Em termos de valor, equivale ao aumento do mais-
valor apropriado pelo capital.
O determinante do mais-valor relativo, portanto, é a elevação da força produtiva do
trabalho que, em Marx (2013), significa o seguinte:
qualquer. Cada unidade contém $½ de valor novo produzido pela força de trabalho e, por
hipótese, $½ de meios de produção são transmitidos a cada peça. Portanto, cada peça custa $1,
o equivalente a 2 horas de trabalho social.
A introdução do progresso técnico faz com que, suponhamos, as mesmas 12 horas
de trabalho produzam 24 unidades de valor de uso ao invés de 12. O valor novo adicionado pela
força de trabalho continua sendo de $6 em uma jornada já que o tempo de trabalho continua o
mesmo. A diferença é que essa grandeza de valor se distribui agora em 24 peças, fazendo com
que cada uma carregue $¼ de valor novo, o qual, somado ao valor dos meios de produção de
$½ incorporado em cada peça, significa que o valor unitário passa a ser de $¾.
Se, conforme Marx (2013, p. 391, grifos nossos) o aumento da força produtiva do
trabalho não alterar as “condições sociais médias” de produção dessa mercadoria, o resultado é
que “o valor individual dessa mercadoria se encontra, agora, abaixo de seu valor social” pois
“custa menos trabalho”. Trata-se da primeira vez na obra onde Marx apresenta o “valor
individual” distinguindo-o do “valor social”.
De acordo com o exemplo, o valor individual de $¾ representa 1,5 hora de trabalho
social. Ou seja, cada mercadoria produzida sob condições técnicas superiores contém uma
porção menor de trabalho social136. Entretanto, como as condições médias de produção
continuam intactas, o “valor efetivo” (p. 392) da mercadoria continua o mesmo, já que é
determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção e, portanto,
equivale ao valor social.
Considerando que as mercadorias são vendidas pelos valores sociais (ou efetivos),
o capitalista que utiliza menos trabalho do que a média em sua produção pode trocá-la por uma
quantidade de valor (social) superior ao valor (individual) que lhe custou produzi-la. Dito de
outra forma, ele passa a ter o direito de se apropriar de um quantum de trabalho abstrato superior
ao que ele produziu. Se essa relação for lida em termos de valores, o capital mais produtivo –
ou o capitalista inovador, nos termos de R. Carcanholo (2013)137 – pode se apropriar de mais-
valor adicional.
Para ser fiel à exposição do autor, precisamos destacar que ele sugere, a princípio,
que o valor total realizado pelo capitalista inovador pela produção de uma jornada de trabalho,
136
Em trecho do final do Livro III, Marx (2008, p. 992) assegura que o valor produzido num dado intervalo de
tempo mantém-se o mesmo: “O mesmo trabalho gera o mesmo valor para o produto criado num dado lapso de
tempo; mas, a grandeza ou a quantidade desse produto, e portanto a fração de valor configurada em parte alíquota
desse produto, depende, para dada quantidade de trabalho, unicamente do volume da produção, e, este, por sua
vez, da produtividade de dada quantidade de trabalho e não da magnitude dessa quantidade”.
137
CARCANHOLO, R. Capital: essência e aparência São Paulo: Expressão Popular, 2013. (v. 2).p. 108 et seq.
175
$20 (ou $10/12 × 24 peças, supondo que o capitalista inovador venda suas mercadorias por um
preço intermediário entre os valores individual e social), representa um valor produzido pelo
capital inovador e não simplesmente apropriado. As seguintes passagens ilustram esse
ponto138:
De fato, é por isso que a abstração que percorre inteiramente os Livros I e II é que
as mercadorias são vendidas pelos valores. Portanto, se o capitalista se apropria de $20 e
estamos respeitando o nível de abstração, este valor de $20 deve ter sido produzido por ele
mesmo. Não haveria outra explicação logicamente consistente até esse momento da obra. Como
o tempo e a intensidade do trabalho são as mesmas, o aumento de valor realizado pelo capital
inovador só pode ter sido decorrente de uma potencialização do trabalho, ou seja, a mesma hora
138
Estas duas passagens, especialmente a segunda, são amplamente utilizadas pelos defensores da tese de que o
mais-valor extra resulta do trabalho potenciado e não da transferência de valor. Cf. Borges Neto (2011).
139
Na tradução de Reginaldo Sant’Anna para a edição da Civilização Brasileira (Marx, 2004), o termo em destaque
é “opera como” (p. 369) que, evidentemente, tem o mesmo sentido.
176
140 Cf. Marx (2008, p. 892, grifos nossos): “Quanto ao capitalista individual, mede o volume de sua produção
pelo tamanho do capital disponível, na medida em que ainda possa pessoalmente controlá-lo. Seu objetivo é obter
a maior participação possível no mercado. Se há superprodução, atribui a culpa não a si, mas aos concorrentes. O
capitalista individual pode expandir sua produção, tanto por apropriar-se de parte alíquota maior do mercado tal
como existe, quanto por ampliá-lo ele mesmo”. Por isso, qualquer interpretação da teoria de Marx que não associe
o desenvolvimento da produtividade com a redução do valor individual e aumento da produção, não faz sentido.
É a própria dinâmica do modo capitalista de produção que leva a esse resultado, como nos parece ser a posição de
Marini (1979, p. 9): “En el juego entre los capitales individuales y entre las ramas entre sí, así como entre los
sectores de la producción, el aumento de la productividad y la baja de costos provoca transferencias de plusvalía
y alteraciones en las relaciones básicas de distribución precisamente porque se derivan de modificaciones en la
proporción de valor producida y apropriada por dichas ramas y capitales que no se corresponden con
modificaciones en la masa global de valor producida en la economía en su conjunto”.
177
Se, na produção de um valor de uso qualquer, cada capital isoladamente produz seu
próprio valor individual, segue que podem existir tantos valores individuais quanto o número
de capitais produtores daquela mercadoria. Como todos os capitais lançam suas mercadorias na
esfera da circulação em busca do valor de troca com a mercadoria-dinheiro, é sob esta roupagem
relativa e casual que o valor se manifesta no mundo exterior. Atesta-se, portanto, que aquela
mercadoria possui apenas um valor com legitimidade social, isto é, apenas um valor social de
determinada grandeza.
O valor social equivale à alíquota de trabalho social que cada capital tem direito a
se apropriar. Por outro lado, o valor individual expressa o quantum de trabalho privado contido
em uma determinada mercadoria com o qual cada capital contribui para o trabalho social total.
Portanto, a possibilidade de que distintos capitais produtores do mesmo valor de uso produzam
valores individuais diferentes implica que alguns (ou todos) produzirão valores de grandeza
diferente daquela de que se apropriarão.
Apesar dessa distinção ser explicitada por Marx apenas no Capítulo X do Livro I,
entendemos que os fundamentos para seu entendimento já são fornecidos ao longo de toda a
obra, especialmente na seção Mercadoria e Dinheiro. No Capítulo I, por exemplo, há uma
178
passagem bastante elucidativa a esse respeito e que está inserida na seção do fetichismo da
mercadoria no contexto da reificação das relações sociais entre os produtores:
Portanto, os homens não relacionam entre si seus produtos do trabalho como valores
por considerarem essas coisas meros invólucros materiais de trabalho humano de
mesmo tipo. Ao contrário. Porque equiparam entre si seus produtos de diferentes tipos
na troca, como valores, eles equiparam entre si seus diferentes trabalhos como
trabalho humano. Eles não sabem disso, mas o fazem. Por isso, na testa do valor não
está escrito o que ele é. (MARX, 2013, p. 149).
141
É por esse motivo que na subseção 1.3 assumimos, baseados em Marx (1980, p. 729-730), que a produção
escravocrata destinada para o mercado mundial era formalmente capitalista, ou seja, eram produzidos valores
mesmo sem a configuração do assalariamento.
179
produtor. Além disso, o caráter de valor não surge na troca, mas, ao contrário, em função da
troca ele surge na produção. Rubin (1987, p. 158-159) faz uma sistematização elucidativa sobre
esse ponto quando afirma que o trabalho privado e concreto só manifesta seu caráter social
quando igualado a uma dada “quantidade de trabalho impessoal, homogêneo, abstrato, ‘trabalho
em geral’”. Essa igualação precede a troca (mental e previsivelmente, ou seja, na cabeça do
capitalista), embora se efetive no processo real de troca.
Como a grandeza de valor é determinada pelo quantum de trabalho abstrato, como
ocorre essa abstração? O mesmo Rubin (1987, p. 159) indica que a abstração das propriedades
concretas do trabalho ocorre “através de uma troca e igualação multilaterais de produtos das
mais variadas formas de trabalho concretas”. A troca significa o vínculo entre as diversas
formas concretas de trabalho e, portanto, promove sua abstração:
Ainda segundo Rubin (1987, p. 81), na troca os trabalhos são igualados como
“parcela do trabalho total da sociedade”. O trabalho que cria valor aparece “como ‘trabalho
social’, entendido como a massa total de trabalho homogêneo, igual, de toda a sociedade”. Na
economia mercantil a conversão do trabalho individual em social ocorre na troca, quando é
igualado a outro trabalho e isso acontece pois “na troca os valores de uso concretos e as formas
concretas de trabalho são inteiramente abstraídas”.
A abstração ocorre efetivamente na troca e, em função disso, o valor se torna real,
isto é, se realiza. Apesar disso, como os produtos, no capitalismo, são produzidos para a troca,
o caráter de trabalho abstrato já se manifesta, segundo Rubin (1987, p. 166-167), “no próprio
processo de produção direta” e, portanto, também o produto deste trabalho tem o caráter de
valor (ideal). No seguinte trecho fica bastante clara a interpretação de Rubin: “O trabalho do
produtor de mercadorias é diretamente privado e concreto, mas adquire uma propriedade social
complementar, ‘ideal’ ou ‘latente’, na forma de trabalho abstrato-geral e social”. Como Rubin
lida abstratamente com uma “economia mercantil”, ele não tem condições de assegurar, como
180
já o fizemos nesta seção, que a produção sob a grande indústria opera essa abstração do trabalho
humano142.
Marx (2013) faz uma indicação semelhante no Capítulo III, quando trata do
dinheiro como medida dos valores. Nesse contexto, o autor assume o ouro como dinheiro, ou
seja, como “a forma necessária de manifestação da medida imanente de valor das mercadorias:
o tempo de trabalho” (p. 169). Considerando isso, diz Marx: “A fim de exercer praticamente o
efeito de um valor de troca, a mercadoria tem de se despojar de seu corpo natural,
transformando-se de ouro apenas representado em ouro real” (p. 177, grifos nossos).
Transformar-se de ouro representado em ouro real indica, claramente, que na produção direta a
mercadoria é valor representado que se realiza na troca.
Com base no exposto, há uma relação inequívoca entre trabalho concreto e trabalho
abstrato na teoria do valor de Marx. Este responde às determinações daquele como pode ser
visto na seguinte citação que, embora longa, é valiosa:
[...] a força motriz que transforma todo o sistema de valor origina-se no processo
técnico-material de produção. O aumento da produtividade do trabalho expressa-se
numa diminuição da quantidade de trabalho concreto que é dispendida de fato, em
média, na produção. Como resultado disto (devido ao duplo caráter do trabalho, como
trabalho concreto e trabalho abstrato), a quantidade de trabalho considerado como
‘social’ ou ‘abstrato’, isto é, como parte do trabalho total, homogêneo, da sociedade,
diminui. O aumento da produtividade do trabalho modifica a quantidade de trabalho
abstrato necessária para a produção. Provoca uma modificação no valor dos produtos
do trabalho. Uma modificação do valor dos produtos afeta, por sua vez, a distribuição
do trabalho social entre os diversos ramos de produção. (RUBIN, 1987, p. 82).
Antes de avançar nesse terreno do argumento, uma ressalva: no esforço por realçar
o ponto central de seu argumento, Rubin exagera ao caracterizar o “processo técnico-material”
como a origem da “força motriz que transforma todo o sistema de valor” 143. Apesar disso o
argumento é inteiramente compatível com a tese de transferência de valor e, ao que nos parece,
com a teoria do valor de Marx. Vejamos.
Resultado de um aumento de produtividade, a mudança na quantidade de trabalho
concreto despendida de fato na produção possibilita ao capital introduzir uma quantidade maior
de mercadorias na circulação. Mantendo tudo o mais constante, inclusive a necessidade social,
142
Cf. subseção 3.1.
143
Julgamos, depois de um alerta feito pelo colega Maracajaro Mansor, que há um certo “exagero” nesta assertiva
de Rubin pois a origem última da força motriz só pode ser o próprio capital. Na verdade, é a existência do capital
como “sujeito automático”, para usar um termo de Marx (2013, p. 229-230), que transforma o processo técnico-
material e, consequentemente, o sistema de valor.
181
diminui a proporção com que este valor de uso específico pode ser trocado por outros, ou seja,
há uma mudança não acidental no valor de troca que significa, no caso do intercâmbio por
dinheiro, diminuição no preço de mercado da mercadoria. Insistamos nesse ponto: a mudança
do valor de troca é uma manifestação de uma alteração no valor, no quantum de trabalho
abstrato, que, por sua vez, é reflexo de uma alteração no processo concreto de trabalho. Dito de
outro modo, há uma alteração na proporção em que o produto do trabalho privado se troca por
trabalho homogêneo, alterando, com isso, a proporção com a qual o trabalho concreto se
transforma em trabalho abstrato e, consequentemente, efetivando uma variação no valor. Em
função disso – e essa é a ênfase de Rubin ao longo de toda a sua obra – tende a ocorrer uma
redistribuição do trabalho social entre os diversos ramos de produção já que a maior
produtividade torna esse produto mais barato podendo substituir outros valores de uso que se
tornam obsoletos.
Adaptando o argumento de Rubin para um aumento de produtividade em um capital
individual no interior de um determinado ramo de produção, podemos visualizar o processo sob
o qual ocorre a apropriação de mais-valor extra. Um avanço das forças produtivas reduz a
quantidade de trabalho concreto necessária para a produção de uma unidade da mercadoria,
levando o capital a aumentar a quantidade de valores de uso produzidas por jornada de trabalho.
Aumentam, portanto, a quantidade de mercadorias despejadas por esse ramo na esfera da
circulação reduzindo a proporção em que estas mercadorias são trocadas por outras o que, tudo
o mais constante, reduz seu preço de mercado. Conforme os termos de Cipolla (2003, p. 98,
grifos nossos), “a diminuição do preço de mercado revela uma diminuição da quantidade de
trabalho necessária para a produção da mercadoria”, ou seja, revela uma diminuição do
quantum de trabalho abstrato que significa uma diminuição no valor (efetivo) da mercadoria
movida por uma diminuição não proporcional no valor individual de um capital singular. Se a
diminuição do valor individual promove uma redução do preço de mercado que revela a
diminuição do valor social, a determinação quantitativa deste está vinculada com a
determinação quantitativa do valor individual. Logo, há uma relação umbilical entre valor
individual e valor social.
Considerando a existência de uma situação anterior ao aumento de produtividade
onde havia equilíbrio entre a massa de produtos ofertados e a necessidade social por elas, a
diminuição dos preços de mercado reduz a apropriação de valor pelos capitais que se
mantiveram com o nível de produtividade antigo vis-à-vis a quantidade produzida por eles. E,
desde que o novo preço de mercado se situe acima do valor individual dos capitais mais
182
produtivos, aumenta a apropriação de valor por estes vis-à-vis a quantidade produzida. Para
que este desnível entre produção e apropriação de valor no nível intrassetorial seja nomeado
como transferência de valor, deve haver um elemento de mediação – o dinheiro.
Como estamos considerando capitais produtores de um mesmo valor de uso, não há
troca entre eles. Portanto, o valor que um perde não é direcionado diretamente para outro. Essa
transferência só pode ser realizada indiretamente: devem haver agentes da troca dispostos a
ceder a mesma quantidade de valor na forma de dinheiro. Se assim ocorrer, serão os possuidores
de dinheiro que efetivarão a transferência do mais-valor extra: para o comprador das
mercadorias, não interessa como elas foram produzidas, já que, como estamos supondo que a
troca se desenvolve com valores sociais idênticos aos preços de mercado, o comprador troca
valores de igual grandeza. Por outro lado, se todas as mercadorias são realizadas, esses
compradores ajustam, por assim dizer, os balanços dos capitais individuais – isto é, garantem
que os mais produtivos se apropriem de mais do que produziram e vice-versa – quando
oferecem uma determinada quantidade de dinheiro, possuidora de uma determinada quantidade
de trabalho abstrato equivalente ao valor social daquelas mercadorias e não equivalente ao valor
individual.
Como nossos propósitos mais amplos são investigar a transferência de valor no
mercado mundial, portanto entre capitais operando em distintos territórios nacionais, a
mediação efetuada pelo dinheiro implica, para a análise teórica, uma novidade: tem que existir
uma mercadoria portadora de tempo de trabalho socialmente necessário que execute a função
de dinheiro mundial. Não se trata de um preciosismo, pois, se não existir essa mercadoria, a
transferência de valor entre capitais do mesmo ramo de produção não se efetivará. Portanto,
precisamos pressupor a existência do dinheiro mundial144.
Para finalizar essa subseção, precisamos estabelecer algum senso sobre como os
valores individuais determinam a grandeza quantitativa do valor social. Sabemos que a hipótese
de R. Carcanholo (2013) é que o valor social resulta da média aritmética ponderada dos valores
individuais; hipótese que, como exposto anteriormente, soou como ad hoc.
Com base no que discutimos nesta subseção, quando um capital diferencia seu valor
individual dos demais, há uma modificação não acidental do valor de troca que expressa a
144
Reconhecemos a existência de uma profunda divergência no campo marxista sobre a forma contemporânea do
dinheiro mundial, cujo exame foge ao escopo desta tese. As posições divergentes podem ser situadas em dois
polos: aqueles que sustentam que a vinculação – explícita ou implícita, mais ou menos direta – do dinheiro mundial
com o ouro ainda é válida (GERMER, 2005; PRADO, E. F. S., 2013); e aqueles que negam a contemporaneidade
de qualquer forma de dinheiro metálico (ARTHUR, 2005; PAULANI, 2009).
183
alteração prévia do valor social. A alteração no valor de troca é proporcional à nova massa de
valores de uso ofertada pelo capital singular. Segue que, quanto mais rápido a inovação
tecnológica se espraia entre os demais capitais, maior a velocidade com que cresce a oferta de
valores de uso e, tudo o mais constante, mais rápido é a alteração no valor de troca expressando
a diminuição acelerada do valor social. Quando todos os capitais do mesmo ramo produzirem
sob as novas condições técnicas, os valores individuais serão todos iguais entre si e idênticos
ao valor social. Portanto, (a) a dinâmica do valor social segue a direção dos valores individuais
produzidos pelos capitais mais produtivos; (b) e ele, quantitativamente, se aproxima do valor
individual daqueles capitais que produzem sob as condições técnicas predominantes.
O raciocínio anterior sugere que o valor social é determinado quantitativamente
como uma média aritmética ponderada pelo tamanho dos capitais individuais, sendo este
mensurado em termos de quantia de capital-dinheiro adiantada. O valor social segue as
propriedades da média aritmética pois esta é um parâmetro estatístico que varia se qualquer
uma das grandezas que compõem seu cálculo variarem e se aproxima da porção mais densa da
distribuição. Entretanto, como as categorias marxianas são tendenciais, então a grandeza do
valor social é muito próxima de uma média aritmética dos valores individuais ponderada pela
quantidade de mercadorias produzida por capital. Temos que ter muita cautela nesse ponto pois
a teoria de Marx se desenvolve sobre leis de tendência, refletindo aquilo que acontece na base
concreta da economia capitalista, a qual é dinâmica por natureza. Não é possível, portanto,
inferir, em um dado instante do tempo, a média dos valores individuais, posto que a média se
calcula sobre grandezas estáticas e – mesmo que assumíssemos, por simplicidade, alguma
possibilidade de mensuração empírica deles – os valores são dinâmicos. Por isso, e pela forma
como ele se manifesta tendencialmente, o valor social parece uma média, mas não pode ser
mensurado como tal.
Após a introdução do tear a vapor na Inglaterra, por exemplo, passou a ser possível
transformar uma dada quantidade de fio em tecido empregando cerca da metade do
trabalho de antes. Na verdade, o tecelão manual inglês continuava a precisar do
mesmo tempo de trabalho para essa produção, mas agora o produto de sua hora de
trabalho individual representava apenas metade da hora de trabalho social e, por isso,
seu valor caiu para a metade do anterior. (MARX, 2013, p. 116).
Nessa passagem chocam-se o capital inovador (que utiliza tear a vapor) e o capital
atrasado (do tear manual). Duplicou-se a produtividade, reduziu-se pela metade o tempo de
trabalho socialmente necessário à produção de tecidos e, consequentemente, reduziu-se o valor
social pela metade. A partir de então, uma hora de trabalho social produz o dobro de valores de
uso do que antes. Reparemos que, para usar a formulação de Rubin, a “força motriz” da
modificação do sistema de valores está ligada ao aspecto técnico-material da produção. Pela
discussão da subseção anterior, a relação entre os capitais inovadores e atrasados só pode ser a
seguinte: o aumento da produtividade permitiu a alguns capitais reduzir o tempo de trabalho
necessário à produção de tecidos pela metade; o aumento da massa de mercadorias produzidas
reduziu o valor de troca delas com as demais; essa redução se refletiu nos preços de mercado,
de forma que, enquanto a inovação não é plenamente disseminada, ele se localiza em um
intervalo entre os menores e maiores valores individuais; ao longo desse processo os capitais
inovadores realizam uma taxa maior de lucro e o contrário acontece aos atrasados; socialmente
há um processo de migração das condições técnicas atrasadas em direção às modernas, que se
reflete na diminuição mais rápida do valor social até o ponto em que, como indicado no
exemplo, o tempo de trabalho socialmente necessário coincide com o tempo de trabalho
necessário para os capitais inovadores; como o tecelão manual produz com o mesmo tempo que
185
antes, seu valor individual permanece o mesmo e o valor apropriado por ele representa metade
do anterior, já que houve a diminuição pela metade da grandeza de valor social.
Mas, se isso é verdade, por que Marx disse que “seu valor caiu pela metade”?
Recorremos à resposta de R. Carcanholo (2013): nesse nível de abstração não é possível
diferenciar produção de apropriação de valor. Em termos concretos, isso parece ser verdade sob
a ótica do tecelão manual: parece-lhe que houve uma diminuição em seu valor. Insistamos no
contexto: para inferir que a grandeza do valor depende da quantidade de trabalho humano
abstrato, ou do tempo de trabalho socialmente necessário, Marx está supondo a mercadoria
como um “exemplar médio de sua espécie”. Não está explícito, mas nos parece que o “exemplar
médio” se refere às condições técnicas normais, predominantes. Portanto, sob tais condições, a
produção de um determinado valor de uso contém uma grandeza de valor determinada pelo seu
tempo de produção; por estarmos em condições técnicas médias, trata-se do tempo de trabalho
socialmente necessário. Parece-nos que Marx está permitindo, embora não explicitando, a
possibilidade de condições individuais de produção diferentes, de tempos de trabalho
individuais diferentes e, consequentemente, de valores individuais diferentes.
Essa questão pode ser apreendida sob uma outra ótica no Capítulo III, onde Marx
(2013, p. 180-181) examina detalhadamente o dinheiro. Uma das funções desenvolvidas pela
mercadoria que desempenha o papel do dinheiro é de meio de circulação ou, em outros termos,
mediador do “metabolismo do trabalho social”. Nos meandros do “salto mortal da mercadoria”,
Marx precisa introduzir na exposição a relação entre oferta, demanda, preço de mercado e valor.
A seguinte passagem fundamenta essa discussão e, para facilitar nossa interpretação,
fragmentamo-la:
O efeito é o mesmo que se obteria se cada tecelão individual tivesse aplicado em seu
produto individual mais do que o tempo de trabalho socialmente necessário. Aqui vale
o provérbio: apanhados juntos, enforcados juntos [mitgefangen, mitgehangen]. Todo
linho no mercado vale como se fosse um artigo único, sendo cada peça apenas uma
parte alíquota desse todo. E, de fato, também o valor de cada braça individual é apenas
a materialidade da mesma quantidade socialmente determinada de trabalho humano
de mesmo tipo. (MARX, 2013, p. 181).
enquanto o segundo adiciona valor novo; um é resultado do caráter concreto e outro o resultado
do caráter abstrato do trabalho humano. Nesse contexto a seguinte passagem ilustra o efeito de
um desenvolvimento das forças produtivas:
Mais uma vez temos a indicação expressa de Marx de que a ampliação do efeito
concreto do trabalho resulta na diminuição da quantidade de trabalho abstrato por unidade de
produto: a “quantidade de trabalho novo” diminui proporcionalmente ao incremento na
produtividade. Em termos de valor individual, poderíamos dizer que houve uma redução no
valor individual proporcional ao desenvolvimento das forças produtivas.
Apesar dessas passagens esporádicas ligadas ao progresso técnico, apenas na Seção
IV (Produção do mais-valor relativo) que ele entra, de fato, na análise teórica. Após ter exposto,
no Capítulo X, a distinção entre valor individual e valor social em função de variações na
produtividade, no Capítulo XII (Divisão do trabalho e manufatura) o argumento do mais-valor
extra entra sutilmente:
Ela pode ser presenteada ao comprador da mercadoria. Esse é o primeiro passo que impele a
concorrência” (MARX, 2013, p. 619).
O aspecto técnico-material e a produtividade voltam a tomar lugar privilegiado na
argumentação de Marx na Seção VII sobre a acumulação do capital. No Capítulo XXII
(Transformação de mais-valor em capital), Marx analisa as condições e implicações da
acumulação de parte do mais-valor realizado. Uma das circunstâncias que permitem a
acumulação independentemente da divisão do mais-valor entre renda e capital é o
desenvolvimento das forças produtivas na medida em que aumenta a produção do mais-valor
relativo e, consequentemente, a taxa do mais-valor. Ademais, esse incremento de produtividade
atinge não só o novo capital, mas o capital original ou o que está produzindo sob condições
técnicas antigas:
Tal como no caso de uma exploração aumentada das riquezas naturais mediante o
simples aumento na distensão da força de trabalho, a ciência e a técnica constituem
uma potência de ampliação do capital em funcionamento, independente da grandeza
determinada que esse capital alcançou. [...] Por certo, esse desenvolvimento da força
produtiva é, ao mesmo tempo, acompanhado de uma depreciação parcial dos capitais
em funcionamento. Na medida em que essa depreciação se torna mais aguda em
razão da concorrência, o peso principal recai sobre o trabalhador, com cuja
exploração aumentada o capitalista procura se resarcir. (MARX, 2013, p. 680, grifos
nossos).
145
A abstração operada ao longo do Livro I, relativa à identidade entre preços e valores, decorre do próprio objetivo
do livro, como lembram Corrêa e M. D. Carcanholo (2016, p. 20), que é “entender o processo de produção do
capital, o que faz com que seja pressuposta a sua circulação, a realização (no preço) desse valor. Disto trata a lei
189
enquanto Marini associa a superexploração como uma característica específica das economias
dependentes em função da concorrência no mercado mundial que promoveria a transferência
de valor para as economias imperialistas, Marx dá um estatuto mais geral ao efeito da
concorrência sobre a exploração do trabalhador.
Ainda nesse capítulo – na verdade um parágrafo adiante – Marx explicita aquilo
que R. Carcanholo (2013) enfatiza e que é um aspecto chave para a compreensão da
transferência de valor nesse nível de abstração: trabalho em quantidade e intensidade igual
agrega “sempre a seus produtos a mesma soma de valor novo” independentemente das
condições da produtividade. Fica explícito na comparação entre a produção de um trabalhador
inglês e um chinês:
do valor. Marx nunca sustentou que os preços correspondem aos valores quantitativamente, apenas que, nos
marcos do Livro I, para estudar a produção do valor-capital, assume-se que ela se realiza (corresponde) no (ao)
preço”. Nos marcos desse nível de abstração, os momentos da exposição nos quais Marx sugere a existência real-
concreta de superexploração da força de trabalho não possuem relevância teórica: nesses casos, Marx “está
explicando a forma concreta pela qual opera, em circunstâncias históricas determinadas, a exploração do trabalho
pelo capital” (ibidem, p. 17). Uma posição divergente, que defende a existência de uma “teoria da
superexploração” no Livro I de O Capital, contra a qual Corrêa e M. D. Carcanholo (2016) se posicionam, é a de
Nascimento, Dillenburg e Sobral (2015).
190
que não há transferência de valor através da concorrência intrassetorial. Pela sua relevância no
debate marxista, reproduziremos essa passagem integralmente:
Em cada país vigora certa intensidade média do trabalho, abaixo da qual o trabalho
para a produção de uma mercadoria consome mais do que o tempo socialmente
necessário e, por isso, não conta como trabalho de qualidade normal. Apenas um grau
de intensidade que se eleva acima da média nacional modifica, numa dada nação, a
medida do valor pela mera duração do tempo de trabalho. O mesmo não ocorre no
mercado mundial, cujas partes integrantes são os diversos países. A intensidade média
do trabalho varia de país a país, sendo aqui maior, lá menor. Essas médias nacionais
constituem, pois, uma escala, cuja unidade de medida é a unidade média do trabalho
universal. Assim, comparado com o menos intensivo, o trabalho nacional mais
intensivo produz, em tempo igual, mais valor, que se expressa em mais dinheiro.
(MARX, 2013, p. 631-632, grifos nossos).
[...] a lei do valor, em sua aplicação internacional, é ainda mais modificada pelo fato
de, no mercado mundial, o trabalho nacional mais produtivo também contar como
mais intensivo, sempre que a nação mais produtiva não se veja forçada pela
concorrência a reduzir o preço de venda de sua mercadoria a seu valor. (MARX, 2013,
p. 632).
Quando Marx afirma que o trabalho mais produtivo conta como mais intensivo,
desde que “a nação mais produtiva”, ou os capitais mais produtivos, não rebaixem o preço ao
valor de sua mercadoria, ele está reforçando uma indicação que já fizemos anteriormente: a
maior produtividade reduz o valor individual das mercadorias produzidas em tal base técnica.
Com isso, se esses capitais não se verem coagidos pela concorrência a reduzir o preço, eles se
apropriarão de um mais-valor extra exatamente na medida da diferença entre preço e valor.
191
Portanto, se apropriarão de um valor não produzido por eles, de forma que parece que eles são
mais intensivos, tendo em vista que no nível da aparência a apropriação maior deve ser resultado
de uma produção maior de valor (CARCANHOLO, R., 2013).
Por trás dessa questão, precisamos enfatizar que a passagem anteriormente citada
sugere que o próprio Marx percebeu o efeito da concorrência no mercado mundial sobre os
vários capitais industriais localizados em variadas nações. Explícita e literalmente, o autor
reconhece a possibilidade de que a distinção entre preços e valores se efetive no mercado
mundial, fato que favoreceu historicamente a universalização do modo capitalista de produção
como já indicamos em outro lugar146. Não é por outro motivo que ele se refere à constituição
de uma divisão internacional do trabalho a partir da constituição da grande indústria (MARX,
2013, p. 523), momento histórico no qual os capitais ingleses instauram um desnível estrutural
de produtividade com o resto do mundo que os permite moldá-lo “à sua imagem e semelhança”,
para usar uma famosa expressão do Manifesto comunista (MARX; ENGELS, 2007, p. 44).
Vinculado a esse raciocínio, encontramos no Capítulo XXIII do Livro I um
momento crucial na exposição da relação entre concorrência e produtividade. Na lei geral da
acumulação capitalista, a concorrência e o mais-valor extra têm um papel decisivo no processo
de centralização dos capitais:
As leis dessa centralização dos capitais ou da atração do capital pelo capital não
podem ser desenvolvidas aqui. Bastará uma breve indicação dos fatos. A luta
concorrencial é travada por meio do barateamento das mercadorias. O baixo preço das
mercadorias depende, caeteris paribus, da produtividade do trabalho, mas esta, por
sua vez, depende da escala da produção. Os capitais maiores derrotam, portanto, os
menores. (MARX, 2013, p. 702).
146
Cf. subseção 1.3 desta tese.
192
extra que funciona como combustível a favor da centralização dos capitais. Na medida em que
a concorrência no mercado mundial se desenvolve sobreposta a uma malha pré-definida de
fronteiras nacionais, a transferência internacional de valor, resultado da concorrência, parece
ser o motor de um processo de polarização global que se retroalimenta com o fortalecimento da
centralização dos capitais no polo imperialista do mercado mundial147.
Vale lembrar que esse argumento de Marx se desenvolve a partir do pressuposto do
mercado mundial, tal como exposto na primeira nota de rodapé do Capítulo XXII148. Essa
abstração, segundo Pradella (2015a, p. 155), possibilita a Marx identificar a “tendência
expansiva do capital dos estados dominantes” materializada na lei geral da acumulação
capitalista. Sistematicamente, aponta Pradella, Marx leva em conta a dimensão internacional
do campo de ação do capital e da classe trabalhadora. Por exemplo, ele considera que o capital
britânico investido no exterior constitui parte do capital social total, de forma que ele “não
precisa de determinações particulares já que o Livro I não considera a circulação”.
Nesse sentido, seguindo a sugestiva interpretação da autora, a lei geral é o atestado
da tendência de expansão do sistema: as tendências à concentração e centralização elevam as
possibilidades de mobilidade internacional do capital, potencializando maior concentração.
Portanto, tendencialmente, a lei geral implica que o capital integra e subordina outras formas
de exploração não-capitalistas, permitindo a Marx presumir a tendência à proletarização
universal – impulsionada pela concorrência entre capitais e pela intervenção estatal direta – já
que, nos termos de Pradella (2015a, p. 156), “todos os trabalhadores engajados na produção de
mercadorias são trabalhadores assalariados”.
147
Desenvolveremos esse argumento na Seção Cinco, especialmente na subseção 5.3.
148
Cf. subseção 1.2 desta tese.
193
destacamos, nos momentos em que o argumento do autor caminhava para um terreno que o
colocaria em contradição com o nível de abstração desejado – explicitamente nos Capítulos X
e XX do Livro I – o próprio criava subterfúgios que lhe permitiam explicar o ponto em questão
dentro dos marcos permitidos. Esse recurso argumentativo resolve parcialmente o problema
lançando-o automaticamente para frente: o enigma do mais-valor extra, por exemplo, pode ser
resolvido em sua inteireza de posse das categorias desenvolvidas nas duas primeiras seções do
Livro III.
Além desta questão, que abarca novamente a transferência de valor dentro de um
ramo, a mudança no nível de abstração a partir do primeiro capítulo do Livro III ensejará uma
explicação para a transferência de valor entre ramos com base na teoria dos preços de produção.
Tentaremos mostrar, nesta subseção, como a formação da taxa geral de lucro subjacente à
transformação de valores em preços de produção engloba o mercado mundial e, com isso,
explica a troca desigual entre setores. Com isso, esperamos concluir este Capítulo III tendo
demonstrado os fundamentos do imperialismo pela via do comércio a partir da teoria do valor
de Marx.
149
Cf. Subseção 1.1 desta tese.
194
de trabalho aplicada” (MARX, 2008, p. 42). Como, nessa conta, falta incorporar o trabalho não-
pago, ou seja, o mais-valor, o custo real da mercadoria é maior do que o que custa ao capitalista
pois “a parte constituída pela mais-valia nada custa ao capitalista, justamente por custar ao
trabalhador trabalho que não é pago”. Essa distinção entre o custo individual, para o capitalista,
e o custo social, real, revela “o caráter específico da produção capitalista”, qual seja, de que os
verdadeiros produtores da mercadoria transferem gratuitamente parte de seu trabalho para os
proprietários das condições de produção.
A mistificação do preço de custo começa quando se homogeneíza dois elementos
qualitativamente distintos: o capital constante e o capital variável. Sabemos, desde o Livro I,
que o primeiro transfere seu valor à mercadoria enquanto o segundo “tem a função de criar
valor” (MARX, 2008, p. 44) pois se transforma em “força de trabalho viva” durante o processo
imediato de produção. A diferença entre os dois componentes do preço de custo se evidencia
quando se observa qualquer variação quantitativa entre eles. Por exemplo, se há um aumento
nos preços dos meios de produção, tanto o preço de custo quanto o valor da mercadoria
aumentam exatamente na mesma proporção (em decorrência da transferência do valor do
capital constante para a mercadoria). Por outro lado, um aumento no preço da força de trabalho
não altera o valor da mercadoria, apenas do preço de custo. Isso ocorre pois não é o preço da
força de trabalho que é transferido ao valor da mercadoria, mas sim a quantidade de valor novo
criado por dada quantidade de trabalho.
Portanto, seguindo o argumento de Marx (2008, p. 45-47), as duas partes do preço
de custo só têm em comum o fato de representarem reposição do capital adiantado. Essa fórmula
oculta a distinção qualitativa entre capital variável e capital constante: oculta a diferença de
função entre força de trabalho e meios de produção no processo de produção do valor. No preço
de custo, “só vemos valores prontos e acabados, os componentes do valor do capital adiantado,
que entram na formação do valor do produto; nenhum elemento aparece que crie valor” (grifos
nossos).
Essa mistificação se patenteia no próprio preço de custo na medida em que ele se
diferencia internamente entre capital fixo e capital circulante, ou seja, do ponto de vista da
rotação do capital150:
150
Marx desenvolveu essas questões no Capítulo VIII do Livro II, o que indica como o processo de circulação
compreende uma etapa de transição entre a essência e a aparência do processo capitalista de produção. Cf. Marx
(2014, p. 239-266).
195
Essa diferença entre capital fixo e circulante, do ponto de vista do cálculo do preço de
custo, demonstra apenas a origem aparente do preço de custo [...]. Além disso, o
capital variável despendido em força de trabalho, classificado como capital circulante,
é, no tocante à formação do valor, expressamente identificado com o capital constante
(consistente em matérias de produção), e assim mistifica-se completamente o processo
de valorização do capital. (MARX, 2008, p. 48).
151
A fragmentação do mais-valor em rendas é o tema da próxima seção.
152
CALLINICOS, A. Deciphering Capital: Marx’s Capital and its destiny. London: Bookmarks Publications,
2014. p. 125 et seq.
196
Desse raciocínio, segue que se o chamado preço de venda for igual à expressão
monetária do valor, o lucro será igual ao mais-valor. Do contrário, ou seja, se o preço de venda
se situar abaixo do valor, o lucro apropriado pelo capitalista será menor do que o mais-valor.
Essa diferença entre preço e valor fundamenta a teoria dos preços de produção e é chamada por
Marx de “lei fundamental da concorrência”:
Isto explica fenômenos cotidianos da concorrência, como, por exemplo, certos casos
em que se vende mais barato (underselling), rebaixa anormal de preços das
mercadorias em determinadas indústrias etc. A lei fundamental da concorrência
capitalista, até hoje não apreendida pela economia política, a lei que regula a taxa
geral de lucro e os preços de produção determinados por essa taxa, baseia-se,
conforme veremos mais tarde, nessa diferença entre valor da mercadoria e preço de
custo, e na possibilidade daí resultante de vender a mercadoria abaixo do valor, mas
com lucro. (MARX, 2008, p. 52).
Uma questão que surge é que se a mais-valia total já está dada, a possibilidade de
venda por preço abaixo do valor implica necessariamente uma outra venda por preço acima do
valor, de forma que a soma de valores realizados se iguale ao valor total produzido. Isso sugere
que o que um capitalista perde na venda, outro ganhe, se revelando um jogo de soma zero. Essa
compensação mútua reforça a tese de R. Carcanholo (2013) segundo a qual o valor social é a
média aritmética ponderada dos valores individuais.
A distinção quantitativa entre valor e preço se desfaz quando consideramos a
totalidade, afinal, nesse nível, todo o mais-valor se transforma em lucro: “a mais-valia ou o
lucro consiste justamente no excedente do valor-mercadoria sobre o preço de custo, isto é, no
excedente da totalidade de trabalho contida na mercadoria sobre a soma de trabalho pago nela
contida” (MARX, 2008, p. 60, grifos nossos). O lucro, na cabeça do capitalista individual,
decorre da aplicação de uma taxa de lucro sobre o preço de custo: essa é a norma desde as
formas antediluvianas de capital. É por esse motivo que a taxa de lucro é o “ponto de partida
histórico” (MARX, 2008, p. 61) do lucro, de forma que “a conversão da mais-valia em lucro
deve ser inferida da transformação da taxa de mais-valia em taxa de lucro, e não o contrário”
(MARX, 2008, p. 61). A despeito dessa ordem histórica, o mais-valor e a taxa de mais-valor
são o ponto de partida teórico – nesse sentido, objeto do Livro I – pois compreendem a essência
da produção capitalista: “relativamente, mais-valia e taxa de mais-valia são o invisível, o
essencial a investigar, enquanto a taxa de lucro e, por conseguinte, a mais-valia sob a forma de
lucro transbordam na superfície dos fenômenos” (MARX, 2008, p. 61). Exatamente com este
sentido dissemos que a transferência de valor (ou mais-valor) é a essência do imperialismo, da
forma histórica e social do mercado mundial.
Estamos, portanto, no nível da aparência, onde o lucro parece provir da circulação
(e o imperialismo, igualmente, parece provir do comércio, isto é, da circulação). Essa aparência
“se robustece porque, efetivamente, em meio à concorrência, no mercado real, depende das
condições deste a possibilidade de realizar-se e o grau em que se realiza em dinheiro esse
excedente” (MARX, 2008, p. 61), que, não custa lembrar, já está dado desde a produção. A
observação do todo pela forma como ele se apresenta no nível concreto dos fenômenos joga
uma sombra sobre esses dois processos – o processo imediato de produção e o processo de
198
Esse raciocínio permite a Marx concluir o argumento dizendo que “quanto mais
seguimos o processo de valorização do capital, mais dissimulada fica a relação-capital, e menos
se percebe o segredo de sua estrutura interna” (MARX, 2008, p. 67).
A identidade quantitativa entre mais-valor e lucro no âmbito da totalidade é crucial
para enfrentar a polêmica sobre o assim chamado problema da transformação de valores em
preços de produção, como veremos na próxima subseção. Por agora, podemos registrar que a
edição feita por Engels dos escritos de Marx reunidos nos Manuscritos de 1864-1865 suprimiu
alguns parágrafos do texto original os quais poderiam reforçar a tese de que o problema da
transformação é, na realidade, um não-problema (MOSELEY, 2015, p. 8-16).
Por exemplo, logo no primeiro capítulo, Engels cortou quatro parágrafos que
sucediam o primeiro. Na interpretação de Moseley (2015, p. 8), estes parágrafos argumentam
que o mais-valor total fora produzido nos Livros I e II, isto é, ele já é uma magnitude dada
quando se examina sua distribuição no Livro III. Portanto, como já enfatizamos anteriormente,
“a magnitude do lucro é a mesma do mais-valor; a diferença é que essa magnitude pré-
determinada é vista subjetivamente de uma perspectiva diferente (a perspectiva dos
capitalistas)”.
Outra passagem de Marx não incluída por Engels na versão final do Livro III –
destacada por Moseley (2015, p. 12) – e que é útil aos nossos propósitos é a seguinte:
Deveria finalmente ser assinalado que o que nós apresentamos aqui como movimentos
de partes diferentes do mesmo capital durante um período de tempo poderia muito
bem ser apresentada como diferenças entre distintos capitais em várias áreas de
investimento colocados um ao lado do outro em um sentido espacial e o que foi
apresentado até agora será utilizado nesta última forma no próximo capítulo. (MARX,
2015, p. 143, tradução nossa, grifos do autor). 153
153
O que Engels chamou de seções do Livro III, Marx havia chamado de capítulos nos Manuscritos. Então, o
“próximo capítulo” a que Marx se refere nessa passagem é, na realidade, a segunda seção do Livro III (Conversão
do lucro em lucro médio).
200
Quando Marx desenvolve sua teoria dos preços de produção, ele supera uma
inconsistência fundamental da teoria do valor de Ricardo: este não conseguiu explicar a
existência de uma taxa geral de lucro a partir do valor-trabalho. Havia uma incoerência interna
que, nos termos de Callinicos (2014, p. 90), “ajuda a entender porque a escola ricardiana se
estagnou e gradualmente se desintegrou após a morte de Marx”. Para resolver essa contradição,
Ricardo tratou a taxa geral de lucro como uma “premissa básica”, um pressuposto decorrente
de sua “noção essencialmente empirista do processo econômico” (CALLINICOS, 2014, p. 91),
o que conferia ao modo capitalista de produção um status aistórico, natural. Dada essa
inconsistência, o reconhecimento de que, na realidade do capitalismo, existe uma taxa geral de
lucro, abriu duas possibilidades: (a) abandonar a teoria do valor trabalho, decisão tomada pelos
154
CAPUTO, O.; PIZARRO, R. Imperialismo, dependencia y relaciones economicas internacionales. Santiago:
Universidad de Chile, 1970. p. 58 et seq.
155
Desenvolvemos essa crítica à teoria da troca desigual na subseção 2.1.3.1 desta tese.
202
marginalistas; ou (b) reformular a teoria do valor trabalho de forma que ela consiga explicar a
existência da taxa média de lucro (CALLINICOS, 2014, p. 93).
Conforme o argumento de Pradella (2015a, p. 104-106), a falha ricardiana em não
explicar a taxa geral de lucro expandiu as inconsistências de sua teoria. Segundo a autora,
Ricardo não percebeu a existência de renda absoluta, isto é, a renda auferida pelo proprietário
da terra por ceder seu direito de uso, por não haver distinguido os valores dos preços de
produção. Marx percebe esse problema na teoria da renda de Ricardo a partir dos cadernos de
Londres (1850-3), embora, naquele tempo, ainda não tivesse condições de superá-lo. Pradella
registra que Marx percebe isso através da crítica de Thomas Hopkins à Ricardo, uma crítica que
retrocedia na compreensão do fenômeno pois “não fundamentava a teoria da renda absoluta nos
marcos da teoria do valor trabalho” (PRADELLA, 2015a, p. 106). Callinicos (2014, p. 94)
demonstra que já nos Manuscritos de 1861-1863 Marx havia superado essa contradição
ricardiana ao trabalhar com o tema da taxa geral de lucros pelo “ângulo da teoria da renda”. A
solução marxiana decorre da demonstração de que as mercadorias não se trocam pelos valores,
mas sim pelo que ele chamava de preços médios, depois preços de custo em 1861-63, e,
finalmente, de preços de produção em O Capital.
A partir do argumento desenvolvido na primeira seção do Livro III, segundo o qual
o lucro é uma “forma transfigurada” do mais-valor (MARX, 2008, p. 51), Marx vai iniciar o
argumento da segunda seção demonstrando que, na base da venda pelos valores, a taxa de lucro
cresce com a composição do capital: capitais com maior participação do capital variável no
capital adiantado total se apropriarão de taxas maiores de lucro que os demais.
Para chegar a essa conclusão, alguns passos são importantes. Pressupõe-se, em
primeiro lugar, que as taxas de mais-valor e a duração da jornada de trabalho são iguais entre
os diversos ramos de produção (MARX, 2008, p. 191). Trata-se de uma abstração para evitar
que variações nessa taxa mascarem o efeito das variações da composição do capital sobre a taxa
de lucro, mas, sobretudo, trata-se de uma abstração real: tendencialmente, esse nivelamento se
efetiva cada vez mais com o próprio “progresso da produção capitalista”:
E, embora os mais variados obstáculos locais dificultem a nivelação dos salários e das
jornadas de trabalho – por conseguinte, da taxa de mais-valia – nos diversos ramos de
produção e mesmo nos diversos investimentos no mesmo ramo de produção, ainda
assim ela se realiza cada vez mais com o progresso da produção capitalista e com a
subordinação de todas as relações econômicas a esse modo de produção. (MARX,
2008, p. 191).
203
O processo real de nivelamento das taxas de mais-valor em torno de uma taxa média
– que Marx quase sempre irá supor como 100% – está umbilicalmente ligado com o processo
de subsunção real do trabalho ao capital na medida em que este equivale à destituição completa
do conteúdo do trabalho humano e à redução tendencial de qualquer tipo de trabalho à condição
de trabalho simples. Esse movimento se articula com o “progresso da produção capitalista” pois
este resulta do processo de concentração dos recursos sociais em torno do capital que se
materializa com a migração de trabalhadores e capitais. Por isso, se determinado ramo de
produção produz uma taxa de mais-valor acima dos demais, a concorrência entre capitais e o
deslocamento de trabalhadores atuam forçando uma redução dela ao longo do tempo (MARX,
2008, p. 231).
Relacionado com esse fato, o “progresso da produção capitalista” tende a integrar
o mercado mundial em torno da produção mercantil. Isto significa que no mercado mundial
também tende a ocorrer uma equalização tendencial das taxas de mais-valor. Que haja
discrepâncias empíricas entre taxas médias nacionais, isto não invalida a tendência a configurar-
se uma taxa média de mais-valor em termos mundiais: é o mesmo raciocínio que Marx (2008,
p. 161-162) indica quando afirma que existem discrepâncias entre taxas de mais-valor entre
setores, mas que “na investigação geral da produção capitalista, devem ser postas de lado como
fortuitas e acessórias”. Por isso, conclui o autor, “nesta pesquisa de ordem geral, suporemos
sempre que as condições reais correspondem ao respectivo conceito, ou, em outras palavras, as
condições reais só estarão presentes na medida em que configuram o tipo geral delas”.
A existência de barreiras à realização plena da equalização não impede de
considerar a própria equalização como um “pressuposto efetivo [real] do modo de produção
capitalista” (MARX, 2008, p. 231). Isto só é possível na medida em que as leis gerais do
capitalismo são desenvolvidas por Marx como leis de tendência. Nesse sentido, a convergência
entre a posição teórica – equalização, nesse caso – e sua efetividade prática “é tanto maior
quanto mais se desenvolve o modo capitalista de produção e quanto mais se eliminam as
contaminações e as misturas com as sobrevivências de condições econômicas antigas” (MARX,
2008, 231). O desenvolvimento real do capitalismo efetiva em intensidade cada vez maior as
leis de tendência, de forma que exatamente por esse motivo defendemos que a equalização das
taxas de mais-valor e de lucro ocorrem no mercado mundial a partir de sua constituição como
204
tal156. Isso demonstra que teoria e história são indissociáveis para Marx: a troca aos preços de
produção “exige determinado nível de desenvolvimento capitalista” (MARX, 2008, p. 233).
A questão central aqui é a seguinte: a possibilidade de equalização (seja da taxa de
mais-valor seja da taxa de lucro) depende da possibilidade de mobilidade espacial da força de
trabalho e do capital. Como já argumentamos157, se existe alguma mobilidade podemos
pressupor a formação tendencial da taxa média de mais-valor ou de lucro. Derivada dessa
questão, há uma passagem de Marx que pode gerar uma confusão sobre o locus geográfico no
qual essas taxas se equalizam:
Não interessam a esta pesquisa as diferenças nas taxas de mais-valia dos diversos
países nem nos correspondentes graus de exploração do trabalho, portanto. O que
pretendemos estudar agora é justamente a maneira como se forma num país uma taxa
geral de lucro. (MARX, 2008, p. 192, grifos nossos).
O condicionante “num país” deve ser entendido como relacionado ao fato de que a
possibilidade de migração de força de trabalho e capital é sensivelmente mais forte no interior
de determinada fronteira nacional. Seguindo o raciocínio que desenvolvemos anteriormente, o
condicionante em questão não indica que a teoria da taxa geral de lucro só é válida intra-nação.
A centralidade não é o espaço nacional em si, mas a possibilidade maior ou menor de migração
internacional. Marx, de fato, não exclui a possibilidade de uma taxa média de mais-valor
mundial:
156
Nossa crítica a Mandel (1985) baseou-se em um raciocínio deste tipo. Cf. subseção 2.1.3.1.
157
Cf. Subseção 2.1.3.1 desta tese.
158
No Capítulo IX do Livro III, por exemplo, sempre que Marx (2008) se refere ao capital global, ao capital total,
à totalidade dos capitais, ele se refere em termos da “sociedade” e não do país: “capital global da sociedade” (p.
205
comprova que a noção geográfica aqui tem um papel puramente formal: embora a concorrência
e a acumulação se efetivem sobrepostas a uma malha pré-estabelecida de Estados-nações, a
existência deles não interfere concreta e diretamente na teoria dos preços de produção, pois,
neste nível de abstração, pressupomos a “subordinação de todas as relações econômicas a esse
modo de produção” (MARX, 2008, p. 191).
Quando, no Capítulo X do Livro III, Marx retoma a noção de equalização da taxa
geral de lucro em um país, ele sustenta o argumento que apresentamos nos parágrafos
anteriores. Ele está comentando o fato real de que “os valores das mercadorias precedem os
preços de produção, não só teórica, mas historicamente” (MARX, 2008, p. 233, grifos do autor)
e argumentando que a transformação histórica dos valores em preços de produção pressupõe a
mobilidade espacial dos recursos produtivos. Sendo o lucro médio “calculado sobre a parte do
capital social que entra no processo de uniformização” (MARX, 2008, p. 230), quando, em
épocas passadas, em “fase social primitiva”, os meios de produção não se transferiam (ou se
transferiam com muita dificuldade) entre ramos de produção distintos, as mercadorias eram
vendidas por seus valores pois o processo de uniformização, se houvesse, atingia uma
proporção ínfima da produção total. Nesse caso, os ramos de produção “se comportam
reciprocamente como se fossem países estrangeiros” (MARX, 2008, p. 234, grifos nossos).
Fica explícito que o raciocínio de Marx para supor a formação da taxa geral de lucro
dentro de um país e não entre países se baseia no pressuposto de que não ocorre, ou é muito
incipiente, a concorrência entre capitais de diferentes países. Vale lembrar que para que a
tendência de equalização dos preços de mercado em torno do preço de produção se efetive, é
preciso que a produção total do setor aumente ou diminua, seja com a entrada/saída de novos
capitais ou com aumento/diminuição nas produções dos capitais já instalados. É por isso que,
anteriormente, Marx havia comentado que “também no comércio internacional não importa às
nações a diversidade das taxas de lucro relativas à troca das mercadorias” (MARX, 2008, p.
233): não importa, pois, evidentemente, seu pressuposto é de que as trocas no comércio
internacional se realizam pelos valores em função da inexistente ou incipiente concorrência no
plano internacional. Embora tal pressuposto pudesse ser factível na época de Marx, toda nossa
exposição na seção anterior tentou demonstrar a efetivação prática da mobilidade internacional
de capital.
211), “capital total da sociedade” (p. 216), “composição do capital médio da sociedade” (p. 216), “todo o capital
da sociedade” (p. 218) etc.
206
159
No Livro I, o entendimento de Marx sobre a composição orgânica do capital pode ser resumido como segue:
“Entre ambas [composição técnica e composição segundo o valor] existe uma estreita correlação. Para expressá-
la, chamo a composição de valor do capital, porquanto é determinada pela composição técnica do capital e reflete
suas modificações, de composição orgânica do capital. Onde se fala simplesmente de composição do capital,
entenda-se sempre sua composição orgânica” (MARX, 2013, p. 689).
207
Tabela 5 – Diferenças entre taxas de lucro entre capitais com distintas taxas de mais-valor
Capital adiantado 𝒎
m 𝑽 =𝒄+𝒗+𝒎 𝒍′ =
c v C 𝑪
País europeu 84 16 100 16 116 16%
País asiático 16 84 100 21 121 21%
Fonte: MARX, 2008, p. 200
208
160
Cf. Marx (2015, p. 258-259).
161
MIRANDA, F. F. Mercado mundial e desenvolvimento desigual: uma contribuição teórica a partir de Marx.
2016. 210 f. Tese (Doutorado em Economia)– Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016. p. 115 et seq.
209
Não existe diversidade nas taxas médias de lucro relativas aos diferentes ramos
industriais, nem poderia existir, sem pôr abaixo todo o sistema de produção capitalista.
Parece, portanto, que a teoria do valor é neste ponto incompatível com o movimento
real, com os fenômenos positivos da produção, e que, por isso, se deve renunciar a
compreendê-los. (MARX, 2008, p. 203, grifos nossos).
O que Marx faz nesse momento da exposição é colocar um paradoxo real cuja
solução ainda não havia sido desenvolvida e que levou, como vimos, à desagregação da escola
ricardiana. A solução do enigma deverá ser necessariamente dialética, assim como é típico do
método de exposição em O Capital conforme a instigação representação de Jameson:
Uma das formas de ler O Capital – isto é, de compreender o lugar de cada análise e
proposições individuais na construção do todo – consiste em vê-lo como uma série de
enigmas, mistérios e paradoxos, para os quais uma solução é oferecida no momento
certo. Não é surpresa que esta solução será dialética; ela não dissipará a estranheza do
paradoxo ou antinomia iniciais por meio de um desmascaramento seco e racional, mas
preservará a estranheza do problema dentro de novas estranhezas da solução dialética.
(JAMESON, 2014, p. 35, tradução nossa, grifos nossos).
Marx (2008, p. 208-209) passa a considerar o capital total investido de 500 como
se fosse “um capital único”, dividido em 390c + 110v, ou seja, com composição percentual de
78c + 22v. Essa é a “composição média” que origina uma “mais-valia média” de 22 por cada
100 de capital investido, uma “taxa média do lucro” de 22% e “seria de 122 o preço de cada
quinta parte do produto global produzido pelos 500”. É possível perceber uma novidade no
discurso do autor: enquanto antes só se referenciava no valor, agora apresenta o preço após ter
derivado a taxa média do lucro.
Mesmo se considerássemos a existência de capital fixo que se desgasta de acordo
com velocidades diferentes para cada capital investido (Tabela 7), pode ser provado, seguindo
o argumento de Marx (2008, p. 209), que “isto não influencia a taxa de lucro”. Como esta é
determinada pela proporção do mais-valor sobre o capital adiantado total, não interfere a
proporção com a qual o capital constante se subdivide em capital fixo e circulante.
211
Preço
Taxa de Mais- Taxa de Desgaste Valor das
Capitais de
mais-valia valia lucro de c mercadorias
custo
I 80c + 20v 100% 20 20% 50 90 70
II 70c + 30v 100% 30 30% 51 111 81
III 60c + 40v 100% 40 40% 51 131 91
IV 85c + 15v 100% 15 15% 40 70 55
V 95c + 5v 100% 5 5% 10 20 15
Soma 390c + 110v 110
Média 78c + 22v 22 22%
Fonte: MARX, 2008, p. 209
Desvio do preço
Mais- Valor das Preço de Preço das Taxa de
Capitais (em relação ao
valia mercadorias custo mercadorias lucro
valor)
I 80c + 20v 20 90 70 92 22% +2
II 70c + 30v 30 111 81 103 22% -8
III 60c + 40v 40 131 91 113 22% -18
IV 85c + 15v 15 70 55 77 22% +7
V 95c + 5v 5 20 15 37 22% +17
Fonte: MARX, 2008, p. 210
Os preços que obtemos, acrescentando a média das diferentes taxas de lucro dos
diferentes ramos aos preços de custo dos diferentes ramos, são os preços de produção.
Requerem a existência da taxa geral de lucro, e esta, por sua vez, supõe que as taxas
212
Finalmente a exposição de Marx conclui, dentro dos marcos de sua teoria do valor,
que os capitalistas dos diferentes ramos (portanto, com diferentes composições do capital) se
apropriam (“colhem”) um mais-valor que não é produzido (“gerado”) no próprio ramo. Com
isso, percebemos que “em regra, lucro e mais-valia, e não apenas as respectivas taxas, são
magnitudes de fato diferentes” (MARX, 2008, p. 221). Há uma repartição do mais-valor global
produzido “pela sociedade em todos os ramos” que o distribuem de acordo com a magnitude
de cada um, como se os capitalistas fossem “simples acionistas de uma sociedade anônima em
que os dividendos se repartem segundo percentagem uniforme” (MARX, 2008, p. 211-212).
Nessa sociedade anônima, representante figurado da “totalidade dos ramos de produção”, a
soma dos preços de todas as mercadorias vendidas é “a expressão monetária da quantidade total
de trabalho contido nas mercadorias I a V, o passado e o novo acrescentado” (MARX, 2008, p.
213), ou seja, é a expressão monetária dos valores de todas as mercadorias. Portanto, na
totalidade, na sociedade, no capitalismo, no mercado mundial, a soma dos preços é igual à soma
dos valores. Marx demonstra, com isso, que o fundamento dos preços na forma capitalista de
organização da sociedade são os valores.
213
162
Marx desenvolve esse ponto no Capítulo XV do Livro III. Cf. Marx (2008, p. 319-347).
214
163
Essa é a concepção com a qual estamos trabalhando nesta tese, diferenciando a essência da aparência do
imperialismo a partir do que pode ou não ser visto, diferenciando a estrutura externa da interna do processo real.
Cf. Subseção 1.1.
215
econômico”, diz Marx (2008, p. 224): “se o decréscimo da quantidade de trabalho necessária
para a produção parece não prejudicar o lucro, revelando-se antes, em certas circunstâncias,
fonte direta de aumento do lucro”, o trabalho vivo não é e não pode ser, nesta perspectiva
individual, a fonte do lucro. O que ocorre, neste ponto de vista, é exatamente o oposto e reforça
a mistificação: o progresso técnico aumenta os lucros dentro das fronteiras espaço-temporais
que isolam tal progresso da tendência social, qual seja, da queda da taxa média de lucro. Além
disso, mesmo a queda da taxa média, um resultado social não-teleológico, significa, per se, o
aumento do lucro para os capitalistas individuais inovadores à medida que, para estes, há o
rebaixamento do valor individual de sua mercadoria, assunto da subseção 3.4.3.
Nesse pequeno aparte à subseção sobre a teoria dos preços de produção de Marx,
esperamos apenas pontuar brevemente as linhas gerais do famoso debate sobre o problema da
transformação e defender o procedimento marxiano.
Dentro de sua exposição sobre a formação da taxa geral de lucro, Marx percebe que
a conversão dos valores em preços de produção faz com que os preços de custo, que são preços
de produção para outros capitalistas, também se desviem dos valores. Portanto, ele diz: “em
virtude dessa significação modificada do preço de custo, é necessário lembrar que é sempre
possível um erro quando, num ramo particular de produção, se iguala o preço de custo da
mercadoria ao valor dos meios de produção consumidos para produzi-la” (MARX, 2008, p.
218). Dessa possibilidade, que o próprio autor enfatizou, surgiu uma série interminável de
objeções ao procedimento adotado por Marx e à própria relevância dos valores na determinação
dos preços de produção164.
Como já assinalamos ao longo dessa seção, para Marx os preços representam a
“expressão monetária” dos valores e só podem ser obtidos a partir destes. O método lógico de
Marx envolve a determinação sequencial das variáveis e não simultânea, como sustenta boa
parte das interpretações ricardianas (CALLINICOS, 2014, p. 130; CARCANHOLO, R., 2013,
p. 63). Nesse sentido, a determinação dos valores precede logicamente a determinação dos
164
Lopes (2012) apresenta as fases históricas do debate sobre a transformação, desde a crítica negativa de Böhm-
Bawerk, passando pelo “Efeito Sraffa” em ressignificar a polêmica e culminando com o debate contemporâneo
centrado na crítica da redundância ao sistema de valores.
216
preços de produção. São duas instâncias em níveis de abstração distintos e, como tal, são
determinadas em momentos distintos da teoria de Marx. Moseley (2016, p. 4) sustenta
corretamente que O Capital está organizado em torno de dois níveis básicos de abstração,
relativos à produção e à distribuição do mais-valor: enquanto no primeiro se produz o mais-
valor total, no segundo ele é distribuído. Ambas determinações estão construídas sobre uma
mesma “estrutura lógica” – e isto é fundamental para perceber o não-problema da
transformação –, qual seja, o circuito do capital monetário (D-M...P...M’-D’): é por isso que as
duas magnitudes – valores e preços – podem ser comensuráveis na totalidade.
Os termos de Moseley resumem adequadamente o verdadeiro procedimento de
Marx:
165
Essa passagem estava em nota de rodapé nos Manuscritos de 1864-1865 (MARX, 2015, p. 459) e foi
incorporada por Engels no corpo do texto do Capítulo XXI (Capital portador de juros) do Livro III de O Capital.
217
subseção anterior. E, ademais, a totalidade dos preços de custo “é igual à totalidade dos preços
de produção dos insumos” (MARX, 2008, p. 15). Nos termos do próprio Marx, a resolução do
suposto problema decorre da consideração da economia capitalista como um todo:
Ou seja, Marx recorre à totalidade para indicar que o preço de custo será menor que
o valor ou que o preço de produção, o que não inviabiliza, de forma alguma, seu sistema teórico
desenvolvido até aqui.
166
Cf. Subseção 2.1.3.1 desta tese.
218
Quando a oferta das mercadorias ao valor médio, isto é, ao valor da massa situada
entre aqueles dois extremos, satisfaz a procura corrente, realizam as mercadorias, de
valor individual abaixo do valor de mercado, mais-valia extra ou superlucro,
enquanto as de valor individual acima do valor de mercado não podem realizar parte
da mais-valia nelas contida. (MARX, 2008, p. 235).
Nessa primeira condição, qual seja, de que a oferta total ao valor médio, social,
“satisfaz a procura corrente”, as mercadorias serão vendidas pelo valor de mercado, ou seja, o
valor de mercado é igual ao preço de mercado, comum a todas as mercadorias do ramo
independentemente das condições técnicas de produção. O superlucro, então, nesse caso, é a
expressão monetária do mais-valor extra.
O valor de mercado pode ser determinado fora do valor médio “em conjunturas
excepcionais”, como Marx afirmou anteriormente, caso a necessidade social seja maior ou
menor que a quantidade de mercadorias ofertadas ao valor médio. Supondo um nível de procura
elevado, suficiente para consumir todas as mercadorias ofertadas ao valor das mercadorias
produzidas nas piores condições, estas podem determinar o valor de mercado. Ou seja, quando
a procura está acima do “nível ordinário”, os capitalistas podem vender as mercadorias acima
do valor médio e, portanto, estabelecer novo valor de mercado. Por outro lado, se, ao valor
médio, a procura é insuficiente dado o conjunto de mercadorias ofertadas, o valor de mercado
pode ser determinado pelos capitais com melhores condições, ficando abaixo do valor médio.
Dentro de determinado ramo de produção, a concorrência equaliza valores e preços
de mercado “a partir dos valores individuais” (MARX, 2008, p. 237). A concorrência faz com
que todos os produtores de uma mercadoria (com distintos valores individuais) se defrontem
com os mesmos valores e preços de mercado. Ou seja, só existe um valor de mercado e um
preço de mercado em cada ramo, o que é evidente, pois se trata de apenas um valor de uso. Por
outro lado, “é a concorrência dos capitais nos diferentes ramos que dá origem ao preço de
produção que uniformiza neles as taxas de lucros” (MARX, 2008, p. 237), ou seja, a taxa média
de lucro é determinada idealmente antes do preço de produção, mas se efetiva nas trocas através
do preço de produção. Como a concorrência e a produção de mercadorias são processos
temporalmente contínuos, intermináveis e inseparáveis, a constituição ideal do lucro médio
converge tendencialmente para seu efetivo valor, no sentido de realmente existente. Este
processo só ocorre “depois que o modo de produção capitalista alcança desenvolvimento
superior ao exigido para haver a primeira” equalização, isto é, relativa à equalização de valores
e preços de mercado dentro do ramo (MARX, 2008, p. 237).
220
No Capítulo XXII do Livro III, quando diferencia as taxas de lucro e de juro, Marx
explica com mais detalhes o papel da concorrência no nivelamento da taxa média de lucro:
A entrada e saída de capitais nos diversos ramos, responsável pela equalização das
taxas de lucro, não significa apenas a realização de investimentos novos, mas, também, a
ampliação ou redução da produção nos capitais já instalados (MARX, 2008, p. 487).
Portanto, a transformação dos valores em preços de produção é um processo em
dois estágios: (a) a concorrência dentro do ramo equaliza os diversos valores individuais em
um valor de mercado e um preço de mercado levando, necessariamente, a distintas taxas de
lucro determinadas pelas distintas produtividades; e (b) a concorrência entre ramos equaliza as
taxas individuais de lucro dos capitais que operam em condições reprodutíveis, como veremos
adiante, em uma taxa média, base para a formação dos preços de produção que se transformam
no “centro em torno do qual giram os preços quotidianos de mercado, que nele tendem a nivelar-
se dentro de determinados períodos” (MARX, 2008, p. 236).
Importante ter em vista que a equalização dos valores de mercado dentro do ramo
ou das taxas de lucro entre os ramos é um processo “turbulento”, na linguagem de Shaikh (2016,
p. 268-269, tradução nossa), que ocorre ao longo do tempo167. Cada capital opera sob o
imperativo do lucro, “colidindo com outros que tentam fazer o mesmo, algumas vezes obtendo
sucesso, outras vezes apenas sobrevivendo e às vezes falhando completamente. Esta é a
concorrência real, antagônica por natureza e turbulenta em sua operação” (SHAIKH, 2016, p.
259, grifos do autor).
No nível mais concreto do mundo fenomênico, os valores individuais são
associados, por Marx (2008, p. 249), em nota de rodapé do Capítulo X do Livro III, com custos
de produção168. Por isso, os capitais com composição superior obtêm necessariamente uma taxa
167
A interpretação de Shaikh (2016) é muito tributária, embora o autor não cite, da exposição de Marx na Seção
VI do Livro III de O Capital, sobre a renda da terra.
168
Na nota de rodapé 31 deste capítulo de O Capital, no contexto da crítica à tautologia da oferta e demanda como
determinantes do valor, Marx (2008, p. 249, grifos nossos) comenta um “disparate” de Malthus e afirma
221
de lucro maior do que seus concorrentes do mesmo ramo de produção, posto que todos
encontram o mesmo valor e o mesmo preço de mercado. Shaikh resume graficamente essa
questão:
peremptoriamente que a mudança no valor está associada com mudança nos custos: “justamente a mudança nos
custos de produção, no valor, portanto, provocara alteração na procura”.
222
certamente, existem no mercado mundial. Pressuposta, então, a mobilidade entre ramos, segue
que a existência de diferencial de taxa de lucro entre capitais operando sob “condições de
produção reproduzíveis” em setores diferentes conduz ao aumento dos investimentos
produtivos nos setores mais lucrativos. “A reprodutibilidade é importante porque novos
investimentos devem ser capazes de replicar as condições desses capitais particulares. A taxa
de lucro desses capitais reguladores será o foco do novo investimento” (SHAIKH, 2016, p.
265).
Supondo, por exemplo, que a taxa de lucro dos “capitais reguladores” do setor A
(𝑟𝐴∗ ), isto é, aqueles com condições de produção reproduzíveis, é maior do que a taxa de lucro
dos “capitais reguladores” do setor B (𝑟𝐵∗ ), deve ocorrer um aumento dos investimentos no setor
A maior do que o crescimento da necessidade social pelo valor de uso produzido nesse setor.
Esse movimento conduzirá, ao longo do tempo e turbulentamente, à diminuição do preço de
mercado em A e, consequentemente, da taxa de lucro auferida por todos os capitais desse setor.
Essa diminuição da taxa de lucro em A afeta, inclusive, os “capitais reguladores”, de forma que
ocorre uma equalização geral – em termos tendenciais – entre as taxas de lucro dos “capitais
reguladores” em todos os setores (SHAIKH, 2016)169.
A ênfase de Shaikh nos “capitais reguladores” é importante e, nos parece, coerente
com a teoria de Marx, permitindo visualizar a relação entre a formação da taxa geral de lucro e
a renda da terra170, por exemplo. É possível que os “capitais reguladores” estejam nas condições
médias, superiores ou inferiores de cada ramo. Depende do que o autor chama de “estrutura de
custos”, que podem variar basicamente em três formas. Na primeira estrutura, os “capitais
reguladores” são aqueles com custo de produção médio e, portanto, taxa média de lucro dentro
do ramo. É o caso onde não há uma determinação estrutural que force novos adiantamentos de
capitais a ocupar as piores ou as melhores condições de produção. Nesse caso há uma
distribuição homogênea dos custos de produção ao redor da média, “dependendo de fatores
mais concretos, desde a idade das máquinas até a sorte ou habilidade dos trabalhadores e
gerentes” (SHAIKH, 2016, p. 265), como está representado na Figura 5.
169
SHAIKH, A. Capitalism: competition, conflict, crises. Nova York: Oxford University Press, 2016. p. 265 et
seq.
170
A próxima seção desta tese será dedicada ao estudo do imperialismo pela via dos investimentos, incluindo,
nesse bojo, a questão da renda da terra.
223
Portanto, como a concorrência entre ramos força a equalização das taxas de lucro
dos “capitais regulares”, podemos concluir que aproximadamente metade dos capitais do setor
A se apropriarão de superlucro, o mesmo ocorrendo com a maioria dos capitais do setor B
(aqueles localizados nas minas e terras mais férteis, produtivas) e com a minoria dos capitais
do setor C (apenas aqueles que dentro da área C3 da Figura 7 estão abaixo da linha mais grossa).
Graficamente essa equalização pode ser apresentada como segue:
A existência de diferentes taxas individuais de lucro faz com que as taxas médias
nacionais de lucro também sejam diferentes e, mesmo assim, com que ocorra a equalização
tendencial entre as taxas de lucro reguladoras dos ramos distintos. Na imagem hipotética da
Figura 9, os capitais do país I se apropriam de superlucro no mercado mundial através da troca
desigual dentro e entre ramos. Em outros termos, os capitais do ramo A localizados no país I,
227
por exemplo, se apropriam do lucro médio mais o lucro extraordinário decorrente de sua
condição de produção superior dentro do próprio ramo.
Em síntese, acreditamos que a abordagem de Shaikh proporciona uma
representação gráfica auxiliar à argumentação de Marx no Capítulo X do Livro III. As próprias
conclusões de Marx se encaixam à interpretação desenvolvida aqui: “A análise precedente
revelou como o valor de mercado (e o que se disse a respeito estende-se, com as restrições
necessárias, ao preço de produção) compreende um superlucro para os que produzem nas
melhores condições em cada ramo particular de produção” (MARX, 2008, p. 257).
Antes de encerrar a seção, vejamos onde estamos em relação ao argumento geral da
tese. Demonstramos, aqui, que o comércio internacional gera um processo de transferência de
valor, ou mais-valor, como queira, entre capitais industriais com diferentes produtividades cujos
processos produtivos transcorram em territórios nacionais distintos. Sendo as mercadorias
compradas e vendidas pelos preços de mercado, as trocas mercantis são, aparentemente, justas.
Entretanto, é possível visualizar uma relação imperialista através do comércio internacional se
utilizamos o procedimento abstrativo capaz de revelar a existência de uma determinação
essencial aos preços: os valores. A partir daí foi possível seguir Marx na incorporação de
determinações mais concretas que fazem com que valores individuais se convertam em valores
sociais, estes em preços de produção e, finalmente, em preços de mercado. Em função disso,
foi possível dizer que esta forma de manifestação do imperialismo ainda é mistificada posto
que nas relações de troca no mercado mundial o comércio é aparentemente neutro. Embora seja
uma aparência ainda velada do imperialismo, a troca desigual é o primeiro conduto – no sentido
de ser o mais abstrato – a instalar a transferência de valor no mercado mundial.
Como veremos nas próximas seções, a troca desigual enseja as outras duas grandes
formas de manifestação do imperialismo: os investimentos e as expropriações. Por um lado, a
formação dos preços de produção – pressuposto para a distinção entre produção e apropriação
de valor pelo comércio – impõe que as frações do capital social total adiantadas neste ou naquele
setor/país não são instâncias rígidas, mas fluidas. Essa fluidez, independentemente se motivada
por novos investimentos ou por ampliação da produção em investimentos já realizados, é o que
garante a mobilidade dos preços de mercado de tal forma que as taxas individuais convirjam
tendencialmente para uma taxa geral de lucro. Em um sentido mais concreto, a fluidez de valor
de capital de um setor/país a outro se revela no fracionamento do capital industrial em capitais
produtivos, capitais comerciais, capitais a juros. O exame das formas de imperialismo que se
derivam desta fluidez, objeto da Seção 4 desta tese, são indissociáveis, portanto, da própria
228
capitais pode referir-se a qualquer uma dessas três formas de capital apresentadas por Marx no
Livro II de O Capital. Neste sentido, quando falávamos em comércio internacional na seção
anterior, nos referíamos à exportação/importação de capitais sob a forma capitais-mercadoria.
Não é este, entretanto, o sentido atribuído ao termo pelas interpretações marxistas
do imperialismo. Quando Lenin, por exemplo, referia-se à exportação de capitais, utilizava a
categoria apresentada por Hilferding (1985, p. 296, grifos nossos), que a especificou da seguinte
maneira: “entendemos por exportação de capital a exportação de valor destinado a gerar mais-
valia no exterior”. Para que isso seja possível, seguindo a tese do austríaco, o capital que
“emigra ao estrangeiro” deve fazê-lo como “capital produtor de lucro ou de juros”171. Essa
especificação conceitual evidencia que as formas de capital sendo consideradas na categoria em
análise são o capital produtivo ou comercial, capazes de gerar lucro no exterior (lucro do
empresário e lucro comercial), e o capital-dinheiro, que permite ao seu proprietário gerar juros.
Doravante, sempre que tratarmos de exportação de capital estaremos nos referindo a este
sentido atribuído à categoria.
A exportação de capital põe um novo modo de apropriação de mais-valor produzido
nos países que recebem esse capital. Essa forma de imperialismo, contudo, articula produção e
apropriação de valor no mercado mundial de tal forma que parece possuir um caráter
abertamente contraditório. O fluxo de valor das economias dependentes para os centros
imperialistas é visível a olho nu – não mais encoberto, oculto, invisível, como ocorria com o
comércio exterior. Basta abrir um balanço internacional de pagamentos e constatar a existência
da conta “rendas de investimentos”, dentro da qual se inclui os montantes de lucros e dividendos
remetidos ao exterior e o pagamento de juros. Para que o capital estrangeiro se aproprie dessa
renda, ele buscou uma aplicação rentável para seu capital, seja na forma de investimento
estrangeiro direto, investimento em carteira, compra de títulos de renda fixa, derivativos etc.
Diferentemente do que ocorria com o comércio exterior, no qual a transferência de
valor era imediata, no ato de compra ou venda do capital-mercadoria, o imperialismo pela via
dos investimentos depende de um certo intervalo de tempo para que o capital cumpra sua função
imperialista. Em outras palavras, o valor investido numa determinada economia precisa se
incorporar em algum valor de uso (uma fábrica, uma ação, um título público etc.) durante
171
Cf. Campos e Sabadini (2014) para uma análise específica sobre a conexão entre capital financeiro e exportação
de capitais na obra de Hilferding. Uma das contribuições dos autores é cotejar a tradução brasileira de O Capital
financeiro com as versões inglesa e francesa e observar a existência de alguns erros na versão brasileira que levam
a “inconsistências teóricas” derivadas da tradução e não da redação de Hilferding (1985, p. 5). Por exemplo, na
passagem citada, o correto seria “capital portador de lucro ou de juros”, mas foi traduzido como “capital produtor
de lucro ou de juros”.
231
determinado tempo para que consiga se retirar carregando consigo parte do mais-valor
produzido. Tomemos, por exemplo, o caso das ações. O capitalista estrangeiro que compra uma
ação numa determinada bolsa de valores, por mais especulativa que seja sua intenção, só
consegue realizar lucro, independentemente da magnitude, se vender a ação decorrido algum
hiato temporal (mesmo que seja milésimos de segundo, no caso de negociações feitas por robôs
computadorizados) e assim se apropriar de lucro fictício, do qual trataremos adiante172, ou
esperar um tempo maior e se apropriar de dividendos173.
A existência desse hiato temporal reflete o fato de que os investimentos são uma
manifestação mais concreta de imperialismo do que o comércio exterior. Os investimentos
precisam de mais mediações para existirem enquanto imperialismo do que o comércio; por isso
são mais visíveis enquanto tal no cotidiano do mercado mundial. Se apresentam de forma mais
imediata na aparência, refletindo mais nitidamente o que de fato são na essência, transferência
de valor. Ao mesmo tempo, por isso alegamos um caráter contraditório para essa forma de
imperialismo, essa aparência mistifica o fato de que a essência do imperialismo é um motor
para o desenvolvimento desigual e combinado: dialeticamente, os investimentos estrangeiros
possuem um caráter progressivo à medida que contribuem para um tipo de desenvolvimento
capitalista nos países receptores174.
Desde a teoria clássica este problema precisou ser enfrentado. Por um lado, os
capitais imperialistas que se dirigiam aos países dependentes se enclausuravam, via de regra,
nos ramos de produção mais rentáveis e, com isso, se aliavam às “velhas oligarquias”
(BAMBIRRA, 1977, p. 18-19). Embora o investimento estrangeiro pudesse desenvolver as
forças produtivas nestes setores, ensejar um processo de urbanização e de proletarização da
massa de trabalhadores, ele não era capaz per se, como a análise post-festum consegue
demonstrar, de superar a condição de atraso estrutural dessas sociedades, que se manifesta,
dentre outras coisas, na marginalização social e na superexploração da força de trabalho175. Isso
significa que as economias que se integraram à divisão internacional do trabalho de forma
subordinada atravessaram um processo de desenvolvimento sui generis, acoplado ao que
172
Cf. subseção 4.4.
173
Cf. subseção 4.3.
174
Como já enfatizamos em outro lugar (subseção 1.2), ao tratar de desenvolvimento nos referimos ao “recuo das
barreiras naturais” (Cf. LUKÁCS, 2012b, p. 289 e p. 319-320), ou seja, à explicitação cada vez maior das
determinações puramente sociais.
175
Cf. Marini (2005) para uma explicação teórica da necessidade da superexploração da força de trabalho em
economias dependentes; e Duarte (2015) para um exame comparado desta categoria com a marginalidade social.
232
ocorria nos países imperialistas e que “se impõe desde fora pela expansão comercial e financeira
do capital estrangeiro” (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 159-160, tradução nossa).
A exportação de capitais, portanto, intensifica um desenvolvimento desigual e
combinado. No Esbozo inicial de las tesis sobre los problemas nacional y colonial preparado
para o II Congresso da Internacional Comunista em 1920, Lenin (1979, p. 441) o reconhece ao
falar em “espoliação financeira” dos países dependentes pelas potências imperialistas e ao
assumir que a situação de dependência se reproduz no tempo: “en la situación internacional
presente, no hay para las naciones dependientes y débiles otra salvación que la unión de
repúblicas soviéticas”.
A despeito do fato de que a exportação de capital assuma uma centralidade analítica
para o marxismo no começo do século XX, o próprio Marx já havia reconhecido seu papel no
espraiamento contraditório das relações de produção capitalistas. Nesse sentido, concordamos
com a tese de P. G. Paula (2014, p. 194): para Marx, o que se chama hoje de subdesenvolvimento
“equivale a uma expressão da expansão contraditória do capital”. Ou seja, a noção de que o
desenvolvimento é desigual e necessariamente combinado já estava presente em Marx
(MIRANDA, 2016; PAULA, P. G., 2014). Os investimentos estrangeiros, junto com o comércio
exterior e as expropriações, conformam os condutos adequados que garantem a existência da
transferência internacional de valor, ou seja, do imperialismo. Este, por sua vez, alimenta aquele
desenvolvimento desigual dando-lhe o caráter de combinado.
A teoria marxista da dependência formulou uma crítica radical do
subdesenvolvimento dentro da qual os investimentos estrangeiros diretos seriam responsáveis
por elevar a composição orgânica média do capital em algumas economias subdesenvolvidas,
seguindo Marini (1977), conferindo a estas uma posição intermediária, subimperialista, na
cadeia imperialista internacional. Este mesmo autor mostra, empiricamente, que a exportação
de capitais não era, no período do pós-Segunda Guerra Mundial, uma novidade em si, pois já
existia anteriormente. Sua novidade nesta conjuntura era a escala, “a predominância do
investimento direto e, mais recentemente, o peso dos empréstimos e financiamentos; a
amplitude do raio geográfico que cobrem, e a porcentagem cada vez maior dedicada à indústria
manufatureira” (MARINI, 1977, p. 3). A abordagem de Marini, como podemos notar, segue
claramente a indicação de Hilferding a respeito da exportação de capitais, abarcando capitais
produtivos (investimentos diretos) e capitais portadores de juros (empréstimos e
financiamentos), sugerindo que a exportação de capitais pode ter mantido as mesmas
características gerais que se observara no começo do século XX.
233
176
Itoh e Lapavitsas (1999) desenvolvem uma base teórica para a compreensão da financeirização a partir de Marx.
Lapavitsas (2009, 2013) retoma o trabalho citado anteriormente e desenvolve a relação entre financeirização e
capitalismo contemporâneo.
177
Conforme Ietto-Gillies (2005, p. 23), os investimentos greenfield implicam necessariamente a “construção de
novas plantas, edifícios ou outros capitais fixos onde não existia nenhum”, ao contrário de fusões e aquisições, que
denotam apenas a mudança de propriedade do capital.
234
“boa parte do que é contado como fluxos de IED entre países imperialistas são investimentos
em firmas que realocaram parte ou todo processo de produção para países de baixo salários”
localizados no hemisfério Sul (SMITH, 2016, p. 72-73, grifos do autor).
Essa relocalização industrial é, na verdade, o principal fator que torna as estatísticas
de IED insuficientes como medidas da exportação de capital produtivo, posto que a
relocalização operada pelas empresas transnacionais não envolve, necessariamente,
investimentos diretos. Seguindo Smith (2016), o que está havendo no capitalismo
contemporâneo é o desenvolvimento de uma nova forma de apropriação de valores produzidos
nos países mais pobres que não envolve investimentos estrangeiros diretos: trata-se da
terceirização (outsourcing) de partes ou de todo o processo produtivo sob o comando de grandes
empresas transnacionais sediadas nos países imperialistas que contratam empresas sediadas em
países subdesenvolvidos. Essa modalidade de terceirização, na qual a empresa-mãe contrata
subsidiárias através de relações de mercado é chamada de outsourcing via arm’s-length,
diferente do outsourcing tradicional via investimento estrangeiro direto, no qual a empresa-mãe
assume a responsabilidade direta pelo processo produtivo (SMITH, 2016)178.
Smith comenta sobre as cadeias produtivas de três “mercadorias globais” (camiseta,
iPhone e uma xícara de café) como exemplos de processos de transferência de valor produzido
no Sul e apropriado pelo Norte sem que o capital imperialista tenha sido diretamente investido
nos países dependentes. No caso do iPhone, por exemplo, a Apple contrata várias subsidiárias
no mundo todo, mas principalmente asiáticas, sendo a principal delas a chinesa Foxconn179,
para executar todo o processo produtivo: desde a fabricação dos circuitos eletrônicos até a
montagem do produto final. Como a Apple contrata a Foxconn, e ambas são empresas
juridicamente independentes, o lucro gerado por esta não é remetido para a sede daquela nos
Estados Unidos, ou seja, não consta nos balanços de pagamentos. A relação imperialista, como
diz Smith (2016, p. 22), não aparece na superfície dos “dados econômicos nem nos cérebros
dos economistas”. Os lucros da Apple aparecem como uma mera relação mercantil: compram
os produtos por um preço baixo, em função de um “brutal regime de trabalho” (SMITH, 2016,
p. 23), e os vendem por um preço maior. Nessa “troca”, a empresa sediada no Vale do Silício
se apropria de uma margem bruta de lucro (lucro bruto menos custo de produção) de mais de
178
SMITH, J. Imperialism in the TWENTy-First Century: the globalization of production, super-exploitation, and
the crisis of capitalism. Nova York: Monthly Review Press, 2016. p. 68 et seq.
179
Smith coleta alguns dados impressionantes sobre esta empresa: 40% dos eletrônicos consumidos no mundo são
montados pela Foxconn, que possui jornada média de trabalho de 11 horas por dia durante as temporadas de pico.
Essa empresa ficou famosa por instalar redes de proteção nos dormitórios coletivos como mecanismo de contenção
dos suicídios. Houveram 14 suicídios reportados dentro da empresa em 2010.
235
50%, resultado basicamente de dois fatores: da concorrência entre empresas espalhadas ao redor
do mundo para integrar a cadeia de valor do iPhone e da posição monopolista, em função de
ser a detentora da marca, na venda do produto.
Como o vínculo da Apple com a Foxconn se estabelece através do mercado em um
contrato com duração determinada, a pressão por reduzir custos é premente nesse processo
produtivo. Smith relata que o crescimento dos salários na China provocou diminuição nas
margens de lucro nas empresas que fornecem componentes para a montagem dos produtos da
Apple. Como resposta, as fornecedoras aumentaram a procura por força de trabalho ainda mais
barata, migrando linhas de produção para o interior do país. Ao mesmo tempo, a Apple procura
diminuir sua dependência da Foxconn e “terceiriza parte da produção do iPhone 6 para outra
empresa de eletrônicos sediada em Taiwan, chamada Pegatron” (SMITH, 2016, p. 30-31).
O que parece haver, nesse caso, é uma forma de imperialismo situada numa área
cinzenta entre a troca desigual e a exportação de capital, fundamentada no poder de monopólio
que faz com que o lucro apropriado pela Apple seja resultado de renda fundiária e lucro
comercial, assuntos que trataremos adiante180.
A relação imperialista que acabamos de descrever sucintamente também se aplica
a outras “mercadorias globais” cujos processos produtivos são executados nas assim chamadas
cadeias globais de valor. O exemplo das camisetas de marca, vendidas por grandes redes
varejistas, como Walmart, Carrefour, dentre outras, é sintomático. Norfield (2011), citado por
Smith (2016, p. 12-13), conta a história de uma camiseta vendida pela varejista sueca H&M por
4,95 euros na Alemanha. A H&M paga €1,35 por cada camiseta ao fabricante que as produz em
Bangladesh, do qual €0,40 cobre o custo de importar matéria-prima oriunda dos EUA. “Assim,
€0,95 do preço de venda final fica em Bangladesh, para ser dividido entre o proprietário da
fábrica, os trabalhadores, os ofertantes de insumos e serviços e o governo de Bangladesh”
(SMITH, 2016, p. 12-13). Tirando €0,06 que correspondem ao transporte entre os dois países,
ficam €3,54 que são contabilizados como valor adicionado na Alemanha, ou seja, contribuem
com o PIB alemão. Destes, €2,05 ficam com intermediários (transporte, atacadista, propaganda,
etc), €0,60 é o lucro da H&M por peça vendida, €0,79 é absorvido pelo Estado na forma de
impostos e o restante corresponde a outros itens (NORFIELD, 2011; SMITH, 2016, p. 12-13).
O ponto que Smith quer chamar a atenção é precisamente o montante de impostos
retidos pelo país imperialista a despeito dos vultosos lucros da H&M: os belos lucros “são
180
Cf. subseções 4.2 e 4.5.
236
ofuscados pelo que o Estado absorve” (SMITH, 2016, p. 13). Um dado impressionante: “Em
2013, as tarifas cobradas pelo governo dos Estados Unidos sobre as importações de vestuário
de Bangladesh excederam o total de salários recebidos pelos trabalhadores que fizeram esses
produtos”, os quais recebem os menores salários médios do mundo181 (SMITH, 2016, p. 14,
20). Em síntese, os baixos salários no hemisfério Sul, nos locais onde o processo de produção
do valor transcorre, ajudam a explicar o poder dos Estados e dos grandes capitais imperialistas
no hemisfério Norte (SMITH, 2016, p. 13-20).
Todo esse processo de outsourcing – via IED ou arm’s-length – contribuiu para o
que Smith (2016, p. 50) chama de “globalização da produção”, que se caracteriza por
fragmentar a produção em diversas tarefas individuais executadas separadamente por
trabalhadores em vários continentes. Com essa nova característica, a “velha concepção” de
comércio Norte-Sul envolvendo manufaturados versus matérias primas precisa ser
“atualizada”. “Empregadores agora tem uma maneira alternativa de tornar seus empregados
redundantes, uma maneira alternativa de cortar custos, através do outsourcing das tarefas
individuais, isto é, dos empregos, para onde os salários são significativamente menores”
(SMITH, 2016, p. 51).
A maior flexibilidade proporcionada pelo outsourcing de tipo arm’s-length é o
motivo que está estimulando as empresas transnacionais a optarem cada vez mais por esse tipo
de contratação, tornando anacrônica qualquer abordagem sobre a globalização da produção que
trate apenas dos investimentos diretos (SMITH, 2016, p. 68-69, 79). Cumpre destacar que o
outsourcing via arm’s-length é um desdobramento a partir dos investimentos estrangeiros
diretos, cuja diferença formal/jurídica impõe diferenças na forma, e apenas na forma, com a
qual a transferência internacional de valor se manifesta. Ou seja, a essência da relação
imperialista se mantém.
Vejamos, por exemplo, um caso hipotético. Suponhamos que uma empresa
transnacional tenha um estoque de investimento estrangeiro direto sob a forma de filiais
espalhadas ao redor do mundo que produzem, cada uma em seu lugar, uma parcela do produto
final. Ao final do ano, cada filial remete uma determinada parte dos lucros para a matriz. Se
observa, então, um fluxo de valor que representa o lucro repatriado. Agora, imaginemos que
esta corporação transforme suas filiais em empresas independentes, isto é, transfira a
181
De acordo com dados de Norfield (2011), o salário de cada trabalhador em Bangladesh que opera nas fábricas
de vestuário é igual a €1,36 por dia, sendo que eles produzem 250 camisetas por hora e trabalham 10 a 12 horas
por dia. Mesmo com crescimento dos salários nominais depois de ondas de greves e manifestações, o salário ainda
corresponde a 1/5 do que seria necessário para uma família de 4 pessoas sobreviver.
237
propriedade das filiais para outrem. A relação entre elas passa a ser de tipo arm’s-length. Nesse
caso, conforme os termos de Smith (2016, p. 69), a “repatriação dos lucros [...] desapareceria
sem deixar rastros”. Como os capitalistas só fariam esse tipo de operação se fosse rentável, a
apropriação de mais-valor pela empresa transnacional se realizaria sob uma nova roupagem182.
De uma forma ou de outra, não é nosso propósito investigar empiricamente o
desenvolvimento dos padrões de exportação de capital ao longo do tempo. O que pretendemos
resgatar, com essas breves considerações iniciais, foi um mapa das várias modalidades possíveis
de exportação de capital. No restante da seção iremos discutir como cada uma dessas
modalidades representam, na verdade, formas de manifestação da essência do imperialismo.
Enquanto na seção anterior nosso foco recaiu sobre a transferência internacional de valor entre
capitais industriais, agora daremos um passo à frente no processo de incorporar determinações
mais concretas.
Até a Seção III do Livro III de O Capital, na qual Marx enuncia a famosa lei da
tendência decrescente da taxa média de lucro, a exposição está se atendo rigorosamente à
seguinte abstração: todos os capitais individuais envolvidos na trama são produtivos, uns mais,
outros menos, é verdade, mas todos produzem valor. Que existam diferentes níveis de
produtividade entre eles, é condição necessária para a transferência de valor. Ou seja, a condição
para um capital individual se apropriar gratuitamente de mais-valor produzido por outrem é
também produzir valor. Trata-se, portanto, de uma interação entre capitais industriais, entre
capitais que contratam trabalho assalariado para que este produza valor e valor de uso.
182
Smith cita quatro motivos que tornam o arm’s-length preferível em relação ao investimento direto: 1) empresas
transnacionais (ETN) pagam salários maiores do que as companhias locais, motivo pelo qual a terceirização da
produção aumenta a pressão por reduzir salários e intensificar o trabalho; 2) ETN lava suas mãos em relação a
problemas provocados pela companhia terceirizada, como poluição, violência contra sindicatos, etc., reduzindo os
riscos indiretos associados ao negócio; 3) a terceirização facilita a adaptação da ETN aos ciclos econômicos: em
caso de depressão do mercado mundial, elas podem facilmente cortar produção rescindindo contrato com
fornecedores; 4) por não envolver a mobilização de capital fixo no exterior, a ETN fica com uma margem maior
para aplicar seu capital no circuito financeiro (SMITH, 2016, p. 80-81).
238
Nas seções quarta, quinta e sexta do Livro III, Marx introduz progressivamente
determinações mais concretas à análise, se aproximando com isso da superfície na qual o modo
capitalista de produção se manifesta. A partir de então, se incorporam frações do capital social
total que se apropriam de parte do valor total produzido sem que produzam nenhuma unidade
de valor – embora, em alguns casos, como veremos, essas frações potencializem a produção de
valor pelos capitais industriais. Nos concentraremos, agora, na existência do capital comercial
enquanto figura autonomizada do capital industrial.
Como já ficou claro na análise do Livro II, o processo de reprodução do capital
envolve um processo de produção (...P...) e dois atos de circulação, compra de meios de
produção e força de trabalho (D-M) e venda do capital-mercadoria (M’-D’). O capital social
total percorre ininterruptamente esse ciclo, ou, como diz Marx (2008, p. 361), “está ele sempre
em via de transformar-se, de efetuar essa mera mudança de forma”. A figura do capital
comercial183 surge quando a função de comprar e vender “adquire autonomia como função
particular de um capital particular, tornando-se, em virtude da divisão do trabalho, função
própria de determinada categoria de capitalistas” (MARX, 2008, p. 361).
Com isso, o capital industrial passa a assumir “duas formas de existência
diferentes”, quer seja como capital de circulação, a qual se autonomiza como capital comercial,
ou como capital produtivo. Marx (2008, p. 366-367) aponta dois fatores que dão ao capital
comercial “o caráter de capital como função autônoma”. Em primeiro lugar, a atividade do
comerciante “é uma forma da divisão social do trabalho, e desse modo parte da função a efetuar
em fase especial do processo de reprodução – a circulação – aparece como função exclusiva de
um agente específico, distinto do produtor”. Mas isso só garante ao capital comercial um caráter
autônomo desde que, em segundo lugar, o comerciante adiante, “de acordo com sua condição”,
“capital-dinheiro próprio ou emprestado” o qual lhe retorna acrescido de lucro.
Como ao longo de sua exposição Marx está preocupado em captar o processo em
sua pureza, ele abstrai das compras e vendas feitas diretamente entre os próprios capitalistas
183
Embora estejamos seguindo a tradução de Reginaldo Sant’Anna da editora Civilização Brasileira (CB),
alteramos alguns termos por nossa conta após comparação com a tradução de Regis Barbosa e Flávio Kothe da
Nova Cultural (NC) e com a tradução inglesa dos Manuscritos de 1864-65. Sant’Anna, por exemplo, usa os termos
“capital comercial” e “capital financeiro” no lugar do que Barbosa e Kothe designaram por “capital de comércio
de mercadorias” e “capital de comércio de dinheiro”. Neste caso, utilizaremos a tradução de Barbosa e Kothe,
sempre deixando claro os momentos nos quais mudanças desse tipo forem feitas. Sobre o “capital comercial”,
Barbosa e Kothe deixam claro que na própria redação de Marx esse pode ser um termo mais genérico que designa
o capital de comércio, independentemente se de mercadorias ou dinheiro, e também possui um sentido mais estrito
designando apenas o capital de comércio de mercadorias. Na tradução inglesa dos Manuscritos de 1864-1865
também se usa “capital comercial” no lugar de “capital de comércio de mercadorias”, Mas não se usa capital
financeiro, e sim “capital de comércio de dinheiro”.
239
industriais, “pois em nada nos ajudam para determinar o conceito, para penetrar na natureza
específica do capital mercantil [capital comercial]” (MARX, p. 362-363). Fica explícito, então,
que o propósito dessa categoria específica de capitalistas é executar as compras e vendas
necessárias para que o capital social total, incluindo-se o capital industrial, se reproduza:
366, grifos nossos). Grifamos a passagem anterior para destacar o fato de que a possibilidade
de variação do preço de mercado, com o qual o comerciante vende as mercadorias, aponta para
a possibilidade de transferência de valor entre ele e o industrial. Neste exemplo em específico,
a redução do preço de mercado fez com que o comerciante transferisse seu próprio capital para
o industrial, isentando este de sentir os efeitos do mercado. Absorver por algum tempo estes
efeitos é justamente uma das funcionalidades do capital comercial.
Como o capital comercial não participa de nenhuma parte do processo de produção,
apenas intermediando compras e vendas, ele não contribui com a produção de valor: “há sempre
uma parte do capital da sociedade, sob a forma de capital mercantil [capital comercial], a qual
está sempre na esfera da circulação” (MARX, 2008, p. 369). Ele apenas se apropria de valor
sob a forma do lucro comercial e esta é sua disfuncionalidade para o capital industrial. Em outro
lugar, Marx (2008, p. 380) sustenta que o capital de comércio de mercadorias tem como “sua
verdadeira função” a tarefa de “comprar para vender”. Estritamente sob essa função, portanto,
“despojado de todas as funções heterogêneas com ele relacionadas, como estocagem,
expedição, transporte, classificação, fracionamento das mercadorias”, “ele não cria valor nem
mais-valia, mas propicia sua realização e por isso a troca real das mercadorias, sua transferência
de uma mão para outra, o intercâmbio material da sociedade” (MARX, 2008, p. 380). Desse
raciocínio se infere que as chamadas funções heterogêneas, como estocagem, expedição, etc.,
criam valor, integram o capital produtivo.
Entretanto, sem a figura do comerciante, seguindo o argumento de Marx, maior
seria o tempo no qual o capital-mercadoria ficaria na esfera da circulação, o retorno de capital-
dinheiro ocorria numa velocidade menor, o que demandaria maior reserva de dinheiro para que
o processo de produção continue sem cessar, “o que acarretaria decréscimo da escala da
reprodução”. Portanto, o capital comercial contribui indiretamente para a produção de valor,
ele é funcional à reprodução do capital.
No final do Capítulo XVI do Livro III, Marx resume os aspectos que tornam a
existência do capital comercial funcional à reprodução do capital industrial:
Embora o capital comercial não crie valor, ele participa da nivelação das taxas
individuais de lucro em torno do lucro médio. Ou seja, nos termos de Marx (2008, p. 380), ele
“tem de proporcionar, como o que opera nos diversos ramos de produção, o lucro médio anual”.
Sendo um capital autônomo, a própria concorrência converge tendencialmente o lucro
comercial ao lucro médio. Essa constatação levanta a seguinte questão: sendo o mais-valor que
lhe cabe sido produzido “pela totalidade do capital produtivo”, “como consegue o capital
mercantil [capital comercial] puxar para si essa cota de mais-valia ou de lucro?” (MARX, 2008,
p. 380).
Aparentemente, no mundo das aparências, sugere Marx (2008, p. 380), “o lucro
mercantil [lucro comercial] é mero acréscimo, elevação nominal do preço acima do valor das
mercadorias”. Sendo a preocupação científica do autor investigar as determinações essenciais
dos fenômenos, esta primeira resposta não lhe cabe. Para chegar à verdadeira resposta, o autor
partirá de uma abstração: supõe que não existam custos adicionais ao capitalista comercial entre
o momento da compra e da venda, isto é, desconsidera inicialmente a existência de despesas de
circulação. Fazendo isso, a diferença entre preço de venda e preço de compra representa apenas
lucro para o capitalista comercial.
Marx é bastante cauteloso nesse momento da exposição em usar os termos precisos
para designar situações referentes ao capital industrial individual ou ao capital social total. As
referências ao primeiro tomam por base os preços de produção como a norma dos preços de
venda. Em relação ao segundo, como sabemos que na totalidade preços de produção são iguais
aos valores, Marx se refere aos preços de venda como valores, isto é, como trabalho
materializado, como se constata na seguinte contradição engendrada pelo autor: no mundo das
aparências, parece ser possível “gerar o lucro na circulação” desde que o comerciante faça “um
acréscimo nominal a seus preços (se consideramos a totalidade do capital-mercadoria, a venda
se faz acima do valor), e embolsa esse excedente de valor nominal sobre o valor real; em suma,
242
vende as mercadorias mais caro” (MARX, 2008, p. 380). Nessa “forma de acréscimo”, “tudo
se reduziria a um rodeio para participar da mais-valia e do mais-produto184 por meio de elevação
nominal do preço das mercadorias” (MARX, 2008, p. 381-382).
Essa possibilidade de geração do lucro comercial leva a uma contradição se
supomos “dominante o modo capitalista de produção”. A hipótese de que o lucro comercial
deriva do acréscimo nominal ao preço de compra, isto é, ao preço de produção, equivale, “em
última análise”, ao fato de que “deverá o comerciante vender todas as mercadorias acima dos
respectivos valores” (MARX, 2008, p. 382). Por trás da suposição de que o capitalista industrial
vende suas mercadorias ao comerciante pelo preço de produção, estava pressuposto que o
capital comercial “não entra na formação da taxa geral de lucro”. A exposição tinha de ser feita
dessa maneira pois “o capital mercantil [capital comercial] como tal não existia então para nós”
e porque o lucro médio e a taxa geral de lucro “tinham de ser estudados antes como nivelamento
dos lucros ou mais-valias, produzidos pelos capitais industriais dos diferentes ramos” (MARX,
2008, p. 382-383). Ou seja, o nível de abstração fez com que se supusesse que o capital
industrial vendia suas mercadorias pelo preço de produção. A entrada do capital comercial como
um negócio autônomo em relação ao capital industrial pôs uma contradição: a venda da
mercadoria para o comerciante pelo preço de produção obrigaria o conjunto dos comerciantes
a vender as mercadorias aos consumidores finais (individuais e produtivos) por um preço acima
do valor. Ou seja, na totalidade se verificaria essa distinção quantitativa entre preço e valor,
contradizendo um resultado fundamental atingido no Capítulo IX do Livro III.
Agora, pela primeira vez na exposição de O Capital, “temos de nos haver com um
capital que participa do lucro, sem participar de sua produção. É necessário, portanto, completar
o estudo anterior” (MARX, 2008, p. 383). Como o capital comercial se apropria de lucro sem
ter contribuído para produzi-lo, o argumento de Marx vai mostrar que ele compra a mercadoria
do capital industrial por um preço abaixo do preço de produção (valor, se consideramos a
totalidade) e a revende pelo preço de produção (valor).
O exemplo de Marx é o seguinte: supondo que o capital adiantado total pelo capital
industrial seja 720c + 180v = 900, com taxa de mais-valor = 100%, o produto será de 720c +
180v + 180m = 1080. Taxa média de lucro, desconsiderando a existência do capital comercial,
igual a 180/900 = 20%.
184
“Mais-produto” é uma designação posta pela tradução da NC, que julgamos ser mais apropriada do que “produto
excedente”, como consta na tradução da CB.
243
Incluindo um capital comercial de 100 na análise, o capital total passa a ser igual a
1000 e a taxa média de lucro igual a 180/1000 = 18%. O capital comercial, com esses
pressupostos, se apropria de um lucro de 18, enquanto o capital industrial se apropria de um
lucro de 162. O novo preço de produção para o capital industrial será 900 + (18%*900) = 900
+ 162 = 1062. Quando o capital comercial adiciona seu lucro de 18 ao seu preço de compra
(1062), as mercadorias são vendidas para os consumidores por 1080 e Marx resolve a
contradição posta anteriormente, já que a venda ocorre
adiante, no Capítulo XXIV do Livro III, o lucro comercial na verdade “configura-se como
produto de uma relação social e não em produto de uma simples coisa”.
O argumento de Marx torna-se mais completo, embora aponte para uma solução
incongruente com sua própria teoria dos preços de produção, quando incorpora na explicação
do lucro comercial a existência de custos de circulação. Concordamos com Germer e Beloto
(2006, p. 69-70) quando estes afirmam que a exposição de Marx no Capítulo XVII sobre o
repasse dos custos de circulação ao preço de venda “parece equivocada”, resultado do
“reconhecido caráter preliminar da redação”185.
Nesse momento da exposição, Marx (2008, p. 386-387) considera, inicialmente,
dois tipos de custos de circulação: “estritamente comercial” e “relativos a processos de
produção acrescentados depois no processo de circulação, como expedição, transporte,
armazenamento, etc.”, cuja diferença, como já observado, é que o primeiro não cria valor,
enquanto o segundo cria. Quaisquer que sejam sua natureza, eles supõem desembolso de “um
capital adicional para adquirir e pagar esses meios de circulação” e “entram como elemento
adicional no preço de venda das mercadorias, integralmente quando consistem em capital
circulante, e, na medida do desgaste, quando consistem em capital fixo” (grifos nossos). Por
serem repassados ao preço de venda, Marx aponta que “constituem valor nominal mesmo
quando não adicionam valor real à mercadoria, como se dá com os estritos custos comerciais
de circulação” (grifos nossos).
Os “estritos custos comerciais de circulação” ou, seguindo uma tradução
alternativa, os “custos puros de circulação”, “reduzem-se aos custos necessários para realizar o
valor da mercadoria, [...] para propiciar a troca das mercadorias” (MARX, 2008, p. 387). Podem
ser capitais constante (escritório, papel, etc.) ou variável e são considerados estrita ou
puramente de circulação pois “nenhum desses custos se faz para produzir o valor-de-uso das
mercadorias, mas para realizar o valor delas” (MARX, 2008, p. 387). O custo de circulação,
como adverte Germer e Beloto (2006, p. 65), existe independentemente da autonomização do
capital comercial. Se o próprio capital industrial executar a venda do capital-mercadoria, ele irá
incorrer nesses custos puros de circulação. É inescapável pelo próprio caráter de mercadoria do
produto. Decorre daí que a operação comercial é necessária, vital, para o capitalista industrial,
mesmo que não crie valor.
185
Conforme Moseley (2015, p. 23-24), Marx havia redigido apenas um “rascunho exploratório inicial” sobre o
capital comercial antes da redação dos Manuscritos de 1864-1865, no final dos Manuscritos de 1861-63, e Engels
fez pouquíssimas alterações no texto que se tornou a Seção IV do Livro III de O Capital.
245
comerciais incorre, também, em custos de circulação. Estes apenas se deslocam para outro tipo
de capitalista quando essa função se autonomiza.
186
Embora os trabalhadores não incorporem custos de circulação à sua força de trabalho, as mercadorias adquiridas
por eles aumentam de preço em função desses custos, aumentando, em termos nominais, o custo de reprodução da
força de trabalho e, consequentemente, o desembolso de capital variável pelo capitalista (GERMER; BELOTO,
2006, p. 73-74).
247
custos de circulação reduz o mais-valor disponível e, com isso, a taxa média de lucro
(GERMER; BELOTO, 2006, p. 75-78).
Considerando-se que o capital adiantado total continua a ser de 1050 – sendo 900
pelo capital industrial e 150 pelo capital comercial – e o mais-valor social à disposição da classe
capitalista passa a ser de 136 (=180-44), a nova taxa média de lucro é de 12,95% (=136/1050).
O lucro e o preço de produção do capitalista industrial em conjunto passam a ser,
respectivamente, 117 e 1017. Os comerciantes, por sua vez, ao venderem por 1080 o capital-
mercadoria, se apropriam do lucro médio de 12,95%, em termos de valor, 19, e repõem os 44
de custos de circulação. Como o valor total continua sendo de 1080, Germer e Beloto (2006),
por esse caminho original, apontam uma saída coerente para a incongruência entre produção e
apropriação sugerida pela exposição de Marx.
Sendo valores iguais a preços de produção do ponto de vista do capital social, todo
valor produzido é apropriado (mesmo com a introdução dos custos de circulação). Portanto,
como o capital comercial não produz valor, seu lucro só pode ser resultado de transferência de
valor. Ao resumir sua teoria do lucro comercial, Marx explicitamente o trata dessa maneira:
Em outros termos, Marx (2008, p. 412) diz que o capital comercial “retira seus
dividendos do montante de lucro produzido pelo capital industrial”, o que é válido tanto para o
capital de comércio de mercadorias quanto para o capital de comércio de dinheiro. Sobre este,
o autor afirma que “é claro que seu lucro [do comerciante de dinheiro] é apenas dedução da
mais-valia, pois só lidam com valores já realizados, mesmo quando realizados apenas na forma
de créditos” (MARX, 2008, p. 429).
Portanto, o lucro comercial abre uma nova possibilidade de imperialismo. O capital
comercial “retira algo da mais-valia produzida pelo capital em seu conjunto” (MARX, 2008, p.
392, grifos nossos), pelo capital, adicionemos de nossa parte, em operação no mercado mundial.
Podemos constatar que a exposição de Marx está situada no nível do mercado mundial quando
ele diz que a autonomização do capital comercial faz com que “algures, num ponto invisível,
há mercadoria que não foi vendida” (MARX, 2008, p. 407, grifos nossos). Depois, quando
comenta que “a crise aparece quando os reembolsos dos comerciantes que vendem em mercados
248
distantes (ou tem estoques acumulados no mercado interno) se tornam tão lentos e escassos que
os bancos reclamam pagamento ou as letras correspondentes às mercadorias compradas vencem
antes de estas serem revendidas” (MARX, 2008, p. 408, grifos nossos). Confirma-se aí o
entendimento de mercado mundial como correspondente aos mercados distantes (externos)
mais o mercado interno.
Isso ajuda a explicar o papel arrasador de gigantes corporações varejistas sobre
pequenos produtores espalhados ao redor do mundo, como contemporaneamente destacado por
Smith (2016)187. Tomemos o caso da maior corporação comercial do mundo, Walmart188. A
concorrência com outras companhias do mesmo ramo sugere que a empresa é forçada a vender
as mercadorias pelo preço real de produção (preço de produção industrial mais lucro comercial),
de forma que seu gigantesco lucro não advém de elevar artificialmente o preço de venda acima
do preço de produção (como é o caso da Apple, embora ela também se aproprie de lucro
comercial, ou da antiga Companhia Holandesa das Índias Orientais, como diz Marx (2008, p.
410), para a qual era possível alterar “a seu bel-prazer” as margens de lucro de acordo com os
interesses comerciais, em função do monopólio do comércio e da produção). O lucro dos
grandes capitais comerciais de hoje, como Walmart, parece ser explicado pelo baixo preço de
aquisição com o qual adquire as mercadorias. A cadeia global para a produção de uma camiseta
ou de uma xícara de café, seguindo os exemplos de Smith (2016), comportam várias relações
imperialistas, uma das quais se cristaliza no lucro comercial apropriado pelos capitais
imperialistas.
A Apple, por exemplo, parece se beneficiar de uma dupla relação imperialista: renda
de monopólio, a qual trataremos na subseção 4.5, e lucro comercial. Abstraindo aqui as funções
produtivas da empresa, como desenvolvimento de novos produtos, novas tecnologias etc., ela
desenvolve uma operação de pura intermediação comercial entre a compra dos iPhones prontos
e sua revenda através de sua rede de distribuição, o que nos indica que ela pode se apropriar
sob a forma de lucro comercial de parte do mais-valor produzido através dos capitais industriais
que operam nessa cadeia produtiva. Os indícios de superexploração da força de trabalho nas
empresas asiáticas contratadas pela Apple, conforme largamente documentado em Smith
(2016), sugerem a plausibilidade dessa hipótese.
187
SMITH, J. Imperialism in the TWENTy-First Century: the globalization of production, super-exploitation, and
the crisis of capitalism. Nova York: Monthly Review Press, 2016. p. 12 et seq.
188
De acordo com o ranking “The World’s Biggest Public Companies” de 2016 publicado pela revista Forbes
(c2016), Walmart é a maior empresa do ramo comercial do mundo, seja em quantidade de ativos ou de receitas.
Na comparação entre empresas de vários setores, é a maior do mundo em receitas.
249
189
Nos Manuscritos de 1864-65, Marx (2015, p. 420) fala apenas em “renda”, não em “renda fundiária”.
250
integração mundial entre capitais industriais. Enquanto a relação imperialista pode ser descrita
como a interação entre as dinâmicas centrífugas e centrípetas do valor, como descrevemos na
subseção 2.2 desta tese, o significado abstrato da aceleração da rotação do capital comercial
imperialista é potencializar essa interação. Em termos concretos, ela conecta com mais rapidez
compradores e vendedores, onde quer que estejam, potencializando, assim, um duplo
movimento: a dilaceração de formas sociais pré-capitalistas190 e a socialização a nível mundial
do trabalho humano.
190
É o que Marx (2008, p. 445) sugere ao comentar os efeitos do capital comercial britânico sobre a Índia no
Capítulo XX do Livro III de O Capital, onde parece reafirmar a tese do Manifesto sobre a artilharia pesada da
produtividade. Miranda (2016, p. 118) oferece uma interpretação cuidadosa e original sobre esta questão.
191
Optamos por “capital portador de juros”, como traduzido por Regis Barbosa e Flávio Kothe, do que “capital
produtor de juros”, como consta na tradução de Reginaldo Sant’Anna. Na versão inglesa dos Manuscritos de 1864-
1865 e do Livro III consta “interest-bearing capital”.
251
valor [...], e sim apenas a distribuição por diversas pessoas da mais-valia que já está inserida
nesse valor” (MARX, 2008, p. 462, grifos nossos).
Marx (2008, p. 455) agora designa uma nova categoria de capitalista, o “capitalista-
empresário”, aquele que “exerce a função de capitalista”, isto é, aquele responsável por executar
o movimento D-M...P...M’-D’. Se para executar esse movimento o capitalista-empresário
precisa recorrer a capital de terceiro, o movimento do dinheiro, na verdade, passa a ser o
movimento do capital a juros:
𝑫 − 𝑫 − 𝑴 … 𝑷 … 𝑴′ − 𝑫′ − 𝑫′
Fonte: MARX, 2008, p. 456
Devemos destacar, nesse ínterim, que o lucro realizado pelo capital industrial (D’-
D =ΔD) é absorvido, em primeiro lugar, pelo capitalista-empresário que, então, transfere parte
dele sob a forma de juro para o capitalista-monetário192, ou, em outros termos, capitalista
endinheirado, aquele que lhe emprestou a quantia D inicial. O “caráter específico” do capital
portador de juros, sustenta Marx (2008, p. 459), que o distingue do capital-mercadoria e do
capital-dinheiro, é funcionar como mercadoria-capital: “é valor que possui o valor-de-uso de
obter mais-valia, lucro”.
O dinheiro, portanto, se afasta do dono por algum tempo, passando de suas mãos para
as do capitalista ativo; não é dado em pagamento nem vendido, mas apenas
emprestado; só cedido sob a condição de voltar, após determinado prazo, ao ponto de
partida, e ainda de retornar como capital realizado, positivando seu valor-de-uso de
produzir mais-valia. (MARX, 2008, p. 459).
192
Mais uma vez optamos pela tradução de Regis Barbosa e Flávio Kothe, seguindo a tradução inglesa dos
Manuscritos de 1864-65, onde se lê “the Money capitalist” ou “moneyed capitalist” (MARX, 2015, p. 450, 456).
Na versão de Reginaldo Sant’Anna consta “capitalista financeiro”.
252
a forma” (MARX, 2008, p. 464, grifos nossos). Esse processo de exteriorização envolve o
desenvolvimento de uma forma sem conteúdo, como a seguinte passagem parece revelar: “A
mera forma do capital – dinheiro que é desembolsado como uma quantia, Q, e depois restituída
com acréscimo, Q + 1/5 Q, em determinado prazo, sem qualquer outra mediação além desse
espaço de tempo entre o desembolso e o retorno – é apenas a forma irracional do movimento
real do capital” (MARX, 2008, p. 465)193.
A peculiaridade da mercadoria-capital vai além, se comparada com as demais, pois
seu consumo conserva e acresce valor e valor de uso (MARX, 2008, p. 467). As coisas
aparecem ainda mais complicadas quando se constata que “o lucro é esse valor de uso”, ou seja,
o valor de uso é o próprio valor (MARX, 2008, p. 468). Mas tanto a conservação quanto o
acréscimo de valor dependem que a mercadoria-capital se aliene de seu proprietário por um
intervalo de tempo suficiente para a produção do valor, de forma que a restituição do valor ao
capitalista monetário é necessariamente futura e não imediata (MARX, 2008, p. 468-469).
Considerando o imperialismo, esta constatação de Marx pontua diferenças importantes entre
suas formas de manifestação como já apontamos. Na troca desigual, a transferência de valor é
imediata, efetivada no instante em que a transação é realizada. No lucro comercial, a
transferência de valor decorre do intervalo entre o tempo de compra e o tempo de venda, de
maneira que o hiato temporal depende das características do próprio capital comercial
imperialista. No empréstimo a juros, por outro lado, há um intervalo de tempo (cuja magnitude
é externa ao capital) entre a cessão do valor pelo capital imperialista e sua restituição como
valor a mais. A transferência de valor via juros só se realiza transcorrido o prazo determinado
pelo tempo de reprodução do capital industrial operado pelo capitalista-empresário, isto é, fora
do controle direto do capitalista-monetário, o representante do capital imperialista neste caso.
No caso do capital a juros, o tempo está relacionado com a própria determinação
quantitativa da taxa de juros. Uma “determinação imanente ao modo capitalista de produção”
é que a taxa de lucro seja “determinada [...] pelo lucro que o capital industrial proporciona
segundo períodos determinados. Essa regulação superficial se apresenta no capital portador de
juros, pois estes são determinados e pagos ao prestamista em prazos estabelecidos” (MARX,
193 Modificamos vários trechos desta passagem com base em Marx (2015, p. 454): “The mere form of capital –
money that is given out as a sum, A, and returns within a certain period as a sum A + 1/x A, without any other
mediation besides this temporal interval between the giving out and the return payment – is the irrational
[begriffslose] form of the real movement”. O trecho “between the giving out and the return payment” foi excluído
por Engels da redação definitiva do Livro III.
253
2008, p. 473, grifos nossos) 194. Como se nota, a questão temporal é muito importante para
Marx, como enfatizado pelo autor em diversos momentos do Capítulo XXI do Livro III, o que
reforça nossa preocupação em abordar o imperialismo na articulação espaço-tempo195.
[...] a concorrência não determina os desvios da lei, ou melhor, não existe para a
repartição lei alguma além da ditada pela concorrência, pois [...] não existe nenhuma
taxa ‘natural’ de juro. Habitualmente entende-se por taxa natural de juro a fixada pela
livre concorrência. Não há limites ‘naturais’ para a taxa de juros. Se a concorrência
não se limita a determinar os desvios e flutuações, se, portanto, suas forças opostas se
equilibram cessando toda determinação, o que se trata de determinar é em si mesmo
algo arbitrário e sem lei. (MARX, 2008, p. 473).
194
No lugar de “superficial”, constava “extrínseca” na tradução de Sant’Anna. Optamos por “superficial” seguindo
Barbosa e Kothe e Marx (2015, p. 461). A última frase nos Manuscritos de 1864-1865 está assim: “This too appears
superficially in the case of interest-bearing capital, in such a way that a certain interest appears to have been paid
to the lender for a certain time-interval” (MARX, 2015, p. 461).
195
Desenvolveremos essa questão na subseção 5.1.
196
Lucro de empresário é entendido por Marx (2008, p. 496) como a parte do lucro médio destinado ao capitalista-
empresário: “a parte que lhe cabe do lucro toma necessariamente a forma de lucro industrial ou comercial, ou, para
usar uma expressão que abrange ambos, a forma de lucro de empresário”.
254
493)197, embora, na aparência, sua determinação pertença “ao reino do acaso” (MARX, 2008,
p. 484). Como ela mede o grau em que os primeiros se apropriam de valores produzidos por
trabalhadores contratados pelos segundos, nos parece que o tamanho relativo de cada fração do
capital social determinará os elos fortes e fracos da concorrência.
De todo modo, como o juro é uma dedução do lucro médio, a taxa de juro é
subordinada ontologicamente à taxa geral de lucro. Podemos dizer, ainda, que a taxa de juro
participa tendencialmente da igualação das taxas de rendimento do capital. Do ponto de vista
do nível e não da taxa, o lucro, nos termos de Marx (2008, p. 477, 479), é o “limite máximo do
juro”. A diferença qualitativa entre lucro e juro “deriva da repartição meramente quantitativa
do mesmo montante de mais-valia” (MARX, 2008, p. 484, grifos do autor), ao contrário do que
ocorre com a divisão entre os pares categoriais mais-valor/salário e lucro/renda:
A relação que existe entre a taxa de juro e a taxa de lucro é análoga à que liga o preço
de mercado da mercadoria ao valor dela. A taxa de juro, na medida em que é
determinada pela taxa de lucro, é sempre determinada pela taxa geral de lucro, e não
por taxas específicas predominantes em certos ramos particulares, e menos ainda por
lucro extraordinário que o capitalista isolado obtenha numa atividade especial. Por
isso, a taxa geral de lucro, na realidade, reaparece como fato empírico, dado, na taxa
média de juro, embora esta não seja expressão pura nem fiel daquela. (MARX, 2008,
p. 484-485, grifos nossos).
Na verdade, Marx (2008, p. 485) reconhece que a taxa de juro varia segundo as
garantias oferecidas e segundo a duração do empréstimo, “mas, no momento dado, ela é
uniforme para cada uma dessas classes”. Ou seja, parece que não há uma lei que descreva o
movimento da taxa de juros ao longo do tempo, a não ser enquanto aspecto subordinado à taxa
geral de lucro, cujo movimento já é bem conhecido desde a Seção III do Livro III, e ao próprio
desenvolvimento do sistema de crédito (o qual também contribui para a tendência à redução da
taxa de juros ao longo do tempo).
Uma questão que intriga Marx (2008, p. 495) – e que vai nos ajudar a enquadrar
conceitualmente a remessa de lucros ao exterior – é a seguinte: “como é que se torna qualitativa
essa divisão meramente quantitativa do lucro em lucro líquido e juro?”. O fundamento da
questão é a constatação de que existem casos nos quais o lucro se reparte quantitativamente,
mas, nem por isso, se origina uma diferença qualitativa, como no caso em que “vários
197
Nos termos de Marx (2008, p. 493): “Na realidade, é apenas a separação dos capitalistas em monetários
[financeiros, segundo a tradução de Sant’Anna] e industriais que transforma parte do lucro em juro, cria, enfim, a
categoria do juro; e somente a concorrência entre essas duas espécies de capitalistas gera a taxa de juro”
255
capitalistas industriais, por exemplo, se associam para explorar um negócio e repartir entre si o
lucro dele oriundo de acordo com normas juridicamente estipuladas” (MARX, 2008, p. 495).
A taxa de juro, sendo definida ex-ante à contratação de meios de produção e força
de trabalho pelo capitalista-empresário que utiliza capital de terceiros, delimita a grandeza do
lucro de empresário como resíduo entre o “lucro bruto” e o pagamento dos juros (MARX, 2008,
p. 496). Entretanto, o próprio capitalista-empresário pode aumentar sua taxa de lucro “fora do
processo de produção”, graças à sua “maior ou menor astúcia e diligência”, nas circunstâncias
em que consegue “comprar ou vender acima ou abaixo do preço de produção, de apropriar-se,
dentro do processo de circulação, de parte maior ou menor da mais-valia global” (MARX, 2008,
p. 497). Em síntese sobre a divisão entre juro e lucro de empresário, Marx afirma o seguinte:
198
De passagem, podemos notar que a relação entre taxa de remessa e ciclos econômicos assume padrões empíricos
parecidos com o que ocorre entre estes e a taxa de juro. Nos momentos de crise nos países imperialistas as matrizes
repatriam uma proporção maior do lucro produzido pela filial, enquanto nos momentos de prosperidade parece
haver o movimento inverso. Embora possam ser derivados daí padrões interessantes, foge ao escopo de nossa tese
fazer esse tipo de investigação.
199
Smith (2016, p. 70-71) lista quatro tipos de IED de acordo com o motivo do investidor: busca de eficiência
(“forma paradigmática do neoliberalismo”, envolve a fragmentação da produção, sendo que “eficiência significa
corte de custos, em particular custos do trabalho”), busca de mercados (envolve a “replicação do processo de
produção” no país de destino), busca de recursos naturais e busca de tecnologia.
257
200
A questão se complexifica se considerarmos a situação corriqueira de o investimento corresponder a uma
sociedade por ações. Neste caso, adicionaríamos uma quarta parte ao lucro bruto referente à distribuição de
dividendos. Como não alteraria o conteúdo do argumento em função de que ela também estabelece a separação
entre capital-propriedade e capital-função (MARX, 2008, p. 512), optamos por não a adicionar na exposição.
258
obtém: “à diferença do lucro ou dividendo industrial, o capital estrangeiro, além das taxas de
amortização, cobra taxas de juros que são deduzidas da mais-valia gerada pelo investimento
produtivo para o qual ele contribuiu, sem haver assumido, contudo, os riscos da produção e
realização dessa mais-valia”. Sobre a relação entre entrada de capital estrangeiro e
desenvolvimento da economia dependente, Marini aporta o seguinte:
Antes de mais nada é compreensível que se remetam para a Índia tantos milhões em
metal precioso ou em carris [trilhos] para aí empregar em ferrovias, ambas as coisas
constituem apenas formas diferentes de transferir de um país para outro o mesmo
montante de capital, e uma transferência que não entra no domínio dos negócios
mercantis habituais e pela qual o país exportador nada espera além da futura renda
anual derivada das receitas dessas ferrovías. (MARX, 2008, p. 764, grifos nossos).
Só a Índia tem de pagar 5 milhões em tributos, por ‘bom governo’, juros e dividendos
de capital britânico etc., não se incluindo aí as somas anualmente enviadas para a
259
para o Capítulo XXV do Livro III era, na verdade, o título de todo o conjunto de manuscritos
que iam deste capítulo até o XXXIV.
No Capítulo XXV, o termo “capital fictício” quase aparece pela primeira vez na
obra. Em uma nota de rodapé dos Manuscritos de 1864-1865 que Engels traz para o corpo do
texto deste capítulo, Marx cita trechos de um comentário de um banqueiro inglês sobre a
possibilidade de simular a criação de capital através de letras201. No texto original, em inglês, o
banqueiro usa a expressão “fictitious capital”, que Marx traduz para o alemão com o sentido de
capital simulado ou capital fingido, e não capital fictício. Conforme nota dos tradutores Regis
Barbosa e Flávio Kothe, “Marx usa aqui fingiertes Kapital (capital fingido) e não fiktives
Kapital (capital fictício), como seria a tradução literal fictitious capital, provavelmente porque
quis reservar essa expressão para um conceito mais amplo” (MARX, 1985b, p. 302).
Após essa quase aparição, a categoria capital fictício é exposta por Marx apenas no
Capítulo XXIX. Antes disso, porém, ao criticar as ideias de Tooke e Fullarton no Capítulo
XXVIII, Marx (2008, p. 608) comenta que títulos públicos, hipotecas e ações “não são capital
efetivo, não constituem componentes do capital e em si não são valores”. Apesar disso, continua
o autor, a propriedade sobre esses papéis dá direito à apropriação futura de valor, sob diferentes
formas, pois títulos públicos “de per si não são capital, mas dívidas ativas puras”, hipotecas são
“meros papéis que capacitam a obtenção futura de renda fundiária” e ações são “meros títulos
de propriedade que dão direito à percepção futura de mais-valia”.
Marx (2008, p. 615-616) afirma, no Capítulo XXIX, que existem títulos que rendem
juros mesmo sem terem sido resultado de uma operação de crédito para um capitalista-
empresário. A constatação de que qualquer renda possa ser designada como juro decorre da
“forma do capital portador de juros [que] faz [com] que toda renda monetária determinada e
regular apareça como juro de um capital, derive ela ou não de um capital. Primeiro se converte
a renda monetária em juro, e como juro se acha então o capital donde provém”. Para que toda
“receita fixa anual” seja considerada juro de um capital, a fonte dessa receita precisa ser
“diretamente transferível ou assuma forma em que se torne transferível”.
Com o exemplo dos títulos de dívida pública, Marx (2008, p. 616-617) apresenta
pela primeira vez o capital fictício como uma decorrência do capital a juros. Neste caso, “o que
o credor possui é (a) um título de dívida contra o Estado, digamos, de 100 libras esterlinas; (b)
201
A citação do banqueiro é a seguinte: “É impossível determinar quantas delas [referindo-se às letras] provêm de
negócios reais, por exemplo, de compras e vendas efetivas, e quantas são postiças, simples papagaios emitidos
para recolher letras que estão para vencer, com o que se constitui capital simulado [fictitious capital], emitindo-se
valores circulantes imaginários” (MARX, 2008, p. 532).
262
esse título lhe dá direito a participar das receitas anuais do Estado, isto é, do produto anual dos
impostos, em determinada importância, digamos, de 5 libras esterlinas ou 5%; (c) pode vender
esse título de 100 libras a quem quiser”. Se a taxa de juros é de 5%, o proprietário do título
público, A, pode vende-lo a um terceiro, B, por £100, “pois para este tanto faz emprestar
anualmente 100 libras esterlinas a 5% quanto assegurar-se mediante o pagamento de 100 libras
esterlinas um tributo anual pago pelo Estado, no montante de 5 libras esterlinas”. O dinheiro
recebido pelo Estado foi gasto, “não existe mais”, de forma que o capital que dá origem às 5
libras esterlinas anuais “permanece ilusório, fictício” (grifos nossos). Para o credor, entretanto,
a receita anual de £5 que lhe é de direito continua existindo, é real, “representa juros de seu
capital”.
A possibilidade de vender o crédito que tem contra o Estado representa para A o poder
de reembolsar o principal. Quanto a B, do ponto de vista particular dele, empregou
capital como capital portador de juros. Objetivamente, apenas substituiu A, ao
comprar-lhe o crédito contra o Estado. Por mais numerosas que sejam essas
transações, o capital da dívida pública permanece meramente fictício, e a partir do
momento em que os títulos de crédito se tornam invendáveis, desfaz-se essa aparência
de capital. Não obstante, conforme logo veremos, esse capital fictício possui
movimento próprio. (MARX, 2008, p. 617, grifos nossos).
[...] uma valorização especulativa das ações constitui um aumento do volume total do
capital fictício existente na economia. Porém, esse incremento possui uma
característica distinta do valor original: não constitui duplicação aparente de um valor
real. Na verdade, por detrás dele não há nenhuma substância real. Por isso, vamos
chamar esse aumento de capital fictício de tipo 2. (CARCANHOLO, R.; SABADINI,
2009, p. 44-5, grifos do autor).
202
Cf. Sabadini (2013) para um rigoroso exame da obra de Hilferding especialmente focado nos lucros diferenciais
e do fundador.
264
outros. Marx (2008, p. 410) fala em “lucro especulativo”, numa nota de rodapé, ao citar o
trabalho de Corbet que diz que o lucro especulativo “funda-se na alteração do valor do capital
ou na do próprio preço”. R. Carcanholo e Sabadini (2009, p. 50-51), por outro lado, sustentam
que pode haver criação de lucros fictícios – sem que necessariamente outros agentes do mercado
incorram em prejuízos – enquanto o processo de valorização especulativa se sustentar. A lógica
do raciocínio dos autores é que em momentos de valorização especulativa, o detentor de
determinado título pode vendê-lo por preço acima do valor, se apropriar de lucro fictício, sem
que o comprador incorra em prejuízo, posto que pode revender o título por um preço ainda
maior e, com isso, também se apropriar de lucros fictícios203.
Seguindo R. Carcanholo e Sabadini (2009, p. 51), nas circunstâncias em que lucros
fictícios “são ‘produzidos’ pela especulação”, há um aumento no “volume total do capital
fictício existente no conjunto da economia”. Para ser mais preciso, aumenta-se o volume total
de capital fictício de tipo 2. Entretanto, o descolamento aparente entre capital fictício e capital
real não é e não pode ser permanente. O crescimento do volume de capital fictício, conforme
aponta M. D. Carcanholo (2011, p. 75-76, grifos do autor), significa “a expansão de títulos de
apropriação sobre um valor que não é necessariamente produzido na mesma proporção” e,
quando isso ocorre, “prevalece a disfuncionalidade do capital fictício para o modo de produção
capitalista”, ou seja, sobrevém a crise e a desvalorização do capital em funcionamento. Em
outros termos, Sabadini (2013, p. 20) afirma que o “movimento do capital fictício acirra [...] a
contradição entre a produção social e apropriação privada da riqueza coletiva, acentuando o
caráter contraditório da produção e acumulação capitalista ao se basear, ao menos em parte, em
riqueza fictícia que não contém substância valor-trabalho em sua origem”. Voltando a R.
Carcanholo e Sabadini (2009, p. 51), “quando o mercado apresenta uma reversão de sua
trajetória, destrói capital fictício e essa destruição vai aparecer como se fosse uma destruição
de riqueza real, e de fato é, só que exclusivamente do ponto de vista do ato individual e isolado”.
Em síntese, “o lucro fictício existe enquanto se mantenha a valorização especulativa
de um ativo qualquer e desaparece caso, eventualmente, desapareça dita valorização”
(CARCANHOLO, R.; SABADINI, 2009, p. 49-50). Do ponto de vista individual, os lucros
fictícios são “verdadeiros, reais”, embora, do ponto de vista da totalidade, “esses lucros são
203
No Capítulo XXIV do Livro I, Marx comenta, não com esses termos, sobre apropriação de valor através do que
chamamos de lucros fictícios: “A certo Sullivan é atribuído um contrato de fornecimento de ópio, e isso no
momento de sua partida – em missão oficial – para uma região da Índia totalmente afastada dos distritos de ópio.
Sullivan vende seu contrato por £40.000 a certo Binn. Este, por sua vez, vende-o, no mesmo dia, por £60.000, e o
último comprador e executor do contrato declara que, depois disso tudo, ainda obteve um lucro enorme” (MARX,
2013, p. 822-823).
265
pura ‘fumaça’” (CARCANHOLO, R.; SABADINI, 2009, p. 49-50, grifos dos autores), ou seja,
não são reais. Portanto, se do ponto de vista da totalidade não existem lucros fictícios, devemos
considerar que eles representam, de fato, um jogo de soma zero: a negociação especulativa de
títulos de propriedade a preços crescentes significa que, em algum momento, quando os preços
caírem, aqueles que detêm os títulos terão prejuízos fictícios que compensam os lucros fictícios
auferidos nos momentos de crescimento da riqueza fictícia. Essa aproximação com os lucros
diferenciais de Hilferding foi reconhecida por Sabadini (2013, p. 18) quando este autor afirma
o seguinte: “acreditamos que os lucros diferenciais de Hilferding se aproximam, ou se
equivalem, aos lucros fictícios aqui brevemente expostos à medida que dão destaque ao
movimento especulativo dos ativos financeiros num processo de autonomização em relação à
produção de mais-valia”204.
Sendo os lucros especulativos – diferenciais ou fictícios – resultados de venda de
títulos que representam capital fictício por preço acima do preço de compra, são transações
efetuadas exclusivamente na esfera da circulação. Diferentemente do lucro comercial – que
representa transferência de valor diretamente do capital industrial – ou do juro – resultado de
transferência a partir dos capitais industrial ou comercial –, os lucros especulativos decorrem
de transferência de valor entre agentes envolvidos exclusivamente na circulação. Mesmo que
tal transferência se manifeste decisivamente apenas com a eclosão de crises no mundo do capital
fictício, ela vai se acumulando em potência à medida que títulos que dão direito à apropriação
de determinado valor x são negociados por x+y, x+y+z, e assim sucessivamente, desde que y e
z sejam maiores do que zero. Ou seja, supondo que A pagou x+y a B por um título que foi
adquirido por B por x e que dá direito à apropriação de x, esperando revendê-lo a C por x+y+z,
A transfere valor equivalente a y para B. Se o preço do título cair para x antes que A consiga
vende-lo para C, consuma-se a perda de A equivalente ao que B ganhou. Por outro lado, se A
conseguir vender a C por x+y+z e, em sequência, o preço cair a x, C terá um prejuízo de y+z,
sendo y transferido a B e z a A. Evidentemente, esse processo pode durar anos e envolver
inúmeros agentes. Por isso dissemos que enquanto o preço do título se mantiver
especulativamente em alta, as transferências de valor vão se avolumando em potência. Quanto
204
Embora reconheça uma similitude entre a abordagem que vem desenvolvendo e a de Hilferding, Sabadini (2013,
p. 20) demonstra um certo receio em associar as categorias lucro fictício e lucro diferencial pois “não há em
nenhum momento qualquer referência do autor [Hilferding] ao fato de que ao se propor lucros especulativos
descolados da produção de mais-valia ele estaria ‘ferindo’ o método marxista de análise da produção e apropriação
da riqueza capitalista, método este que o próprio autor o define como sustentáculo de sua obra”. Ou seja, Hilferding
não teria demonstrado que a apropriação de lucros diferenciais não contradiz a teoria do valor de Marx, ao passo
que R. Carcanholo e Sabadini (2009) o fizeram.
266
maior a distância entre o preço do título e o valor que ele permite ao seu proprietário se
apropriar, maior a transferência de valor envolvida nesse processo.
Uma leitura desatenta de R. Carcanholo e Sabadini (2009, p. 49), ou mesmo de R.
Carcanholo (2013, p. 154-155), parece sugerir o contrário, já que ambos são enfáticos ao
mencionar que os lucros fictícios não decorrem de transferência de valor, mas de incremento
da riqueza fictícia total. Entretanto, isso só é válido, como os próprios autores parecem indicar,
durante o curto período de tempo no qual os preços dos ativos financeiros são continuamente
alimentados pela própria especulação. Considerando-se um período mais longo, que abarque
todas as fases do ciclo econômico, demonstra-se que a criação de riqueza fictícia, base para os
lucros fictícios, se alterna com sua destruição. A questão temporal envolvida aqui se baseia no
próprio desenvolvimento do sistema de crédito, o qual prolonga os intervalos entre compra e
venda, “servindo por isso de base para a especulação” (MARX, 2008, p. 582).
Quando Marx comenta a relação entre taxa de juro, crise e preço dos títulos, sugere
uma interpretação parecida com a que desenvolvemos anteriormente:
A taxa de juro atinge seu nível mais alto nas crises, quando, para pagar, se tem de
tomar emprestado a qualquer preço. Acarretando a alta do juro queda no preço dos
títulos, tem então as pessoas que dispõem de capital-dinheiro excedente oportunidade
para se apropriarem, a preços ridículos 205, desses papéis rentáveis, que
necessariamente recuperarão pelo menos o preço médio quando a situação se
normalizar e o juro de novo cair. (MARX, 2008, p. 480).
205
Utilizamos a tradução de Barbosa e Kothe para designar “preços ridículos” (p. 271) no lugar de “preços vis”,
como consta na edição da Civilização Brasileira. Na tradução inglesa dos Manuscritos de 1864-65, lê-se “spot
prices” (p. 464).
267
O imperialismo britânico criou uma máquina financeira que funciona como um banco
de sangue do vampiro que suga mais-valor produzido ao redor do mundo, em todos
os países e em todas as moedas. A City bebe um gole de cada valor que flui através
dela nos acordos financeiros nos quais ela participa na condição de centro global. [...]
Esses títulos [negociados pela City e por outras praças financeiras] representam uma
reinvindicação sobre o valor futuro produzido na economia mundial, mas também
revelam a riqueza presente e o poder controlador de seus proprietários capitalistas.
(NORFIELD, 2016, p. 228, tradução nossa).
206
Em Leite (2011), mostramos que os derivativos hipotecários mais comuns, como os mortgage-backed securities
(MBS), são capital fictício.
268
Na última subseção da Seção III desta tese, mostramos que determinados capitais
individuais podem se apropriar de superlucros caso mantenham os preços de mercado acima
dos preços de produção. Dessa forma, o superlucro compreende o lucro médio mais o lucro
extra, sendo que este pode provir de duas fontes, dando “duas formas” ao superlucro: (a) do
menor preço de custo dentro do ramo, o que equivale ao mais-valor extra; ou (b) da capacidade
de se apropriar de preço de mercado acima do preço de produção, o que equivale à renda de
propriedade ou de monopólio (MARX, 2008, p. 257). No final do Capítulo X do Livro III de O
Capital, Marx sugere, de passagem, que a explicação para essa possibilidade seria desenvolvida
no estudo da renda fundiária. De fato, é ali, na penúltima seção do Livro III, que encontraremos
as determinações dos superlucros, ou, em outros termos, as determinações da renda de
monopólio. Nesse sentido, Marx (2008, p. 825) assegura que o objetivo desta subseção é
“esclarecer o valor econômico, isto é, a valorização desse monopólio na base da produção
capitalista”.
Marx expõe seu argumento baseando-se no exemplo da propriedade fundiária, ou,
em outros termos, nas implicações para a reprodução do capital social da existência de uma
renda derivada da propriedade. Desde logo, é importante ter claro que a propriedade da terra é
apenas um caso específico de propriedade monopólica em geral. Assim, a renda da terra é, na
207
Trataremos apenas da renda diferencial de tipo I, considerando que “a renda diferencial II é apenas outra
expressão da renda diferencial I, coincidindo com esta em substância” (MARX, 2008, p. 899). A diferença entre
ambas reside, basicamente, no seguinte elemento: a renda diferencial de tipo I é estabelecida quando capitais
aplicados em terras diferentes produzem mercadorias com níveis distintos de produtividade, enquanto que na renda
de tipo II o argumento é desenvolvimento considerando-se capitais diferentes aplicados na mesma terra.
269
realidade, renda derivada da propriedade, como diz Marx (2008, p. 824-825): “para sermos
mais precisos, observaremos que nosso conceito de terra abrange também águas etc. que, como
acessório dela, tenham proprietário”. Ou, em outros termos, “a propriedade fundiária supõe que
certas pessoas tem o monopólio de dispor de determinadas porções do globo terrestre como
esferas privativas de sua vontade particular, com exclusão de todas as demais vontades”
(MARX, 2008, p. 824-825).
Em nota de rodapé, Marx (2008, p. 825) critica a concepção de Hegel sobre a
propriedade privada, entendida por este não como “determinada relação social, mas relação
entre o homem como pessoa e a ‘natureza’, ‘direito absoluto que tem o ser humano de apropriar-
se de todas as coisas’”. A ênfase da crítica de Marx é por Hegel tratar a “livre propriedade
privada da terra” como aistórica, natural, e não como produto histórico, social portanto. Em
vários momentos da exposição, Marx enfatiza que a propriedade fundiária é uma “forma
histórica específica” na qual o trabalhador foi despojado da propriedade da terra para
subordinar-se “a um capitalista que explora a agricultura para conseguir lucro” (MARX, 2008,
p. 823-824). Ou seja, a renda derivada da propriedade, objeto da Seção VI do Livro III, é
entendida a partir do momento em que está subordinada ao uso capitalista da terra; pressupõe,
portanto, as expropriações.
Seguindo esse argumento, o sistema capitalista cria a forma específica de
propriedade fundiária moderna, na qual a terra representa para o proprietário “um tributo em
dinheiro que o monopólio lhe permite arrecadar do capitalista industrial, o arrendatário”
(MARX, 2008, p. 827, grifos nossos). A separação capitalista entre a terra como “condição de
trabalho” e a terra como “propriedade” implica que os proprietários da terra não precisam mais
ter nenhuma relação com a terra em si: “os vínculos se desfazem tanto que donos de terras na
Escócia podem passar toda a vida em Constantinopla” (MARX, 2008, p. 827). Sendo assim, a
propriedade fundiária adquire através da dominação capitalista da agricultura uma “forma
puramente econômica”, sem vestígio, portanto, de tradição, cultura, história etc. A
proeminência da esfera econômica sobre as demais instâncias da vida social deixa em aberto a
possibilidade de que a renda derivada do monopólio seja resultado de transferência de valor a
partir do capital industrial em qualquer lugar do planeta.
O que Marx chama de renda fundiária é precisamente o seguinte:
[O] capitalista arrendatário paga ao proprietário das terras, ao dono do solo que
explora, em prazos fixados, digamos, por ano, quantia contratualmente estipulada
(como o prestatário de capital-dinheiro paga determinado juro) pelo consentimento de
empregar seu capital nesse campo especial de produção. Chama-se essa quantia de
270
renda fundiária, e tanto faz que seja paga por terra lavradia, ou por terreno de
construção, mina, pesca, florestas etc. (MARX, 2008, p. 827).
A analogia da renda com o juro não é trivial. Marx antecipa o fato de que a renda
da terra pode ser capitalizada à taxa média de juro e, assim, servir de base para o preço da terra.
Como a terra não é um produto do trabalho, não possui valor e racionalmente – seguindo a
terminologia de Marx – não deveria possuir preço. Entretanto, a existência da renda permite a
existência do preço da terra, que “é uma categoria que à primeira vista se revela irracional”
(MARX, 2008, p. 832). Para o proprietário da terra, a renda é como se fosse o juro de um
capital, apropriado por ele por deter “o monopólio sobre um pedaço do globo terrestre”
(MARX, 2008, p. 834-835, 845).
Como a renda diferencial vai se efetivar pela circunstância de os preços individuais
de produção se situarem abaixo do preço de produção que regula o preço de mercado, Marx
(2008, p. 847-848) expõe um argumento muito elucidativo sobre as condições em que isso pode
ser realizado. Sustenta o autor que a venda das mercadorias ao preço de produção decorre da
repartição do trabalho social entre os diferentes ramos de produção “na proporção das
necessidades sociais”, já que “o valor de uso continua sendo fundamental”. Isto significa que a
lei do valor se aplica à totalidade da produção social: “Na realidade, é a lei do valor tal como
se impõe não a mercadorias ou a artigos isolados, mas à totalidade [...] dos produtos dos ramos
particulares da produção social, ramos que se tornaram autônomos pela divisão do trabalho”.
Em resumo, se vendem pelos preços de produção as mercadorias produzidas de acordo com a
necessidade social por elas. Nos ramos em que se empregou mais trabalho do que o considerado
socialmente necessário, serão produzidos mais valores do que a sociedade está disposta a
realizar, o que implica que os preços de mercado diminuirão, fazendo com que os capitais
aplicados nestes ramos se apropriem de um quantum de valor menor do que o que eles
produziram. Prejudicada a proporção adequada entre necessidade social e trabalho social
empregado em cada ramo, “não se pode realizar o valor da mercadoria nem a mais-valia,
portanto, que ele encerra”. Além disso, deve-se observar que a autonomia dos ramos, tal como
mencionada por Marx, é sempre relativa, posto que eles precisam se adequar aos ditames da lei
do valor:
[Se houve produção excessiva tecidos em relação à necessidade social por tecidos]
gastou-se nesse ramo particular trabalho social demais, isto é, parte do produto é inútil.
Por isso, a totalidade só se vende como se fosse produzida na proporção necessária.
Esse limite quantitativo das cotas do tempo de trabalho social aplicáveis nas diversas
271
Desde o primeiro capítulo do Livro I, Marx tratava o valor de troca como a forma
de manifestação do valor. Agora, no final do Livro III, em um nível mais concreto de exposição,
mantém a coerência e diz que a média dos preços de mercado (ou preço regulador de mercado,
ou preço de produção de mercado) revela a natureza de valor das mercadorias, ou seja, é a
manifestação dos valores na superfície mercantil.
Nos termos do exemplo de Marx (2008, p. 856), os capitais que produzem em
“condições que estão acima da média das reinantes no ramo” produzem com menor preço de
custo, por exemplo, 90. Como eles vendem pelo preço de produção de mercado, o “preço médio
que regula o preço de mercado”, obterão “lucro extra”208 de 10 que, somados ao lucro médio
de 15, garante um lucro total ou superlucro de 25. O lucro extra “resulta de se vender a
mercadoria ao preço geral de mercado, ao preço em que a concorrência nivela os preços
individuais, e ainda de a maior produtividade individual do trabalho mobilizado redundar em
favor do empregador e não dos trabalhadores, como toda produtividade do trabalho, a qual
aparece como produtividade do capital”. Por outro lado, “se o industrial tiver de vender a
mercadoria ao valor individual dela ou ao preço de produção determinado pelo valor individual,
desaparecerá a diferença” da qual resulta o lucro extra (MARX, 2008, p. 857).
O lucro extra entendido até aqui resulta da diferença entre preços de produção de
mercado e preços de produção individual, os quais decorrem de diferenças nos preços de custo.
Portanto, resulta da concorrência dentro do setor. Não falamos de diferença entre preço de
mercado e preço de produção, a qual poderia gerar um lucro ainda maior. A concorrência tem
um poder nivelador, homogeneizador, das diferentes condições individuais de produção,
conforme Marx (2008, p. 860): “A concorrência entre os capitais tende antes a desfazer mais e
mais essas diferenças; a determinação do valor pelo tempo de trabalho socialmente necessário
impõe-se, barateando as mercadorias e forçando a que sejam produzidas nas mesmas condições
favoráveis”. Em outros termos, a concorrência faz convergir os tempos de trabalho individuais
ao redor do tempo de trabalho socialmente necessário. Ademais, se a determinação do valor
pelo tempo de trabalho socialmente necessário depende da concorrência, esta categoria já está
presente desde o primeiro capítulo do Livro I, reforçando a tese defendida aqui segundo a qual
208
As traduções brasileiras utilizam termos distintos aqui, sendo que optamos pela versão de Barbosa e Kothe.
Sant’Anna, por outro lado, utiliza “lucro suplementar”. Nos Manuscritos de 1864-65, Marx (2015, p. 799) fala em
“surplus profit”.
273
O Capital de Marx não se baseia na dicotomia entre capital em geral (Livros I e II) e vários
capitais (Livro III)209.
A questão é que o monopólio sobre “pedaços do globo terrestre” turva esse poder
nivelador da concorrência. O lucro extra do industrial que opera a queda-d’água não pode ser
reduzido através da concorrência. A produtividade é maior, nesse caso, pois decorre de “força
natural monopolizável”: “só pode ser utilizada por aqueles que dispõem de parcelas especiais
do globo terrestre com seus acessórios” (MARX, 2008, p. 860). Ou seja, “constitui monopólio
do respectivo proprietário dispor dessa força natural, condição de maior produtividade do
capital aplicado, que não pode ser fabricada pelo processo de produção do capital; não se separa
do solo essa força natural que se monopoliza” (MARX, 2008, p. 861).
Se a terra na qual existe a queda-d’água for de propriedade de alguém, “o lucro
extra se converte em renda fundiária, isto é, cabe ao proprietário da queda-d’água. A este paga
o fabricante 10 libras esterlinas anualmente pela queda-d’água, e assim obtém lucro de 15 libras
esterlinas” (MARX, 2008, p. 861). Essa sobra “transforma-se em renda fundiária justamente
por decorrer não do próprio capital, mas da disposição de força natural de volume restrito,
separável do capital e monopolizável” (MARX, 2008, p. 861). Essa renda “é sempre renda
diferencial, pois não constitui fator determinante do preço geral de produção da mercadoria,
antes o supõe” (MARX, 2008, p. 862, grifos nossos). Em outros termos, a renda diferencial não
determina o preço de produção, mas este a determina. Essa renda “provém da circunstância de
certos capitais isolados empregados num ramo de produção terem fecundidade maior em
relação aos investimentos de capital que estão excluídos dessas excepcionais condições
favoráveis, criadas pela natureza” (MARX, 2008, p. 862). Seguindo Marx (2008, p. 862-863),
o direito de propriedade sobre a força natural, isto é, a propriedade fundiária, não cria o lucro
extra, “mas transforma-o em renda fundiária”. A propriedade fundiária simplesmente “capacita
o proprietário para apoderar-se da diferença entre o lucro individual e o lucro médio” (MARX,
2008, p. 862-863); a “renda nada mais é que forma desse lucro extra” (MARX, 2008, p. 896,
grifos do autor210).
O monopólio em si tem relação intrínseca com a concorrência. Se os capitalistas
individuais que não dispõem da força hidráulica desenvolverem novo método de produção
capaz de baixar “o preço de custo das mercadorias produzidas com a máquina a vapor, de 100
209
Vale lembrar que nossa defesa de que o mercado mundial acompanha a exposição de Marx desde o princípio
do Livro I demanda que a concorrência também esteja presente nos níveis mais elevados de abstração de O Capital.
210
Nos Manuscritos de 1864-1865.
274
para 90, desapareceria o lucro extra e, com ele, a renda e, com esta, o preço da queda-d’água”
(MARX, 2008, p. 864). Reforçamos, aqui, aquilo que afirmávamos na crítica à uma
interpretação marxista muito popular sobre os monopólios presente na chamada escola do
capitalismo monopolista, os quais concluem que sob a vigência dos monopólios a lei do valor
não seria mais aplicável211. O erro teórico consiste em não perceber que, qualquer que seja o
monopólio, a busca por progresso técnico é permanente para que as vantagens auferidas pela
posição se mantenham.
A renda diferencial para Marx (2008, p. 878) tem como “condição única de
existência” a “desigualdade dos tipos de solo”, quando o que se está analisando é a renda da
terra. Em outros termos, “no fim das contas, a renda diferencial era objetivamente apenas o
resultado da produtividade diferente de capitais iguais, aplicados em terras” (MARX, 2008, p.
895). Marx desenvolve um modelo para explicar a diferença entre rendas diferenciais
considerando a existência de quatro tipos de terrenos que proporcionam produtividades
diferentes212. Tendo produtividades distintas, as rendas apropriadas por cada um dos quatro
proprietários também serão distintas. Este tipo de renda é chamado diferencial exatamente por
isso: é computada levando-se em consideração as diferenças de produtividades213.
Sendo a renda diferencial resultado do lucro extra, a questão-chave é compreender
como se forma o preço regulador de produção. Para tanto, a relação discutida anteriormente
entre produção social e necessidade social é o caminho argumentativo utilizado por Marx.
Havendo necessidade social pela totalidade das mercadorias produzidas nos quatro tipos de
terrenos, o maior preço individual de produção, isto é, relativo à pior terra, será o preço
regulador de mercado. Neste caso, o pior terreno não gera renda diferencial posto que quando
se vende pelo preço de produção o arrendatário aufere apenas o lucro médio. Na medida em
que a produtividade é crescentemente maior nos outros tipos de terreno, os preços individuais
de produção são menores, aumentando a distância entre eles e o preço regulador de mercado
cristalizada em maior lucro extra e maior renda diferencial quanto mais produtivo é o terreno
(MARX, 2008)214.
Supondo que todos os terrenos disponíveis sejam utilizados, isto é, que o produto é
vendido pelo preço de produção do terreno de pior produtividade, pelo maior preço individual
211
Cf. subseção 2.1.2 desta tese.
212
Esse argumento pode ser ilustrado na Figura 6 da Seção 3 desta tese, considerando que as áreas B1, B2, B3 etc.
representam os terrenos com diferentes produtividades.
213
Na renda diferencial II, considera-se capitais distintos na mesma terra, o que não altera a essência do argumento.
214
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro III. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008. p. 870 et seq.
275
de produção, segue que “o valor de mercado está sempre acima do preço global de produção da
quantidade produzida” (MARX, 2008, p. 879). O argumento é que se o maior preço individual
de produção regula o preço de venda, segue que o somatório destes preços, que Marx está
chamando de “valor de mercado”, é superior ao somatório dos preços de produção da totalidade
das mercadorias produzidas no ramo. No exemplo de Marx (2008, p. 871), a média do preço de
produção por quarter de trigo, o “preço real de produção” (MARX, 2008, p. 879), é de 24
xelins, sendo que são vendidos ao preço de mercado de 60 xelins. Após mencionar a diferença
entre o preço de mercado e o preço real médio, Marx continua seu argumento em uma direção
muito importante:
215
Preferimos utilizar os Manuscritos de 1864-1865 para essa oração: “This is determination by a market value
brought about by competition on the basis of the capitalist mode of production; it is competition that produces a
false social value” (MARX, 2015, p. 817). Há uma sutil diferença com relação a tradução da Civilização Brasileira:
“É a determinação pelo valor de mercado, tal como se impõe no sistema de produção capitalista por meio da
concorrência, que gera falso valor social.”.
216
Nos Manuscritos de 1864-1865.
276
217
A exposição da renda absoluta após a renda diferencial foi uma intervenção de Engels, contrariando a
estruturação dos capítulos dos Manuscritos de 1864-65, nos quais a teoria da renda absoluta antecedia a renda
diferencial.
277
[...] está limitado pelas aplicações adicionais de capital nos velhos arrendamentos,
pela concorrência dos produtos agrícolas estrangeiros – suposta a importação livre
deles –, pela concorrência entre os proprietários das terras e finalmente pelas
necessidades e pela capacidade de pagar dos consumidores. (MARX, 2008, p. 1005).
Optamos pela versão de Barbosa e Kothe ao invés da tradução de Sant’Anna, na qual se lê “lucro suplementar”.
219
Capital
Valor de Preço de
adiantado Mais- Taxa média de
mercado produção PP-VM
valor lucro
c v C (VM) (PP)
A linha pontilhada indica que o capital C não participa da formação da taxa média
de lucro (30%) devido ao caráter monopolista da propriedade da terra, mas se apropriaria do
lucro médio (30) se vendesse a mercadoria pelo preço de produção (130). Entretanto, este não
é o caso real pois a propriedade da terra exige alguma remuneração, que estamos chamando
aqui de renda absoluta. Para que isso seja possível, o capitalista arrendatário vende a mercadoria
220
Cf. item 3.4.2 da Seção III desta tese.
280
pelo valor (150), fazendo com que a diferença entre preço de produção e valor de mercado seja
apropriada pelo proprietário fundiário como renda absoluta (20).
A função prática do monopólio sobre a terra consiste justamente em evitar que os
valores se nivelem aos preços de produção, de forma que o valor passa a incorporar o preço de
custo, lucro médio e renda absoluta, sendo a soma dos últimos dois itens chamados por Marx
(2008, p. 1011) de “mais-valia real”.
Um resultado fundamental da teoria da renda absoluta de Marx é a constatação
segundo a qual se os produtos agrícolas forem vendidos acima do preço de produção (pelo valor,
seguindo nosso exemplo anterior), os produtos não-agrícolas serão vendidos abaixo do
respectivo preço de produção, de forma que na totalidade preços e valores são iguais (MARX,
2008, p. 1012); o que nos levaria a diminuir o preço de produção dos capitais A e B do exemplo
anterior bem como o lucro realizado por eles. Isso significa que a renda absoluta não interfere
na identidade entre produção e apropriação de valores na totalidade, ou, nos termos de Fine e
Saad-Filho (2004, p. 164, tradução nossa): “a renda depende da produção e apropriação do
mais-valor através da intervenção da propriedade fundiária”. Sua existência põe uma nova
modalidade de transferência de valor, dessa vez oriunda do conjunto dos capitais industriais
produtores de mercadorias não sujeitas às barreiras da propriedade fundiária para os
proprietários de terra. Mesmo que a renda absoluta seja apenas parte do mais-valor agrícola, ela
só se materializa como tal em função do preço de venda situar-se acima do preço de produção,
portanto, em função da transferência de valor.
A ideia de que a renda absoluta provém do mais-valor total produzido se evidencia
na seguinte passagem:
Vejamos em que consiste a essência da renda absoluta. Para igual taxa de mais-valia
ou para exploração igual do trabalho, capitais de igual magnitude produzem em
diversos ramos, de acordo com as diferenças na composição média, quantidades
diferentes de mais-valia. Na indústria, essas quantidades diversas de mais-valia se
igualam no nível do lucro médio e se repartem uniformemente pelos capitais
individuais como se fossem partes alíquotas do capital social. A propriedade fundiária
impede que assim se nivelem os capitais empregados na terra e se apodera de parte
da mais-valia que de outro modo entraria nesse nivelamento que dá a taxa geral de
lucro; é o que se dá quando a produção precisa de terra, seja para a agricultura, seja
para a indústria extrativa. A renda representa então parte do valor, mais
particularmente da mais-valia das mercadorias, a qual em vez de caber à classe
capitalista que a tirou dos trabalhadores, pertence aos proprietários que a extraíram
dos capitalistas. (MARX, 2008, p. 1020, grifos nossos).
Marx deixa a questão das rendas um tanto quanto em aberto ao indicar que podem
existir outros tipos de renda baseadas “no preço de monopólio propriamente dito”, assunto que
“cabe estudar” na “teoria da concorrência. Investiga-se aí o movimento real dos preços de
mercado” (MARX, 2008, p. 1012). De passagem, observemos que Marx ainda planejava expor
uma ‘teoria da concorrência’, dentro da qual se incluiria o estudo mais exaustivo dos preços de
monopólio.
Harvey (2013, p. 510-512) e Caligaris (2014, p. 61) sustentam a existência de um
quarto tipo de renda na teoria de Marx, a renda monopolista, embora explicitamente tenha se
referido a três em O Capital (renda diferencial I e II e renda absoluta). De fato, a diferenciação
entre renda absoluta e renda de monopólio, segundo Caligaris, é recente na história do
pensamento marxista, se originando na década de 1970.
Fine e Saad-Filho (2004, p. 162, tradução nossa), por outro lado, acreditam que a
transformação de renda absoluta em renda de monopólio é inconsistente pois tornaria a
determinação quantitativa da renda “puramente arbitrária”. Ou seja, o pressuposto da renda
absoluta segundo o qual o capital aplicado na terra possui composição orgânica inferior à média
é teoricamente bem fundamentado na medida em que a própria renda funciona como limite à
produção capitalista na terra. Isso justifica, segundo os autores, a hipótese de que o progresso
técnico na agricultura é mais lento do que nos demais ramos. Entretanto, esse pressuposto
levado para outras circunstâncias, como processos de produção monopolizados por patentes,
por exemplo, se torna arbitrário, sem conexão com a realidade.
221
Esse trecho do Capítulo A fórmula trinitária, no qual Marx comenta sobre a incapacidade da economia burguesa
em apreender a essência das relações econômicas, estava no meio dos manuscritos de Marx sobre a renda da terra
(MOSELEY, 2015, p. 50-51).
282
222
“Entendemos por preço de monopólio o determinado apenas pelo desejo e pela capacidade de pagamento dos
compradores, sem depender do preço geral de produção ou do valor dos produtos” (MARX, 2008, p. 1027).
223
“Lucro extra” pela tradução de Barbosa e Kothe e “lucro suplementar” pela tradução de Sant’Anna.
283
Mesmo Harvey (2013, p. 511), que é um dos autores a tratar da renda monopolista,
sugere que nos casos que envolvem “comércio de antiguidades e obras de arte”, por exemplo,
existe uma renda monopolista, a qual “é de interesse periférico para qualquer estudo da
produção geral de mercadoria”. Este pode ser, sem dúvida, um motivo plausível pelo qual Marx
não se enveredou por esse caminho.
Entretanto, a exposição das “prototípicas mercadorias globais” feita por Smith
(2016)224 levanta uma indagação que nos obriga a tentar responder: de onde vem o lucro de
empresas que executam outsourcing via arm’s-length como a Apple? O enigma posto pela
relação de tipo arm’s-length é o seguinte:
A questão é se esse fluxo realmente não existe ou se, como sugere Smith (2016),
ele existe e é invisível. Apesar do autor apontar para a direção correta ao indicar a possibilidade
de distinção entre produção e apropriação de valor no mercado mundial (SMITH, 2016, p. 83),
o modo como ele opera essa distinção, baseado apenas na teoria dos preços de produção de
Marx (SMITH, 2016, p. 259-260), não nos parece ser suficiente nem correto para este caso
específico especialmente por desconsiderar (a) a diferença entre preço de produção e preço de
mercado e (b) lucro comercial, o qual já tratamos anteriormente.
A exposição de Smith se baseia numa dicotomia Norte-Sul, na qual, segundo o
autor, as estatísticas oficiais maculam “a própria existência da exploração Norte-Sul” (SMITH,
2016, p. 266, 273). Essa exploração se basearia no fato alegado por Smith segundo o qual “o
valor é ‘criado’ em alguns dos elos da cadeia (isto é, os campos e fábricas do Sul), e ‘distribuído’
para outros (isto é, os gigantes varejistas), as principais ETN sediadas nos países imperialistas”
(SMITH, 2016, p. 269). O autor sustenta que “valores criados em um elo são condensados como
preços recebidos em outro lugar, por outros elos na cadeia, mesmo que estes elos separados
224
SMITH, J. Imperialism in the TWENTy-First Century: the globalization of production, super-exploitation, and
the crisis of capitalism. Nova York: Monthly Review Press, 2016. p. 27 et seq.
284
sejam firmas diferentes operando em diferentes continentes” (SMITH, 2016, p. 269), o que lhe
conduz à seguinte conclusão:
[...] capitalistas e cidadãos nas nações da Tríade são agora vistos como apropriadores
e consumidores de riqueza produzida por trabalhadores e pequenos produtores nas
nações do Sul Global. Uma imagem, em outras palavras, da emergente e totalmente
desenvolvida forma do estágio imperialista do capitalismo. (SMITH, 2016, p. 278).
Nos parece que essa resposta não é suficiente para entender o caso da Apple,
exemplo paradigmático das relações imperialistas contemporâneas. Como tentaremos sustentar
na sequência, se supormos que o valor de um iPhone é produzido no Sul, especialmente na
China, e apropriado no Norte pelos condutos da troca desigual, teremos que explicar a
transferência de valor pelo caminho das diferenças de produtividade e ocultaremos os
elementos distintivos na relação imperialista exemplificada pela cadeia de produção liderada
pela Apple: o monopólio da intermediação comercial e, sobretudo, da marca. É em função de
seu “status único” (SMITH, 2016, p. 29) que a empresa é capaz de vender seu iPhone por preço
acima dos demais smartphones e, com isso, realizar lucros formidáveis. A empresa do Vale do
Silício não participa diretamente do processo de produção, portanto não se apropria de lucros
repatriados nem de lucro de empresário. Ao mesmo tempo, não possui composição orgânica
abaixo da média, o que inviabiliza a possibilidade teórica de receber renda absoluta.
Como constatado em um estudo do Asian Development Bank citado por Smith
(2016, p. 28-29), a Apple usufrui de uma evidente posição monopolista:
O que foi levantado nesse estudo nos permite sugerir, de forma evidentemente
exploratória, que o preço de mercado cobrado na venda do iPhone se situa acima do preço de
produção e acima do valor devido ao “status único” oferecido ao consumidor do produto, pois
do ponto de vista técnico/produtivo não existem diferenças substantivas entre um iPhone e um
225
XING, Y.; DETERT, N. How the iPhone wides the United States trade deficit with the People's Republic of
China. Tóquio: Asian Development Bank Institute,2010. (ADBI Working Paper 257). p. 8.
285
226
Poderíamos ainda listar outras possibilidades de apropriação de renda monopolista no mercado mundial, como
o “lucro do fundador” (SABADINI, 2013, p. 8) ou a senhoriagem internacional pelos países detentores de moedas
de circulação internacional (dólar, euro, iene e libra esterlina) (NORFIELD, 2016, p. 163-166). O poder do dólar,
a propósito, foi responsável por inverter o fluxo de capitais na última década, como apontado por Lapavitsas (2013,
cap. 8), decorrente da enorme acumulação de reservas pelos países periféricos, os quais armazenaram parte
expressiva dessa reserva cambial em dólares ou títulos públicos emitidos pelo Tesouro estadunidense.
287
distinguia do valor produzido por cada capital – por isso a dimensão quantitativa do valor nos
era tão importante. Na próxima e última Seção, iremos adicionar uma determinação concreta
que, na realidade, atravessa transversalmente todas as formas de manifestação do imperialismo
descritas até aqui.
288
Nossa proposta com esta seção é dar um passo adiante na reconstrução teórica do
imperialismo. Já destacamos a forma como as teorias do imperialismo enquadram as
expropriações em sua caracterização do capitalismo contemporâneo, enfatizando as abordagens
de Harvey (2003) e Fontes (2010)227. O momento agora é de reconstruir, com base na teoria do
valor de Marx, o lugar das expropriações e da violência extraeconômica na lógica imperialista.
Tentaremos mostrar que essa é a forma de manifestação do imperialismo mais concreta, mais
visível, posto que relaciona o econômico e o político no mesmo plano de análise. Constitui,
assim, como argumentaremos, o pressuposto para que as formas de manifestação mais abstratas
do imperialismo se manifestem.
Nos terceiro e quarto capítulos desta tese direcionamos nossa exposição para a
dimensão quantitativa do valor de modo que fosse possível capturar as várias instâncias do
mercado mundial nas quais o imperialismo se manifestasse. Percebemos que a transferência de
valor se materializa através do comércio e dos investimentos internacionais, sendo que nesta
última esfera a relação imperialista depende de mais determinações concretas para existir, as
quais se cristalizam no tempo. Em outros termos, a transferência de valor se efetiva
instantaneamente através do comércio, diferentemente dos investimentos, nos quais o capital
precisa se imobilizar durante algum intervalo para que aquela transferência se materialize.
A consideração de que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado
mundial228, da lei do valor em escala mundial, traz consigo, automaticamente, o fato de que o
último se expande através do primeiro. Ao incorporar a dimensão tempo na reconstrução teórica
do imperialismo apenas em um nível mais concreto da exposição, o que fizemos foi constatar
que a expansão do mercado mundial é imediatamente espacial (ocorre em qualquer nível de
abstração) e mediatamente temporal (se efetiva com a mediação dos investimentos), o que nos
227
Cf. Subseção 2.1.4.
228
Cf. Subseção 1.3.
289
229
HARVEY, D. O Novo Imperialismo. Tradução de Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola,
2003. p. 98 et seq.
230
Um momento chave na produção teórica de Harvey relativo a construção dessa categoria é a obra Limites do
capital. Cf. Corrêa (2012, p. 192-195) e Harvey (2013, Cap. 12 e 13).
231
GROSSMANN, H. La ley de la acumulación y del derrumbe del sistema capitalista: una teoría de la crisis.
Ciudad de México: Siglo XXI, 1979. p. 195 et seq.
232
Ibid. p. 269 et seq.
290
delimitam uma historicidade dentro objeto) era mediada por crises estruturais nos padrões de
reprodução do capital. Nesse sentido, as crises são capazes de explicar as metamorfoses na
aparência do imperialismo, sendo insuficientes para explicar o elo orgânico entre a teoria do
valor de Marx e a existência do imperialismo em si, enquanto aspecto da realidade constituído
por essência e aparência. Sendo assim, pelos motivos expostos, quando falamos em articulação
espaço-tempo através do imperialismo não estamos nos referindo à “ordenação espaço-
temporal” de Harvey pois esta devém da sobreacumulação, ao contrário do que defendemos
nos dois últimos capítulos, quando caracterizamos o imperialismo a partir da acumulação de
capital.
Se nosso modo de caracterizar teoricamente o imperialismo partiu da concorrência
entre capitais (e não das crises), seu modus operandi só pode ser explicado se recorrermos a
algum impulso expansivo contido no próprio capital em seu decurso normal, cotidiano. Não é
difícil perceber, como já o fizemos na subseção 1.2, que o capital é valor em movimento cujo
circuito D-M-D’-M-D’’-M... “implica crescimento contínuo e direcionalidade” (POSTONE,
2014, p. 307), ou, em outros termos, a produção capitalista “tem uma determinação
absolutamente peculiar: é e sempre tem de ser produção crescente” (DUAYER; MEDEIROS,
2008, p. 154). Tanto Postone (2014) quanto Duayer e Medeiros (2008) enfatizam corretamente
que o valor, a forma social da riqueza na época capitalista, possui uma imanente “dimensão
temporal”, a qual pode se expressar, usando termos de Medeiros (2012, p. 58) inspirado em
Mészaros, no “caráter efetivamente incontrolável” do capital.
A acumulação pela acumulação – característica peculiar do modo capitalista de
produção, manifestação da temporalidade do valor e da incontrolabilidade do capital –
pressupõe, lógica e historicamente, determinadas condições para que se efetive: a mais
fundamental delas é a existência de trabalho assalariado. Nas páginas finais do Capítulo do
dinheiro dos Grundrisse, ao tratar do dinheiro como meio de pagamento, Marx (2011, p. 165-
81) opera uma transição lógica entre o dinheiro e o capital cujo ponto central talvez seja a
proposição de que quando o dinheiro se torna a finalidade da produção, ou seja, quando a
“mania de enriquecimento”233 se torna o móvel das trocas e, consequentemente, da produção,
o trabalho necessariamente tem que ser trabalho assalariado para que o dinheiro não tenha
“efeito dissolvente” sobre a comunidade, mas “produtivo”, posto que, com o assalariamento, a
No Livro I de O Capital, Marx passa a se referir a “impulso de enriquecimento” com esse mesmo sentido nos
233
finalidade da forma de trabalho também passa a ser o dinheiro (MARX, 2011, p. 167)234.
Portanto, apenas sob esta condição, a “mania de enriquecimento” não se contradiz com a forma
do trabalho, mas a complementa:
234
Como essa transição lógica está muito mais desenvolvida nos Grundrisse do que em O Capital, optamos por
utilizar o argumento do primeiro neste momento. Consideramos que a interpretação de alguns autores, como Bidet
(2007, p. 154-163), está equivocada ao negar a existência dessa transição lógica entre dinheiro e capital,
conferindo-lhe um caráter exclusivamente histórico. Medeiros e Leite (2016) reconstroem o argumento marxiano
rejeitando as teses de Bidet, por exemplo.
292
circulação deveria ser posto como momento e meio do acumular” (MARX, 2011, p. 176). Ou
seja, apenas numa sociedade regida pela contradição entre trabalho assalariado e capital é que
a acumulação pela acumulação encontra uma forma social adequada: o modo capitalista de
produção (do mais-valor).
Vimos que a produção do mais-valor relativo é o momento no qual esse modo de
produção adquire especificidade própria, torna-se sui generis quando o trabalho realmente
subordina-se ao capital235. É nesse momento da exposição de Marx em O Capital que se
ilumina, conforme Postone (2014, p. 326), a “dimensão temporal das categorias”:
235
Cf. Subseção 3.1 desta tese.
236
Cf. subseções 1.3 e 2.2 desta tese.
293
do capital (e d’O Capital), o que nos permitirá argumentar que as expropriações integram a
base econômica do modo de produção capitalista, se articulando organicamente, do ponto de
vista do imperialismo, com o comércio exterior e os investimentos estrangeiros.
Nossa mirada deverá ser ampliada para capturar o valor – e, portanto, a
transferência de valor, ou seja, o imperialismo – como motor de uma sociabilidade estranhada,
para além de sua dimensão puramente econômica, quantitativa, necessária certamente, mas
insuficiente para compreender o imperialismo enquanto totalidade complexa que molda o
mercado mundial dominado pelo modo capitalista de produção. Referimo-nos à captura da
dimensão política do imperialismo, das formas extraeconômicas de extração e transferência
internacional de valor. Por pior que seja o termo “extraeconômico” 237, ele é útil no sentido de
demarcar que se trata de uma análise exposta em um nível mais concreto de análise – posto que
incorpora uma dimensão adicional, extra, à esfera da economia propriamente dita. Do ponto de
vista da estrutura expositiva desta tese, encaremos, assim, mais uma transição entre níveis de
abstração.
237
O problema com o termo “extraeconômico” decorre de sua possível interpretação segundo a qual a realidade
social poderia ser cindida entre as esferas econômica e extraeconômica, o que poderia conduzir a análise ao
economicismo, isto é, à tentativa de impor à economia um papel prioritário determinado por “juízos de valor
gnosiológicos, morais, etc” típicos do que Lukács (2012b, p. 307) chama de “hierarquia sistemática idealista ou
materialista vulgar”.
294
ou teorias em questão”238, o autor de O Capital utiliza o Capítulo XXIV para incluir o Estado
na exposição através do recurso à violência como parte constitutiva da base econômica deste
modo de produção. Como veremos adiante, a violência tem papel primordial não só na assim
chamada acumulação primitiva, mas na própria reprodução das condições de existência da
acumulação do capital.
Observando o processo de gênese desse modo de produção, Marx (2013, p. 787)
nota que o processo histórico de formação dos trabalhadores livres – sempre em duplo sentido,
isto é, livres dos meios de produção e livres para venderem sua força de trabalho para outrem –
resultou, por um lado, da libertação das condições de servidão e dos “jugos das corporações” e,
por outro lado,
238
Como já destacamos, subseção 1.1 desta tese, esse procedimento crítico pode ser chamado de “crítica
ontológica”. Cf. Medeiros (2013), Monfardini (2015).
295
guardam estreita conexão com épocas diversas do capitalismo239. O longo processo histórico
de “pilhagens, horrores e opressão que acompanha a expropriação violenta do povo” (MARX,
2013, p. 799), pode ser resumido, usando os termos de Marx, como segue:
O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da
propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso
terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram
outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram
o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para
a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente libre. (MARX,
2013, p. 804).
Apesar de condição necessária, a expropriação das terras não era suficiente para
formar um “proletariado inteiramente livre”. Era necessário complementar tal expropriação
com “leis grotescas e terroristas” que forçassem “uma disciplina necessária ao sistema de
trabalho assalariado” (MARX, 2013, p. 808). Marx começa a conectar aqui uma relação de
dominação mediada pelo mercado, portanto determinada pela economia, e outra na qual a
dependência do produtor em relação ao apropriador é determinada pela “violência
extraeconômica”, pela “força do Estado”. A seguinte passagem do Capítulo XXIV é riquíssima,
por isso, mesmo sendo longa, a citamos textualmente:
Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no outro
como pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho.
Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção
capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e
hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e
evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção
desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação
relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos
trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda
exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o
trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada,
mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, é possível confiar o
trabalhador às “leis naturais da produção”, isto é, à dependência em que ele mesmo se
encontra em relação ao capital, dependência que tem origem nas próprias condições
de produção e que por elas é garantida e perpetuada. Diferente era a situação durante
a gênese histórica da produção capitalista. A burguesia emergente requer e usa a força
do Estado para “regular” o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites
favoráveis à produção de mais-valor, a fim de prolongar a jornada de trabalho e manter
239
Contemporaneamente, por exemplo, a espoliação dos fundos públicos tornou-se uma prática comum dentro dos
chamados ajustes fiscais.
296
A clivagem operada por Marx entre dois períodos históricos distintos (a “gênese
histórica da produção capitalista” e o “processo capitalista de produção desenvolvido”) designa
estágios nos quais o trabalho subordina-se formal ou realmente ao capital. No primeiro, onde
“o próprio modo de produção não possuía ainda um caráter especificamente capitalista”
(MARX, 2013, p. 809), a “violência extraeconômica” e a “força do Estado” – “a violenta
criação do proletariado inteiramente livre, a disciplina sanguinária que os transforma em
assalariados, a sórdida ação do Estado, que, por meios policiais, eleva o grau de exploração do
trabalho e, com ele, a acumulação do capital” (MARX, 2013, p. 813) – formam o modus
operandi com o qual a “burguesia emergente” forja a dependência do trabalhador em relação
ao capital. Por outro lado, a partir do advento da grande indústria essa dependência passa a se
reproduzir pela própria lógica impessoal do mercado, através da “coerção muda exercida pelas
relações econômicas” 240.
A expropriação da população rural e a consequente transformação de produtores em
trabalhadores assalariados forja a dependência deles em relação ao mercado e, ao mesmo
tempo, à medida que tais sujeitos expropriados passam a se apropriar de valor equivalente à sua
força de trabalho, esse mecanismo cria mercado interno para a grande indústria (MARX, 2013,
p. 819).
A narrativa sobre a gênese do capitalista industrial põe em primeiro plano a pressão
do mercado mundial. A forma de acumulação de capital pré-capitalista, ou seja, a partir da
exploração do trabalho por pequenos mestres corporativos e pequenos artesãos independentes,
equivalia a uma “marcha de lesma” e, sendo assim, “não correspondia em absoluto às
necessidades comerciais do novo mercado mundial, que fora criado pelas grandes descobertas
do fim do século XV” (MARX, 2013, p. 820, grifos nossos) 241
. Interpretamos daí que o
capitalista industrial, enquanto classe em processo de gênese, se relacionava passivamente com
o mercado mundial embrionário formado com as grandes navegações do século XV. Em outros
termos, essa forma de mercado mundial impunha demandas que a ainda insuficiente capacidade
240
Na subseção 3.1 mostramos que a subordinação real do trabalho ao capital resulta do advento da grande
indústria.
241
Como já defendemos, esse “novo mercado mundial” se distingue do antigo pela extensão com a qual ele
entrelaça os vários continentes. A mudança qualitativa com o advento da grande indústria (e com o desnível
estrutural de produtividade a partir de então) define uma centralidade para o mercado mundial enquanto destino
da produção, por isso chamamos designamos como pré-históricas ou embrionárias as formas anteriores do mercado
mundial.
297
produtiva dos capitais industriais em formação não era capaz de atender. Decorre que o
desenvolvimento dos métodos de produção do mais-valor relativo, culminando com a grande
indústria, colocam o capitalista industrial cada vez mais em relação proativa com o mercado
mundial, isto é, a partir de então o ritmo de expansão do mercado mundial é marcado pela
crescente expansão da produtividade do trabalho empregado sob o jugo da maquinaria. Como
Marx (2013, p. 832) fala mais adiante, “o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado
mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista” caminha pari passu com o
desenvolvimento da “forma cooperativa do processo de trabalho”, da “aplicação técnica
consciente da ciência”, enfim, da grande indústria. Esse é o estado de coisas que o autor parece
sucintamente afirmar quando expressa:
Hoje em dia [i.e., na época histórica da grande indústria], a supremacia industrial traz
consigo a supremacia comercial. No período manufatureiro propriamente dito, ao
contrário, é a supremacia comercial que gera o predomínio industrial. Daí o papel
preponderante que o sistema colonial desempenhava nessa época. Ele era o “deus
estranho” que se colocou sobre o altar, ao lado dos velhos ídolos da Europa, e que,
um belo dia, lançou-os por terra com um só golpe. Tal sistema proclamou a produção
de mais-valor como finalidade última e única da humanidade. (MARX, 2013, p. 824,
inserção nossa).
242
Marini desenvolve esse argumento com mais detalhes na primeira parte de Dialética da dependência. Cf. Marini
(2005, p. 140-144).
298
243
Cf. subseção 4.4 desta tese.
299
modernos” (MARX, 2013, p. 826). O mesmo pode ser dito do sistema protecionista, o qual,
através de tarifas de importação e prêmios sobre exportações, permitem aos Estados, “a serviço
dos extratores de mais-valor”, saquear, nos termos de Marx, “seu próprio povo” (MARX, 2013,
p. 827).
O caráter permanente, ou seja, não restrito apenas a uma suposta pré-história ou
infância do modo capitalista de produção, é expresso literalmente por Marx quando afirma que
“sistema colonial, dívidas públicas, impostos escorchantes, protecionismo, guerras comerciais
etc., esses rebentos do período manufatureiro propriamente dito cresceram gigantescamente
durante a infância da grande indústria” (MARX, 2013, p. 827, grifos nossos). Que em
determinados contextos históricos a acumulação primitiva se revele mais ou menos violenta,
isso não apazigua o fato de que as expropriações sempre carregam a violência em sua natureza.
As duas últimas orações dessa passagem são “uma das formulações mais fortes e
esquecidas” de O Capital, segundo Kohan (2003, p. 244, tradução nossa). A assertiva final – a
violência “é uma potência econômica” – tem como “principal consequência”, seguindo com
Kohan, a crítica ao “fetichismo de Estado”, a qual consistiria em “o conceber como uma
instituição separada e cindida das relações sociais de produção, de poder e de forças entre as
classes” (KOHAN, 2003, p. 245)244. O autor corretamente aponta que “para Marx é impossível
cindir e separar arbitrariamente estas duas esferas [i.e., violência e economia] as quais se tornam
um conjunto de relações [de produção, em um sentido, de poder e de forças, em outro]”
(KOHAN, 2003, p. 245, inserção nossa).
244
Kohan refere-se aqui ao estruturalismo althusseriano que influenciou boa parte do debate marxista sobre o
Estado nos anos 1970. O estatismo desses autores se encontra em uma “reificada separación de la economía por
un lado y las instituciones estatales por el otro, de la ‘estructura’ por un lado y la ‘superestructura’ por el otro”
(KOHAN, 2003, p. 247).
300
[...] el capital es una relación que se basa en el trabajo forzado (aunque sea
formalmente libre) porque la fuerza de trabajo se vende porque su propietario no tiene
condiciones de existencia propia para reproducirse. Si el proletário tuviera un campito
(el que tenía el campesino propietario, el farmer norteamericano clásico, por ejemplo)
no va a venderse a la fábrica, si viviera en una comunidad campesina con tierras
colectivas no va a venderse a la fábrica. Se va a vender a la fábrica y entabla la
relación de capital con el empresariado porque fue expropiado y es obligado todo el
tiempo a ir. (KOHAN, 2003, p. 249-250, grifos nossos).
Em outros termos:
301
Seguindo com Kohan (2003, p. 250), a violência na sociedade regida pelo capital –
um processo histórico “permanente, reiterado periodicamente” – se articula em duas operações:
através da “expropriação das classes populares” e da passagem permanente da “subsunção
formal à real”. Assim, conforme o argumento do autor, a efetivação da real subordinação do
trabalho ao capital não é um processo estático, datado historicamente na transição da
manufatura para a grande indústria, mas se trata de um processo dinâmico através da “conquista
de novos territórios sociais” para o capital e da expansão de “novas relações sociais”, as quais
podem resultar da fratura e “ressignificação” de “velhas relações” de forma a permitir a
introjeção da “coerção”, “dominação”, “hegemonia”, “vigilância” e “disciplina”. Nesse sentido,
tanto a passagem da subordinação formal para a real quanto as expropriações são pressupostos
de “cada nova fase da acumulação capitalista” (KOHAN, 2003, p. 250).
Podemos ir além, com Araújo (2016), e indicar que a crítica ontológica da economia
política executada por Marx a partir do período em que rascunha o que veio a ser conhecido
como Grundrisse e que culmina em O Capital o municia de um arsenal categorial que lhe
permite perceber que “a forma de dominação específica instaurada pela lógica do capital, não
é mais a da dominação direta, mas a dominação semimaterial245 das coisas produzidas pelos
homens sobre os próprios homens” (ARAÚJO, 2016, p. 37). Em outras palavras, o próprio ato
de produção numa sociedade regida pela lógica do capital traz consigo um tipo de dominação
impessoal, “da coisa sobre o homem” (ARAÚJO, 2016, p. 52), que Marx (2013) expressa
claramente: “Assim como na religião o homem é dominado pelo produto de sua própria cabeça,
na produção capitalista ele o é pelo produto de suas próprias mãos” (MARX, 2013, p. 697).
Por esse ponto de vista, a subordinação real do trabalho ao capital exige uma
violência que a reproduza no tempo, ou seja, uma violência capaz de inibir os produtores de
efetivarem o potencial emancipatório contido no colossal avanço de sua própria capacidade
produtiva. Nos termos de Lukács (2012b, p. 338), “a tão popular antítese entre violência e
economia é igualmente metafísica, não dialética. A violência pode também ser uma categoria
imanentemente econômica”246.
A assertiva de Lukács citada anteriormente é, na realidade, a conclusão de um
sofisticado argumento do autor sobre a relação entre base e superestrutura. Na relação entre
produção e distribuição (entendendo esta como o mecanismo social da apropriação), diz Lukács
245
Dominação semimaterial é um termo cunhado por Postone (2014).
246
Rejeitamos, assim, interpretações como a de Fiori (2010, p. 132), o qual supõe que, para Marx, “a ‘violência
do poder’ aparece em seu raciocínio como uma condição histórica, e não como uma dimensão teórica relevante da
sua teoria do capital”.
303
(2012b, p. 334-5), “existe uma conexão orgânica e determinada por leis” entre ambos. Nesse
caso há uma interação entre “formas puramente econômicas”, a produção, e o “mundo
histórico-social”, ou o “mundo extraeconômico”, a distribuição. O momento predominante é
dado pelo primeiro pois ele impõe a “direção de desenvolvimento”. Quando Marx imputa ao
modo de produção a “função de momento predominante”, Lukács (2012b, p. 336) ressalta a
importância de se ter cautela “para não entender isso no sentido de um praticismo ou de um
utilitarismo economicistas”:
247
WOOD, E. M. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. Tradução de Paulo
Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 28 et seq.
304
predominante dessa interação categorial; não uma produção in abstracto, mas uma produção
constituída em si por relações de poder e dominação, dotada de conteúdo social e político.
Adicionalmente, qualquer transferência internacional de valor oriunda da distinção
entre produção e apropriação no mercado mundial pressupõe determinados condutos mais ou
menos concretos. Em sua forma mais simples (o comércio internacional), tema do Capítulo
Três, a materialização da relação imperialista ocorre com o fluxo oculto de valores, invisível
sob as lentes dos balanços internacionais de pagamentos. Em uma imagem interessante, Smith
(2016, p. 83) faz uma analogia desta transferência com o processo físico da sublimação, no qual
uma substância em estado sólido se transforma em estado gasoso sem passar pelo estado
líquido. O movimento sólido-líquido é conduzido por um vapor invisível, de maneira análoga
ao movimento produção-apropriação de valores pela via do comércio exterior. Uma forma mais
complexa de imperialismo (os investimentos estrangeiros), tema do Capítulo Quatro, envolve
condutos mais concretos, como a repatriação dos lucros, pagamento dos juros de dívida externa,
apropriação de lucros comerciais, de lucros fictícios nas bolsas de valores, etc.
Qualquer que seja o conduto com o qual o imperialismo se manifeste, ele pressupõe
a possibilidade de conversão cambial entre moedas nacionais diferentes. Um sistema de taxas
de câmbio é necessário para que as diversas moedas nacionais possam ser equiparadas entre si
e/ou com o dinheiro mundial. Se isto é verdade, o imperialismo também pressupõe um sistema
de várias moedas e vários Estados, ou seja, para além de garantir as condições para a reprodução
da subordinação real do trabalho ao capital em cada formação social nacional, é necessário –
conforme demonstraremos na subseção seguinte – um sistema interestatal que garanta a fluidez
de valor dentro dos condutos imperialistas.
Acreditamos que Callinicos (2009) e Wood (2014) são os autores que melhor
demonstraram a necessidade de um sistema de múltiplos Estados para o imperialismo. O
argumento supracitado de Marx (2013, p. 808-809) no qual ele distingue a “coerção muda
exercida pelas relações econômicas” da “violência extraeconômica” é a base a partir da qual
Wood (2014) constrói sua elegante teoria do imperialismo, onde a especificidade do
imperialismo capitalista reside no estabelecimento de uma rede de dependência pelas vias do
mercado e não mais, como era na pré-história do capitalismo, através da coerção
305
extraeconômica. Com base nisso, é possível perceber que o caráter violento, expropriatório, do
imperialismo capitalista é mais um resultado de sua determinação trans-histórica do que um
atributo específico da historicidade capitalista248. Portanto, a compreensão do imperialismo
capitalista deve partir das legalidades típicas desta época da história humana – motivo pelo
qual iniciamos a Parte II desta tese examinando como comércio e investimento constituem
formas de manifestação do imperialismo de nossa época –, o que não quer dizer que as forças
extraeconômicas tenham papel fortuito ou contingente nessa análise.
A própria Wood (2014, p. 25) ressalta que “talvez [...] o capital global seja mais
dependente do Estado territorial do que qualquer outra potência imperial jamais foi no passado”.
Ora, se a dependência do mercado é o aspecto próprio do capitalismo, como a suspeição de
Wood pode ser possível? A resposta, articulada com o argumento de Marx no Capítulo XXIV,
é “que todos os capitalistas dependem, em última análise, da coerção do Estado para manter os
seus poderes econômicos e o domínio da propriedade, para manter a ordem social e as condições
favoráveis à acumulação” (WOOD, 2014, p. 22). O ponto da autora diz respeito ao fato de que
apesar da globalização, as funções essenciais permanecem com o Estado-nação, fazendo com
que a globalização seja um arranjo de múltiplos Estados: “nenhuma organização multinacional
chegou perto de assumir as funções essenciais na manutenção do sistema de propriedade e da
ordem social, muito menos a função de coerção que está na base de todas as outras” (WOOD,
2014, p. 27). Por isso, “o mundo hoje, na verdade, é mais do que nunca um mundo de Estados-
nação” (WOOD, 2014, p. 27).
De fato, não há uma antítese entre domínio econômico e coerção extraeconômica.
Seguindo com Wood (2014, p. 28): “O capitalismo ampliou o alcance da dominação para muito
além da capacidade de controle político direto ou da ocupação colonial, simplesmente impondo
e manipulando as operações de um mercado capitalista”, mas a manutenção da dependência
exige que “as economias subordinadas devem se tornar e ser mantidas vulneráveis à
manipulação econômica pelo capital e pelo mercado capitalista – um processo que pode ser
violento”. Concordamos com o evolver do argumento da autora, embora uma precisão teórica
precise ser feita: a vulnerabilidade das economias dependentes – chamadas por Wood de
“economias subordinadas” – não é resultado da “manipulação econômica pelo capital” (grifos
nossos), mas é a concorrência entre capitais no mercado mundial que põe pressões econômicas
sobre essas economias. O rigor nesse momento da exposição é importante pois, como veremos,
248
Na subseção 2.1.1 mostramos, a partir de Wood (2014), que a transferência de riquezas através das forças
extraeconômicas é o que permite conceituar uma concepção trans-histórica de imperialismo.
306
a ênfase em vários capitais é a chave correta para derivar, seguindo Callinicos (2009, p. 67-93),
a necessidade de um sistema de múltiplos Estados. Antes de chegar a esse ponto, examinemos
com um pouco mais de detalhes o quão violento pode ser o processo de tornar vulneráveis as
economias dependentes.
O papel da força extraeconômica na promoção da vulnerabilidade das economias
dependentes é análogo, seguindo com Wood (2014, p. 26-27), à atuação estatal em “manter a
dependência do trabalho em relação ao capital”. Sob este ponto de vista, podemos notar que
“desde o início a intervenção do Estado foi necessária para criar e manter não somente o sistema
de propriedade, mas também o de não propriedade”. Na perspectiva da relação imperialista, o
Estado-nação opera como veículo de “difusão dos imperativos capitalistas”, atuando nas duas
extremidades, no polo imperial e no polo subordinado, ou, em outros termos, ele é “único meio
pelo qual o capital pode se expandir livremente para além das fronteiras da dominação política
direta” (WOOD, 2014, p. 29).
Baseando no que argumentamos nos capítulos anteriores, podemos dizer que essa
“difusão dos imperativos capitalistas” no mercado mundial equivale à intensificação de
operações de comércio exterior e de investimentos estrangeiros. Mas para que essa difusão se
materialize, e, com ela, se desenvolva a relação imperialista, o Estado-nação precisa atuar. O
comércio ou o investimento não se enraízam no éter, mas num determinado espaço territorial
demarcado por fronteiras políticas, protegido por exércitos e moedas. Segue que o
desenvolvimento da relação imperialista pressupõe a atuação estatal em dois momentos: na
abertura de fronteiras e na garantia de sua reprodução, ou, fazendo uma analogia com o Capítulo
XXIV do Livro I de O Capital, o Estado atua na assim chamada acumulação primitiva e na
manutenção da ordem social propícia à acumulação do capital.
Embora prescinda de um “Estado imperial”, como diz Wood (2014, p. 92), o
imperialismo especificamente capitalista demanda um sistema de múltiplos Estados:
ao territorial, segue que um Estado não é suficiente para administrar essa relação. Portanto, a
globalização implica na indispensabilidade de um sistema de múltiplos Estados, coordenado
por um poder militar disciplinador.
Para a autora (WOOD, 2014, p. 115-116), a “característica essencial do
imperialismo capitalista” e que o “diferencia nitidamente das formas anteriores de
imperialismo” é “o fato de seu alcance econômico exceder em muito seu controle político e
militar direto”. Apesar do domínio do econômico sobre o extraeconômico, o primeiro não
prescinde do segundo: “apesar de os imperativos de mercado poderem chegar além do poder de
qualquer Estado, eles têm de ser impostos pelo poder extraeconômico”. Além disso, a
manutenção da “ordem social diária” também demanda a atuação “dos poderes administrativos
e coercitivos”, isto é, do Estado.
O Estado, resume Wood (2014, p. 106-108), é indispensável e “está no coração do
novo sistema global”, pois “continua a desempenhar seu papel essencial na criação e
manutenção das condições de acumulação de capital”. Esse papel se cristaliza no desempenho
das companhias multinacionais: “qualquer sucesso desfrutado por essas companhias na
economia global dependeu do apoio indispensável do Estado, tanto na localização de sua sede
no próprio país quanto nos outros países de sua rede ‘multinacional’”. Ele “é o criador das
condições que permitem ao capital global sobreviver e navegar o mundo”.
Esta nova configuração imperial, conforme Wood (2014, p. 101), “descobriu várias
maneiras de impor seus imperativos econômicos a Estados claramente independentes”, cujo
“principal instrumento” é a dívida. Na relação com as economias em desenvolvimento, continua
a autora (WOOD, 2014, p. 103, inserção nossa), “o poder imperial exigiu [por meio do FMI e
Banco Mundial no seio do chamado ‘Consenso de Washington’] ‘ajustes estruturais’ e uma
variedade de medidas que teriam o efeito de tornar essas economias ainda mais vulneráveis às
pressões do capital global sob o comando dos Estados Unidos”. Ou seja, a globalização foi
estímulo poderoso à “abertura das economias subordinadas e [para impor] sua vulnerabilidade
ao capital imperial” (WOOD, 2014, p. 103).
Embora Wood defenda que a consolidação do “império do capital”, desse
imperialismo guiado predominantemente por forças econômicas, ocorra a partir do fim da
Segunda Guerra Mundial, suas raízes históricas remontam ao advento da grande indústria.
Afinal, desde ali se instaura uma cisão entre as capacidades produtivas dos trabalhadores
empregados sob sua égide em contraposição aos trabalhadores que executavam processos
produtivos ainda arcaicos, instaurando, portanto, um processo de transferência internacional de
308
valores via comércio exterior. Evidentemente, nos primórdios da grande indústria havia uma
imbricação maior entre expansão econômica e Estado imperial, de forma que podemos
encontrar ali apenas as raízes da formação do imperialismo especificamente capitalista.
Gallagher e Robinson (1953, p. 3, tradução nossa), por exemplo, afirmam que a
supremacia britânica na chamada era do livre-comércio no século XIX foi “constantemente
sustentada” “por meios informais se possível ou por anexações formais quando necessário”.
Em outros termos, “o fato básico é que a industrialização britânica causou um desenvolvimento
intensivo e extensivo de regiões além-mar. Se eles eram formalmente britânicos ou não, era
uma consideração secundária” (GALLAGHER; ROBINSON, 1953, p. 5). Em síntese, nos
parece que na época de advento da grande indústria se abre um período híbrido de coexistência
entre formas de imperialismo capitalista e pré-capitalista e que paulatinamente é substituído por
formas predominantemente capitalistas.
Ao situar a gênese histórica do imperialismo capitalista no contexto imediatamente
posterior à Revolução Industrial (mesmo que ele ainda não assuma uma forma puramente
capitalista), estamos projetando sua atuação sobre uma malha pré-definida de Estados-nações.
Portanto, a lógica econômica de extração de valores se sobrepõe a uma lógica geopolítica pré-
existente. A questão que Callinicos (2009) se põe a resolver é a seguinte: considerando que o
capitalismo – e, dizemos nós, o imperialismo capitalista – herdou um “contexto geopolítico
constituído por esse sistema pré-existente de Estados” (CALLINICOS, 2009, p. 77), a relação
entre o imperialismo e este sistema interestatal é contingente ou necessária? Em outros termos,
o sistema de múltiplos Estados é produto do imperialismo (no sentido de ser reforçado pelo
imperialismo) ou pode ser substituído por “uma forma diferente de soberania política”, como o
“Estado transnacional” (CALLINICOS, 2009, p. 76)? 249
Callinicos se envolve nesse argumento pois entende que a proposição de Wood
acerca do sistema de múltiplos Estados é contingente, isto é, ela não deriva corretamente a
influência do imperialismo sobre tal arranjo político. Tal crítica faz sentido quando
consideramos que ela assume que “o capitalismo global sem um sistema de múltiplos Estados
territoriais é absolutamente inconcebível” (WOOD, 2014, p. 30), sem, entretanto, demonstrar
exatamente o porquê. Ao enfatizar, em passagem citada anteriormente, que “o capital exige
muitos Estados-nação” (WOOD, 2014, p. 107), Wood cairia, na crítica de Chibber (2005, p.
157) citada por Callinicos (2009, p. 79), em um tipo de “funcionalismo leve [soft
249
Callinicos refere-se aqui à controversa tese de Robinson (2007). Cf. Corrêa (2012, p. 172-174) para uma crítica
à essa tese.
309
functionalism]” na medida em que presume que os Estados assumem tal forma por uma
demanda do capital (ou do imperialismo).
Na interpretação crítica de Callinicos, é como se Wood fosse empurrada para esse
funcionalismo pois assume uma concepção de capital na qual pouco enfatiza a concorrência
entre capitalistas. Considerando que o capital só existe como vários capitais, “o ‘capital global’
não pode existir”, nas palavras de Callinicos (2009, p. 79, tradução nossa), “mas apenas uma
pluralidade de atores econômicos em concorrência. Tal pluralismo de capitais pode ser pensado
como um suporte do ‘pluriverso geopolítico’”.
Assim como o capital usurário e o comercial, duas “formas distintas do capital”
legados da Idade Média que “já valiam como capital quand même [em geral]” (MARX, 2013,
p. 820), o Estado antecede o capitalismo e é “incorporado e adaptado” a ele, seguindo os termos
de Callinicos (2009, p. 81). Nesse sentido, a concepção de Wood segundo a qual a concorrência
geopolítica tem caráter pré-capitalista é vista por Callinicos (2009, p. 81) como “arbitrária e
dogmática”, pois o sistema estatal é uma “dimensão do modo capitalista de produção”
(CALLINICOS, 2009, p. 83, grifos do autor).
A ênfase de Callinicos é demonstrar que o imperialismo está na interseção entre “as
formas de concorrência econômica e geopolítica” (CALLINICOS, 2009, p. 72). Numa
abordagem muito semelhante à de Harvey (2003), como o próprio autor faz questão de
reconhecer, a crítica ao chamado “economicismo”, implícita na concepção instrumentalista de
Estado adotada por Lenin e Bukharin (CALLINICOS, 2009, p. 70-71), é o ponto de partida de
Callinicos em sua estratégia de conceber o imperialismo como a interseção entre “duas formas
de concorrência” pois, segundo o próprio autor, essa concepção tem a vantagem de evitar “o
reducionismo econômico” (CALLINICOS, 2009, p. 72).
Para que a “tensão dialética” entre ambas exista, o ponto central do argumento de
Callinicos é que o nível geopolítico – entendido, “muito amplamente”, com referência “a todos
os conflitos entre Estados em relação a segurança, território, recursos e influência”
(CALLINICOS, 2009, p. 74) – precisa ser integrado na análise do desenvolvimento capitalista
ao mesmo tempo em que mantém sua especificidade. O lugar que a geopolítica ocupa dentro
das teorias do imperialismo nos conduz, seguindo Callinicos (2009, p. 74), “ao sistema estatal
[state system]”, o qual é concebido como “possuindo propriedades irredutíveis àquelas de suas
unidades constituintes, os Estados individuais”.
Ao considerar o imperialismo como a interseção entre as duas “formas de
concorrência”, Callinicos confere o mesmo status às esferas da economia e da (geo)política, ou
310
seja, não atribui prioridade explanatória de uma em relação a outra categoria. Como
defenderemos adiante, essa horizontalidade no tratamento das duas esferas é uma fraqueza de
seu argumento que deve ser substituída, acreditamos nós, por uma prioridade explanatória de
caráter ontológico. Antes de chegarmos a isso, é justo nos aprofundarmos no próprio argumento
do autor.
Sua concepção de duas “formas de concorrência” está ancorada em uma tentativa
de ir “para além do Estado como forma reificada de relações sociais capitalistas”
(CALLINICOS, 2009, p. 84)250. Callinicos defende que a maneira adequada de superar essa
concepção fetichista de Estado é perceber – baseando-se em Block (1987) – que capitalistas e
gestores do Estado possuem interesses distintos: para os primeiros, “expandir seu capital” e,
para os segundos, “manter o poder” (CALLINICOS, 2009, p. 84-85). Para Block (1987),
qualquer gestor do Estado precisa de atividade econômica em nível satisfatório, sendo que esta,
por sua vez, depende de decisões privadas de investimento, o que faz com que o “gestor tenha
interesse em usar seu poder para facilitar investimentos”, decorrendo daí que as políticas
públicas acompanham o “interesse geral do capital” (BLOCK, 1987, p. 58-59). Esse argumento
não depende de conspirações etc., para provar que a relação Estado-capital envolve o uso do
primeiro em benefício geral do segundo. Para que o argumento funcione, segundo Callinicos
(2009, p. 86), tudo que é necessário é que “capitais façam suas decisões calculando maximizar
a rentabilidade”, gerando o efeito não-teleológico segundo o qual os Estados funcionam para
os capitalistas. A relação entre ambos (Estados e capitais) pode ser vista, portanto, como de “via
de mão dupla” ou “interdependência estrutural” (CALLINICOS, 2009, p. 86): Estados
dependem dos capitalistas e vice-versa.
Da mesma forma que se opôs ao “capital global” de Wood (2014) por estar sempre
tratado no singular, Callinicos (2009, p. 87-88) também discorda, corretamente em nosso
entendimento, da forma como Block (1987) menciona o “interesse do capital”, pois só podem
existir vários capitais:
A convergência posta por Block na verdade ocorre entre os interesses dos gestores de
um dado Estado e aqueles da constelação específica de capitais individuais
250
Notemos, de passagem, como as teses da assim chamada “economia política internacional” estão amarradas
com concepções reificadas de Estado de tipo weberiana. Fiori (2010, p. 147, grifos nossos), por exemplo, defende
a seguinte “premissa teórica”: “Por definição, todos os países são insatisfeitos e se propõem a aumentar seu poder
e sua riqueza”. Nesta interpretação, a tendência expansiva do sistema decorre da pressão por acumular poder
exercida pelos “estados-economias nacionais”, processo que se materializa nas guerras (FIORI, 2007, p. 24 et
seq.). Vimos que essa perspectiva é completamente alheia à teoria de Marx na medida em que este autor demonstra
a existência de um impulso autoexpansivo contido no próprio capital (e não no Estado).
311
251
Defendemos a posição de Bukharin (1988) e Lenin (2008) contra Kautski (1914, 2002a, 2002b) em Leite
(2014a).
312
252
O termo mais correto, seguindo Marx (2013), seria “centralizações” ao invés de “concentrações”.
313
desta tese com uma exposição acerca do papel necessário do sistema de múltiplos Estados e da
violência implícita na função estatal na produção e reprodução da relação imperialista.
Nesse trecho, Marx abre uma nota de rodapé citando um autor do século XVI que,
dentre outras coisas, sugeria o papel do capital mercantil na violenta expropriação dos
produtores: “os príncipes devem com energia adequada punir e evitar que os súditos sejam tão
vergonhosamente esfolados pelos comerciantes” (MARX, 2008, p. 442).
Os processos de descolonização, entretanto, superam esta forma de subordinação e
põem um novo tipo de relação de dependência, determinada, cada vez mais, utilizando os
termos de Wood (2014)253, por “imperativos econômicos”. Independentemente da
especificidade local de cada processo, a substituição da dependência centralmente política,
típica da relação colonial, pela dependência centralmente econômica, típica da relação
imperialista, é comum a todos os processos de descolonização, tanto no continente americano
253
WOOD, E. M. O império do capital. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 17,
22, 74, et seq.
314
nos séculos XVIII e XIX quanto no que se desenrolou na África e na Ásia nos séculos XIX e
XX.
Essa é a constatação de Marini (2005, p. 140-141) ao observar o caso latino
americano. Assegura o autor que com a Revolução Industrial e a independência política das
colônias, “os novos países se articularam diretamente com a metrópole inglesa e, em função
dos requerimentos desta, começaram a produzir e a exportar bens primários, em troca de
manufaturas de consumo e – quando a exportação supera as importações – de dívidas” (grifos
nossos nas palavras em que alteramos o tempo verbal). Contraposta à situação colonial, há uma
mudança qualitativa no tipo de subordinação ao qual as assim chamadas economias
dependentes se inserem. A originalidade do novo momento reside no estabelecimento de formas
de transferência de valor – formas de imperialismo – pela via mercantil, ao contrário do período
anterior, no qual as transferências de valor se materializavam pela expropriação direta, portanto
conduzidas pela violência extraeconômica. Em síntese, a mudança qualitativa posta pelo
estabelecimento de relações imperialistas especificamente capitalistas resulta da utilização cada
vez maior de condutos econômicos ao invés de políticos para a apropriação de mais-valor pelos
centros imperialistas. Na abordagem de Marini, essa nova forma de dependência das economias
da América Latina se efetiva apenas a partir de 1840, quando o continente se articula
plenamente com a economia mundial, pois “é com o surgimento da grande indústria que se
estabelece com bases sólidas a divisão internacional do trabalho”254 (MARINI, 2005, p. 142).
As expropriações, então, funcionam para a relação imperialista de maneira análoga
à que ocorre na constituição da relação de dependência entre trabalhadores e capitalistas. Elas
forjam violentamente através da força estatal um intrincado processo que subjuga o polo
dependente na dinâmica da acumulação do polo imperialista. Vale destacar que a relação
imperialista é construída simultaneamente pelas frações nacionais da burguesia residentes nos
dois polos do mercado mundial, isto é, embora existam pressões externas, é a dinâmica interna
de classes em cada região que forja aquela relação: a economia brasileira, por exemplo, se
enlaça de forma subordinada na divisão internacional do trabalho pois as produções de açúcar,
café, borracha, etc., eram as mais rentáveis para aqueles que se apropriavam de mais-trabalho.
Portanto, foram ações individuais que geraram o efeito social não-teleológico de desenvolver
uma relação imperialista dentro do sistema de múltiplos Estados. O pressuposto para este
desenvolvimento, contudo, foi a violência extraeconômica como momento genético do
254
Engels, em nota de rodapé no Livro III de O Capital, também situa a década de 1840 como ponto de transição
entre a “fase infantil do mercado internacional” e uma fase madura (MARX, 2008, p. 646).
315
“entrelaçamento”, usando termos de Marx (2013, p. 832) já citados, “de todos os povos na rede
do mercado mundial”.
255
Cf. subseção 2.2.
316
Sendo assim, nos parece inequívoco associar essas violentas intervenções estatais, as quais
contaram com forte apoio estadunidense, com a necessidade (pelo menos retórica) de sustentar
a apropriação de mais-valor e, assim, reproduzir a relação imperialista.
Além de evitar a interrupção da relação imperialista, como nos casos listados
anteriormente, a violência extraeconômica também pode exercer uma função direta como
conduto para a transferência internacional de valor. Marx elenca várias formas de expropriação
ao longo de O Capital, notadamente nos Livros I e III, que se coadunam com a interpretação
que estamos sugerindo. Por exemplo, ao comentar a atuação da Companhia Inglesa das Índias
Orientais, Marx (2013, p. 822, grifos nossos) comenta, no Capítulo XXIV do Livro I, que a
navegação costeira bem como o comércio interno na Índia “tornaram-se monopólio dos altos
funcionários da Companhia. Os monopólios de sal, ópio, bétel e outras mercadorias eram minas
inesgotáveis de riqueza. Os próprios funcionários fixavam os preços e espoliavam à vontade o
infeliz indiano”. A espoliação, neste caso, cruza transversalmente temas que tratamos nos
Capítulos Três e Quatro desta tese: a troca desigual e a renda de monopólio. Aqui, a espoliação
ou a expropriação decorre diretamente do preço de monopólio, gerando lucros para os
monopolistas, como se estes fossem “mais astutos que os alquimistas, criavam ouro do nada”
(MARX, 2013, p. 822).
Em outro exemplo de preço de monopólio espoliante, o qual também induz uma
transferência de valor dos indianos para os ingleses, Marx (2013, p. 823) comenta que “entre
1769 e 1770, os ingleses provocaram um surto de fome por meio da compra de todo arroz e
pela recusa de revendê-lo, a não ser por preços fabulosos”. Nesse sentido, para retomar um
exemplo da seção anterior256, a Apple também espolia, assim como todos aqueles, cometendo
um truísmo, que fixam preços monopolistas espoliantes. Ou seja, o comércio também envolve
espoliação, expropriação.
Além da expropriação do produtor direto ou da população em geral, a expropriação
de capitalistas por capitalistas é uma decorrência lógica do desenvolvimento do sistema de
crédito. Marx expõe esse argumento pela primeira vez em O Capital no Capítulo XXIII do
Livro I e o desenvolve nos capítulos finais da Seção V do Livro III, na qual o objeto de estudo
passa a ser o sistema de crédito. No Capítulo XXIII do Livro I, a questão posta pelo autor é
desvendar as implicações da acumulação de capital e do consequente aumento de sua
composição orgânica “sobre o destino da classe trabalhadora” (2013, p. 689). Nesse percurso,
256
Cf. subseção 4.5.3 desta tese.
317
Marx (2013, p. 702) nota que o “barateamento das mercadorias” é o meio através do qual “a
luta concorrencial é travada”. Como o crescimento da produtividade “depende da escala da
produção”, segue que, enquanto tendência, “os capitais maiores derrotam [...] os menores”
(MARX, 2012, p. 702). Como resultado geral, a concorrência
[...] termina sempre com a ruína de muitos capitalistas menores, cujos capitais em
parte passam às mãos do vencedor, em parte se perdem. Abstraindo desse fato,
podemos dizer que, com a produção capitalista, constitui-se uma potência
inteiramente nova: o sistema de crédito, que em seus primórdios insinua-se
sorrateiramente como modesto auxílio da acumulação e, por meio de fios invisíveis,
conduz às mãos de capitalistas individuais e associados recursos monetários que se
encontram dispersos pela superfície da sociedade em massas maiores ou menores, mas
logo se converte numa arma nova e temível na luta concorrencial e, por fim, num
gigantesco mecanismo social para a centralização dos capitais. (MARX, 2013, p.
702).
Duas observações parecem ser suficientes para sugerir a influência dessa passagem
em especial com as formulações marxistas clássicas sobre o imperialismo: (a) Engels interpõe
257
Desenvolvemos essa crítica à teoria de Lenin na subseção 2.1.2 desta tese.
318
uma nota de rodapé à quarta edição de O Capital, exatamente nesse trecho (após “... num único
capital individual”), afirmando que “Os mais recentes “trusts” ingleses e americanos já
apontam para esse objetivo [i.e., da centralização em um único capital individual], procurando
unificar numa grande sociedade por ações, dotada de um monopólio efetivo, ao menos todas
as grandes empresas ativas num ramo de negócios” (MARX, 2013, p. 702-703, grifos e
inserção nossos), ou seja, sugerindo que aquele “limite último” da centralização apontado por
Marx já estaria sendo materializado em trusts, num argumento e numa linguagem muito
parecidos com os levantados por Lenin. (b) Ao mesmo tempo, a expressão “limite último” usada
por Marx é evidentemente parecida com “último estágio”, ou “estágio superior”, usado por
Lenin em O imperialismo. Considerando-se ainda que o critério usado por Lenin para periodizar
o capitalismo em dois estágios distintos é o grau de monopolização (capitalismo monopolista
versus capitalismo concorrencial) e que o contexto dessa expressão de Marx refere-se
exatamente à dinâmica de “energia do movimento centralizador” posta pela acumulação, nos
parece muito plausível sugerir que a concepção equivocada de Lenin sobre a concorrência possa
ter sido influenciada por essa passagem combinada de Marx e Engels.
É importante ressaltar que Marx não está sugerindo uma periodização do
capitalismo com base no grau de monopolização. Apenas constata, na passagem citada
anteriormente, que o “limite último” da centralização é a reunião de todo o capital social nas
mãos um capitalista ou uma sociedade de capitalistas. O único tipo de periodização ao qual
Marx se refere é a distinção histórica entre “indústria moderna”, ou seja, grande indústria, e
“infância da produção capitalista” (2013, p. 708). Nesse ínterim, o autor faz uma observação
(apenas na edição francesa de O Capital258) sobre as transformações qualitativas na composição
do capital, indicando que a peculiaridade da “indústria moderna” – a “indústria mecanizada” –
coincide com a consolidação do “mercado universal”, decorrente da incorporação sucessiva “de
vastos territórios no Novo Mundo, na Ásia e na Austrália” (MARX, 2013, p. 709).
Como se retomando essas indicações de Marx, Engels adiciona uma nota de rodapé
no Capítulo XXX do Livro III onde menciona sobre a “fase infantil do mercado internacional”
e aponta, com acentos mais concretos, para a relação entre produtividade e mercado mundial:
“Na realidade, foi a expansão colossal dos meios de transporte e comunicações – navio a vapor,
ferrovias, telégrafo elétrico, canal de Suez – que estruturou o mercado mundial” (MARX, 2008,
258
Cf. Nota dos Editores Alemães da Marx-Engels-Werke disponível em Marx (2013, p. 709).
319
É curioso perceber que quando o Livro III entra na exposição sobre o sistema de
crédito, Engels interfere novamente na exposição. Desta vez, ele adiciona um parágrafo dentro
do Capítulo XXVII relacionando monopólio e concorrência e que é, uma vez mais,
impressionantemente parecido com a argumentação de Lenin em O imperialismo. No contexto
em que Marx (2008, p. 584-585) comenta sobre sociedades anônimas, o parágrafo introduzido
por Engels sugere que “novas formas de empresas industriais” surgiram desde a época em que
Marx redigiu seu texto, configurando-se em um desenvolvimento “à segunda ou à terceira
potência” das sociedades por ações cujo resultado foi a ampliação da produção tornando-a
descolada das necessidades de consumo. “E acresce”, continua Engels, “que cada país
industrial, com a política de proteção aduaneira, se isola dos demais e notadamente da
Inglaterra, ainda aumentando de modo artificial a capacidade interna de produção” (MARX,
2008, p. 584-585). Nos corolários desse argumento fica evidente a sugestão de Engels de que o
monopólio pode substituir a concorrência (e não a potencializar): “a liberdade de concorrência,
essa veneranda celebridade, já esgotou seus recursos, cabendo a ela mesma anunciar sua
manifesta e escandalosa falência. É o que evidencia o fato de se associarem, em cada país, os
grandes industriais de determinado ramo para construir cartel, destinado a regular a produção”,
formando-se, inclusive, cartéis internacionais. Engels exemplifica com um ramo de produção
química no qual a produção foi centralizada259 “em uma grande sociedade por ações com
direção única” (grifos do autor). Tomando esse caso como “a base de toda a indústria química”,
Engels conclui: “o monopólio na Inglaterra substitui a concorrência e prepara de maneira
alentadora a futura expropriação pela sociedade toda, pela nação” (MARX, 2008, p. 584-585,
grifos nossos).
259
No texto, Engels fala em “concentrada” ao invés de “centralizada”, mas optamos pela última expressão por
entendermos que ela é mais fiel com o que o autor está sugerindo.
320
Assim, este [i.e., o sistema de crédito] acelera o desenvolvimento material das forças
produtivas e a formação do mercado mundial, e levar até certo nível esses fatores,
bases materiais da nova forma de produção, é a tarefa histórica do modo capitalista de
produção. Ao mesmo tempo, o crédito acelera as erupções violentas dessa
contradição, as crises, e, em consequência, os elementos dissolventes do antigo modo
de produção. (MARX, 2008, p. 588, inserção nossa).
O sistema de crédito, portanto, tem dois papéis claros: por um lado, desenvolver
forças produtivas e formar o mercado mundial; por outro potencializar as crises. É interessante
perceber como a transição para novo modo de produção, tema destas páginas de O Capital, está
associada, em Marx, ao mercado mundial e às crises: estas alimentam uma possível dissolução
do modo de produção capitalista, que pode ser superado negativamente com a base mundial da
produção já instituída, indicando a natureza necessariamente mundial da revolução para Marx.
Cumpre notar que um pouco antes do aditivo de Engels ao Capítulo XXVII do Livro
III, Marx fala que o monopólio “reproduz nova aristocracia financeira [por receberem rendas],
nova espécie de parasitas” (2008, p. 585, grifos e inserção nossos), termos também muito
utilizados por Lenin. Adiante, no Capítulo XXXIII do mesmo livro, Marx (2008, p. 720) chama
os banqueiros de “classe de parasitas”.
Retomando o argumento central que estávamos desenvolvendo, da relação entre o
sistema de crédito e as expropriações, o papel do crédito é exposto de forma muito clara por
Marx da seguinte forma: “o crédito oferece ao capitalista particular, ou ao que passa por tal,
disposição livre, dentro de certos limites, de capital alheio e de propriedade alheia e, em
consequência, de trabalho alheio” (MARX, 2008, p. 585), o que potencializa a acumulação e
conduz “à centralização dos capitais e, em consequência, à expropriação na mais alta escala. A
expropriação agora vai além dos produtores diretos, estendendo-se aos próprios capitalistas
pequenos e médios” (MARX, 2008, p. 586).
Como o sistema de crédito é a base sobre a qual se desenvolve o capital fictício, o
desenvolvimento deste equivale à multiplicação de “riqueza imaginária” (MARX, 2008, p. 633)
321
O sr. Peel, lastima ele, levou consigo, da Inglaterra para o rio Swan, na Nova Holanda,
meios de subsistência e de produção num total de £50 mil. Ele foi tão cauteloso que
também levou consigo 3 mil pessoas da classe trabalhadora: homens, mulheres e
crianças. Quando chegaram ao lugar de destino, ‘o sr. Peel ficou sem nenhum criado
para fazer sua cama ou buscar-lhe água do rio’. Desditoso sr. Peel, que previu tudo,
menos a exportação das relações inglesas de produção para o rio Swan! (MARX,
2013, p. 836).
260
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I. Tradução de Rubens Enderle. Rio de Janeiro:
Boitempo, 2013. p. 835 et seq.
322
261
Cf. subseção 2.1.1
323
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
investimentos no exterior. Ademais, apontamos que o argumento dos autores para justificar
teoricamente a necessidade das exportações de capitais carregava duas imprecisões de caráter
mais teórico e uma de caráter mais empírico, sendo que esta equivalia à generalização
equivocada de certas características geograficamente particulares, como a categoria capital
financeiro de Hilferding.
Ao mesmo tempo, no que fica mais claro na abordagem de Lenin, eles assumiam
que a centralização dos capitais havia atingido determinado nível de tal maneira que havia
provocado um salto de qualidade no modo de produção em direção ao que ficou conhecido
como capitalismo monopolista, o qual implicava a autonomia dos preços em relação aos
valores, provocando a decomposição do capitalismo (por isso seria o “último estágio”) à medida
que “desaparecem até certo ponto as causas estimulantes do progresso técnico e, por
conseguinte, de todo o progresso” (LENIN, 2008, p. 101, grifos nossos). Usando termos de
Shaikh (1990, p. 166), é como se a lei do valor “se desvanecesse na história”. Mostramos que
essa perspectiva é estranha a Marx pois em sua teoria do valor o monopólio não anula a
concorrência nem o desenvolvimento das forças produtivas como seu efeito social não-
teleológico, pelo contrário, a potencializa. Entretanto, em determinados momentos de O
Capital, especialmente no Livro III, os quais listamos na Seção V, Engels interpõe notas
explicativas ou comentários que, de fato, sugerem uma relação antinômica entre monopólio e
concorrência e parecem alimentar a equivocada interpretação dessa questão.
Uma terceira imprecisão, também de caráter teórico, diz respeito à confusão sobre
o lugar no qual as leis de tendência desenvolvidas em O Capital são válidas. Como vimos, parte
do marxismo atribui o caráter inacabado do projeto de Marx ao fato dele não ter escrito os
últimos livros do famoso plano presente na Introdução aos Grundrisse, dentre os quais o que
versaria sobre o mercado mundial. Tal constatação levou essa parcela do marxismo a atribuir
um caráter “nacional” à lei do valor, como se ela fosse válida apenas em um sistema fechado,
o que, junto ao crescente protecionismo comercial da época, ajuda a entender por que o
comércio internacional não está presente nessa primeira fase das teorias sobre o imperialismo.
Pelo menos até a publicação de La ley de la acumulación y del derrumbe del sistema capitalista
de H. Grossmann em 1929, não temos conhecimento de teorias que associem diretamente o
comércio exterior ao imperialismo. Ou seja, parece que a leitura “nacional” de O Capital
conduziu aqueles que refletiam sobre as relações internacionais a aceitarem, implicitamente, a
teoria ricardiana do comércio; como se a teoria dos preços de Marx fosse incapaz de explicar a
dinâmica contida na circulação de mercadorias no mercado mundial.
325
ele rompe com suas formas embrionárias e assume a forma tipicamente capitalista. Neste
momento já é possível antever um ponto que destacamos nesta tese: as fases históricas do
imperialismo se distinguem como particulares conjuntos de formas de manifestação, e não
como a própria sucessão dessas formas singularmente observadas.
Isso se evidencia, por exemplo, no tema das expropriações. Reparemos que Marini,
por exemplo, não assegura que a “violência política e militar” desaparece, mas se torna
“supérflua” relativamente à intensificação de formas econômicas de manifestação do
imperialismo, as quais adquirem primazia com o desenvolvimento do mercado mundial.
Quando Rosa Luxemburgo em A acumulação do capital incluiu a interação entre formas sociais
capitalistas e não-capitalistas em sua teoria da reprodução do capital social, precisou pôr em
primeiro plano a necessidade das expropriações. Portanto, não é um atributo das teorias
contemporâneas a constatação do caráter imperialista das expropriações ou da violência
extraeconômica, embora, apenas na fase contemporânea, esse tema se desloque para o centro
das investigações; nos referimos aqui ao Novo-imperialismo de Harvey, ou, com influência mais
local, à tese do capital-imperialismo de Fontes. Se percebe que a ocupação militar para controle
das fontes de matéria-prima, de energia, etc., bem como as privatizações e espoliações do fundo
público através do que Arrizabalo Montoro (2014) chama de “universalização do ajuste
fundomonetarista” (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 543, tradução nossa), constituem
aspectos organicamente vinculados à reprodução do capital.
O motivo principal de termos percorrido as três ondas de teorizações sobre o
imperialismo foi tentar capturar o que há de comum entre elas. Abstraindo as diferenças, vimos
que o que se mantém é a transferência de valor. Recapitulemos rapidamente: o motivo dos
investimentos no exterior é, basicamente, como vimos na Seção IV, a apropriação de lucros
(comercial, de empresário e fictício), juros ou rendas de monopólio; o motivo do comércio
internacional é a realização do valor incorporado no capital-mercadoria, mas, como vimos na
Seção III, se estabelece através da troca um processo de apropriação de lucros extras e
superlucros; o motivo das expropriações, tema da Seção V, é, por um lado, manter em
funcionamento os condutos que garantem as transferências de valor pelos motivos listados
anteriormente e, por outro lado, efetivar concretamente a apropriação de valor baseada na força
extraeconômica. Portanto, no subterrâneo de todas as formas de manifestação do imperialismo
reside uma determinação oculta, invisível, essencial: a transferência internacional de valor.
Após a constatação do que é o imperialismo, a questão que se abriu para nós foi: o
que garante sua existência? Se, em essência, ele é transferência internacional de valor, qual é
327
sua gênese lógica e histórica? Recorrendo à teoria do valor de Marx, vimos que a condição de
existência mais geral para a transferência de valor é a existência de vários capitais com distintos
níveis de produtividade, os quais, quando se defrontam na concorrência através da circulação
dos capitais-mercadorias, ensejam a distinção entre produção e apropriação de valor. Valendo-
se da hipótese desenvolvida na Seção 1 segundo a qual as leis de tendência expostas em O
Capital estão erigidas sobre o mercado mundial, pudemos constatar que a instauração de um
desnível estrutural (não fortuito nem casual) de produtividade provoca necessariamente
transferência internacional de mais-valor quando o comércio envolve capitais cujos ciclos
produtivos transcorram em territórios nacionais distintos.
O argumento do parágrafo anterior é suficiente para explicar por que a troca
desigual através do comércio exterior é a forma de manifestação menos concreta de
imperialismo. São necessárias apenas duas determinações para existir: (a) capitais industriais
(b) com processos de trabalho executados sob bases técnicas distintas. Não nos parece
coincidência, portanto, que a primeira forma de imperialismo tipicamente capitalista a se
manifestar historicamente seja a troca desigual, o “imperialismo do livre-comércio”. As gêneses
lógica e histórica são, na verdade, a mesma coisa: o desnível estrutural de produtividade se
instaura com o advento da grande indústria e a constituição do mercado mundial enquanto tal;
a partir de então, o mercado mundial assume a forma histórica e social de imperialismo.
Se as expropriações, outra forma de manifestação do nosso objeto, também estão
presentes desde a gênese (lógica e histórica) do imperialismo capitalista, por que defendemos
que o advento da grande indústria (que garante a troca desigual) marca a data de nascimento do
imperialismo? Ora, as expropriações constituem seus traços trans-históricos, representam suas
formas pretéritas e contemporâneas, constituem, assim, o que há de natural no imperialismo, e,
por isso mesmo, tendem a ser subalternizadas à medida que o imperialismo se desenvolve.
Portanto, mesmo que as expropriações sejam formas de manifestação inclusive do imperialismo
capitalista, elas não nos auxiliam para delimitar a historicidade do objeto posto que são trans-
históricas.
O que deve ser notado é que as três formas de manifestação são imbricadas entre
si. Para que o comércio gere transferência de valor pressupõe-se concorrência, vários capitais,
portanto migração (exportação) de capitais. A distinção entre produção e apropriação decorre
basicamente da circunstância que a taxa média de lucro é real, é um fato incorporado
objetivamente por cada capitalista individual na sua prática cotidiana. Portanto, a troca desigual
via exportação e importação de mercadorias pressupõe a exportação de capitais. Ora,
328
mesma forma, por mais relevantes que sejam as disputas internas entre frações nacionais das
classes, é no terreno global que a decisiva luta de classes é travada.
331
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262
Parte desta lacuna foi preenchida por R. Carcanholo (1981), onde o autor examina a relação entre transferência
de valor e desenvolvimento do capitalismo no caso concreto da Costa Rica. Tendo em vista a estrutura produtiva
da economia costarriquenha, com forte peso do setor agrícola, a renda diferencial tem um papel especial em sua
análise, a qual, cumpre destacar, tem valiosos aportes metodológicos para a teoria marxista da dependência.
348
afirmado pelo próprio quando diz que “o preço dos cereais americanos regula o preço dos
ingleses” (MARX, 2008, p. 877)263. Em passagens como esta, se explicita aquilo que estamos
defendendo desde o começo: o argumento de O Capital se expõe no nível da totalidade, isto é,
do mercado mundial. Essa assertiva, em especial, sugere que a distribuição de valor através da
renda da terra é um processo de âmbito mundial: neste exemplo, proprietários de terras nos
Estados Unidos se apropriam de renda diferencial.
Em outro exemplo, em trecho do Capítulo XXXXIII não redigido por Marx, Engels
sugere que a “vitalidade dos grandes proprietários de terras se esgota pouco a pouco” (MARX,
2008, p. 965) graças à integração sob o mercado mundial:
263
Esta passagem, incorporada por Engels no corpo do texto, estava em nota de rodapé dos Manuscritos de 1864-
65. Cf. Marx (2015, p. 814).
349
264 Apesar de um dos propósitos do argumento de Kornblihtt ser criticar o pressuposto (e, portanto, os corolários)
da teoria marxista da dependência, especialmente materializada em Marini (2005), ele se confunde ao explicar o
sentido da troca desigual para Marini. Kornblihtt (2015, p. 5) fala da existência de diferentes variantes da tese da
transferência de valor e as resume da seguinte forma: “En general, esta posición se sostiene en que los países
periféricos exportan mercancías con bajos salarios e importan mercancías producidas con salarios normales o altos
(EMMANUEL, 1972) combinada con el intercambio de mercancías agrarias (con poco valor) por mercancías
industriales (supuestamente con mayor valor) (MARINI, 1973 [2005])”. O desconhecimento da obra de Marini
está em alegar que, para este, existiria troca desigual entre mercadorias agrárias e industriais, sendo que, na
verdade, a interpretação de Marini não está baseada no valor de uso, mas sim na composição orgânica do capital.
350
“se trata de ganancias que ceden los capitales estadounidenses a los capitales radicados en
Venezuela”. Ou seja, a renda petrolífera apropriada pelo Estado venezuelano é resultado de
transferência de valor desde os Estados Unidos.
Ademais, o que parece ser o aspecto decisivo da crítica de Carrera e Kornblihtt é o
entendimento segundo o qual os capitais industriais individuais em concorrência no mercado
mundial não se diferenciam qualitativamente, mas apenas do ponto de vista quantitativo, da
magnitude de capital adiantado por cada um, de forma que “a formação da taxa geral de lucro
realiza plenamente” a igualdade entre eles do ponto de vista da “capacidade de acumulação”:
Los capitales de los países que el propio capital social ha formado como proveedores
de materias primas pueden acumularse a la misma velocidad que el de los países
productores de mercancías en general. Aun en el supuesto de que hubiera una
diferencia sistemática en contra entre el valor y los precios de producción de las
mercancías exportadas desde un país, esa diferencia implicaría simplemente que la
clase obrera del mismo gasta una masa de trabajo social mayor a la materializada en
las mercancías importadas de igual precio de producción. Pero, a la acumulación de
capital, este mayor gasto le es por completo indiferente. (CARRERA, 2013, p. 170).
capitales que acumulan en determinado espacio nacional, resultado de una mayor tasa de
explotación, como una sangría a favor de los capitales imperialistas”.
Não é nosso propósito aqui fazer essa comparação empírica, até porque nos parece
bastante complicado efetuar essa mensuração considerando-se que as formas de transferência
de valor possuem distintos níveis de abstração. Mesmo que não seja possível medir diretamente
a transferência de valor em seus diversos níveis, é possível perceber sua influência e seus efeitos
sobre a estrutura social à qual ela interfere. Caligaris (2014, p. 67), por exemplo, compara as
perspectivas que enfatizam transferência de valor de fora para dentro das economias
dependentes via renda da terra com aquelas que destacam a transferência de valor de dentro
para fora via troca desigual:
Ocurre, en primer lugar, que esta posición [sobre a renda da terra] contradice
abiertamente a todas las explicaciones fundadas en cualquiera de teorías del
‘intercambio desigual’ entre los países, que precisamente ven en el intercambio
comercial entre los países un flujo de plusvalor en sentido inverso. Pero, además, esta
posición parece contradecir todas las apariencias que presentan países como la
Argentina. En efecto, lo que debería esperarse de un país hacia donde fluye
permanentemente desde el exterior una masa de riqueza social no producida por sus
propios trabajadores es que tenga potenciada su economía nacional. Y, a la inversa, lo
que presentan países como la Argentina es una situación de crisis recurrentes, una
permanente menor productividad del trabajo del capital industrial, bajos salarios, una
masa de población superflua numerosa e históricamente creciente, etc.; en suma,
presentan un proceso nacional de acumulación de capital impotente para estar a la
vanguardia del desarrollo de las fuerzas productivas del trabajo social. (CALIGARIS,
2014, p. 67).
Caligaris faz uma consistente crítica às posições que sustentam que a renda da terra
é resultado do mais-valor produzido pelos trabalhadores empregados nos próprios ramos
agrícolas, o que o leva a concluir que o único caminho “consistente com os fundamentos da
crítica da economia política” (CALIGARIS, 2014, p. 78) é aquele segundo o qual a renda da
terra é oriunda dos consumidores dos produtos agrícolas. Portanto, ela é uma transferência de
valor de fora para dentro. Apesar de constatar a contradição entre essa “massa de mais-valor
produzido no exterior e uma economia manifestamente limitada” (CALIGARIS, 2014, p. 78),
o autor não se pergunta se a existência de outras formas de transferência de valor em direção
contrária pode ajudar a dirimir tal contradição.
Por esse caminho, constatada a multilateralidade dos fluxos de valor, nos parece
que a realidade dos países dependentes em geral e latino-americana em particular, marcada pelo
pauperismo generalizado da força de trabalho, desigualdade social, etc. parece indicar a
352