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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA

LEONARDO DE MAGALHÃES LEITE

O CAPITAL NO MUNDO E O MUNDO DO CAPITAL:


uma reinterpretação do imperialismo a partir da Teoria do Valor de Marx

Niterói (RJ)
2017
LEONARDO DE MAGALHÃES LEITE

O CAPITAL NO MUNDO E O MUNDO DO CAPITAL:


uma reinterpretação do imperialismo a partir da Teoria do Valor de Marx

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Economia, da Universidade Federal Fluminense
como parte dos requisitos para a obtenção do Grau de
Doutorado em Economia.

Orientador: Prof. Dr. Marcelo Dias Carcanholo

Niterói (RJ)
2017
i
L533 Leite, Leonardo de Magalhães
O capital no mundo e o mundo do capital : uma
reinterpretação do imperialismo a partir da teoria do
valor de Marx / Leonardo de Magalhães Leite;
orientador: Marcelo Dias Carcanholo -- Niterói, 2017.
352 f

Tese (Doutorado em Economia) – Universidade


Federal Fluminense, 2017.

1. Imperialismo 2. Mercado Mundial 3. Teoria do Valor


I.Carcanholo, Marcelo Dias II.Universidade Federal Fluminense.
Faculdade de Economia III. Título.

CDD330.122
ii
Para Marina, cuja chegada animou, com ternura e
afeto, a pesquisa que deu origem a esta tese.
iii
AGRADECIMENTOS

Agradeço profundamente, em primeiro lugar, à minha companheira Bianca P.


Lessa, cujo amor foi mais do que fundamental para que esta tese chegasse ao final. Toda a
preparação, pesquisa e redação desta tese, enfim, os prolongados momentos de autoexílio,
foram facilitados graças ao seu apoio. Agradeço também aos meus pais, Ana Rita e Aloysio, e
avós, Marisa e Jorge, permanentes portos seguros.

Ao orientador Marcelo D. Carcanholo, professor da mais profunda competência e


de seriedade inconfundível, responsável direto por limpar as trilhas que escolhemos percorrer,
agradeço pelos profícuos encontros e conversas, pela pronta disponibilidade em me orientar
muitas vezes à distância e por ter contribuído decisivamente com minha formação sobre a teoria
de Marx em diversos momentos de interlocução rigorosa e generosa.

Contribuição igualmente decisiva em minha formação teórica foi o contato com o


professor João Leonardo Medeiros, mediado, inicialmente, pelas aulas sobre O Capital, e
ampliado, na sequência, por uma contínua interlocução, motivos pelos quais também devo
agradecer-lhe. Ademais, agradeço também por sua detalhista crítica à esta tese.

À professora Sara Granemann e aos professores Mathias Luce e Hugo Corrêa, cujas
contribuições na banca de avaliação foram riquíssimas, agradeço-lhes imensamente. Mesmo
que parte das críticas não tive condições de incorporar nesta tese, as estou amadurecendo e
certamente as desenvolverei na continuação desta pesquisa. Ao professor Hugo, agradeço
também pela participação na banca de avaliação do projeto de tese e pelos inúmeros e
construtivos diálogos travados em eventos do NIEP-Marx. Outro professor igualmente
competente que ajudou a moldar os rumos desta pesquisa, tanto na avaliação do projeto quanto
em aulas nas quais tive o prazer de participar, e que também devo um agradecimento especial,
é Alexis Saludjian.

Esta tese também é herdeira de debates oriundos de apresentações dos resultados


parciais da pesquisa em fóruns diversos, como os Encontros Nacionais de Economia Política
de 2014, 2015 e 2016 e os Colóquios Internacionais Marx e o Marxismo de 2013 e 2015. Além
desses eventos, algumas ideias da tese foram compartilhadas durante o Fórum-NIEP “Marx,

iv
imperialismo e crítica ontológica”, com o professor Rodrigo D. Monfardini, e em apresentação
em disciplina da professora Daniela Franco. Agradeço aos participantes de todos esses
momentos. Ao amigo Rodrigo, à Mariana Braz e à Aline Silva devo agradecer-lhes ainda pela
prazerosa e fraternal companhia em Campos dos Goytacazes. À Maracajaro Mansor, com quem
dividi boa parte das viagens semanais Campos-Niterói durante os primeiros dois anos do
doutorado, momentos de franca troca de ideias, também fundamentais para esta pesquisa, e aos
demais companheiros do NIEP-Marx, dentre os quais Flávio Miranda e Patrick G. de Paula,
parceiros na pesquisa sobre mercado mundial e imperialismo, devo também uma profunda
gratidão pelos enriquecedores e estimulantes debates.

Agradeço também aos engajados estudantes do curso de Ciências Econômicas de


Campos, cujo contato e permanente interlocução foram estimulantes para esta pesquisa, assim
como aos professores do curso, especialmente Vanessa T. Lopes e Adriano V. Sampaio, que não
pouparam esforços no período em que me dediquei integralmente ao doutorado, e à amiga
Anelise Monteiro, que me apoiou na editoração e revisão técnica deste trabalho.

v
[Fausto e Wagner na cena Diante da porta da
cidade]
FAUSTO
Vês o cão nêgro ã êrrãr pêlo rêstolho ê sêãrã?

WAGNER
Hã têmpos jã o vi, não o julguêi dê montã.
[...]

FAUSTO
Vês como êm lãrgãs êspirãis nos rodã
E nos gãlopã pêrto ê mãis pêrto ãindã ã vistã?
E, cãso não mê iludã, brilhã-
Lhê um borbulhão dê fogo sobrê ã trilhã.

WAGNER
So vêjo um pêrro nêgro, um cão;
Dêvê sêr oticã ã ilusão.
[...]

FAUSTO
Rêstringê o círculo, êstã pêrto!

WAGNER
Pois vês! ê um cão, não ê nênhum fãntãsmã.
Hêsitã, rosnã, ãrrãstã-sê no chão,
Rãbêiã. Tudo isso hãbito do cão.

FAUSTO
Vêm pãrã cã! vêm têr conosco!

[Fausto e o cão na cena Quarto de trabalho]


FAUSTO
Mêu pêrro! quê ãlto ficã ê ênormê!
Quê violênto sê êrguê do chão!
Isto não ê ã formã dê um cão!
Quê ãssombrãção trouxê êu pãrã cãsã!

(Goêthê, J. W. Fausto: uma tragédia – Primeira parte.)

vi
Toda ciência seria supérflua se houvesse
coincidência imediata entre a aparência e a
essência das coisas.
(K. Mãrx, O Capital – Livro III)

vii
RESUMO

Procuramos defender a tese de que o imperialismo de nossos dias se manifesta sob várias
roupagens e que por trás de todas elas reside uma determinação invisível e essencial: a
transferência internacional de valor. Para chegar nessa caracterização, fizemos a releitura das
teorias sobre o imperialismo, o que nos permitiu constatar que seu desenvolvimento (das
teorias) ocorre em ondas, as quais se diferenciam entre si pela centralidade atribuída em cada
período histórico a um ou outro aspecto do objeto. A partir dessa constatação, sugerimos que
as metamorfoses da teoria refletem as transformações do objeto, conduzindo à conclusão de
que o imperialismo é multifacetado, ou seja, se apresenta historicamente de acordo com
determinados conjuntos de formas que funcionam como condutos para a transferência
internacional de valor. Após entender o que é o imperialismo, a segunda parte da tese consistiu
em reconstituí-lo partindo de sua determinação mais abstrata até as formas mais concretas, cujo
propósito foi capturar quais são as condições lógicas e históricas que garantem sua existência.
Demonstramos que, para ele existir, a condição mais simples é que existam capitais em
concorrência com níveis distintos de produtividade, que, em termos históricos, equivale ao
período que se abre com o advento da grande indústria e a constituição do mercado mundial
enquanto tal. Com isso, defendemos que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado
mundial na época capitalista.

Palavras chave: Imperialismo. Mercado Mundial. Teoria do Valor.

viii
ABSTRACT

We seek to demonstrate that manifestation of contemporary imperialism occurs in various


forms and that behind them lies an invisible, essential determination: international value
transfer. To reach this characterization, we studied theories about imperialism and we verified
that their development (of theories) occurs in waves, which one distinguishes itself from the
other by the centrality attributed in each historical period to one or another aspect of the object.
Then we suggest that the metamorphoses within the theory reflects the transformations of the
object, which led us to the conclusion that imperialism is a multi-sided aspect of reality, which
presents itself according to specific sets of forms that works as vehicles for the international
value transfer. Therefore, after recognise what is the imperialism, in the second part of the thesis
we reconstitute it from its most abstract determination to the most concrete forms, whose
purpose was to capture what are both its logical and historical existence conditions. We
demonstrate the existence of many capitals with different productivity levels is its simplest
existence condition, which, in historical terms, begins with the advent of modern industry and
the constitution of the world market as such. Then, we could argue that imperialism is the social
and historical form of the world market in the capitalist epoch.

Keywords: Imperialism. World Market. Value Theory.

ix
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Condições para a troca desigual: transformação de valores individuais em


valores sociais, preços de produção e preços de mercado ................................... 95

Figura 2 – As três formas do ciclo do capital industrial ..................................................... 140

Figura 3 – Ciclo do capital-mercadoria .............................................................................. 152

Figura 4 – Efeitos da concorrência dentro do ramo de produção sobre a taxa de lucro ..... 221

Figura 5 – Estrutura de custo no setor A (condições de produção homogêneas) ............... 223

Figura 6 – Estrutura de custo no setor B (agricultura ou mineração) ................................. 224

Figura 7 – Estrutura de custo no setor C (novas tecnologias versus antigas) ..................... 225

Figura 8 – Efeitos da concorrência entre ramos de produção sobre as taxas de lucro........ 225

Figura 9 – Concorrência e diversidade nas taxas de lucro entre nações ............................. 226

Figura 10 – Movimento do dinheiro como capital portador de juros ................................... 251

x
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Transformação de valores em preços de produção (modelo 1, com taxas de


mais-valor iguais) .................................................................................................. 79

Tabela 2 – Transformação de valores em preços de produção (modelo 2, com taxas de


mais-valor distintas)............................................................................................... 79

Tabela 3 – Transformação de valores em preços de produção com mobilidade


internacional de capital (modelo que Mandel classifica como irreal) ................... 90

Tabela 4 – Transformação de valores em preços de produção com imperfeita


mobilidade internacional de capital (crítica à Mandel) ......................................... 91

Tabela 5 – Diferenças entre taxas de lucro entre capitais com distintas taxas de mais-
valor ..................................................................................................................... 152

Tabela 6 – Formação da taxa média de lucro (sem depreciação do capital fixo) .................. 208

Tabela 7 – Formação da taxa média de lucro (com depreciação do capital fixo) .................. 210

Tabela 8 – Formação da taxa média de lucro e desvio do preço em relação ao valor ........... 211

Tabela 9 – Formação da renda absoluta ................................................................................. 279

xi
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................... 15

PARTE I – EM DEFESA DE UMA REINTERPRETAÇÃO DO


IMPERIALISMO ..................................................................................................... 23
1 IMPERIALISMO E MERCADO MUNDIAL: UMA RELAÇÃO DE
FORMA E CONTEÚDO ......................................................................................... 24
1.1 SOBRE OS PARES DIALÉTICOS CONTEÚDO/FORMA E
ESSÊNCIA/APARÊNCIA ......................................................................................... 24
1.2 O LUGAR DO MERCADO MUNDIAL NOS NÍVEIS DE ABSTRAÇÃO DE
O CAPITAL ............................................................................................................... 33
1.2.1 Dinheiro mundial: o mercado mundial como ponto de partida do Livro I ........ 36
1.2.2 Acumulação do capital: o mercado mundial como ponto de chegada do
Livro I ........................................................................................................................ 44
1.3 IMPERIALISMO: FORMA SOCIAL E HISTÓRICA DO MERCADO
MUNDIAL ................................................................................................................. 49
2 IMPERIALISMO: ESSÊNCIA E APARÊNCIA .................................................. 57
2.1 FORMAS E METAMORFOSES DO IMPERIALISMO E O
DESENVOLVIMENTO DAS TEORIAS.................................................................. 57
2.1.1 Transferência de riquezas como a concepção trans-histórica de
imperialismo.............................................................................................................. 57
2.1.2 A teoria clássica do imperialismo e a exportação de capitais ............................... 61
2.1.2.1 Uma metamorfose no imperialismo e o caminho rumo à segunda fase das teorias
a seu respeito .............................................................................................................. 72
2.1.3 Teoria marxista da dependência e a troca desigual .............................................. 77
2.1.3.1 As teorias da troca desigual ....................................................................................... 77
2.1.3.2 A teoria marxista da dependência .............................................................................. 98
2.1.4 Teoria contemporânea do imperialismo e a redescoberta da acumulação
primitiva .................................................................................................................. 110
2.1.5 Síntese das formas de imperialismo capitalista ................................................... 120
2.2 A ESSÊNCIA DO IMPERIALISMO CAPITALISTA............................................ 122

xii
2.3 A RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE ESSÊNCIA E APARÊNCIA DO
IMPERIALISMO ..................................................................................................... 134

PARTE II: POR UMA REINTERPRETAÇÃO DO IMPERIALISMO A


PARTIR DA TEORIA DO VALOR DE MARX ................................................. 139
3 IMPERIALISMO PELA VIA DO COMÉRCIO: TRANSFERÊNCIA DE
VALOR ATRAVÉS DA TROCA DESIGUAL ................................................... 140
3.1 CONCORRÊNCIA E SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL .... 140
3.2 O PROCESSO DE CIRCULAÇÃO DO CAPITAL E OS PRESSUPOSTOS
PARA O IMPERIALISMO PELA VIA DO COMÉRCIO...................................... 148
3.2.1 Condições objetivas para a troca desigual a partir do ciclo do capital-
mercadoria .............................................................................................................. 149
3.2.2 Possibilidade do imperialismo a partir da reprodução do capital social .......... 157
3.2.3 Repercussões da troca desigual sobre os ciclos dos capitais industriais
imperialistas e dependentes ................................................................................... 168
3.3 TROCA DESIGUAL DENTRO DE UM RAMO DE PRODUÇÃO ...................... 170
3.3.1 Valor individual e valor social ............................................................................... 170
3.3.2 Fundamentos lógicos da distinção entre valor individual e valor social ........... 177
3.3.3 Concorrência intrassetorial e transferência de valor no Livro I de
O Capital .................................................................................................................. 183
3.4 TROCA DESIGUAL ENTRE RAMOS DE PRODUÇÃO ..................................... 192
3.4.1 Da essência à aparência, ou do mais-valor ao lucro: a importante transição
entre níveis de abstração ........................................................................................ 193
3.4.2 Teoria dos preços de produção e a troca desigual entre ramos ......................... 201
3.4.2.1 Sobre o não-problema da transformação ................................................................ 215
3.4.3 Concorrência e a busca pelo superlucro no mercado mundial .......................... 217
4 IMPERIALISMO ATRAVÉS DOS INVESTIMENTOS:
TRANSFERÊNCIA DE VALOR PELA FRAGMENTAÇÃO DO MAIS-
VALOR EM LUCRO, JURO E RENDA ............................................................. 229
4.1 O QUE É “EXPORTAÇÃO DE CAPITAIS”? ........................................................ 229
4.2 LUCRO COMERCIAL: O IMPERIALISMO EM ATACADO ............................. 237
4.2.1 Funcionalidade e disfuncionalidade do capital comercial .................................. 237
4.2.2 Lucro comercial ...................................................................................................... 241

xiii
4.3 JURO E LUCRO DE EMPRESÁRIO: O PAR CATEGORIAL ADEQUADO
PARA INVESTIMENTO ESTRANGEIRO DIRETO E DÍVIDA EXTERNA ...... 250
4.3.1 Capital a juros: a forma irracional do capital ..................................................... 250
4.3.2 Capital-propriedade versus Capital-função: o enquadramento conceitual
da remessa de lucros e pagamento de juros ao exterior ..................................... 253
4.4 LUCRO FICTÍCIO: O IMPERIALISMO PARASITÁRIO .................................... 260
4.5 RENDAS DE PROPRIEDADE: IMPERIALISMO, MONOPÓLIOS E
MARCAS ................................................................................................................. 268
4.5.1 A teoria da renda diferencial em O Capital .......................................................... 268
4.5.2 A teoria da renda absoluta em O Capital ............................................................. 276
4.5.3 A renda monopolista como outra forma da renda absoluta............................... 281
5 A LÓGICA IMPERIALISTA DAS EXPROPRIAÇÕES: O LUGAR DA
VIOLÊNCIA EXTRAECONÔMICA .................................................................. 288
5.1 SOBRE A INCONTROLABILIDADE DO CAPITAL ........................................... 288
5.2 “ACUMULAÇÃO PRIMITIVA”, VIOLÊNCIA E ESTADO ................................ 293
5.3 IMPERIALISMO E O SISTEMA DE MÚLTIPLOS ESTADOS ........................... 304
5.4 EXPROPRIAÇÕES: O LADO PRIMITIVO DO IMPERIALISMO ...................... 312
5.4.1 Expropriações e a produção da relação imperialista .......................................... 313
5.4.2 Expropriações e a reprodução da relação imperialista ...................................... 315
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 323
REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 331
APÊNDICE A – Mercado mundial, renda da terra e a tentativa de rejeitar
a teoria marxista da dependência ......................................................................... 347

xiv
15

INTRODUÇÃO

A proposta desta tese é demonstrar como o imperialismo pode ser compreendido a


partir da relação dialética entre produção e apropriação de valores no mercado mundial. A
despeito da existência de formas embrionárias de mercado mundial que antecedem
historicamente o advento do modo de produção especificamente capitalista, entendemos que a
categoria mercado mundial, no sentido de Marx, refere-se à própria lei do valor em escala
mundial. Ou seja, como a sociabilidade no capitalismo se efetiva através das interações
mercantis, essa categoria expressa a totalidade das relações sociais tipicamente capitalistas, ou,
o que dá no mesmo, representa o capitalismo mundial, governado por suas leis gerais de
tendência determinadas, no maior nível de abstração, pela lei do valor.
Nossa hipótese abrange três proposições: (a) o imperialismo capitalista é a forma
histórica específica do mercado mundial, portanto decorre da operação da lei do valor em escala
mundial; (b) ele deve ser compreendido, enquanto um fato da realidade capitalista, a partir de
dois níveis básicos de abstração, os quais chamaremos de essência e aparência; e (c) a lei do
valor, como exposta por Marx em O Capital, é necessária para a formulação de uma teoria
sistemática do imperialismo que conecte suas duas dimensões. Defenderemos, então, que o
imperialismo integra as leis gerais de desenvolvimento do capitalismo e sua correta apreensão
teórica depende dos pares dialéticos conteúdo/forma e essência/aparência.
Em termos históricos, o mercado mundial embrionário, enquanto mero espaço de
trocas, existe desde muito antes do capitalismo. Seguindo o argumento de Marx e Engels no
Manifesto Comunista (2007)1, as Grandes Navegações “abriram um novo campo de ação à
burguesia emergente”, potencializando a dissolução da sociedade feudal, desenvolvendo uma
divisão internacional do trabalho polarizada entre metrópoles e colônias e preparando a criação
do mercado mundial pela grande indústria alguns séculos depois. Após a Revolução Industrial
na Inglaterra, abre-se o mercado mundial tipicamente capitalista: a burguesia “roubou da
indústria sua base nacional” (MARX; ENGELS, 2007, p. 43). Em decorrência da revolução na
produtividade do trabalho, forja-se, para usar um termo de Marx em O Capital (2013, p. 523),
uma “nova divisão internacional do trabalho” resultante da generalização da lei do valor em
escala mundial. Tentaremos defender que desse movimento nasce o imperialismo como a forma
social e histórica do mercado mundial na época capitalista.

1
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto Comunista. Tradução de Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 41 et
seq.
16

Enquanto um fato da realidade capitalista, o imperialismo tradicionalmente é


entendido através de inúmeros pontos de vista. Desde que o marxismo começou a teorizar sobre
ele, novas reflexões se sucedem paulatinamente iluminando este ou aquele aspecto do objeto.
Esse movimento teórico parece seguir o movimento do real: cada nova fase de desenvolvimento
capitalista é acompanhada por uma nova etapa na teorização do imperialismo. Por exemplo, a
era clássica do imperialismo engendrou um tipo específico de interpretação sobre ele. Após o
fim da Segunda Guerra Mundial e até a crise dos anos 1960 e 1970, novas especificidades do
imperialismo foram descobertas ou enfatizadas. O mesmo raciocínio se aplica à fase capitalista
demarcada pelo advento do neoliberalismo, onde, mais uma vez, aparece uma nova onda de
teorizações sobre o imperialismo. O fato de que a história das teorias seja impulsionada por
ondas parece sugerir que a história do objeto tenha pontos de inflexão bem determinados, os
quais antecedem e alimentam a formação das ondas de reflexão teórica.
A existência de uma sobreposição temporal de novas teorias sobre o imperialismo,
sendo que em cada fase desse desenvolvimento teórico se enfatiza um ou outro aspecto do
próprio imperialismo, sugere que o objeto se metamorfoseou ao longo do tempo. Isto é, cada
fase da teoria olha o imperialismo por um determinado prisma pois a própria realidade parece
estimular uma visão facetada sobre si própria. Como as facetas em destaque mudam ao longo
do tempo, a teoria acompanha esse movimento. Esse argumento foi sustentado por Harvey
(2005, p. 66, grifos nossos) quando ele afirma que a existência de uma “variedade de
representações da teoria marxista do imperialismo” é resultado da forma como estas várias
representações começam, isto é, “a partir da análise de situações históricas reais”. Partindo do
nível concreto, “cada representação talvez seja correta para seu lugar e tempo, mas cada uma
acaba considerando apenas uma ou duas facetas da própria teoria da acumulação de capital de
Marx como suporte”. Parece, portanto, que falta uma teoria do imperialismo derivada da teoria
do valor de Marx como um todo, e não de cada aspecto desta teoria.
De forma ainda exploratória, estamos sugerindo que o imperialismo continua sendo
uma lente útil ao marxismo para entender a realidade capitalista pois sua essência manteve-se
praticamente intacta ao longo do tempo. Para delimitar um pouco mais o argumento, é preciso
deixar claro que, mesmo considerando a existência de formas trans-históricas de imperialismo,
sempre que usarmos a expressão “imperialismo” estaremos designando o imperialismo
capitalista. Portanto, o imperialismo só pode ser compreendido levando-se em consideração sua
subordinação categorial ao capitalismo. Em outras palavras, uma condição necessária para
compreender as legalidades do primeiro é inseri-las dentro daquilo que explica o segundo.
17

Estamos de acordo com a tese de Corrêa (2012, p. 217), para o qual a “lei econômica do
movimento da sociedade moderna” a que Marx (2013, p. 79) se refere no prefácio da primeira
edição de O Capital é a lei do valor, na medida em que o valor, nos termos de Corrêa, “é a
própria expressão do caráter estranhado da sociabilidade humana na sociedade capitalista e que,
uma vez transubstanciado em capital, subjuga a humanidade a seus imperativos de expansão”.
O caminho da lei do valor ao imperialismo é, decerto, tortuoso. Enquanto o valor
situa-se em um nível elevado de abstração, o imperialismo é geralmente concebido no plano
fenomênico, de forma que é preciso uma série de mediações para estabelecer o vínculo de um
com o outro. Nosso procedimento, nesta tese, será percorrer dois movimentos simultâneos:
trazer a lei do valor do abstrato ao concreto e levar o imperialismo do concreto ao abstrato. Para
o primeiro movimento, iremos perseguir a lei do valor em O Capital desde o Livro I até o Livro
III, destacando os momentos em que se altera o nível de abstração – como da passagem do valor
individual ao valor social, deste ao preço de produção e ao preço de mercado; da fragmentação
do mais-valor global em lucro, juro e renda; e da introdução de determinações extraeconômicas.
Em cada mudança de nível abrem-se as possibilidades para o imperialismo através da distinção
entre produção e apropriação de valores. Ao mesmo tempo, esse próprio movimento engendrará
o segundo, qual seja, das possibilidades abstratas para as manifestações concretas do
imperialismo.
Se a lei do valor é a “lei econômica do movimento da sociedade moderna”, ela é a
lei do movimento do capitalismo. Logo, o imperialismo, a partir da lei do valor, só pode ser um
imperialismo de tipo capitalista. Na medida em que a sociedade capitalista possui uma dinâmica
“dominada por sua economia”, como diz Bonente (2016, p. 19), o desenvolvimento dessa forma
de sociedade significa “a operação das leis que emanam da organização própria da economia
regida pelo capital”, o que implica o reconhecimento de que o desenvolvimento do modo
capitalista de produção equivale a um processo de crescente dominação ontológica da economia
sobre as outras esferas da vida social. Do mesmo modo, o imperialismo capitalista está
envolvido em uma dinâmica histórica na qual suas formas econômicas tendem a predominar
sobre as formas extraeconômicas. A historiadora Ellen Wood, em O império do capital, parece
ser uma das poucas referências no marxismo a reconhecer e a aplicar essa concepção ontológica
de desenvolvimento no estudo do imperialismo. Como se percebendo a tensão criada pela
explicitação das formas tipicamente capitalistas, portanto econômicas, de imperialismo, diz a
autora:
18

Ainda não vimos uma teoria sistemática do imperialismo criada para um mundo em
que as relações internacionais sejam internas ao capitalismo e governadas por imperativos
capitalistas. Isso, ao menos em parte, é porque um mundo de capitalismo mais ou menos
universal, em que os imperativos desse sistema sejam um instrumento universal de dominação
imperial, é um desenvolvimento muito recente (Wood, 2014, p. 99).
Embora a falta de uma “teoria sistemática do imperialismo” para um mundo cada
vez mais governado pelas determinações puramente econômicas possa ser resultado de sua
gênese recente, como sugere a autora, nos parece que existe um outro fator que contribui com
esse vazio teórico. Como já dissemos, as teorias marxistas sobre o imperialismo se baseiam,
geralmente, em determinados recortes da teoria do valor adequados para compreender este ou
aquele fenômeno. Parte disso se deve a uma incompreensão muito difundida sobre a teoria de
Marx, a qual afiança que o mercado mundial não está no escopo de O Capital. Se esta percepção
fosse verdadeira, como alguns supõem, a teoria do valor seria adequada dentro de um sistema
teórico fechado, uma economia nacional. Se a teoria do valor não fosse capaz de explicar a
expansão desse sistema, também não serviria para explicar o imperialismo, de forma que
poderíamos retirar apenas insights de determinados aspectos de O Capital, como da tendência
à centralização, dos esquemas de reprodução do capital social, da formação dos preços de
produção, da análise do sistema de crédito e do capital fictício, da acumulação primitiva etc.,
mas nunca da integridade da lei do valor, a qual absorve todas essas questões.
A máxima pretensão que justifica nossa tese é mostrar que a lei do valor é
imprescindível para uma compreensão do imperialismo enquanto aspecto necessário da
realidade capitalista. Portanto, contribuir com o preenchimento do vazio teórico mencionado
anteriormente é o que mobilizou os esforços de pesquisa reunidos neste trabalho. Como o
chamamento de Wood à renovação da teoria do imperialismo foi feito em 2003, data da
publicação de Império do capital, seria injusto, por outro lado, desconsiderar que desde então
houve avanços relevantes na possibilidade de teorizar o imperialismo. Destaco, por ora, duas
grandes contribuições recentes no campo do marxismo. A primeira, de Callinicos (2009), escapa
do plano simplesmente fenomênico e desenvolve uma interpretação do imperialismo
considerando-o na interseção entre duas lógicas distintas: a econômica e a geopolítica. Apesar
de discordarmos da forma como o autor desenvolve a relação entre as duas esferas da vida
social, sua originalidade, compartilhada por Harvey (2003), trouxe para a reflexão a
necessidade de incorporar em um mesmo corpo teórico o econômico e o extraeconômico. Em
19

outros termos, essa abordagem revelou que a teorização de um objeto multifacetado deve ser
multidimensional.
No período recente ocorreram também novas publicações de cadernos de estudos
de Marx no âmbito da segunda edição histórico-crítica da Marx-Engels-Gesamtausgabe
(MEGA-2)2 que possibilitaram remover antigos nós que atavam as teorias do imperialismo.
Referimo-nos aqui à tese tradicional de Rosdolsky (2001), dentre outros, que sustentava,
conforme a famosa Introdução de 1857-58 de Marx, que o mercado mundial estava fora do
escopo de O Capital, já que o caráter inacabado da obra decorreria da não escrita dos últimos
livros da famosa sequência apresentada na Introdução, dentre os quais aquele sobre o mercado
mundial.
Tal concepção foi demonstrada errada apenas recentemente por Pradella (2015a)
através de sua pesquisa sobre os chamados cadernos de Londres (manuscritos de estudo de
Marx predominantemente sobre economia política e redigidos por ele próprio). A autora mostra
que as categorias esboçadas na Introdução de 1857-58, como Estado, mercado mundial e crises
já estão incorporadas no Livro I de O Capital: “a superação do plano de seis livros não envolveu
uma restrição do plano original ou uma desconsideração da esfera internacional, mas, ao invés
disso, uma integração mais sistemática da esfera internacional dentro da análise do capital”
(Pradella, 2015a, p. 128, tradução nossa3). O projeto de Marx, portanto, nos termos de Pradella
(2015a, p. 11), se traduz numa “crítica revolucionária do capitalismo como um sistema
imperialista”.
Quando constatamos que a leitura “nacional” de O Capital poderia estar
equivocada, percebemos que havia se aberto uma possibilidade real de reinterpretar o
imperialismo através da lei do valor em sua inteireza. Para tanto, nosso primeiro passo foi reler
as teorias mais difundidas sobre o imperialismo, quando então nos deparamos com divergências
entre elas que pareciam insolúveis pois cada uma parecia ser verdadeira num sentido restrito.
Nesse primeiro percurso, cujos resultados estão expostos na Parte I desta tese, partimos do

2
Hubmann (2012) oferece uma descrição histórica da MEGA-2 destacando o papel da “virada filológica” (p. 33)
ocorrida a partir de 1990. Para Bellofiore e Fineschi (2009, p. 1, tradução nossa), “a segunda edição da Marx-
Engels-Gesamtausgabe (MEGA), abre a possibilidade de um repensar radical, a partir de uma base filológica, o
pensamento de Marx na íntegra. [...] Um consenso crescente está se formando no debate contemporâneo,
especialmente na Alemanha: Marx foi amplamente lido através das lentes de Engels. Agora é possível ler Marx de
acordo com Marx”.
3
Por conveniência de estilo, lembraremos que a tradução é nossa sempre e apenas na primeira vez em que nos
referirmos a obras publicadas em língua estrangeira, o que é válido para Pradella (2015a) e todas as demais. Nos
casos em que as citações forem destacadas do texto, sempre lembraremos que se trata de tradução nossa, se for
este o caso.
20

truísmo segundo o qual a existência de várias leituras diferentes sobre o imperialismo sugere
que, por mais multifacetado que ele seja, ele continua sendo o imperialismo independentemente
do ângulo que o observe. Sendo assim, a primeira pergunta que norteou esta pesquisa foi a
seguinte: o que há de comum entre todas as teorias sobre o imperialismo? O desenvolvimento
da resposta nos permitiu perceber que a existência de diversas teorias reflete o fato de que ele
se apresenta no mundo das aparências sob várias roupagens, as quais chamamos de formas de
manifestação. Ao mesmo tempo, percebemos que por trás da aparência reside uma
determinação invisível, oculta, a qual chamamos de essência do imperialismo.
Após caracterizar o imperialismo através dessas duas dimensões (essência e
aparência), a questão que estimulou a segunda etapa desta pesquisa, exposta na Parte II, foi:
como reconstituir teoricamente os laços entre a essência e as distintas formas de manifestação?
Ou, em outras palavras, o que garante sua existência? Quais são as condições teóricas para que
o imperialismo exista enquanto um conjunto de manifestações reais e concretas de sua essência?
Em termos metodológicos, a primeira parte desta tese percorre o seguinte caminho.
Partindo da sugestão de Lukács (2012b, p. 300) de que a teoria é o “espelhamento de uma
realidade material que existe independentemente da consciência”, estudamos as teorias
socialmente mais relevantes sobre o imperialismo com a intencionalidade de capturar, através
delas, as formas de manifestação e a essência do imperialismo. Na sequência, no que constitui
a Parte II, tomamos a pista metodológica de Marx de reconstituir o real partindo do mais
abstrato e incorporando progressivamente determinações mais concretas de forma que, no final,
esperamos ter apontado para uma reconstituição teórica do imperialismo enquanto esfera
complexa da realidade social.
Do ponto de vista da organização em seções, operamos da seguinte forma. A Parte
I possui duas Seções. Na Seção 1, de caráter mais metodológico, apresentamos, inicialmente,
subseção 1.1, nosso entendimento sobre os pares categoriais forma/conteúdo e
aparência/essência. O propósito dessa exposição é desfazer eventuais confusões que possam
aparecer em virtude da utilização da palavra “forma” em dois sentidos distintos: o imperialismo
é a forma social e histórica do mercado mundial e, ao mesmo, possui variadas formas de
manifestação. Na sequência, subseção 1.2, desenvolvemos o argumento de Pradella (2013,
2015a) para demonstrar que o mercado mundial é pressuposto desde o Livro I de O Capital ao
mesmo tempo em que é continuamente posto como resultado da atuação da lei do valor. Por
fim, na subseção 1.3, defendemos que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado
mundial.
21

Na Seção 2, fazemos a releitura crítica das teorias do imperialismo na subseção 2.1,


mostrando que as três ondas de teorizações refletem transições entre fases históricas do objeto.
Argumentamos, então, que o imperialismo se manifesta basicamente de três formas diferentes
no plano fenomênico: através do comércio internacional, através dos investimentos no exterior
(de fábricas e máquinas a papéis e títulos diversos) e, finalmente, através de formas
extraeconômicas, como a pilhagem, expropriações, etc. Apesar das metamorfoses do
imperialismo, mostraremos na subseção 2.2 que uma determinação essencial permanece: a
transferência de valor. Finalmente, na subseção 2.3, examinamos a relação dialética entre
aparência e essência, em cujo argumento concluiremos que o elo entre lei do valor e
imperialismo não está na teoria das crises, como usualmente se supõe, mas na teoria da
concorrência, o que direcionará nossa exposição para a segunda parte da tese.
Dividimos a Parte II em três seções, nas quais deveremos reconstituir teoricamente
os elos entre teoria do valor e imperialismo. A Seção 3 está dedicada à forma de manifestação
mais abstrata do imperialismo, qual seja, o comércio exterior (troca desigual). Mostraremos, na
subseção 3.1, que a concorrência, assim como o mercado mundial, tem papel explanatório
crucial desde o Livro I de O Capital, de modo que desde o nível mais elevado de abstração já
é possível vislumbrar formas de imperialismo. Na subseção 3.2 examinaremos o processo de
circulação do capital para explicitar os pressupostos para a troca desigual bem como para
apontar as repercussões da troca desigual sobre os ciclos dos capitais. Defenderemos, na
subseção 3.3, que a concorrência dentro do ramo de produção gera transferência de valor entre
capitais de acordo com as diferenças de produtividade. Fechamos a Seção com a subseção 3.4,
na qual examinaremos a teoria dos preços de Marx para demonstrar as possibilidades de troca
desigual entre ramos de produção distintos.
Na Seção 4 nos deteremos sobre o processo de repartição do mais-valor total entre
diferentes tipos de capitais dando origem ao lucro, juro e renda. Nesse menor nível de abstração,
nosso foco será mostrar, mais uma vez, as condições sob as quais existe transferência de valor
e em que circunstâncias ela possibilita o imperialismo. Na subseção 4.1 faremos um
mapeamento dos diversos modos de exportação de capitais, incluindo elementos empíricos e
históricos para fundamentar as discussões seguintes. Na sequência, mostraremos que o lucro
comercial é uma forma de imperialismo (subseção 4.2), que pagamento de juros e repatriação
de lucros são formas derivadas da distinção qualitativa entre juro e lucro de empresário
(subseção 4.3), que o desenvolvimento de formas de capital fictício engendrou novas
possibilidades de imperialismo através dos lucros fictícios (subseção 4.4) e, finalmente, que o
22

poder de monopólio sobre terras, marcas, etc., também gera relações imperialistas (subseção
4.5). O argumento desta Seção nos levou a discutir, no Apêndice A, as críticas à teoria marxista
da dependência que se utilizam da teoria marxiana da renda da terra.
Finalmente, a Seção 5 será dedicada à análise dos processos de imperialismo que
extrapolam a lógica estritamente econômica. Tentaremos mostrar, na subseção 5.1, que o caráter
incontrolável do capital aponta para um expansionismo ilimitado, o qual se manifesta
concretamente com as expropriações. Defenderemos, na subseção 5.2, que a análise de Marx
das expropriações não se refere apenas à pré-história do capitalismo, mas que, pelo contrário,
elas são permanentes e foram utilizadas pelo autor como uma forma de incluir a violência estatal
dentro de sua teoria do valor. Na subseção 5.3 mostramos que não existe o capital assim como
não existe o Estado, mas sim os capitais e um sistema de múltiplos Estados, responsável pela
construção e reparação contínua dos condutos para a transferência de valor. Por fim, subseção
5.4, mostramos que além de sustentar os condutos para a transferência de valor, as
expropriações, em última instância a violência estatal, referem-se a processos de transferência
de valor e, portanto, produzem e reproduzem a relação imperialista.
Encerrando, seguirão algumas considerações finais.
23

PARTE I – Em defesa de uma reinterpretação do


imperialismo
24

1 IMPERIALISMO E MERCADO MUNDIAL: UMA RELAÇÃO DE FORMA E


CONTEÚDO

Como apresentado na Introdução, o argumento que será desenvolvido nesta tese


tentará mostrar que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado mundial na época
capitalista, sendo que ele se manifesta com variadas roupagens as quais ocultam sua essência.
Precisamos, de antemão, fazer uma breve consideração metodológica para precisar o sentido
que atribuímos aos termos conteúdo/forma e essência/aparência, tentando desmontar uma
confusão que possa ocorrer entre as expressões forma social e histórica e forma de
manifestação. Este é o objetivo da subseção 1.1. A partir da discussão do lugar da categoria
mercado mundial nos níveis de abstração de O Capital na segunda subseção desta seção (1.2),
tentaremos mostrar, na última subseção (1.3), que tal categoria é um conteúdo que se expressa
social e historicamente sob a forma de imperialismo na época capitalista.

1.1 SOBRE OS PARES DIALÉTICOS CONTEÚDO/FORMA E ESSÊNCIA/APARÊNCIA

A melhor forma de apreender o sentido marxiano de ambos os pares dialéticos é


recorrer à maneira como o próprio autor as utiliza em sua obra-prima publicada em 1867. Já no
primeiro capítulo de O Capital, Marx expõe o valor como forma social e histórica da riqueza,
a qual se apresenta no mundo das mercadorias em uma específica forma de manifestação. A
enorme complexidade deste capítulo engendrou à época de Marx – e em nossa época também
– várias interpretações equivocadas sobre a própria teoria do autor. Em uma tentativa de
responder às críticas infundadas dirigidas contra sua teoria por Adolf Wagner, Marx elabora um
pequeno texto que se tornou conhecido como Glosas marginais ao ‘Tratado de economia
política’ de Adolf Wagner no qual explicita, dentre outras coisas, algumas questões
metodológicas que se encontram implícitas na redação de O Capital, especialmente do primeiro
capítulo4.

4
O caráter metodológico desse escrito pode ser evidenciado pelo fato de que, conforme nota de fim n. 604 de
Marx-Engels Collected Works Vol. 24, a primeira tradução para o inglês de Glosas marginais... foi reunida em
uma coletânea de textos de Marx intitulada Texts on method (MARX, 2010e, p. 666).
25

Nesta obra, Marx enuncia que sua exposição não começa pelos conceitos, motivo
pelo qual ele não precisa fornecer um “conceito de valor”:

Eu parto da forma social mais simples em que se corporifica o produto do trabalho na


sociedade atual, que é a “mercadoria”. Analiso esta e o faço fixando-me, antes de
tudo, na forma sob a qual se apresenta. Descubro que a “mercadoria” é de uma parte,
em sua forma material, um objeto útil ou, noutros termos, um valor de uso, e de outra
parte, encarnação do valor de troca e, deste ponto de vista “valor de troca” ela mesma.
Continuo analisando o “valor de troca” e encontro que este não é mais do que uma
“forma de manifestar-se”, um modo especial de aparecer o valor contido na
mercadoria, em vista do que, procedo à análise deste último. Por isso digo
literalmente: “No começo deste capítulo dizíamos seguindo a forma de expressão
tradicional: a mercadoria é valor de uso e valor de troca. Em rigor, esta afirmação é
falsa. A mercadoria é valor de uso, objeto útil, e ‘valor’. A partir do momento em que
seu valor reveste uma forma própria de manifestar-se, distinta de sua forma natural,
a mercadoria revela este duplo aspecto seu”, etc. Como se vê, eu não divido o valor
de uso e valor de troca, como termos antitéticos em que se decompõe o abstrato, o
“valor”, apenas afirmo que, a forma social concreta do produto do trabalho, da
mercadoria, é por uma parte valor de uso e por outra parte “valor”, não valor de troca,
posto que este é uma simples forma de manifestar-se e não seu próprio conteúdo.
(MARX, 2011a, p. 174).

Podemos retirar várias lições dessa passagem. Em primeiro lugar, a mercadoria é


uma forma social do produto do trabalho que se apresenta socialmente sob uma forma
específica. Na interpretação de R. Carcanholo (2011b, p. 40), o produto do trabalho é uma
categoria geral, “adequada a qualquer forma histórica, a qualquer tipo de sociedade”, enquanto
a mercadoria “é uma categoria particular, exclusiva da sociedade mercantil”. Sendo constituída
de valor de uso e valor de troca, Marx descobre que este é a forma de manifestação do valor,
isto é, o valor é a essência que se apresenta no mundo das mercadorias, no nível dos fenômenos,
da aparência, como valor de troca. Do duplo caráter da mercadoria (do produto do trabalho ou
da riqueza na época capitalista) depreende-se que o valor de uso é trans-histórico, comum a
qualquer época social, e o valor é historicamente determinado, típico da sociedade capitalista.
Para R. Carcanholo (2011b, p. 41), a disjuntiva conteúdo/forma se origina dessa relação:

O valor de uso é uma dimensão da riqueza capitalista comum à riqueza em qualquer


época histórica, em qualquer tipo de sociedade. [...] Por isso, o valor de uso é o
conteúdo material da riqueza: ‘os valores de uso constituem o conteúdo material da
riqueza, qualquer que seja a sua forma social’. [...] No entanto, o valor, como
expressão nas coisas (nas mercadorias) das particulares relações mercantis de
produção, é a forma social e histórica da riqueza na época capitalista.
(CARCANHOLO, R., 2011b, p. 41).

Partindo dessa interpretação, iremos nos referir ao conteúdo como o que há de


comum entre várias formas históricas e a essência como a determinação de algo que precisa de
26

alguma mediação para ser desvelada, para aparecer na superfície fenomênica. Note-se que, por
essa formulação, conteúdo e essência podem se equivaler, isto é, a essência pode ser comum a
várias formas históricas, o que não significa, por outro lado, que se equivalham em qualquer
situação. É importante deixar isso claro pois outros autores apresentam concepções distintas da
que estamos empregando aqui. Dussel (2012)5 por exemplo, partindo dos Grundrisse, utiliza
como se fossem sinônimas as categorias conteúdo e essência.
O primeiro caderno do conjunto de manuscritos que se tornariam o que conhecemos
como Grundrisse começa com a exposição da “produção em geral”6. Ali, seguindo os termos
de Dussel (2012)7, há “uma descrição marxista da essência (que será depois aplicada n’O
Capital inclusive em sua terminologia)”. Captar a essência (ou o conteúdo da coisa) e isolá-la
abstratamente é o procedimento de Marx, seguindo Dussel, para contornar as robinsonadas da
economia política clássica que acaba por naturalizar a produção burguesa. “O caçador e o
pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo, pertencem às ilusões
desprovidas de fantasia das robinsonadas do século XVIII” (MARX, 2011b, p. 39).
Sabendo que o ato de produzir integra a vida social de todas as civilizações
humanas, no caminho para compreender a produção em geral deve-se “considerar a produção
em suas ‘notas’ ou ‘determinações essenciais’, abstratas, comuns a tudo aquilo que se denomina
produção – seja entre astecas, incas, egípcios, europeus ou latino-americanos” (DUSSEL, 2012,
p. 33). Portanto, a busca do que há de comum entre os diversos modos de produzir não se baseia
no resgaste da forma de produzir de um produtor supostamente aistórico, como o pescador
ricardiano, mas no que há de comum entre todas as formas historicamente determinadas de
produção.
No estudo da produção em geral, Marx encontra algumas determinações comuns a
todas as épocas da produção:

Um sujeito que produz, que trabalha (a humanidade); um objeto trabalhado, material


universal ou natureza; um instrumento com o qual se trabalha, ‘mesmo que este
instrumento seja apenas a mão’; um trabalho passado, acumulado [...]. Estas são as
determinações em geral, mais abstratas ou essenciais, de toda produção possível.
(DUSSEL, 2012, p. 34).

5
DUSSEL, E. A produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse. Tradução de José Paulo Netto. São
Paulo: Expressão Popular, 2012. p. 31 et. seq.
6
Cf. Marx (2011b, p. 39-44).
7
DUSSEL, E. A produção teórica de Marx: um comentário aos Grundrisse. Tradução de José Paulo Netto. São
Paulo: Expressão Popular, 2012. p. 31 et. seq.
27

Estas são, para Dussel (2012, p. 34), as determinações ou momentos essenciais da


produção, entendendo por determinações essenciais “aquelas comuns a todas as coisas que se
dizem ser as mesmas – ou das quais se diz que são o mesmo”. Entretanto, sendo rigoroso com
os termos – e, conforme discutimos anteriormente, entendendo a essência como a instância de
um fenômeno escondida por suas manifestações na aparência – a passagem de Dussel citada
neste parágrafo deveria ser uma definição de conteúdo e não de essência posto que o que há de
comum entre “todas as coisas que se dizem ser as mesmas” não necessariamente está velado,
oculto. Por exemplo, o valor de uso é comum a todas as épocas da produção e não é a essência
da riqueza, mas seu conteúdo, pois ele é imediatamente observável, não precisa de um terceiro
elemento para ser percebido. Continua Dussel:

Para Marx, pois, há um nível das notas ou determinações essenciais. As determinações


são, para Marx – assim como para Hegel –, o que para Aristóteles era definido como
a ‘forma’ (morfé): momento constitutivo essencial da coisa. A constituição essencial
ou real da coisa pode, por seu turno, ser abstraída ou separada para construir com ela
a essência conhecida ou ‘no cérebro’ da coisa mesmo. [...] Essas notas ou
determinações reais, essenciais, da coisa são abstraídas ou fixadas (fixiert) a fim de
serem pensadas (denkenlassen). (DUSSEL, 2012, p. 34, grifos do autor).

O argumento de Dussel aqui se desenvolve sobre um pressuposto verdadeiro: a


realidade é composta por vários níveis de determinação. A abstração permite que o nível das
determinações essenciais seja separado analiticamente. Invertendo a sentença anterior,
podemos dizer que a existência do nível das determinações essenciais implica que elas podem
ser abstraídas “a fim de serem pensadas”. É isso o que pretende Marx na Introdução de 1857-
58:

Por isso, quando se fala de produção, sempre se está falando de produção em um


determinado estágio de desenvolvimento social – da produção de indivíduos sociais.
Desse modo, poderia parecer que, para poder falar em produção em geral, deveríamos
seja seguir o processo histórico de desenvolvimento em suas distintas fases, seja
declarar por antecipação que consideramos uma determinada época histórica, por
exemplo, a moderna produção burguesa, que é de fato o nosso verdadeiro tema. No
entanto, todas as épocas da produção têm certas características em comum,
determinações em comum. A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração
razoável, na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum,
poupando-nos assim da repetição. Entretanto, esse Universal, ou o comum isolado
por comparação, é ele próprio algo multiplamente articulado, cindido em diferentes
determinações. Algumas determinações pertencem a todas as épocas; outras são
comuns apenas a algumas. [Certas] determinações serão comuns à época mais
moderna e à mais antiga. Nenhuma produção seria concebível sem elas; todavia, se as
línguas mais desenvolvidas têm leis e determinações em comum com as menos
desenvolvidas, a diferença desse universal e comum é precisamente o que constitui
seu desenvolvimento. As determinações que valem para a produção em geral têm de
ser corretamente isoladas de maneira que, além da unidade – decorrente do fato de
28

que o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mesmos –, não seja


esquecida a diferença esencial. (MARX, 2011b, p. 41, grifos nossos).

Essa longa citação revela como o procedimento abstrativo é necessário para isolar
o “elemento comum” descoberto através da comparação entre as diversas fases históricas da
produção, que é o centro das atenções de Marx nesse contexto. O que complica a captura desse
“elemento comum” é o fato dele ter diversas determinações que podem ser comuns em épocas
distintas. Deve-se levar isso em conta já que o objetivo de Marx é compreender a especificidade
da produção capitalista – que só pode ser atingido se a captura da “diferença essencial” for bem-
sucedida.
Como desenvolveremos nas seções seguintes, pretendemos, nesta seção, isolar a
determinação constitutiva, o conteúdo do imperialismo capitalista, isto é, o mercado mundial,
de suas formas históricas, sendo o imperialismo uma delas. Na seção seguinte tentaremos isolar
a determinação essencial do imperialismo capitalista de suas formas específicas de
manifestação ao longo do tempo. O seguinte raciocínio de Dussel é útil para nossos propósitos
(embora a ressalva sobre sua identificação entre essência e conteúdo deva ser mantida):

Momento essencial ou abstrato é, para Marx, o mesmo. Momento essencial ou


determinação comum ou geral (p. ex., o capital ‘em geral’) são idênticos. Trata-se,
pois, para poder fixar a essência de um fenômeno ou aparência, de abstrair as
determinações comuns a todos eles e articulá-los construtivamente – sabendo, sempre,
que o nível da abstração não é nível histórico-concreto do real. Isto não quer dizer
que o abstraído analiticamente seja irreal: mas não é real assim (em abstrato), mas em
concreto (sobredeterminado por muitas outras condições e variáveis do próprio
concreto). Além do mais, a essência se encontra num plano mais profundo, ao passo
que o que aparece (o fenômeno) é o superficial. (DUSSEL, 2012, p. 35, grifos do
autor).

A essência abstraída ou isolada dos fenômenos integra o real. Não enquanto tal, mas
apenas à medida que é necessária para compor um determinado aspecto da realidade em
conjunção com as instâncias mais concretas. Relacionando com nosso objeto de pesquisa, a
essência do imperialismo não pode se manifestar isoladamente. Ela precisa de mediações
concretas para se manifestar. Conforme os termos de Saad Filho (2011, p. 22, grifos do autor),
sendo a essência não-empírica, ela só pode ser revelada analiticamente: “a essência geralmente
existe nos fenômenos e através deles, e os fenômenos não são apenas a forma de manifestação
da essência, mas, mais precisamente, a sua forma de existência”.
A conclusão do raciocínio de Dussel de que “a essência se encontra num plano mais
profundo, ao passo que o que aparece (o fenômeno) é o superficial” nos leva a problematizar o
29

quanto a aparência mistifica a essência. A investigação científica que busca capturar a realidade
autêntica deve levar em consideração, nos termos de Lukács, que

Precisamente quando se trata das questões atinentes ao ser social, assume um papel
decisivo o problema ontológico da diferença, da oposição e da conexão entre
fenômeno e essência. Na vida cotidiana, os fenômenos frequentemente ocultam a
essência do seu próprio ser em lugar de iluminá-la. (LUKÁCS, 2012b, p. 294, grifos
nossos).

Para Arrizabalo Montoro (2014, p. 41-45, tradução nossa), como, na realidade, “os
fenômenos sempre estão em vias de converter-se em outros fenômenos”, a lógica dialética é
necessária como modo de pensar pois considera a realidade em seu “perpétuo devir”. Por outro
lado, a lógica formal pressupõe que a realidade é imóvel. Por isso, a debilidade do método
metafísico é conceber superficialmente a realidade, isto é, considerá-la apenas no nível dos
fenômenos. Nos termos do autor, esta debilidade é “concentrar o estudo na expressão
fenomênica dos fatos, ou seja, em suas expressões ou manifestações superficiais, sem
aprofundar nas suas causas e explicações, sem tratar de chegar em sua essência”
(ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 45).
Callinicos (2014, p. 148, tradução nossa) assegura que “aparências são
enganadoras, mas também são reais”. Nesta relação entre essência e aparência, o autor aponta
que Marx utiliza a distinção hegeliana entre Schein (essência ilusória) e Erscheinung
(aparência, fenômeno): a “essência se mostra ou aparece, mas ela permanece escondida sob um
véu de Schein”. Usando passagens de Hegel, Callinicos (2014, p. 148) reforça esse argumento:
a “essência deve aparecer”, “a essência ou a natureza de algo se manifesta essencialmente. A
essência é apenas uma essência em virtude de sua manifestação, e a manifestação é tão essencial
quanto a essência”.
Por exemplo, Marx usa essa distinção quando examina as categorias derivadas do
mais-valor, como lucro, renda e juros, que são “formas de aparência das relações de produção
capitalistas” (CALLINICOS, 2014, p. 149). Como estão na dimensão da aparência, são
enganadoras, por isso são representações ideológicas. Trata-se, segundo Callinicos (2014, p.
150), do “apogeu do fetichismo” mesmo tendo “realidade social”.
Nesse sentido,

[...] o movimento da externalização que O Capital percorre não é aquele da realidade


para a ilusão; ao invés disso, Marx busca reconstruir a lógica interna de uma realidade
que encoraja atores individuais a aceitar representações que obscurecem essa lógica.
(CALLINICOS, 2014, p. 151).
30

As categorias do nível da aparência são categorias ideológicas, isto é, que explicam


uma parte da realidade e obscurecem a outra. Por representarem uma explicação parcial do todo,
Callinicos (2014, p. 151) mostra que “é por isso que começar por essas representações é uma
catástrofe científica”. Trata-se do caso daqueles autores chamados por Marx de economistas
vulgares, cujo foco exclusivo de atenção concentra-se nos aspectos aparentes da realidade.
Nos termos de Lukács (2012b, p. 295-296), contra as “concepções e interpretações
absurdas do ponto de vista do ser, que se fecham nas formas fenomênicas e deixam inteiramente
de lado as conexões reais”, a estrutura interna das obras de Marx maduro correspondem a “uma
análise ontológico-filosófica da realidade em si que jamais vaga, mediante a autonomização de
suas abstrações, acima dos fenômenos operados”. Segundo o autor, “restaurar no pensamento a
realidade autêntica” é a concepção científica de Marx que funciona como “crítica ontológica a
algumas falsas representações” (LUKÁCS, 2012b, p. 295)8. Essa interpretação lukácsiana do
método de Marx se evidencia, em poucas palavras, na seguinte passagem do Capítulo XLVIII
do Livro III de O Capital citada por Lukács (LUKÁCS, 2012b, p. 294-295): “toda ciência seria
supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das coisas” (MARX,
2008, p. 1080).
A distinção desenvolvida no Livro III entre mais-valor e lucro esclarece um aspecto
da relação de determinação presente entre essência e aparência. A conclusão marxiana de que
o movimento dos valores governa a dinâmica dos preços de produção revela que a aparência é
determinada, através de várias mediações, pela essência. Para Callinicos (2014, p. 131), “o
significado da distinção entre valor e preço de produção é que ela permite um avanço no
entendimento de como a lei do valor governa os fenômenos concretos do mercado”.
Importante ter claro, seguindo Callinicos (2014, p. 131), que a distinção entre
abstrato e concreto na teoria de Marx não é uma distinção entre o conceito e a realidade que se
quer entender, mas uma distinção entre “diferentes níveis de um sistema de conceitos”. Nesses
termos, o concreto é o abstrato acrescido de mais determinações. Então, quando Callinicos
refere-se à estrutura de O Capital como coerente com um processo de externalização, não se

8
Monfardini (2015) demonstra que o procedimento crítico empregado por Marx em O Capital refere-se a essa
crítica ontológica citada por Lukács. Medeiros (2013, p. 77-78) resume o que é esse procedimento crítico: “A
crítica explanatória ou ontológica refere-se, na verdade, a um tríplice procedimento crítico: (a) a demonstração da
falsidade das crenças ou teorias criticadas; (b) a simultânea apresentação de uma explicação alternativa e mais
abrangente da causalidade de fenômenos anteriormente significados através das crenças ou teorias em questão; (c)
a indicação dos motivos reais que levam à produção e sustentação das concepções equivocadas, mistificadas e/ou
ilusórias e, ainda, das condições sociais que facultam a própria crítica”.
31

tratava de uma aproximação em direção ao real, uma aproximação ontológica, mas sim de uma
externalização conceitual, ou seja, epistemológica. Em termos sintéticos, não podemos tratar o
conteúdo do Livro III como mais ou menos próximo da realidade capitalista que os Livros I ou
II. Trata-se, por outro lado, de um nível com mais determinações e, em função da natureza do
objeto – uma sociedade mercantil baseada na propriedade privada dos meios de produção – as
novas determinações fenomênicas introduzem um véu cujo resultado é mistificar as relações
sociais essenciais.
Callinicos (2014, p. 132) argumenta que ser mais abstrato ou mais concreto não é
uma propriedade inerente aos conceitos, isto é, um conceito não é mais ou menos abstrato em
função de características imanentes a ele. O que define o grau de abstração de um determinado
conceito é o lugar que ele ocupa dentro do discurso teórico como um todo. Para ilustrar esse
ponto, o autor apresenta a distinção entre valor e preço de produção. Nos termos do autor, não
se trata de uma relação

[...] entre pensamento e realidade de tal forma que o abstrato (valor) forneça um
modelo teórico para a realidade concreta (preço de produção). Preço de produção é
(para usar o vocabulário da Introdução de 1857) um ‘concreto em pensamento’,
definido em termos do discurso teórico de O Capital e não em referência a uma
realidade além da teoria. Abstrato e concreto é uma questão do lugar que os conceitos
ocupam dentro deste discurso. (CALLINICOS, 2014, p. 132).

O processo abstrativo de determinar e isolar a essência das coisas para, a partir daí,
investigar as conexões e oposições entre essência e aparência, situa-se no quadro da
compreensão metodológica de Marx. Para Ilyenkov, a dialética materialista – o método
marxiano – considera a existência de um fato real e, então, “tem que voltar para identificar as
condições que tornam possível esse fato” (ILYENKOV9 apud SAAD FILHO, 2011, p. 27). Tal
compreensão ancora-se, sobretudo, na “exata separação entre a realidade existente em si como
processo e os caminhos de seu conhecimento” (LUKÁCS, 2012b, p. 288).
Para percorrer os caminhos do conhecimento da realidade, usando os termos de
Lukács citados acima, deve-se levar em consideração que a realidade está em permanente
movimento. Nos termos de E. F. S. Prado (2011, p. 15), “é preciso ver que a dialética quer
apreender as esferas do mundo em seu modo de devir, como incessante processualidade, ou
seja, como realidades que mudam por lógica própria, sem fixá-las como inertes e sem tratá-las

9
ILYENKOV, E. The Dialectics of the Abstract and the Concrete in Marx’s Capital. Moscou: Progress Publishers,
1982. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/ilyenkov/works/abstract/index.htm>. Acesso em: 10
ago. 2015. p. 282.
32

como meramente históricas”. Essa “incessante processualidade” implica que não é possível
conhecer um determinado estágio de desenvolvimento da realidade no momento em que ela
está nascendo, isto é, em seu processo genético, em sua gênese. Pelo contrário, é possível
conhecer este estágio apenas a partir de seus resultados, ou seja, a partir de formas mais
desenvolvidas. É o que diz Marx nos Grundrisse, citado por Lukács (2012b, p. 288), onde ele
conclui com uma famosa passagem:

A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da


produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a compreensão
de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações
de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e
elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não
superados, parte [que] nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas
etc. A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. (MARX,
2011, p. 58, grifos nossos).

Retornando à especificidade de nosso objeto, o imperialismo só é plenamente


compreensível na medida em que seu próprio desenvolvimento permite iluminar questões de
sua gênese e de seu próprio ser. Isto nos indica três questões que serão desenvolvidas na
sequência e na próxima seção: (a) As dificuldades do marxismo no começo do século XX em
apreender corretamente – em suas múltiplas dimensões – o imperialismo decorre do fato de
que, mais ou menos naquele momento histórico, supunha-se que o objeto começava a explicitar
sua existência. Em outras palavras, o hiato temporal entre o processo genético do imperialismo
e as tentativas de apreendê-lo teoricamente era muito curto. (b) O desenvolvimento histórico
do imperialismo abre paulatinamente novas manifestações fenomênicas que permitem o
desenvolvimento da apreensão teórica do objeto, isto é, surgem novas interpretações sobre o
imperialismo em função das transformações do próprio objeto. Essas transformações indicam
que apesar de o imperialismo ser uma forma histórica do mercado mundial (da lei do valor em
escala mundial), ele também tem uma historicidade dentro dele, ou seja, existem distintas
formas históricas de imperialismo cujas especificidades repousam na predominância
fenomênica de algumas formas de manifestação em relação a outras. (c) A explicitação de novas
manifestações fenomênicas facilita a comparação entre elas e permitem, através do
procedimento abstrativo, isolar suas determinações essenciais e comuns a todos os estágios de
desenvolvimento do imperialismo. Seguindo os termos utilizados anteriormente, a extensão do
hiato temporal entre gênese e apreensão teórica aumenta as chances de captar adequadamente
o objeto em suas múltiplas determinações.
33

1.2 O LUGAR DO MERCADO MUNDIAL NOS NÍVEIS DE ABSTRAÇÃO DE O


CAPITAL

Para defender a hipótese que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado


mundial na época capitalista, precisamos compreender qual o lugar dessa categoria em O
Capital. Em outros termos, o mercado mundial é um pressuposto, um corolário ou um
pressuposto e um corolário da exposição de Marx? A resposta a essa questão nos permitirá
perceber se as leis gerais de funcionamento do capitalismo como expostas em O Capital operam
mundialmente, mesmo com mediações, ou não. Com esse desenlace, poderemos compreender,
na subseção 1.3, o mercado mundial capitalista como o conteúdo que se apresenta histórica e
socialmente enquanto imperialismo.
O período de 1857 a 1867 é o mais fecundo do ponto de vista da investigação da
crítica da economia política de Marx (DEUS, 2010). Dussel (2012, p. 31) vai além e diz que
foram “os dez melhores anos de sua vida”. Antes da redação definitiva de O Capital houveram
três grandes esboços preparatórios que não chegaram a ser publicados por Marx: os Grundrisse,
de 1857-1858, os Manuscritos de 1861-1863 e os Manuscritos de 1863-186510. Os dois
primeiros seguiram o “plano primitivo da obra” exposto por Marx na famosa Introdução de
1857-58 e que começaria com o livro sobre o capital em geral e terminaria com o livro sobre
mercado mundial e crises (DUSSEL, 2012, p. 60-63). Em carta a Lassalle de 22 de fevereiro de
1858 – citada por Pradella (2015a, p. 160) em nota de rodapé – Marx apresenta seu plano de
seis livros: “1. Sobre o capital (contendo alguns capítulos introdutórios); 2. Sobre a propriedade
da terra; 3. Sobre o trabalho assalariado; 4. Sobre o Estado; 5. Comércio exterior; 6. Mercado
mundial” (MARX, 2010a, p. 270, tradução nossa).
Na medida em que “os planos são sempre formulados por ele de modo ex post, são
um resultado do material produzido, geralmente lançado no meio da redação” (DEUS, 2015, p.
939), nos parece razoável sustentar que os planos mais primitivos só podem ser encarados como
resultados teóricos da pesquisa naquele momento específico. Estamos sugerindo que o famoso
plano de seis livros pensado em 1858 representa um resultado em nível de desenvolvimento

10
No Brasil, a íntegra dos Grundrisse e partes dos Manuscritos de 1861-1863 foram traduzidos e publicados
recentemente (Cf. MARX, 2010f, 2011b). As Teorias da Mais-Valia e o Livro III de O Capital foram editados
através, respectivamente, dos Manuscritos de 1861-1863 e 1863-65. Um panorama da produção teórica de Marx
nesse período pode ser encontrado em Deus (2010, p. 9-13), Duayer (2011, p. 11-13), Dussel (2012, p. 13-27) e
Heinrich (2014a, p. 17-20).
34

ainda primitivo da crítica marxiana da economia política. De fato, Marx modificou esse plano
no terceiro esboço preparado em 1863-65. Agora a obra passaria a ser composta por três livros
teóricos (processo de produção do capital, processo de circulação do capital e o processo global
da produção capitalista) mais um sobre a história da teoria, como relata Rosdolsky:

O terceiro manuscrito de Marx, redigido em 1864-65 (manuscrito que serviu de base


para Engels organizar o terceiro tomo de O Capital), já não se refere a esses livros
[sobre Estado, comércio exterior e mercado mundial], relegando-os – pelo menos a
um deles, aquele sobre o mercado mundial – à ‘continuação que, no devido tempo,
daremos à obra’. (ROSDOLSKY, 2001, p. 27, inserção nossa).

Como esse novo plano foi, de fato, aquele que serviu de base à redação definitiva
de O Capital, Rosdolsky interpreta que os últimos temas do plano original – dentre os quais o
mercado mundial – na foram incluídos na redação final11. Esta interpretação, portanto, sugere
que O Capital considera uma economia fechada, sem relação com o externo, já que o mercado
mundial foi, supostamente, excluído da exposição feita por Marx12:

Por último, no que diz respeito aos livros IV, V e VI iniciais (sobre o Estado, o
comércio exterior e o mercado mundial), remetemos o leitor à passagem já citada do
terceiro tomo de O Capital, na qual Marx excluía do âmbito de investigações de O
Capital o problema das ‘conexões no mercado mundial’. (ROSDOLSKY, 2001, p.
36, grifos nossos).

Esse argumento parece levar em conta uma certa linearidade no tratamento dos
manuscritos antecedentes a O Capital. Mesmo considerando a mudança no plano de seis livros,
Rosdolsky continua a considerar as transformações que dariam origem ao formato definitivo de
O Capital à luz da Introdução de 1857-58, ou seja, do primeiro e primitivo esboço. Entretanto,
a totalidade dos escritos de Marx divulgados no âmbito da nova edição crítica da MEGA
permitiram a Heinrich (2009, p. 78-82) argumentar em outra direção. Para ele, durante 1863 e
1864, isto é, na redação do que conhecemos como Manuscritos de 1863-65, “um segundo
projeto de crítica nasceu, nomeado O Capital”, cuja característica fundamental que torna

11
J. A. Paula (2005, p. 53-54), por exemplo, sustenta a tese de Rosdolsky, aceitando que O Capital utiliza a
distinção entre “capital em geral” e “vários capitais”. Mostraremos na Seção Três desta tese que a concorrência,
ou seja, a existência de vários capitais, integra o argumento do Livro I desde o princípio.
12
Para Pradella (2013, p. 138-142), esta interpretação de O Capital baseada no “nacionalismo-metodológico” foi
bastante influente no período que estende da morte de Marx até a primeira guerra mundial, coincidente com o
nascimento das teorias clássicas do imperialismo. Para a autora, Lenin, em O desenvolvimento do capitalismo na
Rússia, e Rosa Luxemburgo, em A acumulação do capital, supõem que Marx analisa uma economia fechada,
isolada do resto do mundo, em O Capital. Discutiremos as implicações dessa interpretação na seção seguinte.
35

possível tratá-lo como um novo projeto, e não como uma continuação do projeto original, é a
supressão da análise do capital em geral:

Marx não apenas nunca mais mencionou o ‘capital em geral’, mas também evitou
dizer qualquer coisa sobre seu plano original de seis livros; em ‘O Capital’ ele apenas
menciona ‘investigações especiais’ que se encontram fora do escopo de ‘O Capital’.
Este escopo foi definido de forma a apresentar ‘a organização interna do modo de
produção capitalista, sua média ideal’. (HEINRICH, 2009, p. 81-2, tradução nossa)

A supressão da categoria capital em geral implica que Marx superou a distinção


entre capital e concorrência e, com isso, passou a incorporar na exposição do único livro
questões que seriam tratadas nos seis livros originalmente planejados (PRADELLA, 2015a, p.
132-133). Com essa alteração, Marx, em O Capital, desenvolve temas que seriam tratados nos
livros anteriormente planejados sobre Estado, comércio exterior e mercado mundial
(PRADELLA, 2015a, p. 153).
O debate sobre o lugar do mercado mundial na estrutura de O Capital remete-nos à
questão do próprio método de Marx. Callinicos (2014, p. 74, tradução nossa) sustenta a posição
de Heinrich, argumentando que O Capital não é “simplesmente a atualização do método
projetado no começo dos Grundrisse”. Nos termos de Heinrich (2009, p. 79), “o geralmente
citado ‘método de ascender do abstrato ao concreto’ é muito vago para descrever a maneira
complexa com a qual Marx na verdade argumenta no Livro I de O Capital mais ou menos 10
anos depois”.
Mesmo com a vagueza da descrição do método em 1857-58, a estrutura expositiva
de O Capital não deixa dúvidas de que Marx segue o método hegeliano de ascender do abstrato
ao concreto (CALLINICOS, 2014, p. 72)13, sendo que, no entanto, esse caminho não é linear.
Isto posto, a questão que nos interessa é se o mercado mundial já está contido nos níveis mais

13
A dicotomia usualmente difundida entre os métodos de pesquisa e de exposição é, para Callinicos (2014), errada.
Apoiando-se em argumentos de Ilyenkov (1982), Callinicos (2014, p. 74) mostra que o movimento em ambos os
métodos é a ascensão do abstrato ao concreto. Mandel (1985), por outro lado, sustenta que a exposição de Marx
segue o método do abstrato ao concreto, enquanto que a pesquisa seguiria o caminho oposto, isto é, dos elementos
mais concretos até os mais abstratos. Gontijo (2016) também defende a existência dessa dicotomia entre
investigação e exposição. Callinicos discorda desse ponto pois, se fosse verdadeira, os fatos, por si, seriam
suficientes para uma apreensão correta da realidade. O autor sustenta que “o escrutínio dos padrões empíricos é
realizado por Marx em paralelo à crítica de teorias pré-existentes”, cujo exemplo mais notável desse procedimento
seria o Manuscrito de 1861-63. Callinicos apoia-se em Ilyenkov (1982, p. 148, tradução nossa), para o qual a
“massa de experiências empíricas acumuladas socialmente” reduz-se a expressões abstratas em gráficos, tabelas,
livros, etc. O teórico, portanto, faz a análise crítica dessas abstrações “do ponto de vista da realidade como um
todo, em sua concretude” (Ilyenkov, 1982, loc. cit.). Ou seja, o método de pesquisa também é o método de ascender
do abstrato ao concreto. Não há, como sustentava Mandel, uma contradição entre métodos de pesquisa e de
exposição. Para uma exposição detalhada desse tema, ver Callinicos (2014, p. 73-75).
36

elevados de abstração de O Capital, ou se, ao contrário – como poderia sugerir a Introdução de


1857-58, sendo ele a instância mais concreta da realidade capitalista e considerando o caráter
inacabado da obra – a análise de Marx não atingiu o nível de concretude suficiente para integrar
o mercado mundial.
Para Pradella (2013, 2015a), uma interpretação correta de O Capital deve
considerar que o mercado mundial já está contido no nível de abstração do Livro I (e,
consequentemente, dos Livros II e III), motivo pelo qual devemos registrar que o argumento
que se segue é fortemente tributário da interpretação da autora.

1.2.1 Dinheiro mundial: o mercado mundial como ponto de partida do Livro I

Marx rejeitou a teoria quantitativa da moeda (TQM) nos primeiros cadernos escritos
em Londres em meados dos anos 1850. Isso significou, nos termos de Pradella (2015a)14, um
“turning point” no pensamento de Marx sobre o capitalismo, permitindo a ele superar a teoria
ricardiana do comércio internacional e, com isso, constatar que a lógica geral de
desenvolvimento do sistema é global, isto é, que o modo de produção capitalista deve ser
compreendido a partir da totalidade.
Essa crítica foi publicada por ele dentro da última seção do capítulo sobre o dinheiro
em sua obra Contribuição à crítica da economia política de 185915. Como Marx (1999)16 expõe,
a teoria quantitativa da moeda foi sustentada desde o século XVII por Hume e aperfeiçoada
com “verniz internacional” por Ricardo no século XIX (MARX, 1999, p. 175). Em síntese,
Hume concluía pela primazia do dinheiro (entendido como meio circulante) sobre o movimento
dos preços, ou, nos termos de Marx (1999, p. 166), que “a alta ou a baixa dos preços das
mercadorias depende da quantidade de dinheiro que circula”. Ricardo defendia que os
desequilíbrios no balanço de pagamentos seriam causados exclusivamente por fatores de
natureza monetária, isto é, ele negava decididamente que fatores reais poderiam determinar
esses desequilíbrios. Para ele, o movimento internacional de dinheiro teria o papel de equilibrar

14
PRADELLA, L. Globalisation and the critique of political economy: new insights from Marx’s writings.
London: Routledge, 2015a. p. 93 et seq.
15
Na edição brasileira que estamos seguindo, da coleção Os Economistas, essa obra foi intitulada Para a crítica
da economia política (MARX, 1999).
16
MARX, K. Para a crítica da economia política. Tradução de Edgard Malagodi. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
p. 162 et seq.
37

os valores das moedas nacionais e, portanto, de amenizar os desequilíbrios (PRADELLA,


2015a, p. 95-6; SHAIKH, 1990, p. 175-184).
Trabalhos empíricos de dois contemporâneos de Ricardo mais o trabalho teórico de
Sir James Steuart fomentaram a crítica de Marx. Os exercícios empíricos, feitos por Thomas
Tooke e William Blake17, mostravam que, dada uma quantidade estável de metais preciosos, a
variação nos preços causava variação na quantidade de dinheiro como meio de circulação; e
que por trás do movimento internacional de dinheiro estava o movimento internacional de
mercadorias. Na obra de Steuart18, conforme Marx, há a identificação de outras funções do
dinheiro além de meio circulante, como medida do valor, meio de compra e pagamento e
dinheiro mundial (CALLINICOS, 2014, p. 80-81; PRADELLA, 2015a, p. 95). Nos
comentários sobre esse autor, Marx aponta para a questão do mercado mundial que viria a ser
desenvolvida posteriormente em O Capital:

A moeda simbólica ou a moeda creditícia [...] podem substituir os metais preciosos


na circulação interna como meio de compra ou como meio de pagamento, mas não no
mercado mundial. As notas de papel são por isso o dinheiro da sociedade (money of
society), enquanto o ouro e a prata constituem o dinheiro mundial (money of the
world). (MARX, 1999, p. 169).

Baseado nestes autores críticos à TQM e em suas próprias observações, Marx


destaca o papel dos fatores reais, como variações na produtividade, na determinação dos preços.
Consequentemente, através da influência da produtividade sobre exportações e importações,
Marx percebeu o papel dos fatores reais sobre a balança comercial. Nos termos de Pradella
(2015a, p. 97), isso abriu caminho para Marx estudar, nos cadernos de Londres, “relações de
produção no nível internacional”.
O ponto central da rejeição marxiana à TQM é o reconhecimento de que o dinheiro
pode funcionar como meio de circulação e como meio de pagamento19, que abre as portas para
o entendimento do dinheiro como capital – isto é, como valor em permanente processo de
valorização – e engendra a possibilidade mais geral da crise, qual seja, aquela contida na
contradição entre mercadoria e dinheiro presente na circulação simples de mercadorias. Refuta-

17
Cf. Marx (1999, p. 178 et seq.); Pradella (2015a, p. 96-97).
18
Embora tenha sido lido por Adam Smith, Steuart “permaneceu relegado ao esquecimento como um ‘cão morto’”
(MARX, 1999, p. 170).
19
Nas palavras finais de sua exposição sobre a teoria do dinheiro de Ricardo, Marx conclui com o “dogma”
ricardiano de que “o dinheiro não é mais que moeda, por isso, a quantidade de ouro que existe em um país deve
entrar na circulação” (MARX, 1999, p. 177).
38

se, assim, a teoria da circulação de Ricardo e supera-se a abordagem nacional dos clássicos
(PRADELLA, 2015a, p. 94-98), como argumenta a autora na seguinte passagem:

Graças à sua crítica da teoria quantitativa da moeda, Marx pode superar a implícita
abordagem nacional dos clássicos e começar sua análise a partir da circulação geral
de mercadorias no mercado mundial (MEGA2 IV/8:326)20. Isto permitiu a ele
identificar o trabalho universal, abstrato, como a fonte do valor e isolar os fatores reais
operando sobre a balança comercial de um país, entendendo assim as causas
subjacentes de sua riqueza e seu poder relativos. Marx pode conceituar também a
dinâmica universalizante do capital e sua tendência à crise. (PRADELLA, 2015a, p.
98).

Para Pradella, portanto, superar a TQM permitiu a Marx entender a natureza global
do capitalismo, decorrente, em última instância, da natureza autoexpansiva do capital. É por
causa disso que ele “começa sua análise [em O Capital] a partir da circulação geral de
mercadorias no mercado mundial” – o que lhe permite identificar o trabalho abstrato como fonte
do valor e, portanto, entender as causas da riqueza relativa. A “tendência universalizante do
capital” implica que o limite da produção capitalista, portanto, não está na capacidade de
consumo doméstico, mas na capacidade de consumo mundial: Marx registra nos cadernos de
Londres que o comércio dentro da Inglaterra, por exemplo, é limitado pelo comércio entre
comerciantes e consumidores no mercado mundial (PRADELLA, 2015a, p. 98).
Antes de chegar à O Capital, é digno de nota destacar que a teoria do dinheiro nos
Grundrisse e nos Manuscritos de 1861-1863 aponta, também, para a questão do mercado
mundial. No Capítulo do dinheiro nos Grundrisse, Marx esboça uma estrutura que será repetida
na redação da versão definitiva do Capítulo III (“O dinheiro ou a circulação de mercadorias”)
de O Capital. Nos comentários de Dussel aos Grundrisse, ele resume o movimento de
construção da categoria dinheiro nesta obra:

A partir da circulação, fundada na produção, é possível definir as ‘funções’ do


dinheiro – como mercadoria, entre as mercadorias, que ‘mede’ o valor de outra
mercadoria; como ‘meio de circulação’. O dinheiro ‘como dinheiro’ aparece, em
troca, com diversos graus de autonomia em face das outras mercadorias, como
tesouro, como meio de pagamento, como moeda mundial. Na ‘moeda mundial’, o
dinheiro alcança a sua síntese: é ao mesmo tempo universal (mundial) sendo, no
entanto, uma moeda determinada (ouro ou prata). (DUSSEL, 2012, p. 104).

20
Referência da autora à página 326 da seção IV/8 da MEGA2, intitulada Exzerpte und Notizen (März bis Juni
1851) que, em tradução livre, seria Trechos e Notas (março a junho de 1851).
39

Se compararmos com a construção da categoria dinheiro em O Capital, veremos


exatamente a mesma sequência21: (a) dinheiro como medida dos valores, (b) dinheiro como
meio de circulação e (c) dinheiro como dinheiro, que, por sua vez, se abre em três
determinações: (c1) dinheiro como tesouro, (c2) dinheiro como meio de pagamento e (c3)
dinheiro como dinheiro mundial.
Portanto, entre o primeiro rascunho de O Capital de 1857-58 até sua publicação em
1867, a teoria do dinheiro mantém sua estrutura, isto é, os nexos entre as categorias
subordinadas ao dinheiro mantêm-se os mesmos. Isto indica como a pesquisa que resulta nos
Grundrisse, provavelmente oriunda de sua crítica à TQM, como apontara Pradella, já havia
adquirido certa maturidade. Nos escritos de 1857-58, Marx repercute a identidade entre
mercado mundial e totalidade em um dos últimos comentários no Capítulo do dinheiro:

Nessa primeira seção, em que são considerados valor de troca, dinheiro, preço, as
mercadorias sempre aparecem como dadas. A determinação formal é simples.
Sabemos que elas exprimem determinações da produção social, mas a própria
produção social é pressuposta. Mas elas não são postas nessa determinação. Dessa
maneira, a primeira troca aparece, na verdade, como troca exclusivamente do
supérfluo, que não submete nem determina a totalidade da produção. É o
excedente existente de uma produção global, que se situa fora do mundo dos valores
de troca. Da mesma forma, também na sociedade desenvolvida as coisas se
apresentam na superfície como mundo de mercadorias imediatamente existente. Mas
essa própria superfície aponta para além de si mesma, para as relações econômicas
que são postas como relações de produção. Por isso, a articulação interna da produção
constitui a segunda seção; sua síntese no Estado, a terceira; a relação internacional, a
quarta; o mercado mundial, a conclusão, em que a produção é posta como totalidade,
assim como cada um de seus momentos; na qual, porém, todas as contradições
simultaneamente entram em processo. O mercado mundial, portanto, constitui ao
mesmo tempo o pressuposto e o portador da totalidade. As crises são, nesse caso, a
indicação universal para além do pressuposto e o impulso para a adoção de uma nova
configuração histórica. (MARX, 2011b, p. 170-171, grifos nossos).

Nesta passagem, Marx está mostrando como a relação entre produção e troca é
distinta no capitalismo (isto é, “na sociedade desenvolvida”) em relação a uma sociedade em
que a produção não é destinada conscientemente para a troca. Isso é uma ilustração importante
para a forma como Marx rejeita a concepção de Ricardo de naturalizar, tornar aistóricas, as
relações sociais capitalistas. Trata-se de evidenciar que a superfície mercantil na sociedade
desenvolvida “aponta para além de si mesma, para as relações econômicas que são postas como
relações de produção”, para uma configuração onde a troca submete a totalidade da produção.

21
Cf. Marx (2013, p. 169-219).
40

Enquanto “portador da totalidade”, o mercado mundial expressa um todo caótico


de relações mercantis. Usando a interpretação de Lukács (2012b, p. 296-7) de que a totalidade
“constitui a reprodução ideal do realmente existente”, podemos conceituar o mercado mundial
como a expressão “do realmente existente”, isto é, como a expressão do modo capitalista de
produção e apropriação. Comparando com a concepção burguesa de economia, Lukács assevera
que o ponto de partida da concepção marxiana de ciência é a totalidade:

A economia marxiana, ao contrário [da ciência burguesa], parte sempre da totalidade


do ser social e volta a desembocar nessa totalidade. Como já expusemos, o tratamento
central e, sob certos aspectos, frequentemente imanente dos fenômenos econômicos
encontra seu fundamento no fato de que neles deve ser buscada e encontrada a força
motriz, em última análise, decisiva do desenvolvimento social em seu conjunto.
(LUKÁCS, 2012b, p. 291).

Há, aqui, duas constatações relevantes. Por um lado, a proposição de que o


tratamento central dos fenômenos econômicos decorre de seu papel decisivo no
“desenvolvimento social em seu conjunto”22 explica porque a lei do valor é a “lei de movimento
da sociedade moderna”. Por outro lado, se usarmos o indicativo de Lukács de que a crítica de
Marx parte conscientemente da totalidade do ser social, e considerando a identidade entre
totalidade e mercado mundial como apontada nos Grundrisse, podemos defender a tese de
Pradella (2015a) para a qual a crítica da economia política de Marx, materializada em O
Capital, toma o mercado mundial como lócus geral onde a exposição se desenvolve.
Não é por outro motivo, nos parece, que o objetivo da obra, como consta no
Prefácio da primeira edição do Livro I, é investigar “o modo de produção capitalista e suas
correspondentes relações de produção e de circulação” (MARX, 2013, p. 78). A exposição de
Marx, como se sabe, vai mostrar que o valor é o “sujeito automático” de um processo de
permanente autovalorização, num movimento no qual a riqueza sob a forma mercantil cresce
através de uma lógica autonomizada em relação aos seres humanos e, por isso mesmo,
estranhada (DUAYER; MEDEIROS, 2008, p. 156). Na circulação do dinheiro como capital, “o
valor passa constantemente de uma forma a outra, sem se perder nesse movimento, e, com isso,
transforma-se no sujeito automático do processo” (MARX, 2013, p. 229-230). Em outros
termos: “a circulação do dinheiro como capital é [...] um fim em si mesmo, pois a valorização

22
O termo desenvolvimento social deve ser entendido aqui como o “recuo das barreiras naturais” (Cf. Lukács,
2012b, p. 289, 319-320), ou seja, como a explicitação cada vez maior das determinações puramente sociais.
41

do valor existe apenas no interior desse movimento sempre renovado. O movimento do capital
é, por isso, desmedido” (MARX, 2013, p. 228).
Por isso, a lógica do capital se sobrepõe à lógica dos Estados-nacionais: o impulso
autoexpansivo do valor empurra o capital para fora de qualquer fronteira nacional 23. Sua
internacionalização, portanto, é um atributo imanente; e Marx (2013, p. 78) parece reconhecê-
lo quando toma a Inglaterra como sua “ilustração principal” em virtude de ser a “localização
clássica” deste modo de produção24.
Entender o mercado mundial como o momento onde a produção é subjugada à troca
permite compreendê-lo, também, como o momento onde a produção capitalista sobrepõe-se a
outros modos de produção, como Marx e Engels compreenderam desde o Manifesto comunista:
a pressão que a troca joga sobre os produtores impele-os ao aumento de produtividade25. O
comércio, portanto, é um pressuposto e um momento da produção: produz-se para a troca. Por
isso o valor não é criado na circulação, mas na produção, sendo a primeira um momento da
segunda (RUBIN, 1987, p. 166-167). O mercado mundial marca o momento onde esse processo
de valorização – de abstração do trabalho humano – se torna a norma das relações sociais, isto
é, o trabalho abstrato se sobrepõe universalmente ao trabalho concreto no âmbito do mercado
mundial.
Como o mercado mundial é o pressuposto para a abstração real do trabalho humano,
ele está pressuposto, abstraído de suas determinações mais concretas, desde o princípio de O
Capital. A rejeição de Marx à TQM o fez perceber a primazia histórica e conceitual do mercado
mundial dentro da teoria do valor trabalho: por um lado forneceu as condições materiais para a
acumulação de capital e, por outro, resulta da própria noção de estranhamento presente no
capital. Esta é uma constatação importante e necessária para o desenvolvimento de nosso
argumento. Devemos ressaltar, ademais, que a exposição de Marx se desenrola com o acréscimo
paulatino de novas determinações cada vez mais concretas que se articulam com os níveis mais
abstratos formando, em conjunto, a realidade capitalista. Nesse sentido, as abstrações das
determinações mais concretas não são de tipo idealista, mas materialista.
Seguindo em linhas gerais o argumento de Pradella (2015a, p. 153-154), a
conclusão obtida no parágrafo anterior explica porque o último item do último capítulo da

23
Desenvolveremos com mais detalhes esse ponto e o argumento do parágrafo anterior nas seções 5.1 e 5.2 desta
tese.
24
Cf. Miranda (2016) para uma oportuna análise através da lei do valor da relação entre o “caso clássico” e os
casos não-clássicos de desenvolvimento capitalista.
25
Na subseção 1.3 desenvolveremos essa questão.
42

primeira seção do Livro I é o dinheiro como dinheiro mundial26: ao representar a passagem


lógica do valor ao capital, a categoria dinheiro mundial explicita a importância do mercado
mundial que estava pressuposta desde o princípio. A autora, entretanto, não menciona o fato do
dinheiro como meio de pagamento, antes do dinheiro mundial, já conter, em germe, a
possibilidade do capital na medida em que ele contém a possibilidade do pagamento de juros
(MEDEIROS; LEITE, 2016): nos termos de Marx (2013, p. 208), quando o dinheiro opera
como meio de pagamento “o vendedor se torna credor, e o comprador, devedor”; e a categoria
capital está quase posta. De fato, sendo o dinheiro como dinheiro mundial a potencialização do
dinheiro como meio de pagamento, ou, em outros termos, “meio universal de pagamento”
(MARX, 2013, p. 217), o primeiro torna-se a categoria mais completa para anteceder
logicamente a categoria capital.
Sendo, por um lado, o valor a cristalização de trabalho humano abstrato,
caracterizando o capital como o valor que se autovaloriza e, por outro lado, sendo o dinheiro
mundial “a mercadoria cuja forma natural é, ao mesmo tempo, a forma imediatamente social
de efetivação do trabalho humano in abstracto” (MARX, 2013, p. 215), o papel do dinheiro
mundial é universalizar a possibilidade lógica e histórico-concreta do capital. Considerando o
dinheiro mundial como a mercadoria cuja “forma de existência torna-se adequada a seu
conceito” (MARX, 2013, p. 215), parece ficar claro que a análise do desdobramento da forma
de valor no primeiro capítulo de O Capital27 – desde a forma de valor simples até a forma-
dinheiro – pressupôs que a mercadoria-dinheiro elegida como tal fosse a mercadoria que assume
a função de dinheiro mundial. Conclui-se desse raciocínio que a análise das formas de valor foi
conduzida por Marx no nível de abstração do mercado mundial (e não no nível de uma
economia nacional qualquer). Se isto é verdade, o mesmo também é para a análise do conteúdo
de valor onde Marx desenvolve o duplo caráter do trabalho representado nas mercadorias28.
Esperamos demonstrar, assim, a assertiva de Pradella (2015a) segundo a qual a exposição em
O Capital parte do nível de abstração do mercado mundial, ainda que ele não esteja literalmente
ali com suas determinações concretas.
Tal raciocínio encontra suporte também nos Manuscritos de 1861-63. Há uma
passagem, citada em Pradella (2015a, p. 148), Callinicos (2014, p. 294) e Harvey (2005, p. 63),

26
Cf. Marx (2013, p. 215-219).
27
Cf. Marx (2013, p. 124-146).
28
Cf. Marx (2013, p. 119-124).
43

em que Marx afirma que o desenvolvimento do mercado mundial promove a transformação do


dinheiro em dinheiro mundial e do trabalho abstrato em trabalho social:

Se o trabalho excedente ou mais-valia se configurasse apenas em produto excedente


nacional, o aumento do valor pelo valor e em consequência a extorsão de trabalho
excedente encontrariam um limite na estreiteza, no reduzido elenco de valores de uso
em que se apresenta o valor do trabalho nacional. Mas é o comércio exterior que
desenvolve a verdadeira natureza do produto excedente como valor, ao fazer o
trabalho nele contido como trabalho social configurar-se numa série ilimitada de
diferentes valores de uso, e ao dar realmente sentido à riqueza abstrata.
[...]
Mas só o comércio exterior, a transformação do mercado em mercado mundial, faz o
dinheiro evolver para dinheiro mundial e o trabalho abstrato para trabalho social. A
riqueza abstrata, valor, dinheiro, e em consequência o trabalho abstrato desenvolvem-
se na medida em que o trabalho concreto se torna uma totalidade – que abrange o
mercado mundial – de maneiras diferentes de trabalho. A produção capitalista assenta
no valor ou na conversão do trabalho contido no produto, em trabalho social. Mas isso
só é possível na base do comércio exterior e do mercado mundial. E constitui
pressuposto e ao mesmo tempo resultado da produção capitalista. (MARX, 1980, p.
1302-1303)29.

A característica notável desta longa citação é a descrição de que como a produção


capitalista assenta-se sobre o trabalho social e o mercado mundial, este é, através da
universalização da produção capitalista, o responsável pela conformação do caráter social do
trabalho abstrato. Nos termos de Harvey (2005, p. 63), “a tendência do capitalismo, portanto, é
estabelecer um conjunto universal de valores, baseado no ‘trabalho social abstrato’, definido
numa escala global”. Assim, ele (o mercado mundial) torna-se pressuposto da produção
capitalista. Ao mesmo tempo, ele também é o resultado pois sua efetivação depende de um certo
nível de desenvolvimento das forças produtivas – cujo patamar só foi atingido graças à divisão
técnica do trabalho proporcionada pela grande indústria. Em outros termos, o desenvolvimento
do mercado (e do dinheiro) mundial é um pressuposto lógico e um resultado histórico do
capitalismo.

29
Essa passagem está inserida no Capítulo XXI das Teorias da mais-valia, em um contexto no qual Marx critica
um folheto anônimo publicado em 1821 que expõe uma posição baseada na teoria ricardiana mas que continha
“um avanço importante sobre Ricardo” (MARX, 1980, p. 1288), que era a vinculação direta entre mais-valor e
mais-trabalho (ou ‘trabalho excedente’ na tradução de Reginaldo Sant’Anna).
44

1.2.2 Acumulação do capital: o mercado mundial como ponto de chegada do Livro I

Além do argumento que vai da rejeição da teoria quantitativa da moeda até a teoria
do dinheiro em O Capital, há um segundo grande argumento para entender o lugar do mercado
mundial na obra-prima de Marx. Trata-se do grand finale do Livro I: sua teoria da acumulação
desenvolvida na Seção VII. Pradella (2013, p. 122, 2015a, p. 155) destaca a primeira nota de
rodapé do Capítulo XXII do Livro I (“Transformação de mais-valor em capital”) como o
momento em que Marx explicita o lugar do mercado mundial no nível de abstração em que a
exposição está situada. Marx literalmente escreve o seguinte:

Abstraímos, aqui, do comércio de exportação, por meio do qual uma nação pode
converter artigos de luxo em meios de produção ou de subsistência e vice-versa. Para
conceber o objeto da investigação em sua pureza, livre de circunstâncias acessórias
perturbadoras, temos de considerar, aqui, o mundo comercial como uma nação e
pressupor que a produção capitalista se consolidou em toda parte e apoderou-se de
todos os ramos industriais. (MARX, 2013, p. 656).

Com base nessa nota, devemos considerar que o processo de reprodução do capital
é analisado abstraindo o “comércio de exportação” e, portanto, concebendo “o mundo comercial
como uma nação”. De fato, Marx explicitamente expõe esse processo tomando por base o modo
de produção capitalista como um todo (ratificando, no final do livro, aquilo que havia posto no
Prefácio). Nos termos de Pradella (2015a, p. 147), esta abstração “é a única forma de conceituar
o mercado mundial, o qual inclui os mercados internos e externos de todas as nações
participantes dele”. Em outros termos, a interpretação de que Marx adota relações de produção
globais (e não nacionais) em sua teoria da reprodução pode ser ilustrada por uma passagem da
Crítica do programa de Gotha, escrito em 1875, onde Marx desafia a tese de que a classe
trabalhadora alemã deveria atuar “nos marcos do atual Estado nacional”:

Mas os próprios ‘marcos do atual Estado nacional’ do Império alemão, por exemplo,
situam-se, economicamente, ‘nos marcos do mercado mundial’ e, politicamente, ‘nos
marcos do sistema dos Estados’. Qualquer comerciante sabe que o comércio alemão
é, ao mesmo tempo, comércio exterior, e a grandeza do sr. Bismarck reside justamente
em sua forma de política internacional. (MARX, 2012, p. 35, grifos nossos)

A imediata identificação entre o comércio alemão e o comércio exterior significa


que a produção alemã é feita para a troca universal, para o comércio em geral, para o mercado
mundial. Ou seja, não é do interesse do capitalista conhecer quem está consumindo as
45

mercadorias produzidas pelos trabalhadores contratados por ele. Portanto, produção para a troca
é produção para o mercado mundial. O mercado mundial se constitui com a divisão técnica,
social e internacional do trabalho que coloca a troca, ou a produção para a venda, como o
“fundamento universal de todas as indústrias”. (MARX, 2011b, p. 435).
Se o escopo de O Capital – conforme a sugestão de Heinrich (2009, p. 81-82) – é a
exposição da “organização interna do modo de produção de capitalista”, a categoria mercado
mundial expressa o capitalismo em sua totalidade, como já identificado nos Grundrisse. À luz
desse entendimento, podemos voltar à nota de rodapé do Capítulo XXII de O Capital que
expressa o nível de abstração em que a exposição está sendo conduzida. Quando Marx (2013,
p. 656) pressupõe “que a produção capitalista se consolidou em toda parte e apoderou-se de
todos os ramos industriais”, ele está, conforme Pradella (2015a, p. 147-148), supondo a
imposição tendencial do modo de produção capitalista espacial e setorialmente, portanto
considerando a economia mundial enquanto totalidade a partir da “lógica geral de
desenvolvimento do sistema” já identificada nas seções precedentes do Livro I.
Marx havia desenvolvido parcialmente sua teoria da reprodução nos Manuscritos
de 1861-63. Nos termos de Pradella (2015a, p. 148), ele introduz “alguns elementos da análise
da reprodução ampliada, os quais desenvolveu mais tarde em O Capital no capítulo sobre a lei
geral da acumulação capitalista”. O resultado dessa análise é a percepção da tendência à
universalização do modo de produção capitalista, cujo ápice é a própria lei geral da acumulação
na medida em que ela implica a tendência à concentração, ou seja, a tendência ao “controle da
totalidade das esferas de produção” (PRADELLA, 2015a, p. 148) pelo capital. Nos termos de
Marx em O Capital: “A acumulação é a conquista do mundo da riqueza social. Juntamente com
a massa de material humano explorado, ela amplia o domínio direto e indireto do capitalista”
(MARX, 2013, p. 667-668).
Na Seção VII de O Capital, sobre o processo de acumulação, Marx expõe uma
descoberta fundamental desenvolvida, pela primeira vez, nos Manuscritos de 1861-1863
(PRADELLA, 2015a, p. 145-148): como a acumulação é um processo ininterrupto decorrente
da transformação de mais-valor em capital adicional e o mais-valor, conforme a exposição em
O Capital, “não contém um só átomo de valor que não derive de trabalho alheio não pago”
(MARX, 2013, p. 658), infere-se daí que o capital, depois de vários processos reprodutivos, é
inteiramente constituído por “trabalho alheio não pago”. Em síntese, a teoria da reprodução
desenvolvida em 1861-63 explicita um duplo movimento: a tendência expansionista do capital
46

e a tendência à universalização do trabalho. A conexão entre esse desenvolvimento e a análise


do valor em O Capital é descrita por Pradella (2015a, p. 148) da seguinte forma:

Uma vez que a produção capitalista assenta-se sobre a universalização do trabalho


incorporado na mercadoria, a análise de Marx da reprodução permitiu a ele
explicitamente começar sua exposição em O Capital a partir do duplo caráter do
trabalho contido na mercadoria, considerado como trabalho social, universal,
assumindo tal caráter progressivamente de acordo com a universalização do modo de
produção capitalista. (PRADELLA, 2015a, p. 148, tradução nossa).

O duplo caráter do trabalho explicita uma contradição fundamental entre trabalho


concreto e trabalho abstrato, tendo importância vital para a teoria do valor de Marx. Podemos
dizer, portanto, que a teoria do valor em O Capital pressupõe sua teoria da reprodução, sendo
esta desenvolvida pela primeira vez nos Manuscritos de 1861-63. Ao mesmo tempo, o oposto
também é verdadeiro: a teoria da reprodução pressupõe a teoria do valor, o que indica a
perspectiva de totalidade da obra. Como, por sua vez, o nível de abstração da teoria da
reprodução integra o mercado mundial, podemos concluir, mais uma vez, que a teoria do valor
de Marx também parte do mercado mundial como uma das abstrações necessárias para
desvendar a “lógica geral do desenvolvimento do sistema”. Em outras palavras, O Capital parte
da totalidade da economia mundial e não de um sistema nacional fechado.
Tomar o mercado mundial como pressuposto equivale a considerar, como o faz
Pradella (2013, 2015a), um sistema em permanente expansão (“ever-expanding system”). De
fato, as fronteiras do mercado mundial capitalista se afastam do centro junto com o
desenvolvimento da divisão técnica e social do trabalho, da cooperação, enfim, da própria
acumulação de capital. Para Pradella (2015a, p. 122), a crescente preocupação de Marx com a
acumulação em escala mundial, tal como expressa primeiramente nos cadernos de Londres, está
associada com uma “noção de revolução permanente em um plano genuinamente
internacional”.
De fato, é impossível desvincular a elaboração científica de Marx de sua atividade
política. A fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) no justo momento
em que Marx preparava a publicação do Livro de I de O Capital é sintomático a esse respeito.
Entre os dois campos de batalha – o científico e o político – havia uma complementariedade
muito bem registrada por J. A. Paula (2008):

Marx e Engels haviam previsto a internacionalização do capital no Manifesto


Comunista, de 1848, e ela, de fato, estava ocorrendo. Lançado no mundo, o capital
47

modernizava e submetia o que tocava. Internacionalizado o capital,


internacionalizaram-se a luta de classes, as contradições, os conflitos, os
compartilhamentos políticos e culturais. (PAULA, J. A., 2008, p. 232).

A intensidade das atividades de Marx na AIT, isto é, sua militância pela revolução
internacional (COGGIOLA, 2011, p. 169-170), são plenamente incorporadas no Livro I de O
Capital – revelando a complementariedade destacada anteriormente. A conclusão do Capítulo
XXIV (“A assim chamada acumulação primitiva”), como alerta Kohan (2003, p. 236-238), é
quase uma consigna política, uma “convocação à ação, à práxis, à revolução”:

A transformação da propriedade privada fragmentária, baseada no trabalho próprio


dos indivíduos, em propriedade capitalista, é, naturalmente, um processo
incomparavelmente mais prolongado, duro e dificultoso do que a transformação da
propriedade capitalista – já fundada, de fato, na organização social da produção – em
propriedade social. Lá, tratava-se da expropriação da massa do povo por poucos
usurpadores; aqui, trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do
povo. (MARX, 2013, p. 833, grifos nossos).

Os fragmentos reunidos na seção “Tendência histórica da acumulação capitalista”


do Capítulo XXIV seriam o fechamento previsto por Marx para seu livro, mas, em virtude da
censura, de acordo com Rubel (1970), o autor optou por incluir um capítulo adicional menos
político para fugir dos censores e ocultar ante os mesmos “as conclusões revolucionárias de sua
crítica da economia política” (RUBEL30 apud KOHAN, 2003, p. 238). Esta hipótese parece ser
bem plausível, ainda mais levando-se em consideração que o argumento do Capítulo XXV (“A
teoria moderna da colonização”) seria perfeitamente cabível como uma seção do Capítulo
XXIV.
Independentemente disso, o espírito do argumento final do Livro I, nos dois últimos
capítulos, demonstra franca e concretamente a natureza expansionista da sociabilidade
capitalista, materializada na expansão das fronteiras do mercado mundial: ao falar dos Estados
Unidos, por exemplo, Marx (2013, p. 844) assegura que “a produção capitalista avança ali a
passos de gigante”. Ora, o grau com o qual o capitalismo penetra em outras formações sociais
depende da velocidade com a qual se processam as expropriações. Ao tomá-las como ponto de
chegada do Livro I, nos parece que Marx confere um acento mais concreto ao mercado mundial
do que havia lhe conferido desde o Capítulo I. Na partida, tomava o mercado mundial como a
totalidade das relações mercantis, um todo caótico como já afirmamos, necessário logicamente

30
RUBEL, M. Karl Marx: ensayo de biografía intelectual. Buenos Aires: Paidós, 1970.
48

para a abstração real do trabalho humano. Agora, na chegada, essa totalidade se manifesta em
permanente expansão, em um movimento histórico dependente do ritmo das expropriações,
determinado em última instância pela violência estatal: “A violência é a parteira de toda
sociedade velha que está prenhe de uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência econômica”
(Marx, 2013, p. 821) 31.
Seja na partida ou na chegada, tentamos defender que o Livro I se desenvolve
necessariamente no nível de abstração do mercado mundial, entendido como a representação
total do modo capitalista de produção e apropriação. O que diferencia os dois momentos é a
quantidade de determinações que o tornam mais ou menos complexo: enquanto na partida ele
é um pressuposto abstratamente considerado, na chegada ele é posto como o resultado histórico-
concreto do espraiamento das relações de produção capitalistas.
Em síntese, Marx desafia a economia política clássica colocando em xeque suas
contradições, sendo a maior delas a aceitação conjunta da teoria do valor trabalho e da teoria
quantitativa da moeda. A rejeição de Marx desta última o faz perceber a primazia histórica e
conceitual do mercado mundial dentro da teoria do valor trabalho: por um lado forneceu as
condições materiais para a acumulação de capital e, por outro, resulta da própria noção de
estranhamento presente no capital. Como fica claro em O Capital, o estranhamento é uma peça
fundamental da teoria do valor trabalho marxiana e indica a tendência imanente do capital em
se auto expandir.
Em parte da seção seguinte iremos discutir as implicações para as teorias do
imperialismo de considerar, erroneamente, O Capital como uma obra com escopo nacional. No
restante da tese, tomaremos como pressuposto as conclusões obtidas nesta seção, que, por sua
importância, devem ser destacadas: (a) O mercado mundial é a totalidade do modo capitalista
de produção, o que significa que ele é muito mais do que a esfera da circulação de mercadorias
em escala mundial. Ele é a lei do valor em escala global, portanto o capital industrial (no sentido
marxiano) em escala mundial, enquanto uma unidade contraditória (entre economias
imperialistas e dependentes, como ficará claro na subseção seguinte e na próxima subseção).
Ele representa, portanto, a circulação do capital e não apenas das mercadorias. (b) A exposição
em O Capital está logicamente construída sobre o pressuposto do mercado mundial, tal como
o descrevemos anteriormente. Assim sendo, a lei geral da acumulação capitalista, a formação
da taxa média de lucro e a lei que descreve sua queda tendencial devem ser compreendidas em

31
Retomaremos esse tema na subseção 2.1.4 e na Seção Cinco desta tese.
49

termos mundiais. Isso significa dizer, por um lado, que a polarização crescente entre
acumulação de riqueza e pauperismo contida na lei geral abrange a totalidade do modo de
produção capitalista. Por outro lado, a transformação de valores individuais em valores sociais,
em preços de produção e em preços de mercado, como pressupõe a formação da taxa média de
lucro, também é perfilada em termos globais32. (c) Entendido dessa forma, o mercado mundial
necessariamente se manifesta como imperialismo capitalista. É o que tentaremos demonstrar na
próxima subseção.

1.3 IMPERIALISMO: FORMA SOCIAL E HISTÓRICA DO MERCADO MUNDIAL

Marx e Engels (2007, p. 41), no Manifesto comunista de 1848, não hesitam em


afirmar que “a grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da
América”. Há, portanto, dois eventos históricos – Grandes Navegações e Revolução Industrial
– que ajudam a delimitar a existência de um mercado mundial embrionário e do mercado
mundial propriamente dito, o qual imprime “um caráter cosmopolita à produção e ao consumo
em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela roubou da indústria sua base nacional”
(MARX; ENGELS, 2007, p. 43).
Em esparsos comentários em O Capital, Marx sugere a existência de fases pré-
capitalistas do mercado mundial, o que poderia contradizer a forma no singular com a qual ele
e Engels designam a criação do mercado mundial no Manifesto. No Livro III, por exemplo,
Marx (2008) fala em “expansão súbita” (p. 443), “criação” (p. 444), “revolução do mercado
mundial” (p. 788) e “mercado mundial moderno” (p. 890) resultante das “descobertas
geográficas” dos séculos XIV e XV, o que sugere que poderia haver um mercado mundial
antigo, enquanto mero espaço de trocas mercantis, que abarcasse o produto excedente de cada
comunidade. Com sua “expansão súbita”, ele muda de tamanho, por isso Marx o designa como
“novo mercado mundial” (MARX, 2008, p. 444), mas ainda é um mercado mundial
embrionário, em potência, pois apenas o desenvolvimento das forças produtivas através da
grande indústria capitalista seria capaz de explicitar “a verdadeira natureza do produto
excedente como valor” (MARX, 1980, p. 1302-1303)33, isto é, de conformar a produção

32
O exame minucioso da relação entre as leis de desenvolvimento do capitalismo e o imperialismo será feito na
Parte 2 desta tese.
33
Cf. subseção 1.2.1.
50

destinada para a troca no mercado mundial, o que lhe confere uma qualidade radicalmente
distinta e explica por que Marx e Engels, no Manifesto, o tratam no singular: “o mercado
mundial”.
A despeito do fato de que o Manifesto representa, nos termos de Hobsbawm (2011,
p. 105), “uma fase (relativamente imatura) da evolução do pensamento marxista” especialmente
nos aspectos de sua crítica da economia política, ele apresenta uma “formulação madura”
(HOBSBAWM, 2011, p. 105) da concepção materialista da história.

Em essência, essa análise [do Manifesto] era histórica. Seu cerne era a demonstração
do desenvolvimento histórico das sociedades, e, especificamente, da sociedade
burguesa, que substituiu as que tinha precedido, revolucionou o mundo e, por seu
turno, criou necessariamente as condições para a sua inevitável substituição.
(HOBSBAWM, 2011, p. 105, grifos nossos).

O desenvolvimento da sociedade burguesa, objeto da primeira parte do Manifesto,


caminha pari passu com o desenvolvimento do mercado mundial. Embora esse argumento já
se encontre em 1848, ele será destacado novamente por Marx em 1858, quando, em carta para
Engels, parcialmente citada por Pradella (2015a, p. 131), explicita a criação do mercado
mundial como a “verdadeira tarefa” da burguesia:

Não há como negar que a sociedade burguesa experimentou pela segunda vez seu
século XVI, um século XVI o qual, eu espero, soará como sua trombeta de morte
assim como o primeiro a conduziu ao mundo. A verdadeira tarefa da sociedade
burguesa é a criação do mercado mundial, ao menos em esboço, e da produção
baseada neste mercado. Como o mundo é redondo, a colonização da Califórnia e da
Austrália e a abertura da China e do Japão parecem ter completado esse proceso.
(MARX, 2010b, p. 346-347, tradução nossa, grifos nossos).

Desta importante passagem, se evidencia que a produção baseada na troca, isto é,


produção de mercadorias enquanto cristais de trabalho humano abstrato, depende da criação do
mercado mundial. No Livro III de O Capital, falando sobre o advento do modo capitalista de
produção, Marx (2008, p. 447, grifos nossos) destaca o caráter impessoal (e global) da troca:
“em vez de produzir para o comerciante individual, ou para determinados fregueses, o tecelão
produz agora para o mundo do comércio”. Portanto, retomamos, por outro caminho, uma
conclusão da subseção anterior, qual seja, que a produção capitalista é produção para o mercado
mundial: o mercado mundial é o capitalismo (em escala mundial). Disso se infere que a
expansão longitudinal do capitalismo equivale à expansão das fronteiras do mercado mundial
51

que passa a abarcar crescentemente todo o globo terrestre. Na mesma carta citada
anteriormente, Marx se refere em termos dinâmicos à sociedade burguesa:

Para nós, a questão difícil é esta: no Continente [europeu] a revolução é iminente e,


além disso, assumirá instantaneamente um caráter socialista. Ela não será
necessariamente esmagada neste pequeno canto da Terra, já que a sociedade burguesa
ainda está em movimento ascendente sobre uma área muito maior? (MARX, 2010b,
p. 346-347, tradução nossa, grifos do autor).

Desconsiderando as projeções políticas de Marx excessivamente otimistas, seu


texto deixa claro que enquanto a sociedade burguesa se espraia ao redor do mundo, o peso da
Europa, berço desta forma social, diminui relativamente. O “movimento ascendente” do
capitalismo significa que o mercado mundial não é estático; muito pelo contrário: a expansão
de suas fronteiras significa a expansão das relações sociais e de produção tipicamente
capitalistas.
Uma vez que a expansão longitudinal de um tipo de forma social (a sociedade
burguesa) se choca com outras formas sociais, precisamos compreender por qual motivo a
sociedade burguesa, usando uma expressão famosa do Manifesto, “cria um mundo à sua
imagem e semelhança” (MARX; ENGELS, 2007, p. 44), isto é, por qual motivo ela sai vitoriosa
no confronto com outras formas de sociabilidade. Já no panfleto de 1848, Marx e Engels
oferecem uma explicação inicial que será desenvolvida nos Grundrisse, nos Manuscritos de
1861-1863 e em O Capital. Em todos os momentos, a chave para compreender a expansão
capitalista é a mesma: a produtividade. No Manifesto, os autores dizem o seguinte:

Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante progresso


dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as
nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a
artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga à capitulação os
bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de ruína total, ela obriga
todas as nações a adotarem o modo burguês de produção, constrange-as a abraçar a
chamada civilização, isto é, a se tornarem burguesas. (MARX; ENGELS, 2007, p. 44,
grifos nossos).

A expansão geográfica do mercado mundial, por sua vez, significa a extensão das
distâncias percorridas pelo capital em seu ciclo. Isto equivale ao aumento do tempo de rotação,
“a menos que haja melhorias compensatórias na velocidade de circulação” (HARVEY, 2005, p.
50). O esforço para aumentar a velocidade de circulação é vital para evitar a redução da taxa
anual de mais-valor derivada do possível aumento do tempo de rotação. Nos Grundrisse, em
52

passagens parcialmente citadas por Harvey (2005, p. 50-51), Marx (2011, p. 444) argumenta
que “a própria distância espacial resolve-se em tempo; não depende, p.ex., da distância espacial
do mercado, mas da velocidade – o quantum de tempo em que se chega ao mercado”. Isto é,
para que a expansão das fronteiras do mercado mundial não reduza as taxas anuais de mais-
valor, a resposta capitalista é incrementar a produtividade: o tempo de circulação, como
corretamente enfatizado por Harvey, responde ao imperativo da acumulação. Nos termos de
Marx nos Grundrisse:

Assim, enquanto o capital, por um lado, tem de se empenhar para derrubar toda
barreira local do intercâmbio, i.e., da troca, para conquistar toda a Terra como seu
mercado, por outro, empenha-se para destruir o espaço por meio do tempo; i.e., para
reduzir a um mínimo o tempo que custa o movimento de um local a outro. Quanto
mais desenvolvido o capital, quanto mais distendido, portanto, o mercado em que
circula, tanto mais ele se empenha simultaneamente para uma maior expansão
espacial do mercado e para uma maior destruição do espaço pelo tempo. (MARX,
2011a, p. 445, grifos nossos).

A superação de “toda barreira local do intercâmbio” equivale à superação de toda


forma social não-capitalista, que se transforma assim em forma capitalista à medida que se
integra ao mercado mundial. Ademais, o que deve ser enfatizado aqui é que a destruição do
“espaço por meio do tempo” significa o incremento de produtividade nos setores ligados à
circulação. Um raciocínio parecido com esse é desenvolvido nos Manuscritos de 1861-63, onde
Marx articula a expansão do mercado mundial com uma noção primitiva de relação centro-
periferia:

Acresce por certo que há expansão permanente do mercado, e à medida que diminui
a duração do intervalo em que a mercadoria se encontra no mercado, aumenta o fluxo
no espaço, ou seja, o mercado se amplia no espaço, e um raio cada vez mais longo
delimita a periferia em relação ao centro da esfera de produção da mercadoria.
(MARX, 1980, p. 1335).

Ou seja, a expansão das fronteiras do mercado mundial dilata a distância centro-


periferia pois Marx está considerando que o “centro da esfera de produção” e a periferia (dos
mercados) estão cada vez mais longínquos. Parece que a utilização dos conceitos de centro e
periferia decorre de uma analogia geométrica, na qual a constituição de periferias ocorre com
o espraiamento do mercado mundial. Ainda não está explícito que o que difere essencialmente
o centro da periferia são níveis diferentes de produtividade.
53

Apenas em O Capital tal raciocínio encontra suporte efetivo, que começa a se


desenhar, entretanto, nos Manuscritos de 1861-1863 e especialmente no texto escrito entre
1863-4 que se tornou conhecido como Capítulo VI Inédito de O Capital. Ao desenvolver a
distinção entre os processos formais e reais de subsunção do trabalho ao capital, Marx (2004,
p. 92) indica expressamente que a produção do mais-valor relativo é a “expressão material [...]
da subsunção real do trabalho ao capital”, com a qual “efetua-se uma revolução total (que
prossegue e se repete continuamente) no próprio modo de produção, na produtividade do
trabalho e na relação entre capitalista e trabalhador” (MARX, 2004, p. 104-105) 34. O modo de
produção capitalista “agora se estrutura como um modo de produção sui generis”,
especificamente capitalista, o que equivale a dizer que a subsunção real serve de “base para o
desenvolvimento da relação capitalista” (MARX, 2004, p. 105). Nesse sentido, já é possível
antever que a subsunção real dota o capital das forças necessárias para a constituição do mundo
“à sua imagem e semelhança”. Embora não nesses termos, nos parece que é isso que Marx
aponta quando afirma que com a subsunção real do trabalho ao capital, “a produção capitalista
tende a conquistar todos os ramos industriais de que até ao momento ainda não se apoderou e
nos quais ainda (existe) a subsunção formal” (MARX, 2004, p. 105).
No Capítulo Maquinaria e grande indústria de O Capital, torna-se claro que a
existência de uma divisão internacional do trabalho decorre da produção mecanizada em grande
escala, ou seja, da subsunção real do trabalho ao capital, naqueles lugares nos quais o autor
chamou de “centro” nos Manuscritos de 1861-63:

Ao arruinar o produto artesanal desses mercados, a indústria mecanizada os


transforma compulsoriamente em campos de produção de sua matéria-prima. Assim,
por exemplo, as Índias Orientais foram obrigadas a produzir algodão, lã, cânhamo,
juta, anil etc. para a Grã-Bretanha. A constante “transformação em supranumerários”
dos trabalhadores nos países da grande indústria estimula de modo artificial a
emigração e a colonização de países estrangeiros, transformando-os em celeiros de
matérias-primas para a metrópole, como ocorreu com a Austrália, convertida num
centro de produção de lã. Cria-se, assim, uma nova divisão internacional do trabalho,
adequada às principais sedes da indústria mecanizada, divisão que transforma uma
parte do globo terrestre em campo de produção preferencialmente agrícola voltado
a suprir as necessidades de outro campo, preferencialmente industrial. Tal revolução
é acompanhada de profundas modificações na agricultura, das quais não nos
ocuparemos por ora. (MARX, 2013, p. 523, grifos nossos).

34
A citação literal dessa passagem conforme a edição portuguesa que estamos utilizando refere-se à palavra
“operário” no lugar de “trabalhador”. Fizemos a modificação pois julgamos ser o mais correto tendo em vista a
totalidade da obra de Marx e, especialmente, seguindo a tradução inglesa do Capítulo VI Inédito que utiliza a
palavra “worker” (MARX, 2010d, p. 439).
54

Não é casualidade que esta passagem esteja dentro da seção sobre a produção do
mais-valor relativo. É evidente, portanto, que o incremento de produtividade decorrente da
constituição da grande indústria teve um papel importante e fundamental na integração
produtiva internacional que baliza a formação do mercado mundial tal qual o conhecemos, isto
é, polarizado entre dois grandes territórios: centro e periferia. Decerto, a separação marxiana
entre campos de produção preferencialmente agrícola ou industrial tem como clivagem a
distinção entre os níveis de produtividade, pois só assim é possível “arruinar o produto
artesanal”. Marx retoma a tese do Manifesto, segundo a qual a “artilharia pesada” é
evidentemente municiada pelos incrementos de produtividade, no Livro III de O Capital
quando comenta sobre os “estúpidos” e “infames” experimentos econômicos britânicos na
Índia:

Na Índia, os ingleses como dominadores e proprietários de terras empregaram


conjuntamente a força política direta e o poder econômico para desagregar essas
pequenas comunidades econômicas. O comércio inglês só atua aí revolucionariamente
na medida em que destrói, com os preços baixos de suas mercadorias, a fiação e a
tecelagem, elementos antiquíssimos dessa unidade da produção industrial e agrícola,
e assim lacera as comunidades. (MARX, 2008, p. 445, grifos nossos) 35.

Esse comentário de Marx tem o propósito de reforçar a tese segundo a qual “a


necessidade imanente ao capitalismo de produzir em escala cada vez maior, leva à expansão
contínua do mercado mundial, de modo que não é o comércio que revoluciona constantemente
a indústria, mas o contrário” (MARX, 2008, p. 444). O mercado mundial possui fronteiras
fluidas que se deslocam de acordo com o ritmo da produção industrial, de forma que o
“capitalista industrial tem de estar sempre atento ao mercado mundial”; o produtor, quando se
torna comerciante, isto é, quando produz para a troca, o que só ocorre no modo de produção
especificamente capitalista, se torna dependente “de condições de produção oriundas do
mercado mundial” (MARX, 2008, p. 448). Nos Manuscritos de 1864-65, em trecho não
incluído por Engels na edição do Livro III de O Capital, Marx (2015, p. 442) ainda enfatiza,
entre parênteses, logo após mencionar o mercado mundial no final da oração anterior: “ao invés
de ser local ou nacional”.
Harvey (2005, p. 56-57) argumenta que embora a produtividade do trabalho se
apresente em níveis distintos de acordo com o lugar em que o trabalho é realizado, essas

35
Cf. Miranda (2016, p. 118) para um estudo mais sistemático sobre o verdadeiro sentido das controversas teses
de Marx sobre os efeitos do colonialismo britânico na Índia.
55

diferenças são “só possibilidades (e não imodificáveis)” pois a produtividade é um produto


histórico. Na época de Marx, a fronteira da inovação tecnológica estava na maquinaria aplicada
à produção em ramos fabris. Portanto, queremos enfatizar que não é o tipo de valor de uso
produzido que define se um determinado território está no grupo A ou B da divisão internacional
do trabalho, mas a forma como se produz esse determinado valor de uso, isto é, se com mais ou
menos capacidade produtiva. Embora exista uma certa coincidência empírica entre o tipo de
produto e o nível de produtividade, não é certo generalizar essa situação para não perder de
vista que o fundamental na posição ocupada por cada economia nacional dentro da divisão
internacional do trabalho é determinada pela produtividade média do capital (e não pelos tipos
de valores de uso produzidos).
A produção artesanal em ruínas é imediatamente substituída pela produção para o
mercado mundial, portanto, produção capitalista. Mesmo antes da disseminação histórica da
relação de assalariamento, as regiões nas quais as unidades produtivas produziam mercadorias
para o mercado mundial podem ser encaradas, como o faz Marx nos Manuscritos de 1861-63,
como formalmente capitalistas36. Em decorrência desse argumento, essas unidades produtivas
eram capitais e, como é de se esperar, operavam sob o jugo da lei do valor: através do acicate
da concorrência, a razão de ser dessas unidades produtivas passa a ser a busca ilimitada pelo
lucro, a forma de manifestação do mais-valor.
A proximidade histórica entre a Revolução Industrial e o processo de
descolonização americana transforma a velha subordinação colonial em uma nova
subordinação entre nações formalmente independentes. Agora, capitais espalhados em diversas
partes do mundo relacionando-se de forma mercantil integram-se a uma relação de concorrência
na qual os mais produtivos têm vantagens em relação aos demais. Isto potencializa a
acumulação de capital nas regiões que reúnem os capitais mais produtivos – pelos motivos que
veremos adiante –, fortalecendo uma polarização global entre duas regiões, as quais
designaremos por imperialistas e dependentes. Portanto, o mercado mundial (na época
capitalista) carrega necessariamente uma relação social entre capitais na qual a riqueza
subtraída de um polo alimenta o outro. Chamando essa relação social de imperialismo, torna-
se claro que é a forma social e histórica do mercado mundial na época capitalista.
Na seção seguinte, mostraremos porque, no meio de um sem-número de sentidos
atribuídos ao conceito imperialismo, julgamos que o correto é entende-lo conforme o parágrafo

36
Cf. Marx (1980, p. 729-730). Na seção seguinte retomaremos essa questão.
56

anterior. Tentaremos mostrar que por detrás das evidentes formas de manifestação do fenômeno
imperialismo, há uma essência, velada e oculta. Perceber a existência dessa essência
complementará o argumento de que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado
mundial. Nas demais seções – Parte Dois – tentaremos argumentar que a concorrência no
mercado mundial necessariamente envolve transferência de valor, que será necessário para
demonstrar que a essência do imperialismo é aquela que defendemos na Seção Dois. Em síntese,
o caminho que percorreremos no restante da tese é como de um argumento retroativo: o passo
seguinte da análise serve para sustentar o passo anterior e desafiar um passo posterior.
57

2 IMPERIALISMO: ESSÊNCIA E APARÊNCIA

Nesta seção defenderemos que o imperialismo, enquanto um aspecto da realidade


capitalista, possui duas dimensões fundamentais – essência e aparência – e, por isso, deve ser
compreendido em dois principais níveis de abstração. Conduziremos nosso argumento através
de três subseções. A subseção 2.1 está dedicada às formas de manifestação do imperialismo.
Discutiremos como o desenvolvimento histórico das teorias sobre ele reflete as metamorfoses
do próprio objeto. A partir do exame no nível fenomênico, na subseção 2.2 tentaremos sustentar
que suas diversas formas de manifestação estão vinculadas com uma determinação essencial.
Por fim, a subseção 2.3 tem como foco a análise da relação dialética entre essência e aparência
do imperialismo, onde defenderemos que o elo entre teoria do valor de Marx e imperialismo
não está na teoria das crises, como usualmente se supõe, mas na teoria da concorrência.

2.1 FORMAS E METAMORFOSES DO IMPERIALISMO E O DESENVOLVIMENTO


DAS TEORIAS

2.1.1 Transferência de riquezas como a concepção trans-histórica de imperialismo

Nosso objeto de pesquisa é o imperialismo capitalista. Entretanto, a lógica imperial,


expansiva, de subordinação do outro, é, evidentemente, muito mais antiga que o próprio
capitalismo. Entender o que está por trás desta lógica, ou o que há de comum entre várias formas
de imperialismo ao longo da história da humanidade, nos auxiliará a compreender a lógica do
imperialismo capitalista e o que há de comum entre suas diversas formas de manifestação.
Dentro do marxismo, a contribuição de Wood (2014) é seminal para o
estabelecimento de uma concepção trans-histórica de imperialismo. A autora estuda várias
formas de imperialismo ao longo da história para entender a especificidade do imperialismo de
nosso tempo e, com isso, “definir a essência do imperialismo capitalista para melhor entender
como ele opera hoje” (WOOD, 2014, p. 19). Passando pelos impérios romano e hispânico;
árabe, veneziano e holandês; até chegar ao inglês e estadunidense, ela destaca que todos os
impérios pré-capitalistas se basearam na força da coerção extraeconômica. Por outro lado, o
58

imperialismo capitalista se fortalecia na dominação puramente econômica, isto é, através do


que a autora chama de “imperativos de mercado”:

Assim como o capital exerce sua dominação sobre o trabalho sem o poder coercitivo
direto, porque os trabalhadores dependem do mercado e são obrigados a entrar nele
para vender a sua força de trabalho, coisa análoga aconteceu no plano global, onde
mais e mais partes do mundo foram submetidas a esses imperativos de mercado que
as tornaram dependentes. (WOOD, 2014, p. 9-10).

Independentemente da forma sob a qual o imperialismo capitalista se diferencia dos


modos antigos, o que há de comum entre todos eles parece ser, conforme a autora, a
transferência de riqueza das regiões subordinadas às regiões dominantes, imperialistas. Isso se
evidencia, por exemplo, quando, em função da opacidade da relação imperialista tipicamente
capitalista, ela afirma que “hoje é mais difícil que nos antigos impérios coloniais detectar a
transferência de riqueza das nações mais fracas para as mais fortes” (WOOD, 2014, p. 16,
grifos nossos).
Em Wood (2014), sua concepção trans-histórica de imperialismo como modos de
“aquisição de riqueza” se explicita: “não tenho dúvidas de que todas as formas de expansão
territorial e de dominação imperial, ao longo da história, preocuparam-se, de um modo ou de
outro, com a aquisição de riqueza, nem duvido de que o Estado tem sido fundamental para
todas elas” (WOOD, 2014, p. 136, grifos nossos). A partir desse entendimento do imperialismo
em geral, ela coloca a questão que norteia seu livro: “mas a questão aqui é saber se, ou como,
um imperialismo impelido pela acumulação capitalista difere de outras formas, ou quando e
como a dominação imperialista passou a ser associada ao capitalismo como uma forma
específica de aquisição” (WOOD, 2014, p. 136).
De fato, enquanto os romanos expropriavam impostos dos produtores locais em
regiões dominadas37, os ingleses, no estágio de transição ao capitalismo, expropriavam terras.
Na estratégia imperial inglesa, conforme Wood (2014)38, a colonização em “graus substanciais”
se tornou “um fim em si mesmo”. Trata-se de uma “forma de imperialismo movido pela lógica
do capitalismo” criada por proprietários de terra ingleses para atender aos “imperativos do
capitalismo”. O laboratório desse novo tipo de império foi a colonização irlandesa, cujo
objetivo era tornar esta economia subordinada aos imperativos do mercado. Nas palavras da

37
Cf. Wood (2014, p. 34-37).
38
WOOD, E. M. O império do capital. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 65
et seq.
59

autora, “a intenção declarada era reproduzir as relações sociais de propriedade do sudeste da


Inglaterra”, portanto relações sociais capitalistas39, cujo efeito “não seria apenas ‘civilizar’ os
irlandeses, mas também, ou parece ter sido esta a intenção, absorver a Irlanda na economia
inglesa, tornando-a dependente em uma forma que tentativas de integração política e legal até
então tinham fracassado” (WOOD, 2014, p. 69).
O meio para que o poder econômico se estabelecesse – isto é, para que o
imperialismo inglês na Irlanda se efetivasse – seria a expropriação da terra e o “deslocamento
em grande escala dos irlandeses”. Como destaca Wood (2014, p. 69, grifos nossos), houve, já
no século XVI, uma “enorme transferência de terras dos irlandeses para colonos ingleses e
escoceses”.
Portanto, a síntese dessa nova espécie de imperialismo (que estava nascendo) é a
sobreposição do poder econômico em relação ao extraeconômico: “os governantes irlandeses,
bem como os nobres ingleses, que usavam seu poder extraeconômico para extorquir impostos
daqueles sob sua autoridade, seriam substituídos por proprietários de terras cuja riqueza vinha
das rendas geradas por locatários engajados na agricultura comercial produtiva” (WOOD, 2014,
p. 69).
A opacidade do imperialismo capitalista deve-se à predominância da coerção
econômica, indireta, invisível, que se realiza pelas vias do mercado. Sob o capitalismo, os
produtores, onde quer que estejam, dependem do mercado. Qualquer unidade produtiva deve
se sujeitar “aos imperativos da concorrência, acumulação e produtividade crescente do trabalho;
e todo o sistema – em que a produção competitiva é condição fundamental da existência – é
movido por esses imperativos” (WOOD, 2014, p. 21). Isso nos permite visualizar que a
expansão espacial do capitalismo, ou do mercado mundial regido pelas relações de produção
capitalistas, implica a sujeição global dos produtores àqueles imperativos. Historicamente,
segundo Wood (2014, p. 17), este processo se completa apenas no século XX: “o
desenvolvimento de imperativos econômicos suficientemente fortes para substituir formas mais
antigas de dominação direta se deu em um período muito longo, só chegando à plena realização
no século XX”.
É importante deixar claro, desde já, que a coerção econômica no capitalismo não
prescinde da utilização de forças extraeconômicas, sendo a principal delas, a violência,

39
Vale lembrar que no debate historiográfico sobre as origens do capitalismo, a posição de Wood, expressa, por
exemplo, em A origem do capitalismo (WOOD, 2001), é que o capitalismo nasceu em regiões agrárias do sudeste
da Inglaterra no final do século XVIII. Ela combate, usando os termos de Silva (2000, p. 9), as posições
historiográficas que defendem uma “transição natural”.
60

conduzida pelo Estado. Kohan (2003, p. 236-250) resgata uma passagem notória do Capítulo
XXIV do Livro I de O Capital na qual Marx diz que a violência “é uma potência econômica”
para argumentar que ela é “essencial para a reprodução e a acumulação de capital” (KOHAN,
2003, p. 244). Como as relações econômicas dependem de relações de poder, a violência integra
a estrutura da sociedade: subjetividade, política, relações de força e de poder também estão na
estrutura econômica da sociedade, e não apenas na superestrutura. Por isso, seguindo a
argumentação de Kohan, não há uma instância econômica ilhada das demais determinações da
vida social40. Nos termos de Wood (2014, p. 17), o uso do extraeconômico “é claramente
essencial para a manutenção da coerção econômica em si”:

[...] o capitalismo é único na sua capacidade de separar o poder econômico do


extraeconômico e que isso, entre outras coisas, implica que o poder econômico do
capital é capaz de ir além do controle de qualquer poder político ou militar existente
ou concebível. Ao mesmo tempo, o poder econômico do capital não pode existir sem
o apoio da força extraeconômica; e a força extraeconômica é hoje, tal como antes,
oferecida primariamente pelo Estado. (WOOD, 2014, p. 18).

Se o imperialismo em geral, trans-historicamente compreendido, define-se pela


transferência de riquezas e a novidade do imperialismo capitalista é que ele “exerce seu domínio
por meios econômicos, pela manipulação das forças do mercado, inclusive da arma da dívida”
(WOOD, 2014, p. 23), podemos dizer que é o próprio mercado (mundial) o lócus onde se efetiva
a transferência de riquezas no capitalismo. Podemos concluir, portanto, que as possibilidades
de manifestação do imperialismo capitalista são tão diversificadas quanto as possibilidades de
interação mercantil. Quando Wood exemplifica o uso da “arma da dívida” como uma forma de
dominação por meios econômicos, ela está dizendo, em nossa interpretação, que a dívida –
através do pagamento de juros – é um instrumento sob o qual se efetiva a transferência de
riquezas no capitalismo. Santos, uma das principais referências da teoria marxista da
dependência, oferece uma boa ilustração do imperialismo a partir da dominação econômica:

En el capitalismo moderno, la acción expropiatoria se ha hecho más refinada, indirecta


y oculta. [...] El saqueo directo de los pueblos se oculta bajo un sutil mecanismo de
precios y de explotación de riquezas naturales en condiciones excepcionales; el cobro
de tributos se esconde bajo una sofisticada prestación de servicios inexistentes; el
comercio de esclavos se sumerge bajo un complejo sistema de explotación de la mano
de obra en su propio local de trabajo; la dominación política directa se ha ocultado

40
Esse argumento será útil na subseção 2.1.4, quando discutiremos as teorias contemporâneas do imperialismo e
a redescoberta da acumulação primitiva.
61

bajo un manto diáfano de deudas, de dependencia de la tecnología, de abastecimiento


de productos básicos y productos culturales. (SANTOS, 2011, p. 382).

Ou seja, a “arma da dívida”, como apontava Wood, é um dentre vários instrumentos


possíveis de manifestação do imperialismo capitalista.
Na sequência, iremos explorar as diversas formas de manifestação do imperialismo
capitalista através dos diversos “olhares” desenvolvidos nas múltiplas teorias sobre ele.
Procuraremos sempre destacar a existência de algum elemento comum e oculto, velado, dentre
as diferentes manifestações fenomênicas, os quais nos permitirão defender a hipótese de que
sua essência é a transferência de riquezas tipicamente capitalista, isto é, transferência de valores.

2.1.2 A teoria clássica do imperialismo e a exportação de capitais

Em pesquisa anterior (LEITE, 2010) fizemos um estudo sobre as teorias marxistas


clássicas do imperialismo, contrapondo-as à renovação interna do debate que ocorre na virada
do século XX e dá origem às chamadas teorias contemporâneas. Foi possível constatar que as
formulações teóricas desenvolvidas no seio do debate clássico podem ser organizadas em três
níveis de análise que dizem respeito às manifestações fenomênicas do imperialismo.
O primeiro nível consiste nas interpretações sobre a consolidação empírica dos
monopólios e do capital financeiro – que se tornaria uma pedra angular dessa forma de olhar
sobre o imperialismo – e fundamenta-se em Hilferding (1985), precisamente em sua leitura da
lei geral da acumulação capitalista de Marx. O imperialismo, partindo desse nível da análise,
seria um resultado da intensificação dos processos de concentração e centralização dos capitais.
Trata-se de uma leitura que identifica esses processos com a diminuição da
concorrência e que, conforme destacado por Corrêa (2012, p. 36-43), não é a leitura correta da
teoria marxiana; pelo contrário, aproxima-se mais da teoria econômica burguesa. Na teoria do
valor de Marx, concentração e centralização resultam da luta concorrencial e, ao mesmo tempo,
a intensificam. Em estudos bastante anteriores aos escritos de economia política, a
contraposição dialética entre concorrência e monopólio já estava presente, como na crítica à
Proudhon em A miséria da filosofia:

[...] o monopólio produz concorrência, a concorrência produz monopólio. Os


monopolistas concorrem entre si, os concorrentes tornam-se monopolistas. Se os
62

monopolistas restringem a concorrência entre si através de associações parciais, a


concorrência cresce entre os operários; e quanto mais a massa de proletários cresce
face aos monopolistas de uma nação, mais a concorrência entre monopolistas de
nações diferentes se torna desenfreada. A síntese é tal que o monopólio só pode se
manter passando continuamente pela luta da concorrência. (MARX, 1985a, p. 141-
142).

Esta citação parece indicar uma primitiva teoria da concorrência de Marx. Como
este texto foi produzido em 1847, Marx ainda não havia desenvolvido sua própria teoria do
valor, o que justifica, evidentemente, a inexistência de qualquer menção à produtividade como
elemento que empurra os monopólios à concorrência41. Em O Capital, o Capítulo X do Livro I
explicita que o incremento de produtividade pelo capital individual é o que o compele à luta
concorrencial. Como este tema será desenvolvido em detalhes na Seção Três desta tese, por
agora podemos concluir parcialmente o argumento defendendo a posição de que a concorrência
é alimentada pela produtividade:

Há no capitalismo uma tendência histórica ao mais-valor relativo, em outras palavras


ao declínio relativo no valor da força de trabalho resultante de um aumento na
produtividade nos ramos produtores de bens salário, porque existe uma tensão
constante entre capitalistas em todos os ramos, derivada do fato de que nenhum deles
tem qualquer futuro a menos que sejam bem-sucedidos em aumentar a produtividade
tão rapidamente quanto seus concorrentes. (BIDET, 2007, p. 145, grifos do autor,
tradução nossa)42.

Não é possível, portanto, associar a tendência à monopolização com a diminuição


da concorrência pois “há uma tensão constante entre capitalistas em todos ramos”. Mesmo que
em determinado ramo haja apenas um capitalista, isto é, haja um monopólio, ele está
subordinado aos imperativos da concorrência na medida em que se sua composição orgânica
for mais baixa que a média, ele transferirá valor para capitais mais produtivos. Com essa
observação, a afirmativa final de Marx na passagem supracitada de A miséria da filosofia (“o
monopólio só pode se manter passando continuamente pela luta da concorrência”) torna-se
plenamente compreensível. Em suma, a associação entre monopólio e falta de concorrência só
é justificável nos termos da teoria econômica burguesa, para a qual o monopólio é, por
definição, o oposto da chamada concorrência perfeita.

41
Cf. Marx (1985a, p. 135-143) para um exame completo dos comentários de Marx sobre concorrência e
monopólio em A miséria da filosofia.
42
Outros momentos da exposição de Bidet (2007) são desastrosos, como sua defesa do caráter não-dialético da
transição entre dinheiro e capital ou sua sugestão de que a concorrência entra na exposição de Marx a partir da
produção do mais-valor. Como vimos (subseção 1.2), Marx opera uma sofisticada transição dialética entre dinheiro
e capital e, como veremos (subseção 3.1), a concorrência já está presente desde o primeiro capítulo do Livro I.
63

Apesar desse problema teórico, esse entendimento sobre o papel dos monopólios
foi utilizado inconteste pela teoria clássica do imperialismo e está presente, inclusive, na famosa
definição de Lenin do imperialismo. Em texto publicado em outubro de 1916, portanto logo
depois em que finaliza a redação de O imperialismo43, mas antes de sua publicação, sua posição
estava clara: “a substituição da livre competição pelo monopólio é um atributo econômico
fundamental, é a essência do imperialismo” (LENIN, 1964, p. 1). Ao resumir a teoria leninista,
Lukács (2012a, p. 63) praticamente repete as palavras de Lenin quando designa “o capitalismo
monopolista e sua guerra” como a “essência do imperialismo”.
Em O imperialismo, Lenin (2008, p. 101) recorre à categoria monopólio para
justificar “uma tendência para a estagnação e para a decomposição” do capitalismo. Seu
argumento é que ao se desvincular do acicate da concorrência, o monopólio capitalista
tendencialmente se impõe sem a necessidade de buscar incrementos de produtividade:

[...] na medida em que se fixam preços monopolistas, ainda que temporariamente,


desaparecem até certo ponto as causas estimulantes do progresso técnico e, por
conseguinte, de todo o progresso, de todo o avanço, surgindo assim, além disso, a
possibilidade econômica de conter artificialmente o progresso técnico. (LENIN, 2008,
p. 101).

Esta passagem evidencia que a interpretação de Lenin não considera a possibilidade


de transferência de valor entre capitais governada pelas desigualdades de produtividade. Logo,
podemos concluir que o tratamento de Lenin (e da teoria clássica do imperialismo) sobre os
monopólios é oposta ao entendimento que Marx desenvolve sobre o tema.
O segundo nível de análise carrega algumas divergências: trata-se da questão da
exportação de capitais. Que um aspecto central do imperialismo seja a crescente necessidade
da exportação de capitais em detrimento da exportação de mercadorias, não há divergência
dentro da teoria clássica. De fato, esta parece ser a típica forma de manifestação do imperialismo
naquele período histórico, como destacado amplamente pelo debate teórico da época44. Mesmo
estudos não-marxistas de história econômica relatam como esse período foi marcado por intensa
mobilidade internacional de capitais decorrente da crescente imposição de tarifas protecionistas

43
Concluído em 1916, O imperialismo de Lenin é o resultado de uma pesquisa que se iniciou em 1912, no qual
ele estuda centenas de livros e artigos sobre o tema além de reler O Capital e retomar Hegel (SAMPAIO JÚNIOR,
2011, p. 31).
44
Cf. Bukharin (1988, p. 87 et seq.), Hilferding (1985, p. 293 et seq.), Lenin (2008, p. 61 et seq.) e Luxemburgo
(1976, p. 300 et seq.). Fora do que se convencionou chamar de teoria clássica do imperialismo, Grossmann (1979,
p. 343 et seq.) apresenta o papel das exportações de capitais como contra-tendência às crises.
64

pelas principais economias do mundo (EICHENGREEN, 2000), cujo contexto mais geral é de
reação à crise deflacionária.
A polêmica dentro da teoria clássica residiu em como explicar a necessidade de
exportar capitais. De um lado, tem-se um resultado lógico da lei geral da acumulação: a
tendência à queda da taxa média de lucro. Nessa interpretação, que se baseia sobretudo em
Hilferding (1985), mas também em Bukharin (1988) e Lenin (2008), a diminuição das taxas
médias de lucro nos países imperialistas força, impõe, que os capitais se dirijam às regiões
menos desenvolvidas para produzir e se apropriar de uma taxa maior de lucro.
Entretanto, se o nível de abstração com o qual Marx expõe seu argumento em O
Capital corresponde ao nível da totalidade, isto é, do mercado mundial – como já defendemos
nesta tese45–, a lei da tendência à queda da taxa média de lucro não pode ser uma explicação
para a necessidade de exportar capitais. Embora toda a problemática da formação da taxa média
de lucro encerre a Seção Três desta tese, precisamos oferecer, desde já, alguma resposta a essa
questão. Na economia capitalista, a coexistência de setores diversos produzindo diferentes
mercadorias leva à formação de taxas de lucro diferentes entre os setores. Isto posto,
considerando que os capitais buscam as maiores rentabilidades, existe uma tendência –
determinada pela concorrência – à equalização da taxa de lucro, à nivelação da taxa de lucro
entre os setores, formando, tendencialmente, uma taxa média. Esta, por sua vez, é utilizada
pelos diversos capitais na formação dos preços de produção46.
Pradella (2015a, p. 135-136) mostra que Marx rascunha a teoria da formação da
taxa média de lucro nos Grundrisse, desenvolvendo dois elementos fundamentais que estariam
na redação final do Livro III de O Capital: (a) o mais-trabalho total é apropriado em conjunto
pela classe capitalista, que (b) o distribui de acordo com o tamanho de cada capital individual.
Para a autora, esta é uma pista para o entendimento da apropriação de valor no mercado
mundial: Marx “deixa a base para o entendimento de como capitais nas nações mais avançadas
se apropriam de mais lucro no mercado mundial”. Uma passagem dos Grundrisse, parcialmente
citada por Pradella (2015a, p. 136) indica essa posição:

Tendo em vista que o lucro pode ser inferior ao mais-valor, ou seja, que o capital
[pode] trocar-se lucrativamente sem se valorizar no sentido estrito, segue-se que não
só os capitalistas individuais, mas também as nações podem trocar continuamente
entre si, e repetir continuamente a troca em escala sempre crescente, sem que por isso
precisem ganhar de modo uniforme. Uma pode apropriar-se continuamente de uma

45
Cf. subseção 1.2 (O lugar do mercado mundial nos níveis de abstração de O Capital).
46
Retomaremos a teoria dos preços de produção na Seção Três, Subseção 3.4.
65

parte do trabalho excedente da outra, pela qual nada dá em troca. (MARX, 2011b, p.
747, grifos nossos).

Marx está se referindo aqui ao fato de que a formação tendencial da taxa geral de
lucro implica que as mercadorias, “apesar de reguladas pelo ‘domínio do valor’, não se trocam
pelos seus valores” (CALLINICOS, 2014, p. 99), ou, usando uma expressão de M. D.
Carcanholo (2013a, p. 88), “as mercadorias não são vendidas por seus valores, nem poderiam
ser, ainda que sejam”47. Isto é verdadeiro inclusive no mercado mundial, caso haja alguma
migração internacional entre capitais. Como essa migração existe empiricamente, podemos
dizer que se forma, tendencialmente, uma taxa média de lucro mundial. Como decorrência
lógica, o aumento de produtividade pelos capitais mais produtivos, localizados, em geral, nos
países mais avançados, faz com que aumente o quantum de lucro apropriado no mercado
mundial vis-à-vis o quantum de mais-valor produzido por eles. Portanto, a queda da taxa média
de lucro está associada com o aumento da taxa individual de lucro apropriada pelos capitais
mais produtivos. Segue que a formação mundial de uma taxa média de lucro implica que os
países com maior composição orgânica média tendem a se apropriar de uma taxa de lucro maior
do que os demais. Esta proposição inviabiliza a tese de Hilferding, Bukharin e Lenin segundo
a qual os capitais dos países imperialistas obtinham uma menor taxa de lucro e, em função
disso, eram empurrados para os investimentos no exterior. De fato, a exportação de capitais é
pressuposto e não resultado da formação da taxa média de lucro.
A outra explicação para a necessidade da exportação de capitais foi formulada por
Rosa Luxemburgo (1976), para a qual esta é derivada de uma insuficiência de demanda nos
países imperialistas. Nos termos de Lukács,

Rosa Luxemburgo mostra de maneira definitiva que, em consequência do processo de


acumulação, tornou-se inevitável a transição para o imperialismo, a época da luta
pelos mercados coloniais e pelas regiões fornecedoras de matéria-prima, pelas
possibilidades de exportação de capital etc. (LUKÁCS, 2012a, p. 62).

Através de uma utilização dos esquemas de reprodução de Marx, a autora


supostamente demonstra que a acumulação de capital tende a produzir uma situação em que a
massa de valores produzidos não consegue se realizar: o capitalismo necessita, portanto, da

47
Demonstraremos essa proposição de M. D. Carcanholo na Seção 3.
66

interação com formações sociais não-capitalistas. Essa tese já foi amplamente contestada,
conforme constatado em Brewer (1990)48.
Por fim, o terceiro nível da análise dentro da teoria clássica do imperialismo encerra
uma imensa polêmica. Trata-se da questão das partilhas territoriais e da definição do
imperialismo como uma fase particular do capitalismo ou como um conjunto de políticas
executadas. Grosso modo, Bukharin (1988), Lenin (2008) e Luxemburgo (1976) tinham
entendimentos similares: o imperialismo representava um estágio final do capitalismo na
medida em que constituía o aguçamento de suas mais profundas contradições. Nesse sentido, a
guerra entre Estados imperialistas seria inevitável. Por outro lado, Kautski (1914) via no
imperialismo um tipo de política e, como tal, passível de ser revertida. Neste sentido, ele lança
a hipótese da possibilidade de uma etapa superior ao imperialismo: o ultraimperialismo; uma
nova forma de “exploração internacional” baseado na aliança recíproca entre as principais
potências imperialistas49.
Em que pesem os defeitos da teoria clássica – principalmente, seguindo Corrêa
(2012), a falta de rigor com os níveis de abstração da teoria do capitalismo de Marx, gerando
confusões entre aspectos conjunturais e estruturais da realidade –, ela foi fundamental ao
fornecer um novo marco analítico que captasse as relações econômicas entre capitais operando
em distintas nacionalidades e, consequentemente, entre distintos Estados-nacionais.
Nesse novo marco analítico, a caracterização clássica – no sentido da que se tornou
célebre e amplamente difundida – foi aquela sintetizada por Lenin. As famosas cinco
características do fenômeno podem ser resumidas, nos termos do autor, na seguinte definição:

1. a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de


desenvolvimento que criou os monopólios [...]; 2. a fusão do capital bancário com o
capital industrial e a criação, baseada nesse capital financeiro da oligarquia financeira;
3. a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire
uma importância particularmente grande; 4. a formação de associações internacionais
monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5. o termo da partilha
territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes. O imperialismo
é o capitalismo na fase de desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos
monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada importância a exportação de
capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha
de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes. (LENIN, 2008, p. 90).

48
BREWER, A. Marxist Theories of Imperialism: a critical survey. 2. ed. London: Routledge, 1990.p. 63 et seq.
49
Foge ao escopo desta tese avançar sobre esse tema. Nossa interpretação dessa questão pode ser encontrada em
Leite (2014a).
67

Posto desta maneira, temos um objeto puramente empírico à medida que o


imperialismo parece restringir-se ao nível da aparência: seus elementos constitutivos podem ser
vistos a olho nu e é precisamente este caráter empírico que Lenin apresenta e ressalta nos
capítulos iniciais de sua “brochura popular”. O autor cumpre o papel de descrever as formas de
manifestação do imperialismo naquele período histórico, com ênfase no processo de exportação
de capitais assentado sobre a formação dos monopólios como elemento distintivo deste período:
“estes cinco traços, apesar de diferentes, contém em essência algo que lhes é comum: refletem
o surgimento e domínio dos monopólios que [...] são uma característica qualitativa específica
desta época” (CAPUTO; PIZARRO, 1970, p. 163, tradução nossa). A categoria monopólio,
portanto, possui prioridade ontológica na teoria do imperialismo de Lenin pois ela pode existir
sem as demais, embora o inverso não seja verdadeiro50.
A análise das cinco características do imperialismo permite perceber que, a despeito
da prioridade ontológica dos monopólios, a exportação de capitais funciona como nexo lógico
entre as duas primeiras e as duas últimas manifestações fenomênicas. Quando Lenin (1968, p.
236) rascunha essas cinco características nos manuscritos preparatórios de O imperialismo
(Notebooks on imperialism), ele põe uma observação na frente do item exportação de capitais:
“questão principal” (“chief thing”). Em outro lugar, assegura: “A exportação de capital, uma
forma distinta de exportação de mercadorias sob o capitalismo não-monopólico, é um fenômeno
altamente característico [do capitalismo monopolista] e está claramente ligado com a repartição
político-territorial e econômica do mundo” (LENIN, 1964, p. 1). Dito de outra forma, a
formação dos monopólios e do capital financeiro são pressupostos da exportação de capitais
que, por sua vez, antecede a partilha econômica e territorial do mundo.
Como a teoria de Lenin foi a última a ser redigida dentro do que chamamos de teoria
clássica, sua definição popularizou-se também por ter a virtude de fazer uma espécie de síntese
do pensamento marxista sobre o imperialismo naquele momento. Portanto, a definição do
imperialismo citada acima não é, em seu conteúdo, exclusivamente de Lenin, de forma que
compreende, aproximadamente, o modo de pensar típico de seus contemporâneos.

50
O termo “prioridade ontológica” decorre de Lukács (2012b, p. 307). Para o autor, as relações corretas entre
categorias correspondem a “sobreordenação e subordinação” de forma que a prioridade explanatória seja
estabelecida pelo critério ontológico. No tocante ao ser social, há “prioridade da produção e da reprodução do ser
humano em relação a outras funções”, o que, em outras palavras, significa a prioridade da base econômica em
relação à superestrutura. Lukács está combatendo o que ele chama de “hierarquia sistemática idealista ou
materialista vulgar” cuja prioridade categorial é estabelecida por “juízos de valor gnosiológicos, morais, etc”. Seu
ponto pode ser resumido da seguinte forma: “quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada
categoria com relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda,
enquanto o inverso é ontologicamente impossível”. Cf. Lukács (2012b, p. 306-308).
68

Em nosso entendimento, essa interpretação do imperialismo é incompleta. Na


medida em que é estritamente empírica, pode ser verdadeira ao expressar a forma como o
imperialismo se manifestava naquele período histórico, isto é, pode ser verdadeira ao
demonstrar uma dimensão daquele objeto: a aparência do fenômeno naquele período histórico,
expressa primordialmente através dos investimentos diretos no exterior e suas conexões com as
corporações transnacionais, capital financeiro e guerras, por exemplo. O tratamento do
imperialismo enquanto fenômeno aparece no seguinte comentário de Sampaio Júnior (2011, p.
31, grifos nossos): “O fio da meada que articula a argumentação [em O imperialismo] é dado
pela caracterização dos múltiplos processos que relacionam as leis de movimento do
capitalismo monopolista ao fenômeno do imperialismo”. Também Harvey descreve a
caracterização de Lenin sobre o imperialismo como no nível dos fenômenos:

[Lenin] não tentou derivar [o imperialismo] da teoria de Marx. Ele considerou o


fenômeno do imperialismo como algo a ser revelado a partir da análise materialista
histórica. [...] O método é, portanto, histórico, e Lenin utiliza o termo ‘imperialismo’
para descrever as características gerais da forma fenomenal assumida pelo
capitalismo durante um estágio específico do seu desenvolvimento, particularmente,
durante o final do século XIX e o início do século XX. (HARVEY, 2005, p. 68, grifos
nossos).

Portanto, na evolução histórica das apreensões teóricas sobre o imperialismo, a


descoberta desse conjunto de formas de manifestação fenomênicas do objeto ocorreu nas duas
primeiras décadas do século XX dentro do que se convencionou chamar de teoria clássica do
imperialismo.
Estamos tratando a teoria do imperialismo de Lenin ou de seus contemporâneos
como incompleta apenas sob o ponto de vista da associação entre o imperialismo e as leis de
movimento do capital. Em outros termos, este conjunto de reflexões teóricas não foi capaz, nos
parece, de explicar o fenômeno imperialismo à luz de suas determinações essenciais. Na
realidade, não podemos acusar Lenin de um reducionismo economicista pois seu grande
objetivo foi “mostrar os nexos entre acumulação de capital, mudança social e luta de classes”
(SAMPAIO JÚNIOR, 2011, p. 37). Nos termos de Lukács, no breve livro-homenagem à Lenin
escrito logo após sua morte:

A teoria do imperialismo de Lenin é menos uma teoria a respeito de seu surgimento


economicamente necessário e de seus limites econômicos – como a de Rosa
Luxemburgo – do que uma teoria das forças concretas de classe que o imperialismo
desencadeia e que atuam em seu interior; é a teoria da situação mundial concreta
provocada pelo imperialismo. (LUKÁCS, 2012a, p. 63, grifos do autor).
69

Podemos dizer, seguindo Sampaio Júnior (2011, p. 32), que O imperialismo de


Lenin tem objetivo político e caráter revolucionário: “Sua finalidade última é desnudar as
contradições do capitalismo monopolista e apontar a necessidade inelutável da revolução
socialista como única solução civilizada que pode superar os horrores que acompanham o
progresso capitalista”. Lukács também sustenta a existência dessa conexão entre teoria e
política:

A superioridade de Lenin consiste – e esta é uma proeza teórica sem igual – em sua
articulação concreta da teoria econômica do imperialismo com todas as questões
políticas do presente, transformando a economia da nova fase num fio condutor para
todas as ações concretas na conjuntura que se configurava então. (LUKÁCS, 2012a,
p. 61, grifos do autor)

Mesmo em Para uma ontologia do ser social, escrita muitos anos depois de sua
primeira publicação sobre Lenin, Lukács apresenta uma certa reverência ao bolchevique 51,
como pode ser observado na passagem abaixo:

A obra de Lenin é, após a morte de Engels, a única tentativa de amplo alcance no


sentido de restaurar o marxismo em sua totalidade, de aplicá-lo aos problemas do
presente e, portanto, de desenvolvê-lo. As circunstâncias históricas desfavoráveis
impediram que a obra teórica e metodológica de Lenin agisse em extensão e
profundidade. (Lukács, 2012b, p. 301).

O imperialismo de Lenin está inscrito nessa tentativa de aplicar o marxismo aos


problemas do presente. Trata-se, obviamente, como o próprio autor enfatiza, de um panfleto
destinado a influir na tomada de consciência do proletariado e, em última instância, a alterar a
correlação de forças na luta de classes. Perceber o caráter revolucionário de sua obra reforça
nossa posição de que a forma de manifestação típica no contexto histórico das teorias clássicas
parece ser a exportação de capitais. Exportar capitais é, ao mesmo tempo, exportar relações de
produção capitalistas e, em última instância, promover algum tipo de desenvolvimento
capitalista nas regiões receptoras dos capitais imperialistas que potencializa a luta de classes
em nível mundial. Lenin tinha claro, aponta Bambirra (1977, p. 21), que a luta de classes se

51
Cf. Lukács (2012b, p. 299-302) para um exame dos comentários do autor sobre Lenin. As notas elogiosas de
Lukács podem ser constatadas nas seguintes passagens: “É só com Lenin que se inicia um verdadeiro renascimento
de Marx” (p. 299); “Lenin prossegue com sucesso a linha do Engels tardio, aprofundando-o e desenvolvendo-o
em muitas questões” (p. 299); “se o marxismo quiser hoje voltar a ser uma força viva do desenvolvimento
filosófico, deve em todas as questões retornar ao próprio Marx, sendo que tais esforços podem muito bem ser
apoiados de maneira eficaz por muitos elementos das obras de Engels e Lenin” (p. 302).
70

desenvolve nos planos nacional e internacional: “El razonamiento dialéctico determina la


estrecha vinculación que hay entre los dos planos de la lucha de clases. [...] Lenin siempre fue
internacionalista pero no por eso dejaba de ser ruso”. Harvey (2005, p. 70) defende que, para
Lenin, o imperialismo “possui o efeito de ‘exportar’ algumas das tensões criadas pela luta de
classes dentro dos centros de acumulação para as áreas periféricas”.
Lukács aponta, explicitamente, a vinculação entre exportação de capitais,
desenvolvimento burguês e luta de classes:

A política colonialista desenvolvida pelo capitalismo explora os povos coloniais não


de modo simplesmente predatório, como foi o caso no início do desenvolvimento do
capitalismo, mas ao mesmo tempo revoluciona sua estrutura social, capitalizando-a.
É óbvio que isso ocorre com o objetivo de uma exploração ainda maior (exportação
de capitais etc.); porém, contrariando as intenções do imperialismo, o resultado é que,
nos países coloniais, criam-se as bases de um desenvolvimento burguês próprio cuja
consequência ideológica necessária é uma luta pela autonomia nacional. (LUKÁCS,
2012a, p. 64, grifos do autor).

Esta importante passagem de Lukács deve ser interpretada à luz do debate político
em que ele, obviamente, esperava interferir. Sua conclusão de que o desenvolvimento burguês
nas regiões “coloniais” estimularia um “movimento combativo a favor da autonomia nacional”
está dialogando com a tese predominante na Internacional Comunista, ou III Internacional, a
favor da libertação nacional52. Nesse sentido, Lukács aponta para a consequência da exportação
de capitais sobre o desenvolvimento da luta de classes nos planos nacional – na luta pela
libertação – e internacional – na luta pela revolução mundial, a “luta de toda a classe contra a
burguesia mundial” (LUKÁCS, 2012a, p. 75).
Para concluir esse argumento, Bambirra (1977) oferece uma interpretação preciosa
sobre o papel que Lenin conferia à integração das regiões periféricas no capitalismo como
pressuposto para a integração revolucionária mundial:

En su Primer esbozo de las tesis sobre los problemas nacional y colonial para el II
Congreso de la Internacional Comunista Lenin llama la atención hacia la necesidad
de ‘una diferenciación igualmente clara entre las naciones oprimídas, dependientes y
sometidas, y las naciones opresoras, explotadoras y soberanas, para contrarrestar las
mentiras democrático-burguesas que ocultan esta esclavización colonial y financiera
de la gran mayoría de la población del mundo por la minoría insignificante de los

52
Uma rápida história das Internacionais pode ser encontrada em Johnstone (2001). A questão nacional foi inserida
no programa revolucionário por iniciativa de Lenin: “O Segundo Congresso aprovou as Teses sobre a questão
nacional e colonial, elaboradas por Lenin, que enfatizavam a necessidade de uma aliança anti-imperialista dos
movimentos de libertação nacional e colonial com a Rússia Soviética e os movimentos operários que combatiam
o capitalismo” (JOHNSTONE, 2001, p. 198).
71

países capitalistas más ricos y avanzados, rasgo característico de la época del capital
financiero y del imperialismo’. (BAMBIRRA, 1977, p. 19).

Se o traço característico do imperialismo é a “escravização colonial e financeira da


grande maioria da população do mundo”, a questão é: como o imperialismo reitera essa
escravização? Do ponto de vista “financeiro”, a exportação de capitais, e, no caso da relação
colonial, há a sobreposição de uma série de fatores extraeconômicos – sobretudo o aparato
militar – que a garantem diretamente. Em síntese, a exportação de capitais possui uma
centralidade fundamental tanto na teoria clássica do imperialismo quanto em seu
desdobramento na teoria da revolução. É por isso que ela parece ser a típica forma de
manifestação do imperialismo nesse período histórico.
Ademais, considerando os termos de Harvey (2005, p. 68), para entender o
imperialismo enquanto fenômeno Lenin “procura revelar a ‘essência econômica do
imperialismo’” através dos “insights teóricos de Marx sobre a natureza do modo capitalista de
produção”. Portanto, Lenin perseguiu a essência do imperialismo. Como seu ponto de partida
mais abstrato era a lei geral da acumulação capitalista e a lei da queda tendencial da taxa de
lucro, não conseguiu ter sucesso nessa empreitada: “como a maioria dos outros autores sobre o
imperialismo, desenvolve a teoria geral de Marx de modo unilateral e não de modo abrangente.
Em consequência, a ligação com a teoria da acumulação capitalista é, em parte, obscurecida
pela perspectiva” (HARVEY, 2005, p. 70). Com efeito, consideramos sua interpretação do
imperialismo incompleta.
Antes de avançar precisamos reconhecer que haviam barreiras concretas que
dificultavam a apreensão completa do imperialismo por parte da abordagem clássica e,
especialmente, de Lenin, relacionadas (a) ao grau de desenvolvimento do objeto de estudo e (b)
às condições históricas e geográficas às quais os teóricos marxistas estavam inseridos. Sobre o
primeiro ponto, a questão é que o objeto não estava plenamente desenvolvido a ponto de
permitir uma teorização completa sobre ele, ou seja, muitos aspectos do imperialismo tornaram-
se visíveis apenas após a Segunda Guerra Mundial ou após a crise dos anos 1960 e 1970. Com
esse limite real, o que as teorias puderam fazer – e isso, por si, representou uma enorme
contribuição – foi caracterizar apenas suas formas de manifestação; elas não conseguiram
encontrar um nexo causal que explicasse por que o objeto teria que se manifestar de uma forma
e não de outra em função do insuficiente desenvolvimento concreto do objeto. Além disso, a
chamada teoria clássica do imperialismo foi desenvolvida por autores europeus especialmente
na segunda década do século XX: estava restrita, portanto, no espaço e no tempo. Um exemplo
72

dessa limitação pode ser encontrado no “capital financeiro” de Hilferding (1985), que trata de
uma categoria própria do capitalismo alemão e, portanto, conforme Callinicos (2009, p. 10),
muito mais particular do que pretendida pelo autor. Harvey (2005, p. 70) aponta que “a
dependência de Lenin em Hobson e Hilferding o levou a certos erros factuais”.

2.1.2.1 Uma metamorfose no imperialismo e o caminho rumo à segunda fase das teorias a
seu respeito

As violentas convulsões sociais entre o começo da Primeira Guerra Mundial e o fim


da Segunda pareciam confirmar as conjecturas de parte da teoria clássica do imperialismo.
Bukharin (1988, p. 10), por exemplo, afirmara em 1916 que o capitalismo se encontrava
“altamente desenvolvido, maduro e mais do que maduro”. Na mesma direção, Lenin (2008, p.
129) postulava em 1917 que aquele período histórico era a fase do capitalismo agonizante, em
fase de decomposição, já que todas as suas contradições estão intensificadas. Não se trata,
porém, necessariamente de uma posição catastrofista pois Lenin ressalta que o modo de
produção vigente “pode permanecer em estado de decomposição durante um período
relativamente longo”.
Aparentemente contrariando esta perspectiva, o curso da história após a Segunda
Guerra Mundial parecia apontar para uma saída kautskiana. A ausência de rivalidades bélicas
entre os Estados imperialistas era coerente com a hipótese do ultraimperialismo53. Para Kautski
(1914, 2002a, 2002b), as contradições que o próprio imperialismo engendrava em si, como a
corrida armamentista, guerras etc., prejudicava a acumulação e a exportação de capital, de
forma que os mais poderosos Estados industriais poderiam se unificar em torno de uma grande
federação ultraimperialista para eliminar esses problemas comuns. Assim, conseguiriam
explorar as zonas agrárias mais atrasadas em benefício do desenvolvimento industrial
doméstico, ao mesmo tempo em que eliminariam as rivalidades entre as potências, renunciando
à corrida armamentista. Embora ele afirme que os níveis historicamente necessários para a
implantação do socialismo já estavam atingidos, sua análise da realidade o faz supor um período

53
Um debate importante, mas que não temos pretensão de fazê-lo aqui é se a União Soviética era um tipo de Estado
capitalista e, portanto, imperialista.
73

no qual o capitalismo conviveria com um desenvolvimento pacífico dentro das fronteiras


ultraimperialistas (KAUTSKI, 1914, 2002b).
O fim da Segunda Guerra Mundial marca realmente uma transição importante
dentro do capitalismo. Para Arrizabalo Montoro, o ano de 1945 é um ponto de inflexão:

O ano 1945 constitui um ponto de inflexão a partir do qual se abre um lapso de vinte
e cinco anos muito particulares: definido por muitos como a prova de que no
capitalismo se pode resolver os problemas da humanidade, porque podem se
desenvolver as forças produtivas graças às possibilidades trazidas pela ciência e pela
técnica, seu estudo rigoroso, facilitado pela maior perspectiva de que se dispõe hoje,
permite contrastar o contrário: o período 1945-1970 tem um caráter excepcional e,
mais ainda, supõe em realidade uma oportunidade perdida para alcançar uma saída
verdadeiramente positiva para a humanidade. (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p.
277, tradução nossa).

A excepcionalidade desse período foi sustentada, segundo o autor (ARRIZABALO


MONTORO, 2014, p. 320-327), “por meios artificiais de crescimento” econômico, quais sejam,
fundamentalmente, o gasto militar e a expansão massiva de crédito, especialmente sobre o
consumo, erguida sobre uma estabilidade monetária internacional sem precedentes. Sob o
Sistema de Bretton Woods, tal estabilidade pode ser constatada pelo fato de que “mudanças na
paridade [cambial], especialmente por parte dos países industrializados situados no centro do
sistema, foram extraordinariamente raras” (EINCHENGREEN, 2000, p. 132). Com um eficaz
controle de capitais, os governos conseguiam impor “limites às taxas de juros” e “regulavam os
mercados financeiros para canalizar o crédito para setores estratégicos” (EINCHENGREEN,
2000, p. 132-3)54.
Do ponto de vista dos gastos militares, seu papel como “meio artificial de
crescimento” deriva, na interpretação de Arrizabalo Montoro (2014, p. 323-326), de seu caráter
destrutivo. Assim como as crises destroem capital ocioso e funcionam como ponte para a
recuperação da acumulação, o gasto militar “é o instrumento para disparar a destruição
mediante sua utilização nas guerras” (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 325). Com efeito,

[...] o gigantesco nível de fabricação de armamentos não pode ser considerado um


desenvolvimento das forças produtivas, porque na realidade são forças destrutivas.
Não por uma consideração moral, mas porque economicamente o são, ainda que no
curto prazo e na perspectiva dos capitais que se valorizam nele, seja efetivamente um

54
Cf. Eichengreen (2000, p. 131-182) para um exame detalhado da arquitetura, do funcionamento e do colapso do
Sistema de Bretton Woods.
74

meio para alcançar esta valorização. (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 324,


grifos nossos, tradução nossa).

Mesmo em períodos de paz, os gastos em armamentos funcionam como destruição


de capital pois, nos termos de Cize e outros55 (apud Arrizabalo Montoro, 2014, p. 326), “é uma
maneira de destruir capital descontando parte da renda nacional (os impostos) para destiná-lo a
um ‘consumo improdutivo’”.
De todo modo, a importância dos gastos militares nesse período56 parece estar mais
vinculada com a necessidade de “sustentar politicamente a dominação, de classe e
interimperialista” (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 325). Florestan Fernandes (1975, p.
21) também argumenta que o imperialismo, especialmente após 1945, “representa uma luta
violenta pela sobrevivência e pela supremacia do capitalismo em si mesmo”. Mesmo as
burguesias das economias periféricas – que Fernandes chama de “elites econômicas, políticas
e culturais” – “são a favor dele, como a única alternativa para enfrentar a ‘subversão’, para lutar
contra a ‘corrupção’, e para ‘evitar’ o comunismo...” (FERNANDES, 1975, p. 23-24). Contra
essa interpretação podemos sustentar que desde que a burguesia se tornou a classe social
hegemônica – o que significa que ela se transforma de uma classe revolucionária em uma classe
conservadora –, o uso da violência estatal sempre foi necessário para a manutenção do status
quo, de modo este motivo não parece ser suficientemente forte para explicar a importância dos
gastos militares nesse período em específico. Em outros termos, neste período histórico em
particular, mas especialmente após a queda do Muro de Berlim, a importância crescente dos
gastos militares vis-à-vis a desimportância crescente do conflito militar direto entre as potências
capitalistas parece, efetivamente, ser um paradoxo, para usar um termo de Wood (2014, p. 109).
Para entender esse paradoxo, é preciso ter claro uma outra característica desse
período: as relações internacionais efetivavam-se entre “Estados mais ou menos soberanos”
(WOOD, 2014, p. 100) – e não entre Estados e protetorados ou colônias –, o que implica que a
projeção econômica de capitais imperialistas sobre as regiões periféricas não podia mais ser
imposta formalmente com o uso auxiliar da força extraeconômica. Este imperialismo de novo
tipo é “governado por imperativos econômicos e administrado por um sistema de múltiplos
Estados”57, onde o assim chamado Terceiro Mundo deveria “ser colocado à disposição do
capital ocidental” (WOOD, 2014, p. 100). Enquanto no imperialismo clássico a rivalidade

55
CIZE, P. et al. Le Fonds monétaire: une enterprise de pillage des peuples. Paris: Selio, 1990. p. 133.
56
Com dados disponíveis entre 1950 e 1953, Arrizabalo Montoro (2014, p. 323) mostra que os gastos militares
quase quadruplicaram-se nesse período.
57
Demonstraremos a relação entre imperialismo e sistema de múltiplos Estados na subseção 5.3.
75

interimperialista se manifestava tanto na concorrência econômica quanto na corrida


armamentista – as características quatro e cinco da famosa definição de Lenin do imperialismo
–, o argumento posto aqui é que a forma do capitalismo pós-1945 engendra um tipo de
rivalidade fundamentalmente econômica. Nos termos de Wood (2014, p. 99): “quando as duas
potências derrotadas [na Segunda Guerra Mundial], Alemanha e Japão, surgiram como os
principais competidores da economia norte-americana, com grande ajuda dos vencedores,
começou verdadeiramente uma nova era”. Com a Guerra Fria, a potência militar estadunidense
se afasta da típica rivalidade militar interimperialista em direção ao “objetivo genérico de
policiar o mundo no interesse do capital (norte-americano)” (WOOD, 2014, p. 100).
Agora, aquele paradoxo pode ser reformulado da seguinte forma: “à medida que a
competição econômica foi superando o conflito militar nas relações entre os principais
governos, mais os Estados Unidos lutaram para se tornar o poder militar mais esmagadoramente
dominante que o mundo já viu” (WOOD, 2014, p. 109). Essa fantástica assimetria em favor dos
Estados Unidos é o que Wood chama de “imperialismo excedente” e que explica o paradoxo:

Talvez seja precisamente por não ter nenhum objetivo claro e finito que o novo
imperialismo exija força militar tão pesada. A dominação ilimitada de uma economia
global e dos múltiplos Estados que a administram exige ação militar sem fim, em
propósito ou tempo. (WOOD, 2014, p. 109).

Portanto, os gastos militares do período crescem assimetricamente e se justificam


quando consideramos a necessidade difusa de preservar globalmente os interesses do capital.
Como apontado por Wood, o interesse estadunidense em defender os interesses globais do
capital é, na realidade, um autointeresse. De fato, o PIB dos Estados Unidos em proporção ao
PIB conjunto de Alemanha, França, Japão e Reino Unido, passou de 79,9% em 1939 para
192,3% em 1945; e os Estados Unidos possuíam dois terços das reservas mundiais de ouro em
1945 (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 282). Nesse sentido, o “imperialismo excedente”
dos Estados Unidos decorre do imperialismo excedente dos capitais estadunidenses.
Isto posto, a seguinte citação de Wood ajuda a sintetizar o argumento desenvolvido
até aqui:

Antes que a hegemonia econômica do capital viesse a dominar o mundo, o capitalismo


passou pela era clássica do imperialismo, com todas as suas rivalidades geopolíticas
e militares. Essa era terminou há muito. O imperialismo capitalista se tornou quase
inteiramente uma questão de dominação econômica, em que os imperativos de
mercado, manipulados pelas potências capitalistas dominantes, são levados a fazer o
trabalho que já não é feito pelos Estados imperiais nem pelos colonizadores. Mas
76

agora estamos descobrindo que a universalidade dos imperativos capitalistas não


removeu a necessidade da força militar. Na verdade, ocorre o contrário (WOOD,
2014, p. 115, grifos nossos).

Com a avidez em enfatizar sua contribuição principal – a centralidade da dominação


econômica –, Wood parece negligenciar que a era do imperialismo clássico também foi
moldada pela hegemonia do capital. Ou, melhor dizendo, aquela era foi responsável por espraiar
esta hegemonia através da exportação de capital, como tentamos defender na seção anterior. De
fato, a inflexão de 1945 sugere uma mudança qualitativa na exteriorização do imperialismo. Se
agora, como indica Wood, ele é uma questão “quase inteiramente” de dominação econômica,
precisamos desvendar por quais outras formas – além da exportação de capitais – o
imperialismo se manifesta.
Considerando a teoria como “espelhamento de uma realidade material que existe
independentemente da consciência” (LUKÁCS, 2012b, p. 300), as transformações reais devem
originar transformações no plano da reflexão58. Se esta concepção materialista de conhecimento
estiver correta, e se realmente ocorreram as transformações no capitalismo e no imperialismo
que destacamos anteriormente, deve ter havido uma mudança na forma de conceber o
imperialismo.
As novas características do capitalismo pós-Segunda Guerra Mundial
possibilitaram que o marxismo realçasse novas manifestações fenomênicas do imperialismo. A
expansão espacial do capitalismo, formando periferias da acumulação de capital, trouxe aquilo
que o internacionalismo de Lenin tanto destacava: a potencialização da luta de classes em novos
espaços. Nesse contexto pós-colonial, a dominação imperialista assume uma forma tipicamente
mercantil, com a esfera da circulação de mercadorias – o comércio internacional – ocupando a
centralidade das reflexões sobre o imperialismo. Este é o assunto da próxima subseção.

58
Um exemplo onde Marx explicitamente demonstra sua concepção materialista do conhecimento é o último
aditamento de Teorias da mais-valia, cujo título é “Lutero supera Proudhon no combate ao juro. As ideias sobre
juro mudam com o desenvolvimento das relações capitalistas”. Marx demonstra elegantemente como as
transformações materiais transformaram antigas concepções sobre o juro ou a usura: “No melhor período do
mundo antigo, proibida a usura (isto é, não se permitiam juros). [...] Na teoria prevaleceu sempre o ponto de vista
(sustentado por Aristóteles) de a usura ser em si má. Na idade média cristã é ‘pecado’ e proibida pelo ‘direito
canônico’. Era moderna. Lutero. Ainda a concepção católico-pagã. A usura se propaga muito [...]. Mas já vence a
legitimação burguesa. Holanda. Primeira apologia da usura. Inglaterra. Século XVII. Não se combate mais a usura
em si, mas a magnitude do juro [...]. Século XVIII. Bentham. Reconhece-se que a usura livre é elemento da
produção capitalista” (Marx, 1980, p. 1568-1569, grifos do autor).
77

2.1.3 Teoria marxista da dependência e a troca desigual

2.1.3.1 As teorias da troca desigual59

Frente às contradições reais postas pelo desenvolvimento histórico do objeto, o


marxismo renovou sua interpretação sobre o imperialismo. Dentro dessa renovação, novos
fenômenos passam a ser destacados como, por exemplo, o comércio de mercadorias. Sob o
signo da “troca desigual”, o marxismo dos anos 1960 e 1970 demonstra que o comércio exterior
envolvendo capitais com distintos níveis de produtividade equivale a uma relação imperialista.
Uma referência importante nesse campo é o trabalho do belga Ernest Mandel (1985)
que tenta relacionar a lei do valor com o imperialismo. Nos termos do autor:

Subjacente a todo o desenvolvimento desigual e combinado das relações de produção


capitalistas, semicapitalistas e pré-capitalistas, interligadas pelas relações capitalistas
de troca, está o problema do efeito concreto da lei do valor no nível internacional –
em outras palavras, o problema das formações dos preços do mercado mundial e suas
repercussões nas economias nacionais. (MANDEL, 1985, p.46-47).

Como já destacado, um dos defeitos da teoria clássica do imperialismo é a falta de


rigor com os níveis de abstração. Aqui, Mandel parece estar atento com isso na medida em que
coloca por detrás do “desenvolvimento desigual e combinado” o “problema do efeito concreto
da lei do valor no nível internacional”. Sua ênfase recai sobre a formação dos preços e nas
possibilidades de transferência de trabalho que se desenvolvem a partir daí e que constituem,
para ele, a chamada “troca desigual”60.
O termo “troca desigual” é carregado de ambiguidades. Duas contribuições
originais foram as de Arghiri Emmanuel e as do próprio Mandel. A chamada teoria marxista da
dependência, cuja principal referência é Ruy Mauro Marini, toma como pressuposto a “troca

59
Esta subseção ocupa um largo espaço dentro desta seção pois entendemos que esse tema é geralmente
subdiscutido em trabalhos acadêmicos sobre o imperialismo – Cf. Amaral (2012), Corrêa (2012), Franco (2015),
Leite (2010). Mesmo teses sobre a teoria de Ruy Mauro Marini, como Bueno (2016) ou Luce (2011), não
aprofundam esse tema. Portanto, julgamos ser necessário pormenorizar a crítica em mais detalhes do que feito com
as teorias clássicas ou contemporâneas do imperialismo.
60
Ao longo deste trabalho o termo “troca desigual” pode ser substituído por “intercâmbio desigual” sem alterar o
sentido que queremos fornecer ao conceito. Outros autores, como Borges Neto (2011), preferem referir-se apenas
a “intercâmbio desigual” quando se trata do comércio exterior.
78

desigual”. Este termo, portanto, ocupa lugar central nas principais reflexões teóricas que
tentavam entender o imperialismo pós-1945.
Através da transformação dos valores em preços de produção, Emmanuel (1990)
estabelece uma teoria sobre a tendência secular de deterioração dos termos de troca entre países
com maior e menor composição orgânica média do capital. Baseado nas descobertas empíricas
da Cepal61, a questão que norteia a pesquisa de Emmanuel é descobrir a lei que regula o
movimento dos preços na economia mundial e, especificamente, por que os países do assim
chamado Terceiro Mundo sofrem com o barateamento relativo de suas mercadorias
transacionadas com o exterior. Nos termos do autor, a deterioração dos termos de troca “se ha
convertido en el problema más candente del presente y el futuro de los países subdesarrollados”
(EMMANUEL, 1990, p. 27).
Publicado em 1972, reside no próprio período histórico a justificativa para esta
teorização. Os anos compreendidos entre a Segunda Guerra Mundial e até aproximadamente a
década de 1960 devem ser entendidos, como já destacado, à luz do intenso processo de
descolonização: grandes regiões do mundo deixam de ser formalmente subordinadas às
potências imperialistas. Se, em função do marco colonial, era possível às metrópoles explorar
diretamente suas colônias, que tipo de lei econômica emerge após a descolonização que facilita
a “exploração” de países desenvolvidos sobre outros, subdesenvolvidos?
Na construção do problema de pesquisa, Emmanuel (1990, p. 32) sugere que as
relações econômicas internacionais favorecem os países que são mais avançados em termos de
industrialização. O autor ainda indica que as vantagens auferidas por esses países estão mais
relacionadas ao “grau de industrialização” do que ao número e extensão dos países dependentes.
Essas vantagens parecem se materializar em um “fluxo de valores reais” do polo mais atrasado
para o polo mais avançado da economia mundial, de forma que entender esse “fluxo”, portanto,
é o que constitui a teoria da troca desigual de Arghiri Emmanuel.
Emmanuel (1990) denomina de “troca desigual” o movimento permanente de
desigualdade nos termos de intercâmbio – definido como preço médio das mercadorias
exportadas pelos países subdesenvolvidos dividido pelo seu oposto, isto é, das mercadorias
importadas – em benefício dos países desenvolvidos. Dessa forma o problema da troca desigual
refere-se a problemas na formação de preços e, como tal, devem ser teorizados com base nas
leis de funcionamento do capitalismo e especialmente com base na lei do valor.

61
Cf. Prebisch (2000a, 2000b) ou, para uma síntese do pensamento cepalino, Rodríguez (1981). Uma crítica
marxista pode ser vista em Caputo e Pizarro (1970).
79

Em um primeiro momento, o autor apresenta um modelo de formação de preços de


produção seguindo as etapas desenvolvidas por Marx no Livro III de O Capital62.
Implicitamente ele está assumindo que os preços de produção são iguais aos preços de mercado.
Enquanto o exemplo de Marx considera cinco setores diferentes, Emmanuel (1990, p. 43)
considera dois setores, que poderiam representar dois países diferentes, A e B, o primeiro com
maior e o segundo com menor composição orgânica. Mesmo que Marx tenha demonstrado
como os setores com menor composição orgânica transferem valores para os setores com maior
composição orgânica, Emmanuel não vai considerar isso como uma “troca desigual” posto que
seu referencial é a deterioração da relação entre preços (e não a diferenciação entre preços e
valores).
O exemplo de Emmanuel (1990), considerando taxa de mais-valor de 100%, segue
abaixo (Tabela 1):

Tabela 1 – Transformação de valores em preços de produção (modelo 1, com taxas de mais-


valor iguais)

Capital
Capital Investido ∑𝒎
consumido 𝑪𝒑 = 𝒄 + 𝒗
m 𝑽= 𝒄+𝒗+𝒎 𝒍′𝒎 = 𝒍 = 𝑪𝑰 ∗ 𝒍′𝒎
∑ 𝑪𝑰
cI v CI c v
A 850 50 900 200 50 50 300 10% 90 250
B 50 50 100 10 50 50 110 10% 10 60
900 100 1000 210 100 100 410 10% 100 310
Fonte: EMMANUEL, 1990, p. 43

Onde cI é o capital constante investido, v o capital variável, CI o capital total


investido, c o capital constante consumido no processo de produção, m o mais-valor produzido
no processo de produção, l’m a taxa média de lucro (total do mais-valor produzido dividido pelo
capital social total que fora investido), l o lucro auferido por cada capital individual em
proporção ao volume investido e Pp o preço de produção, definido como custo de produção
mais lucro médio (c+v+l).
Após apresentar corretamente a formação dos preços de produção, pode ser
constatado que o termo de troca entre A e B é de 340:70 (preço de produção de A em relação ao
preço de produção de B). Emmanuel ignora o fato de que se as mercadorias fossem vendidas
pelos valores os termos de troca seriam relativamente mais vantajosos para o capital B

62
A teoria de Marx dos preços de produção será apresentada na próxima seção. Cf. Subseção 3.4.2 desta tese.
80

(300:110) e, por proceder assim, desconsidera o fato de que quando a troca é feita em termos
de preços de produção, o capital B transfere gratuitamente valores para o capital A. Enquanto
o valor produzido por B (110) é maior do que o valor apropriado por ele (70), o capital A se
apropriou de um valor maior (340) do que produzido por ele (310).
Como Emmanuel (1990, p. 44) ignora esse fluxo de valores de B para A e verifica
que as mercadorias são trocadas por seus preços de produção, conclui que não há troca desigual
nesse caso: “Luego, en este modelo el producto de la rama A se cambia por el producto de la
rama B en la relación 340:70 y no hay intercambio desigual” (grifos nossos).
Já nesta primeira abordagem do problema, nos parece que a concepção equivocada
de Emmanuel está fundamentada em uma compreensão também equivocada da lei do valor de
Marx. Isso ajuda a entender o caráter ricardiano da teoria de Emmanuel, que, como Shaikh
(1990, p. 167, 172) destaca, aceita a teoria do comércio de Ricardo baseada na lei dos custos
comparativos. Na interpretação de Emmanuel, inexiste um mecanismo real que diferencie a
produção da apropriação de valores e, portanto, promova a troca desigual de valores. Enquanto
na motivação do problema ele se referiu a um “fluxo de valores reais”, na análise teórica
propriamente dita isso é desconsiderado, afinal, como sua conclusão do modelo 1 indicou, se
as mercadorias são trocadas por seus preços de produção, não existe, para ele, a troca desigual.
O autor desconsidera o que é fundamental para Marx: as mercadorias só deixam de
ser vendidas por seus valores pois, caso o fossem, as taxas de lucros auferidas pelos capitais
individuais seriam diferentes – maiores quanto menor a composição orgânica do capital. Em
função dessa diferença é que a concorrência entre os capitais promove o nivelamento (enquanto
tendência) das taxas de lucro por meio da formação dos preços de produção. Portanto, só se
formam os preços de produção à medida que os capitais mais produtivos (e que produzem taxas
menores de lucro) podem vender suas mercadorias por um preço acima do valor: a apropriação
é maior do que a produção de valores nestes setores em função exclusivamente da formação
dos preços de produção.
Nos termos da Tabela 1, se as mercadorias fossem vendidas pelos valores as taxas
de lucro dos setores A e B seriam, respectivamente, 5,5% e 50%. Essa diferença promoveria
uma migração de capitais do setor A para o setor B, aumentando a produção de capital-
mercadoria em B e diminuindo em A, promovendo, consequentemente, uma diminuição do
preço ofertado em B e o contrário em A. Esse movimento se interromperia quando os preços de
produção fossem tais que as taxas de lucros estivessem equalizadas. É o que ocorre quando o
preço de produção em A chega a 340 e em B a 70. Quando as mercadorias são trocadas nessa
81

proporção, um valor de 40 que fora produzido por B se transfere gratuitamente para A. Em


termos de valores, portanto, isso constitui uma troca desigual. Não é esse o entendimento de
Emmanuel (1990).
Para chegarmos ao conceito de troca desigual para Emmanuel, é preciso se desfazer
de uma das duas hipóteses utilizadas por Marx em sua teoria dos preços de produção. A primeira
hipótese – e que permanece no modelo de Emmanuel – é da mobilidade de capitais entre os
distintos ramos de produção que permite a equalização das taxas de lucro. A segunda premissa
de Marx, seguindo o entendimento de Emmanuel, é da perfeita mobilidade da força de trabalho
que permite manter mesmos níveis de salário e de taxa de mais-valor entre os setores. Para o
autor, dentro de uma economia nacional ambas podem ser aceitas, já que é factível considerar
que tanto o capital quanto o trabalho podem se movimentar livremente dentro de um mesmo
país. Se podem se movimentar livremente, qualquer aumento de lucros ou salários em
determinado setor atrairá capital ou trabalho de forma que volte ao equilíbrio anterior. Portanto,
o modelo analítico de Marx como descrito pela Tabela 1 seria, nas palavras de Emmanuel (1990,
p. 46), “perfeitamente aplicável” a uma economia nacional, de forma que “dentro desses limites
e como regra geral a troca desigual não existe”.
O problema passa a ocorrer, seguindo o argumento de Emmanuel, quando
analisamos as duas hipóteses no marco da economia internacional. Em termos da mobilidade
de capitais, é razoável admitir que em face de taxas maiores de lucro em um determinado país,
capitais de outros lugares migrem para lá em busca desta rentabilidade. Logo, diz Emmanuel
(1990, p. 46), “se pode admitir que a longo prazo a proporcionalidade dos lucros acabará por
se realizar”. O contrário acontece com os salários na interpretação do autor: não existe
mobilidade de força de trabalho no plano internacional a ponto de nivelar salários e taxas de
mais-valor, o que, nos termos do autor, significa dizer que “as fronteiras constituem limites de
descontinuidade absoluta” (EMMANUEL, 1990, p. 47). Por isso, e essa é a chave de seu
raciocínio, o esquema de Marx não se aplicaria ao mercado mundial já que, na realidade,
salários e taxas de mais-valor nacionalmente consideradas não convergiriam para um
determinado patamar médio. Consequentemente, conclui Emmanuel, o modelo de Marx não
explica o intercâmbio desigual entre países.
Emmanuel (1990, p. 47) reconhece que o próprio Marx não via que a diferença
entre as taxas de mais-valor traria implicações ao estudo, já que seu objetivo era, respeitando
os níveis de abstração, expor a maneira como se estabelece uma taxa média de lucro dentro de
uma economia diferenciado os setores apenas pela composição do capital. Ou seja, a suposição
82

de Marx de que os capitais se defrontam com mesmas taxas de mais-valor é um requisito de


seu próprio método abstrativo. Emmanuel, entretanto, vai alterar o modelo de Marx
considerando taxas de mais-valor diferentes entre os setores. Ele supõe que A possua uma taxa
menor do que B, representando o fato de que A possa ilustrar um país desenvolvido e B um
subdesenvolvido. Nos termos do autor, temos o esquema apresentado na Tabela 2.

Tabela 2 – Transformação de valores em preços de produção (modelo 2, com taxas de mais-


valor distintas)

Capital
Capital Investido ∑𝒎
consumido 𝑪𝒑 = 𝒄 + 𝒗
m 𝑽= 𝒄+𝒗+𝒎 𝒍′𝒎 = 𝒍 = 𝑪𝑰 ∗ 𝒍′𝒎
∑ 𝑪𝑰
cI v CI c v

A 850 50 900 200 50 50 300 15,18% 136,65 250

B 50 5 55 10 5 95 110 15,18% 8,35 15

900 55 955 210 55 145 410 15,18% 100 310


Fonte: EMMANUEL, 1990, p. 48

Ao aumentar a taxa de mais-valor no país B, aumentando o mais-valor total


produzido e diminuindo o capital social investido, o resultado é um aumento da taxa média de
lucro em ambos os países. O preço de produção do país A aumenta relativamente ao do país B,
ou seja, há uma deterioração dos termos de troca para o país B. Antes (Tabela 1) o termo de
troca A:B era de 340/70 = 9,14. Agora, o termo de troca é 386,65/23,35 = 16,55. Portanto, o
que Emmanuel considera como intercambio desigual é a deterioração dos termos de
intercâmbio ao longo do tempo em função de aumento da taxa de mais-valor nos países
subdesenvolvidos.
A definição de intercâmbio desigual para Emmanuel pode ser sintetizada assim:

Abstracción hecha de toda alteración de los precios resultante de una competencia


imperfecta, se llama ‘intercambio desigual’ a la relación de los precios que se
establece en virtud de la ley de la nivelación de la tasa de ganancia entre regiones de
tasa de plusvalor institucionalmente diferentes, significando el término
‘institucionalmente’ que esas tasas de plusvalor son, por alguna razón, sustraídas a la
igualación competitiva. (EMMANUEL, 1990, p. 50).

Para o autor, seu modelo está de acordo com a lei do valor de Marx na medida em
que, na totalidade, valores e preços de produção continuam equivalentes. Em termos
esquemáticos, poderíamos resumir o argumento de Emmanuel da seguinte forma. As
necessidades sociais dos trabalhadores nos países subdesenvolvidos ainda estão no nível de
83

subsistência – o que, como já destacamos anteriormente, o aproxima bastante de um raciocínio


ricardiano –, ao contrário do que ocorre com os trabalhadores nos países desenvolvidos, onde
o desenvolvimento histórico do capitalismo imprimiu maiores necessidades sociais para a
reprodução da força de trabalho nestes lugares. Como resultado, o valor da força de trabalho
tende a ser menor, ou, melhor dizendo, crescentemente menor, nas regiões subdesenvolvidas
relativamente às desenvolvidas. Logo, tudo o mais constante, a produção de mais-valor é mais
intensa naquelas do que nestas. Entretanto, supondo que o comércio é feito pelos preços de
produção, as mercadorias vendidas pelos países subdesenvolvidos tendem a ficar relativamente
mais baratas do que a que eles compram, consubstanciando-se no processo descrito por
Emmanuel (1990) como a troca desigual.
Podemos inferir que a baixa condição de vida da classe trabalhadora dos países
subdesenvolvidos é um pressuposto da troca desigual nos moldes de Emmanuel; uma relação
de causa e efeito contrária daquela analisada por Marini (2005), como discutiremos adiante.
Supondo que a posição de Emmanuel fosse verdadeira, qual a origem desse diferencial de
salários e, portanto, de condições de vida? A resposta sugerida pelo autor, com alguma
precaução, é a seguinte: “penso que a diferença dos salários deve-se essencialmente a uma
diferença no valor da força de trabalho”, isto é, nos países subdesenvolvidos o valor da força
de trabalho seria menor do que nos países desenvolvidos. Dessa forma, continua Emmanuel,
“podemos, com efeito, dizer que em seu conjunto as necessidades do homem subdesenvolvido
ainda permanecem no nível estrito do mínimo fisiológico” (MARINI, 2005, p. 54)63.
Uma crítica à tese de Emmanuel pode ser encontrada em Mandel (1985), que
publicou sua obra também em 1972. O contexto econômico, político e social era, portanto, o
mesmo. Neste sentido, O capitalismo tardio serve para apresentar as próprias teorias do autor
bem como criticar posições divergentes, tais quais, por exemplo, a posição de Emmanuel sobre
a troca desigual.
Já no segundo capítulo de sua obra é possível perceber os delineamentos de sua
interpretação que serão mais bem desenvolvidos no décimo-primeiro. Na discussão sobre
mercado mundial capitalista, Mandel (1985, p. 29) enfatiza o fato de que na troca capitalista
interagem relações de produção capitalistas, semicapitalistas e não-capitalistas – no que será
um ponto de embate com Emmanuel. Nas palavras do autor, em um entendimento que ele

63
Mais uma vez temos uma diferenciação importante com Marini (2005), que não se refere a diferenças em termos
de valor da força de trabalho. Para ele, a superexploração é entendida como sendo a remuneração da força de
trabalho por um preço abaixo do seu valor.
84

atribui primeiramente a Marx e depois a Rosa Luxemburgo, “o movimento efetivo do capital


manifestamente começa a partir de relações não capitalistas e prossegue dentro do quadro de
referência de uma troca constante, exploradora, metabólica, com esse meio não capitalista”. De
fato, só pode ocorrer essa relação “metabólica” caso haja, na região capitalista, capital
excedente que possa ser direcionado para o exterior e, ao mesmo tempo, que a taxa de lucro no
exterior – ou nas regiões não capitalistas – seja superior, pelo menos na margem. Para o autor,
Emmanuel, Samir Amin e Gunder Frank erraram por desconsiderar a coexistência de diferentes
relações de produção.
Um primeiro momento dessa relação “exploradora” ocorre antes da era do
imperialismo clássico. Com o desenvolvimento da grande indústria na Inglaterra e o equivalente
incremento na composição orgânica do capital, foi possível que esses capitais utilizassem a
chamada “artilharia dos preços baixos” para inundar os mercados externos de mercadorias
industriais baratas e, consequentemente, destruir relações de produção não capitalistas alhures,
tal como ocorreu no Japão, Estados Unidos, Alemanha, Rússia, etc64. Nessa interação comercial
entre regiões com diferentes composições orgânicas já é possível visualizar a troca desigual:

[...] a troca de mercadorias produzidas em condições de mais alta produtividade do


trabalho por mercadorias produzidas em condições de mais baixa produtividade do
trabalho era uma troca desigual; era uma troca de menos trabalho por mais trabalho,
que inevitavelmente conduziu a um escoamento, a um fluxo para fora de valor e
capital desses países, em benefício da Europa occidental. (MANDEL, 1985, p. 35,
grifos nossos)

Neste trecho podemos identificar que a interpretação de Mandel está – por enquanto
supondo que o trabalho a que ele se refere é o trabalho abstrato – idêntica à leitura de Marx
sobre transferências de valor entre setores. Enquanto o comércio internacional viabiliza essa
primeira forma de relação “exploradora” – a troca desigual – o advento do imperialismo clássico
será marcado pelo que Mandel (1985, p. 36) classifica como “mudança radical em toda essa
estrutura”. A partir de agora, continua o autor, “foi a exportação de capital dos países
imperialistas, e não o processo de acumulação primária impulsionado pelas classes dominantes
locais, que determinou o desenvolvimento econômico do que seria, mais tarde, denominado
‘Terceiro Mundo’”.
Esse controle do capital estrangeiro sobre a acumulação local de capital implicou
uma nova forma de transferência internacional de valores, um ‘escoamento’ dos recursos locais

64
Desenvolvemos um argumento parecido na subseção 1.3.
85

que se manifesta, por exemplo, nas remessas de lucro ao exterior: “esse escoamento passou a
assumir a forma de expropriação contínua, pelo capital estrangeiro, de produto excedente social
local” (MANDEL, 1985, p. 36).
A tese principal de Mandel é que a era do imperialismo clássico foi substituída,
depois da Segunda Guerra Mundial, pela era do capitalismo tardio. Do ponto de vista da
exportação de capital, este passa a ser transacionado entre os próprios países imperialistas e não
apenas entre imperialistas e subdesenvolvidos. O motivo para isso, na leitura de Mandel, foi o
aumento do risco de investimento em função da exacerbação das revoltas sociais como
resultado da crise econômico-social no assim chamado Terceiro Mundo. Apesar disso, a
exportação de capital para os países periféricos fortalece – junto ao barateamento das matérias
primas – o movimento de industrialização nestes países (MANDEL, 1985).
Nessa nova fase, a economia mundial estaria baseada em uma nova estrutura. Nos
termos de Mandel (1985, p. 43, grifos nossos), isso significa que “estão emergindo novos níveis
diferenciais de acumulação de capital, produtividade e extração de excedente – e estes, embora
de natureza diversa, mostram-se ainda mais pronunciados que os da época do imperialismo
‘clássico’”. As formas em que ocorrem essa “extração de excedente” ou, em outros termos,
“transferência líquida de valor”, são, basicamente, remessa de parte do mais-valor não
acumulado (dividendos, juros, etc.) e “agravamento da troca desigual” (MANDEL, 1985, p.
44).
Mandel (1985, p. 44) lembra que Marx já se referia à transferência internacional de
valor em O Capital, como um resultado de diferenças na produtividade ou, o que significa a
mesma coisa, na composição do capital: “a troca desigual no mercado mundial, como torna
claro Marx no Capítulo XXII do Livro I de O Capital, é sempre o resultado de uma diferença
na produtividade média do trabalho entre duas nações65”. Pode ser destacado que nada tem a
ver com o tipo de mercadoria produzida, se agrícola ou industrial, mas às diferenças nas
composições orgânicas do capital. Ao mesmo tempo, a transferência de valor também pode ser
resultado de uma diferença em termos de taxa de mais-valor entre as economias nacionais.
De fato, como alerta Mandel (1985, p. 46-47), toda a problemática envolvendo
transferências (distribuição) de valores – independentemente da forma em que ocorre – está
relacionada com o grau em que a lei do valor se expressa concretamente no mercado mundial.

65
Como Mandel está se baseando na edição inglesa de O Capital, o Capítulo XXII ao qual ele se refere é
“Diversidade nacional dos salários”, equivalente ao Capítulo XX da edição alemã e das traduções brasileiras do
livro.
86

Sobre esse ponto, o autor (MANDEL, 1985, p. 29), ainda no começo do capítulo sobre o
mercado mundial, levanta uma citação de Engels para indicar que, nas palavras do parceiro de
Marx, a lei do valor e a distribuição do mais-valor por meio da taxa de lucro “atingem sua
completa realização aproximada apenas com o pressuposto de que a produção capitalista tenha
sido completamente estabelecida por toda parte”66. Ou seja, se a produção capitalista estiver
“completamente estabelecida”, a lei do valor passa a vigorar plenamente. Como corolário deste
raciocínio temos que, se as trocas no mercado mundial ocorrem entre relações de produção
capitalistas, semicapitalistas e pré-capitalistas – como Mandel acredita –, a lei do valor não
opera plenamente (o autor parece não perceber que o próprio Marx (1980, p. 729-730) sugere
que a produção de valor pode se efetivar mesmo em condições de trabalho não-assalariado,
como por exemplo a produção de algodão no sul escravocrata dos Estados Unidos; portanto,
desde que se produza para o mercado mundial é possível visualizar casos formalmente
capitalistas).
Baseando-se nisso, Mandel (1985, p. 47) conclui este capítulo com uma indicação
que será fundamental na crítica a Emmanuel e que expõe, ao mesmo tempo, uma fragilidade de
sua teoria. Segundo ele, a equalização das taxas de lucro individuais (ou nacionais) só ocorreria
no mercado mundial caso existisse “completa mobilidade internacional do capital”, a qual seria
possível somente se existisse “um único estado mundial capitalista”. Ou seja, as fronteiras
representariam uma barreira à mobilidade dos capitais, gerando taxas desiguais de lucro e,
portanto, a não formação de preços uniformes de produção. As taxas de lucro se equalizariam
apenas no mercado nacional.
Mandel (1985, p. 248, grifos nossos) deixa claro que a troca desigual é derivada da
aplicação da teoria do valor-trabalho ao comércio internacional. Partindo disso, ele propõe a
existência de duas fontes de troca desigual. A primeira, nos termos do autor, refere-se ao “fato
de que o trabalho dos países industrializados é considerado mais intensivo (portanto, produtor
de mais valor) no mercado mundial do que o dos países subdesenvolvidos”. A segunda refere-
se ao fato da não equalização das taxas nacionais de lucro e a consequente coexistência de
“diferentes preços nacionais de produção”.
As duas fontes da troca desigual resultam em que as mercadorias, no mercado
mundial, tendem a ser vendidas pelos valores internacionais. Ou seja, se não há a formação de
uma taxa média de lucro global, não há diferenciação entre preços de produção e valores. Logo,

66
Carta de Engels a Conrad Smith, em 12 de março de 1895. Cf. Engels (2010, p. 462-467).
87

sendo fiel ao raciocínio do autor, precisamos assumir que os valores produzidos internamente
e inseridos no mercado mundial são iguais aos valores internacionais. Se, portanto, valores de
determinada magnitude são trocados por valores quantitativamente iguais, como definir o
“conteúdo da ‘troca desigual’”? Valendo-se da primeira fonte da troca desigual, seu conteúdo,
no argumento de Mandel (1985, p. 253-254), é a troca de “quantidade desiguais de trabalho”.
Para que isso seja verdade, a hora de trabalho no país imperialista tem que ser considerada
“mais produtiva e intensiva” do que no subdesenvolvido, de forma que a hora de trabalho
naquele produza mais valor do que a hora de trabalho neste. Dessa forma, uma mesma
quantidade de valor carrega quantidades desiguais de trabalho: esta é a troca desigual para
Mandel (1985, p. 253-254). Um problema desse argumento é que o autor não menciona se está
tratando de quantidades desiguais de trabalho concreto ou abstrato. Sendo trocadas quantidades
iguais de valores, o quantum de trabalho abstrato cristalizado nos pacotes de mercadorias
trocados deve necessariamente ser o mesmo. Deduz-se, portanto, que a troca desigual para
Mandel equivale ao processo em que são trocadas quantidades desiguais de trabalho concreto.
Em um exemplo numérico, Mandel (1985, p. 254) supõe que o pacote de
mercadorias do país A, imperialista, contenha 300 milhões de horas de trabalho enquanto o
pacote de B, dependente, contenha 1,2 bilhão de horas de trabalho e ambos são equivalentes em
termos de valor – já que “a hora de trabalho do país desenvolvido é considerada mais produtiva
e intensiva que a da nação atrasada” (MANDEL, 1985, p. 254). Aqui, a falta de rigor com o
tratamento da categoria tempo de trabalho se manifesta novamente. Mandel parece tratar
indistintamente os efeitos distintos da produtividade e da intensidade do trabalho sobre a criação
de valor: as 300 milhões de horas de trabalho de A só seriam equivalentes em termos de valor
às 1,2 bilhão de horas de trabalho de B se o trabalho em A fosse mais intensivo que em B. A
maior produtividade do trabalho em A do que em B não teria esse efeito pois a maior quantidade
de mercadorias produzidas por A seria compensada pela diminuição do valor individual de cada
uma, de forma que a quantidade total de valor produzida com mais ou menos produtividade não
se altera67.
Se, então, o que ocorre no mercado mundial é transferência de trabalho concreto,
como apontamos anteriormente, qual a relevância disso? Conforme a argumentação de Mandel
(1985, p. 254), se não houvesse troca desigual, A deveria desembolsar o equivalente a 1,2 bilhão
de horas de trabalho no lugar das 300 milhões. Nesse caso, haveria uma “redução considerável

67
M. D. Carcanholo (2013a, p. 90-93) e R. Carcanholo (2011a, p. 82-84) examinam o tratamento marxiano sobre
a distinção entre intensidade e produtividade do trabalho. Desenvolveremos esse ponto na Seção Três.
88

nos recursos destinados ao consumo e à acumulação. O crescimento econômico teria diminuído.


Nesse sentido a fórmula da ‘transferência internacional de valor’ certamente teria um
significado concreto” (grifos do autor). Ora, como Mandel não sustentou sua teoria da troca
desigual com base na transferência de valores, ele recorre a um contrafactual para defender o
poder explicativo de sua teoria.
Em síntese, mesmo sem o nivelamento das taxas de lucro – “mas a despeito da
inexistência desse nivelamento” –, o que se chama troca desigual para Mandel (1985, p. 255) é
“transferência de quantidades de trabalho, isto é, de recursos econômicos”. Em nosso
entendimento, o termo “recursos econômicos” soa estranho, pois, nesse sentido, o estoque de
meios de produção do país imperialista também poderia ser considerado recurso econômico, já
que também compõe o valor. Embora o país imperialista se aproprie de mais trabalho concreto
do que despendeu, por outro lado ele gastou mais em meios de produção do que se apropriou.
Ambos são “recursos econômicos”, o que poderia enfraquecer a tese de Mandel da troca
desigual; a menos que se apresente novas mediações que confiram ao trabalho concreto um
papel especial.
Mandel (1985, p. 244-245) elenca duas formas de “exploração” entre nações: a
obtenção de superlucros68 e a troca desigual. Ambas existiam na era do imperialismo clássico
e na era do capitalismo tardio, sendo que a diferença entre elas reside na importância de cada
uma em cada período histórico. No imperialismo clássico, os superlucros eram, nas palavras de
Mandel, “a principal forma de exploração metropolitana do Terceiro Mundo”, relegando à troca
desigual uma “forma secundária”.
Os chamados “superlucros” são obtidos, conforme Mandel (1985, p. 243), quando
o capital de um país se transfere para outro e, a partir disso, passa a usufruir de “diferenças entre
as taxas de lucro”. A questão que se abre agora é de onde se originam essas diferenças? O autor
aponta três motivos para essa divergência, considerando um mundo simplificado entre
“colônias” e “metrópoles”: i) a composição orgânica média do capital empregado nas colônias
era menor do que nas metrópoles; ii) taxa média de mais-valor superior nas colônias,
principalmente devido à extração de mais-valor absoluto; iii) preço da força de trabalho menor
que seu valor69 em função do tamanho do exército industrial de reserva.

68
Uma conceituação breve de superlucros tal qual utilizado por Mandel (1985, p. 415) pode ser a seguinte: “todos
os lucros superiores à taxa de lucro social média”, ou seja, a apropriação de uma taxa particular de lucro superior
à taxa geral. Como bem colocado por R. Carcanholo (2013, p. 103), o fundamento do superlucro é a mais-valia
extra obtida pelo desvio do valor individual em relação ao valor social. Cf. subseção 3.4.3 desta tese.
69
Que é a mesma coisa que a categoria “superexploração” de Marini (2005).
89

Embora houvesse essa “grande diferença” entre as taxas médias de lucro, isso não
acelerou a acumulação de capital nas colônias. Houve o contrário – o que nos ajuda a
compreender a constituição das economias subdesenvolvidas – em função da forma em que o
mais-valor era apropriado, o que significa, nas palavras de Mandel (1985, p. 244), que “uma
parte substancial da mais-valia capitalisticamente produzida nesses países (não só os
superlucros, mas todos os lucros) era drenada para as metrópoles, onde era usada para
impulsionar a acumulação ou distribuída como renda excedente”.
Além dos superlucros, outro mecanismo de exploração é a troca desigual, que,
conforme Mandel (1985, p. 244), se tornou a “regra geral” na era do capitalismo tardio. O
significado que o autor põe para a “troca desigual” já havia sido fornecido anteriormente e fica
reforçado na seguinte passagem: “Troca desigual significa que as colônias e as semicolônias
tendiam a trocar quantidades cada vez maiores de trabalho nativo (ou produtos do trabalho) por
uma quantidade constante de trabalho metropolitano (ou produtos do trabalho)”. Mandel se
aproxima de Emmanuel quando diz que uma das formas de identificar a troca desigual é através
da deterioração dos termos de troca.
A crítica central à tese de Emmanuel diz respeito a sua hipótese de que existe
“imobilidade internacional da força de trabalho e uma mobilidade internacional do capital” que
implicaria o “nivelamento internacional das taxas de lucro”. Se isso fosse verdade, aponta
Mandel (1985, p. 249), haveria uma tendência para o capital migrar em direção às regiões com
menores salários (ou maiores taxas de lucro), fomentando a acumulação de capital nessas
regiões, o que implicaria, portanto, a “impossibilidade do subdesenvolvimento” (grifos do
autor). Ou seja, a hipótese inicial de mobilidade internacional do capital – que “não se sustenta
nem teórica nem empiricamente” (MANDEL, 1985, p. 249) – faria a teoria da troca desigual
de Emmanuel entrar em contradição.
Mandel (1985, p. 249) contesta a hipótese da mobilidade de capital fundamentando-
se na “lei do desenvolvimento desigual e combinado” que determinaria a existência de “ritmos
irregulares de acumulação de capital” no modo de produção capitalista70. De passagem, cumpre
destacar que o autor utiliza essa “lei” sem demonstrá-la. Toma como verdadeira e, baseando-se
nela, sustenta a existência de regiões com baixo nível de acumulação de capital em função da
troca desigual, que implica “vasto exército industrial de reserva”, “subemprego colossal” e

70
Contribuição de Trotsky aos estudos sobre o imperialismo. Um resumo competente dessa lei pode ser encontrado
em Lowy (1998).
90

“baixos salários”. Portanto, os baixos salários não são, para Mandel, causa, mas sim
consequência:

[...] as enormes diferenças internacionais de valor e de preço da mercadoria força de


trabalho, que Arghiri Emmanuel enfatiza corretamente, não são causas, mas
resultados do desenvolvimento desigual do modo de produção capitalista, ou da
produtividade do trabalho em todo o mundo, pois a lógica do capital normalmente o
leva para as zonas com maiores perspectivas de valorização. (MANDEL, 1985, p.
249).

Em outro momento de crítica a Emmanuel, Mandel (1985, p. 250) apresenta


estatísticas mostrando taxas desiguais de lucro ao redor do mundo. Exemplo: “Em 1967, o
retorno desses investimentos era de 7,4% na Europa, de 12,3% na América Latina, de 14% na
Ásia e de 19,7% na África”. Aqui, mais uma vez, nos parece uma má compreensão do autor em
relação ao caráter tendencial da formação da taxa geral de lucro. Se a formação da taxa geral
de lucro mundial é tendencial, aproximada, esses números não servem para refutá-la. Por
exemplo, se em 1900 a taxa de retorno dos investimentos na África fosse 30% e em 1967 é
19,7%, é sinal de que está havendo mobilidade de capital e formação tendencial de uma taxa
geral de lucro.
Continuando a demonstração das contradições da tese de Emmanuel, Mandel parte
para um exemplo numérico que está resumido na Tabela 3.

Tabela 3 – Transformação de valores em preços de produção com mobilidade internacional de


capital (modelo que Mandel classifica como irreal)

Capital
Capital Investido 𝒎 ∑𝒎
consumido 𝒍′ = l
m 𝑽 = 𝒄+𝒗+𝒎 𝒍′𝒎 =
𝑪𝑰 ∑ 𝑪𝑰
cI v CI c v

A 5000 4000 9000 5000 4000 4000 13000 44% 51,78% 4660

B 200 2000 2200 200 2000 1800 4000 82% 51,78% 1140

5200 6000 11200 5200 6000 5800 17000 51,78% 5800


Fonte: O autor a partir de dados de MANDEL,1985, p. 251

Se houvesse mobilidade internacional do capital poderia ser formado um “lucro


internacional médio” de aproximadamente 52%. Embora, para Mandel (1985, p. 251), isso se
ajuste ao “modelo empírico”, ele não é factível pois o “pré-requisito para esse nivelamento seria
uma drenagem constante e substancial de capital de A para B”. Sem o funcionamento desse
91

pré-requisito, Mandel aponta que ocorreria o seguinte: “o fluxo de capital para B será
relativamente pequeno e a perda de valor sofrida por B em benefício de A, em decorrência da
‘troca desigual’ reduzirá a velocidade da acumulação de capital produtivo em B”, explicando
“o crescimento do subemprego em B” (grifos do autor). Aqui, corretamente, o autor situa a
troca desigual como transferência de valor, sendo o baixo salário um resultado e não ponto de
partida.
Mesmo que esse fluxo de capital seja “relativamente pequeno” para o país
subdesenvolvido, há, de alguma forma, um aumento na produção de mercadorias e uma
diminuição do preço de produção em relação ao valor. Ou seja, mesmo que as taxas de lucros
não se nivelem, existe uma tendência para a taxa de lucro cair em B e aumentar em A. Vamos
refazer o modelo apresentado por Mandel considerando essa situação:

Tabela 4 – Transformação de valores em preços de produção com imperfeita mobilidade


internacional de capital (crítica à Mandel)

Capital
Capital Investido 𝒎 ∑𝒎
consumido 𝒍′ = l
m 𝑽 =𝒄+𝒗+𝒎 𝒍′𝒎 =
𝑪𝑰 ∑ 𝑪𝑰
cI v CI c v

A 5000 4000 9000 5000 4000 4000 13000 44% 47% 4230

B 200 2000 2200 200 2000 1800 4000 82% 71% 1562

5200 6000 11200 5200 6000 5800 17000 52% 5792


Fonte: O autor

Considerando que a taxa equalizada de lucro (l’m) seria de 52% se houvesse


mobilidade perfeita de capital, respeitando a linguagem dos autores, vamos supor que a taxa
efetiva de lucro fique 20% abaixo para o país A e 20% acima para o país B. Para o país A, a
taxa de lucro passa a ser de 47% e para o país B de 71%. Como demonstrado na Tabela 4,
continua havendo uma troca desigual de valores à medida que, para o país A, o preço de
produção continua superior ao valor produzido, e, para o país B, ocorre o inverso. Resultado: o
fluxo de capital de A para B não significa, necessariamente, impossibilidade do
subdesenvolvimento para B. Esse capital até será acumulado produtivamente em B, mas não há
garantia lógica de que essa acumulação reverta o subdesenvolvimento. Assumir, como o faz
Mandel em sua crítica, que a troca desigual aumentaria a velocidade de acumulação em B é
assumir que todo mais-valor produzido seria acumulado produtivamente. Para afirmar isso
92

precisaríamos de outras mediações e outras hipóteses que não estão presentes na análise de
Mandel.
Na polêmica com Emmanuel sobre a relação de causa e efeito entre salários e
acumulação, Mandel (1985, p. 256) aponta – corretamente em nosso entendimento – que os
salários respondem, no longo prazo, à dinâmica da acumulação de capital. Nesse sentido, os
salários nos países imperialistas e nos dependentes “representam dois movimentos
complementares de um processo mundial único de acumulação de capital, ou dois aspectos
fundamentais das repercussões desse processo no desenvolvimento social e econômico da
humanidade sob o controle do capital”. Ou seja, a acumulação de capital deve ser entendida em
termos de um processo global com impactos diferenciados sobre as distintas formações sociais;
em uma abordagem próxima à apresentada em Pradella (2013, 2015a).
Em nosso entendimento, a fragilidade do argumento de Mandel é considerar
impossível a formação de uma taxa geral de lucro mundial. O ponto aqui se refere a uma
diferenciação entre a realidade e o conceito sobre esta realidade. Quando Mandel afirma que
não se forma uma taxa geral de lucro mundial pois, dado que existem barreiras à mobilidade do
capital, coexistem taxas nacionais desiguais de lucro, ele está se desfazendo de um conceito (a
taxa geral de lucro) a partir de uma suposta não aderência deste conceito à realidade (as taxas
desiguais de lucro). O problema desta interpretação é que parece se esquecer que as categorias
baseadas na lei do valor de Marx devem ser entendidas sempre em termos tendenciais ou
aproximados.
Em nossa leitura, se capitais de determinado lugar migram para outros lugares –
mesmo com barreiras, dificuldades, etc. – ou se os capitais já instalados aumentem a escala de
produção em busca de taxas maiores de lucro, forma-se, tendencialmente, uma taxa geral de
lucro entre os países, mesmo que, na realidade, as taxas de lucros nacionais sejam desiguais.
Neste caso, a distância entre as diversas taxas nacionais de lucro e a taxa geral de lucro tem o
papel concreto de estimular ou emperrar as movimentações de capital ao redor do globo.
Seguindo este raciocínio e reduzindo o nível de abstração, poderíamos entender que as
migrações de capital para a China, por exemplo, só ocorrem porque a taxa de lucro produzida
ali é maior do que a taxa mundial de lucro. Aliás, como o período histórico em que Mandel
viveu foi um dos momentos com menor fluxo internacional de capitais e com economias
93

relativamente mais fechadas71, isto poderia ser uma pista para entender para a forma como o
autor interpretou esta questão.
Na mesma carta de Engels citada por Mandel, há uma passagem que fundamenta
nossa posição e que foi negligenciada pelo autor. Ao discutir a diferenciação entre realidade e
conceito nos termos, segundo ele, hegelianos, Engels afirma:

[...] o conceito de uma coisa e sua realidade correm lado a lado como duas assíntotas,
sempre se aproximando mas nunca se encontrando. Esta diferença entre ambos é uma
diferença que impede que o conceito seja direta e imediatamente a realidade e que a
realidade seja imediatamente seu próprio conceito. Mas apesar do conceito ter a
natureza essencial de um conceito e não poder, portanto, prima facie diretamente
coincidir com a realidade, a partir da qual ele deve ser primeiro abstraído, [o conceito]
é ainda algo mais do que uma ficção [...] e mesmo assim corresponde à realidade com
aproximação assintótica. (ENGELS, 2010, p.463-464, tradução nossa)

Essa digressão metodológica de Engels é útil para compreender que a taxa geral de
lucro deve ser compreendida “como uma tendência, aproximação, média, e não como a própria
realidade”. Portanto, sabendo que a migração de capitais é um pressuposto para a taxa geral de
lucro e conhecendo as dificuldades mencionadas por Mandel para a migração de capitais, se
existe alguma mobilidade que, de alguma forma, se fundamenta em desvios das taxas nacionais
de lucro em relação à média, podemos inferir que se forma, tendencialmente, uma taxa geral de
lucro global. A formação de uma taxa média de lucro não significa que todos os capitais terão
iguais taxas de lucro. Ao contrário, a formação de uma única taxa média de lucro pressupõe que
os capitais apresentem distintas taxas de lucro72. Constatar empiricamente isso não nega a taxa
média de lucro, ao contrário, a comprova. Mandel aqui adota uma posição mais próxima de
Ricardo que de Marx.
Sobre esta polêmica, Saludjian (2014) alerta que o próprio Marx levantou o
problema – sem o responder explicitamente – da formação da taxa geral de lucro mundial. De
acordo com Saludjian (2014, p. 13), no Livro III de O Capital existem várias indicações sobre
“o caráter imediatamente e inerentemente mundial do capitalismo”. Na discussão sobre as
contra tendências à lei da queda tendencial da taxa de lucro, Marx lança uma questão que,
segundo Saludjian, é de grande importância: “outra questão que, a bem dizer, ultrapassa, por
seu caráter especial, os limites de nossa pesquisa: sobe a taxa geral de lucro em virtude da taxa
mais alta obtida pelo capital empregado em comércio exterior e particularmente no comércio

71
Cf. Eichengreen (2000, p. 132-134).
72
Cf. Seção Três desta tese.
94

colonial?” (MARX, 2008, p. 313). Em outros termos, o que Marx está se perguntando é se o
capital aplicado no exterior contribui para a formação de uma taxa geral de lucro mundial ou se
se formam taxas gerais de lucros nacionais e autônomas. Nos parece que, conforme indicado
anteriormente, a formação da taxa geral de lucro mundial só pode ser operada em termos
aproximados e se, e somente se, considerarmos a possibilidade de migração entre capitais de
distintas nacionalidades.
Sobre os problemas da teoria de Emmanuel, além do que já foi detectado nesta
seção, acreditamos que muito já foi esclarecido em outras ocasiões 73. Por esse motivo, iremos
nos deter na concepção (e na crítica) de Mandel tentando identificar onde está a centralidade da
polêmica e os pontos que merecem ser reavaliados à luz de uma formulação atenta com a
natureza dialética da teoria de Marx e com a polêmica contemporânea.
Como já discutido, Mandel rejeita a teoria da troca desigual de Emmanuel com base
na não aderência à realidade de seu mais importante pressuposto: a hipótese da perfeita
mobilidade internacional do capital (junto com a hipótese da imobilidade da força de trabalho).
O problema da posição de Mandel é que, quando ele desconsidera a perfeita mobilidade do
capital em troca de sua hipótese de que, no mercado mundial, valores são idênticos aos preços
de produção, ele apenas desloca a irrealidade da hipótese para o outro extremo; simplesmente
faz um giro de 180 graus na hipótese de Emmanuel. Em nosso entendimento, ambos os autores
estão restritos a uma dicotomia entre mobilidade perfeita versus imperfeita que,
independentemente da posição a ser seguida, não é satisfatória.
Nos parece claro que a realidade do capitalismo (principalmente a partir do advento
da grande indústria e especialmente durante e após a era do imperialismo clássico) é que existe
alguma mobilidade internacional do capital e alguma mobilidade internacional da força de
trabalho. Se não fosse assim, os países na periferia do sistema não seriam receptores líquidos
de capitais e, por outro lado, exportadores líquidos de mão de obra.
Isto posto, para que sejamos coerentes com a crítica da economia política de Marx,
parece-nos plausível assumir que a migração de capitais é orientada por diferentes
possibilidades de valorização do capital, ou seja, diferentes possibilidades de lucratividade que
respondem, em última instância, às diferenças quantitativas entre as composições orgânicas dos
diversos capitais ao redor do mundo. Aqui precisamos, de passagem, fazer duas observações.
A primeira refere-se às diferenças nas composições orgânicas entre capitais que produzem

73
Cf. Carchedi (1991, p. 222-225) e Shaikh (1990, p. 167-171).
95

mercadorias homogêneas. Nesse caso, nos deparamos com o dilema do mais-valor


extraordinário. A segunda observação é que quando mercadorias de qualidades diferentes estão
prontas para entrar na esfera da circulação formam-se preços de produção que se transformam
em preços de mercado através da interação entre a oferta e a demanda por essa mercadoria. Se
considerarmos, para simplificar tal como o fazem Emmanuel e Mandel, que o conjunto de
mercadorias lançadas na circulação é equivalente à necessidade social por elas, podemos
considerar preços de produção iguais a preços de mercado e podemos chamá-los simplesmente
de preços. Nesse caso, passamos a ter uma diferença quantitativa entre valores e preços, o que
enseja a questão da diferença entre produção e apropriação de valores.
Neste sentido, nos parece mais correto descrever a troca desigual como o processo
de troca desigual de valores. Se assim o é, podemos distinguir três condições em distintos níveis
de abstração que permitem a existência da troca desigual, conforme exposto por M. D.
Carcanholo (2013b, p. 194-196) e de acordo com a teoria do valor de Marx: (a) a diferença
entre valor individual (VI) e valor social (VS); (b) a diferença entre valor social e preço de
produção (PP); (c) a diferença entre preço de produção e preço de mercado (PM). Em termos
sintéticos, a figura abaixo ilustra estes três movimentos.

Figura 1 – Condições para a troca desigual: transformação de valores individuais em valores


sociais, preços de produção e preços de mercado

VI VS PP PM
Fonte: O autor

Partindo dessa esquematização, fica mais fácil perceber as três dimensões em torno
das quais gravita o problema da troca desigual, as quais serão objeto da próxima seção. A
primeira dimensão diz respeito à transformação de valores individuais em valores sociais e a
possibilidade de transferência de valor na produção de uma mercadoria homogênea. A segunda
dimensão – da transformação de valores (sociais) em preços de produção – é aquela onde se
situou a polêmica de Mandel contra Emmanuel. A questão aqui é se se formam (ou não) preços
de produção internacionais através dos quais podemos fazer a comparação com os valores
sociais de cada ramo ou país. Embora a abordagem de Emmanuel tenha problemas no
encaminhamento da questão, ele assume a formação de preços de produção internacionais;
diferentemente de Mandel, para o qual não ocorre esse processo. De uma forma ou de outra,
96

como destacado anteriormente, se existe alguma mobilidade de capital podemos assumir


alguma diferença entre valores (sociais) e preços de produção, o que garante a existência da
troca desigual de valores nesta dimensão. Por fim, a análise mais concreta efetuada por Marx
(e pouquíssimo comentada no debate do imperialismo) diz respeito à diferenciação entre preços
de produção e preços de mercado que se manifesta através, por exemplo, do poder de
monopólio.
Entendida nesses termos, a troca desigual equivale a um processo de transferência
de valores de capitais com menor composição orgânica para aqueles com maior composição
orgânica através do comércio internacional. Como, em geral, os primeiros se concentram em
regiões cujo processo de acumulação é periférico em relação ao que ocorre no centro do
capitalismo mundial, tal entendimento de troca desigual ajuda a caracterizar (embora não seja
suficiente para tanto) o caráter dependente de um conjunto de economias nacionais, como
argumenta M. D. Carcanholo (2013b):

De forma sintética, a situação dependente se caracteriza pelo fato de que uma parte
do (mais) valor produzida nessa economia não é apropriada nela, mas nas economias
centrais, e passa a integrar, portanto, a dinâmica de acumulação de capital das últimas,
e não das primeiras. O processo de transferência de (mais) valor ficou conhecido na
discussão dos anos 1960 como troca desigual. (CARCANHOLO, M. D., 2013b, p.
194).

Na última frase da passagem supracitada, M. D. Carcanholo indica que o termo


troca desigual era utilizado nos anos 1960 para designar “o processo de transferência de (mais)
valor” em geral, isto é, sem especificar que se trata de um fluxo de valor a partir do plano da
circulação de mercadorias. No plano da teoria do valor de Marx, entretanto, podemos identificar
que a transferência de valor ocorre exclusivamente por meio da circulação de mercadorias, ou
da troca desigual, apenas quando a análise for conduzida em um nível elevado de abstração de
tal forma que incorpore somente a existência de capitais produtores de mais-valor
independentemente do ramo de produção em que estejam (capitais industriais), o que significa
uma abstração na qual o mais-valor total não se fragmente em lucro, juro e renda.
Os autores da teoria marxista da dependência parecem compreender a troca desigual
estritamente no plano comercial. Tanto Marini (2005) – conforme destacado pelo próprio M.
D. Carcanholo (2013b) – quanto Santos (2011) adotam esse entendimento. Para este, a dinâmica
dos preços internacionais equivale a um mecanismo de expropriação através da troca desigual,
cuja “verdadeira causa [...] deve ser encontrada no caráter monopólico do mercado mundial”,
ou, em outras palavras, “a questão dos termos de troca e do comércio desigual é essencialmente
97

um problema de poder econômico” (SANTOS, 2011, p. 383-384, tradução nossa). Devemos


salientar que ao explicar a troca desigual exclusivamente por meio do poder de mercado, ou
poder econômico dos monopólios, Santos (2011) distancia-se da teoria do valor Marx por dois
motivos: por não diferenciar valores individuais, valores sociais, preços de produção e preços
de mercado; e por negligenciar o papel dos distintos níveis de produtividade como fator
explicativo crucial para o problema.
Katz (2011, p. 142-146) apresenta uma explicação convincente para entender por
que uma tradição importante do marxismo – em cujo seio encontra-se Santos (2011) – se
distancia da teoria do valor de Marx. A tese da substituição da concorrência pelos monopólios
implicava, supostamente, a insuficiência da lei do valor como mecanismo explicativo dos
preços, de forma que a ênfase no capitalismo monopolista por Lenin e Bukharin, mas também
por Sweezy e Baran, além de vários economistas keynesianos74, ajuda a entender por que a
troca desigual foi tão marcante para a geração de marxistas do pós-guerra: “os marxistas que
compartilharam desse diagnóstico tenderam a prestar mais atenção aos acontecimentos
secundários da esfera da circulação do que aos processos determinantes da atividade produtiva”
(KATZ, 2011, p. 144, tradução nossa). Por exemplo, Santos (2011), como destacado
anteriormente, trata a dominação externa pela via comercial como resultado do controle
monopólico. Marini (2005), por outro lado, é rigoroso com a teoria do valor de Marx pois
considera, além do controle monopólico, o diferencial de produtividade.
Mesmo com a retomada recente de estudos resgatando a teoria marxista da
dependência no Brasil75, o conceito da troca desigual permanece polêmico, com duas posições
divergentes. A primeira posição, defendida por M. D. Carcanholo (2013b, p. 194), expusemos
anteriormente. Nesta primeira interpretação a troca desigual é o resultado da distinção entre
produção e apropriação de valor no plano da economia mundial. Por outro lado, a posição de
Borges Neto (2011, p. 97) é que “não se pode falar em transferência de valor entre países”. Esta
interpretação está baseada em uma leitura da lei do valor que entende que os capitais mais
produtivos não se apropriam de valores produzidos por outrem; pelo contrário, por serem mais
produtivos, os trabalhos aplicados ali são considerados mais complexos e, portanto, produtores
de maior valor76.

74
Katz (2011, p. 142) cita Kalecki, Steindl, Joan Robinson, dentre outros.
75
Um balanço dessa retomada pode ser encontrado em F. C. Prado e Castelo (2013).
76
Retomaremos brevemente essa polêmica na seção seguinte. De antemão, podemos adiantar que a essência dessa
divergência reside na explicação da mais-valia extraordinária, isto é, se ela ocorre via transferências de valor de
capitais menos produtivos para aqueles mais produtivos; ou se ela ocorre porque os trabalhos mais produtivos
98

A ênfase direcionada ao comércio internacional como fonte de transferência de


valor nos anos 1960 parece estar vinculada com a perda de importância relativa do envio de
rendas do capital, especialmente remessas de lucros e dividendos e pagamento de juros da
dívida externa – possivelmente resultado da baixa mobilidade internacional do capital
observada no período. Não é casualidade que Marini (2005), cuja principal obra data de 1973,
tenha tomado a troca desigual apenas através do comércio internacional como o motor que
engendra o contraditório desenvolvimento latino-americano.
Portanto, a transformação capitalista pós-1945 e a metamorfose no imperialismo
engendram o desenvolvimento das teorias do imperialismo que culmina com as teorias da troca
desigual e da dependência. Este movimento é importante na medida em que desvela a segunda
grande forma de manifestação do imperialismo: o comércio de mercadorias. Na sequência,
veremos como a teoria marxista da dependência é crucial para demarcar a existência de uma
nova fase na teoria do imperialismo.

2.1.3.2 A teoria marxista da dependência

Para evitar confusões desnecessárias, precisamos destacar, de antemão, que as


chamadas “teorias da dependência” compreendem um conjunto bem heterogêneo de
interpretações, com uma clivagem usualmente aceita entre versões weberiana e marxista77.
Evidentemente, consideramos apenas a teoria marxista da dependência como um
desdobramento das teorias marxistas do imperialismo. A relação entre ambas pode ser
entendida como de “complementação”, “reformulação” ou “ampliação”.
Para Amaral (2013, p. 81-82, grifos nossos), a teoria da dependência surge “como
complementação necessária à teoria do imperialismo [...] num contexto histórico de superação
do processo de substituição de importações e emergência do processo de integração da
economia mundial intermediado pela hegemonia norte-americana”. A autora destaca que os
próprios teóricos do imperialismo – como Lenin e Bukharin – apontavam para conexões entre
a situação da classe trabalhadora nos países periféricos e a acumulação de capital nos países
imperialistas, intuindo, portanto, as “bases” da dependência. “Tais intuições, no entanto, não

equivalem a uma quantidade maior de trabalho abstrato e, portanto, produtores de maior valor. Uma tentativa de
síntese desse debate está em Cipolla (2003).
77
Cf. Martins (2013, p. 41-48) para um resumo comparado dessas duas vertentes.
99

avançaram para além do plano empírico, [...] sem um maior aprofundamento do ponto de vista
categorial, deixando à teoria da dependência, portanto, o espaço para levar a cabo essa
construção” (AMARAL, 2013, p. 82).
Santos (1970, p. 41), em passagem citada por Bambirra (1977, p. 17), reivindica
para a teoria da dependência o papel de compreender o imperialismo, ou o processo global, sob
a ótica própria dos países dependentes:

El estudio del desarrollo de nuestros países debe dar origen a la teoría de la


dependencia. Por esto, debemos considerar limitados los enfoques de los autores de
la teoría del imperialismo. Tanto Lenin, Bujarin, Rosa Luxemburgo, los principales
elaboradores marxistas de la teoría del imperialismo, como los pocos autores no
marxistas que se ocuparon del tema, como Hobson, no han enfocado el tema del
imperialismo desde el punto de vista de los países dependientes. A pesar de que la
dependencia debe ser situada en el cuadro global de la teoría del imperialismo, ella
tiene su realidad propia que constituye una legalidad específica dentro del proceso
global y que actúa sobre él de esta manera específica. Comprender la dependencia,
conceptuándola y estudiando sus mecanismos y su legalidad histórica, significa no
sólo ampliar la teoría del imperialismo sino también contribuir a su reformulación.
(SANTOS, 1970, p. 41, grifos nossos).

Bambirra (1977, p. 18) defende a posição de Santos e enfatiza que a teoria do


imperialismo

[...] debe ser ampliada con el objeto de que, en su contexto global, sea insertada,
englobada, la teoría de la dependencia. [...] Es decir, Santos insiste aquí en que países
capitalistas desarrollados y países capitalistas dependientes, al constituir una misma
unidad histórica, deben producir una misma unidad teórica, vale decir, la teoría del
imperialismo debe originar la teoría de la dependencia. (BAMBIRRA, 1977, p. 18).

A tarefa de reformular a teoria do imperialismo sob outra ótica só poderia fazer


sentido se, de fato, pudesse ser descoberta alguma lei específica de desenvolvimento do
capitalismo dependente. Isto é, que se diferenciasse das leis gerais do modo de produção
capitalista. A famosa assertiva de Cueva (1979, p. 98, tradução nossa), onde ele afirma que “na
fórmula ‘capitalismo dependente’ tem algo que é um substantivo (capitalismo) e algo que é um
adjetivo (dependente) ”, está inserida em uma tentativa de criticar a teoria da dependência por
uma suposta redundância em relação tanto à teoria de Marx quanto às teorias do imperialismo.
Bambirra (1977, p. 27) concorda com a assertiva de Cueva, embora discorde de sua crítica da
redundância, ao afirmar que ela “não nos exime de buscar as especificidades que este adjetivo
envolve”.
100

Na interpretação de Florestan Fernandes (1975, p. 16-17) sobre os padrões de


dominação externa na América Latina, a formação do capitalismo dependente é um “resultado
inexorável” da expansão imperialista decorrente da Revolução Industrial. Além da importação
de capitais imperialistas para integrar o processo produtivo (“incorporação maciça e direta de
algumas fases dos processos básicos de crescimento econômico”), as “influências externas”
sobre as economias periféricas decorrem de “mecanismos indiretos do mercado mundial”, isto
é, do comércio internacional. Em função desses fatores, “a dominação externa tornou-se
imperialista, e o capitalismo dependente surgiu como uma realidade histórica na América
Latina” a partir da última metade do século XIX.
A interpretação de Fernandes (1975, p. 16-17) contribui com nossa hipótese acerca
do imperialismo enquanto transferência de valor quando afirma que “os objetivos manifestos e
latentes foram dirigidos para os ganhos líquidos, isto é, para a transferência do excedente
econômico das economias satélites para os países hegemônicos”. A posição do autor parece
colocar a dominação entre nações na frente da concorrência entre capitais como eixo central
do imperialismo, como pode ser percebido nas seguintes passagens: “a dominação externa, em
todas as suas formas, produz uma especialização geral das nações como fontes de excedente
econômico e de acumulação de capital para as nações capitalistas avançadas” (FERNANDES,
1975, p. 20, grifos nossos); “o fardo da acumulação de capital é carregado pelos países latino-
americanos; mas seus efeitos multiplicadores mais importantes são absorvidos pelas economias
centrais, que funcionam como centros dinâmicos de apropriação das maiores quotas do
excedente econômico gerado” (FERNANDES, 1975, p. 30). Essa concepção, que sugere um
viés weberiano à análise, está equivocada na medida em que a fonte do “excedente econômico”
não são as nações, mas o trabalho mediado pelo capital. Nesse sentido, a transferência de
“excedente econômico”, ou a “drenagem de riquezas permanentes” (FERNANDES, 1975, p.
28), que ele sugere implicitamente estar no cerne do imperialismo, deve ser entendida como
transferência de mais-valor; sob diversas formas, como ele corretamente advoga.
Bambirra (1977, p. 27-28) enfatiza que Marini teve o papel de descobrir qual era a
especificidade do capitalismo dependente, respondendo, portanto, à crítica de Cueva
supracitada. Especialmente em Dialética da dependência, escrita em 1973, ele teve “uma das
mais brilhantes contribuições à teoria da dependência”, que foi a construção teórica de uma
categoria “crucial para a compreensão do funcionamento do capitalismo nas sociedades
101

dependentes”, que se configura como “uma lei de movimento própria do capitalismo


dependente”: a superexploração da força de trabalho78.
Essa especificidade do capitalismo dependente ilustra a força com a qual a teoria
da dependência é herdeira da teoria do imperialismo. Com base na formulação de Marini
(2005), a superexploração da força de trabalho –remuneração por salário inferior ao valor da
força de trabalho – existe se, e somente se, existe a troca desigual; esta é tida como pressuposto
para aquela. A troca desigual, portanto, tem um status fundamental na teoria marxista da
dependência. Em nossa interpretação, o sentido da categoria troca desigual tal qual utilizado
por Marini (2005) só pode referir-se à transferência de valor entre capitais situados em países
diferentes. Na realidade das economias subdesenvolvidas, ou com baixa composição orgânica
média do capital, os capitais ali aplicados têm a necessidade de remunerar a força de trabalho
por um preço abaixo do valor (constituindo, portanto, nos termos do autor (p. 154), a chamada
“superexploração do trabalho”) em função do fato de que, via de regra, a grandeza de valor
produzida é maior do que a apropriada quando ocorre a interação no mercado mundial, isto é,
os capitais de países periféricos tendem a transferir valores gratuitamente para os capitais com
maior composição do capital (localizados, em geral, nos chamados países centrais). Para
compensar essa perda de valor, os capitais periféricos superexploram sua força de trabalho.
Trata-se, portanto, de um

[…] mecanismo de compensação […] (p. 152)


[...]
O que aparece claramente, portanto, é que as nações desfavorecidas pela troca
desigual não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas
mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço redobrado para aumentar a
capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar a perda de renda gerada
pelo comércio internacional por meio do recurso de uma maior exploração do
trabalhador. (MARINI, 2005, p. 153).

Esta passagem é rica pois ilustra como um mecanismo no plano da circulação – a


troca desigual – repercute no plano da produção. Entretanto, ela pode gerar uma confusão
categorial desnecessária pois pode parecer que a análise de Marini se efetiva no plano da luta

78
Cf. M. D. Carcanholo (2013a) para uma apreciação sobre esta categoria. Alguns autores da teoria da
dependência, inclusive Bambirra e Marini, utilizam o termo superexploração do trabalho, o que é incorreto. M.
Carcanholo demonstra que o correto seria usar “superexploração da força de trabalho” ao invés de
“superexploração do trabalho”: “o rigor teórico e metodológico exige utilizar o termo superexploração da força
de trabalho, uma vez que explorar – no sentido de usar, utilizar, consumir, realizar – aquilo que já é o resultado
desta exploração (utilização), o trabalho, não parece fazer muito sentido” (CARCANHOLO, M. D., 2013a, p. 75-
6). Manteremos “superexploração do trabalho” apenas quando necessário para ser fiel ao original em algumas
citações literais.
102

entre nações ao invés do plano da luta entre classes, o que, de fato, seria um erro. Não é esse,
contudo, o procedimento de Marini em específico ou da teoria marxista da dependência em
geral:

Essa visão moralista, tipicamente weberiana, deveria ser completamente estranha à


teoria marxista da dependência, ainda que algumas passagens não deixem isso claro.
[...] Isso significa que a categoria central de análise é o capital, e não a ‘nação’, de
forma que a situação de dependência é fruto de um desenvolvimento desigual e
combinado das leis de funcionamento do capital, em distintas partes do mundo.
(CARCANHOLO, M. D., 2013b, p. 194).

Marini (2005), de fato, utiliza o termo “exploração internacional” em algumas


ocasiões:

[...] à medida que o mercado mundial alcança formas mais desenvolvidas, o uso da
violência política e militar para explorar as nações débeis se torna supérfluo, e a
exploração internacional pode descansar progressivamente na reprodução de relações
econômicas que perpetuam e amplificam o atraso e a debilidade dessas nações.
(MARINI, 2005, p. 150, grifos nossos).

Trata-se de uma imprecisão que pode alimentar a confusão categorial entre classe
e nação. Mas uma observação no conjunto da obra permite constatar que essa noção de
“exploração internacional” está vinculada, necessariamente, à transferência de (mais-) valor.
Com efeito, está vinculada às relações de exploração da força de trabalho no polo dependente
e no polo imperialista da economia mundial, ou, o que dá no mesmo, à luta de classes no plano
da economia mundial.
A conexão entre transferência de valor via troca desigual com a superexploração
sugere, conforme destacado por Pradella (2015a, p. 152), que a classe trabalhadora dos países
dependentes está sujeita a uma dupla exploração: das burguesias nacional e internacional.
Tentando recuperar o argumento de Marini, a autora destaca que “em função das possibilidades
limitadas de aumentar a produtividade do trabalho, o capital em regiões dependentes recorria à
métodos de extração de mais-valor absoluto tal como [...] a compressão dos salários, incluindo
sua redução abaixo do valor da força de trabalho” (PRADELLA, 2015a, p. 152). Existem duas
imprecisões na argumentação de Pradella que precisam ser destacadas. Por um lado, sua
afirmação pode dar a impressão que o capitalismo dependente apenas produz mais-valor
absoluto, o que é incorreto. Por outro lado, a autora trata a superexploração da força de trabalho
como se fosse uma forma específica de extrair mais-valor absoluto, o que também é incorreto.
Na realidade, como enfatiza M. D. Carcanholo (2013a, p. 78), a produção de mais-valor
103

absoluto em O Capital está inserida em um momento da exposição no qual o elevado nível de


abstração contém a suposição de que “as mercadorias serão vendidas no volume e na magnitude
de valor em que foram produzidas”, fato que faz com que o preço da força de trabalho (o salário)
deva ser necessariamente igual ao seu valor. Isso posto, os métodos de produção de mais-valor
absoluto não podem incluir a superexploração da força de trabalho. Apenas quando o nível de
abstração é reduzido, isto é, quando se introduz a distinção entre valores e preços, é possível
perceber a existência da superexploração como um mecanismo que eleva a taxa de mais-valor
efetivamente apropriada pelo capital. Embora sua realização dependa de métodos típicos da
produção de mais-valor absoluto, quais sejam, intensificação ou prolongamento da jornada de
trabalho, não se pode dizer que a superexploração é, em si, uma forma específica de extrair
mais-valor absoluto (CARCANHOLO, M. D., 2013a, p. 77-78).
Pradella aponta que Marx faz algumas considerações nos Manuscritos de 1861-
1863 que antecipam a tese da superexploração da força de trabalho de Marini. “Curiosamente”,
diz a autora, isso “passou despercebido nos debates contemporâneos” (PRADELLA, 2015a, p.
152). Por exemplo, quando Marx apresenta a situação do trabalhador na Índia, país que sofria
a concorrência dos produtos industriais ingleses, ele diz que “as necessidades do trabalhador
são absolutamente reduzidas, além de ser ele mesmo ainda comprimido abaixo dessas diminutas
necessidades” (MARX, 1980, p. 450).
A troca desigual para Marx, seguindo a interpretação de Pradella (2015a, p. 152-
153), decorria das desigualdades de produtividade que, por sua vez, eram resultado da
propagação de métodos de extração de mais-valor relativo nas regiões de capitalismo avançado.
Portanto, nos termos da autora:

É a maior exploração relativa dos trabalhadores nos países mais desenvolvidos que
resulta na transferência de valor a partir dos capitais nos países menos desenvolvidos,
o que, por sua vez, impacta negativamente sobre as condições dos trabalhadores e
sobre as formas de exploração do trabalho, e também sobre as possibilidades gerais
de reprodução ampliada nesses países (PRADELLA, 2015a, p. 153, tradução nossa).

Contraditoriamente, a América Latina, nos termos da teoria da dependência de Marini


(2005, p. 141-144), contribuiu para que “o eixo da acumulação na economia industrial se
desloque da produção de mais-valia absoluta para a de mais-valia relativa” ao mesmo tempo
em que esse processo reforça o desenvolvimento da produção latino-americana baseado na
superexploração da força de trabalho. Este é o caráter contraditório da dependência, definida
como “uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco
104

as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar
a reprodução ampliada da dependência” (MARINI, 2005, p. 141).
A dependência está inserida no quadro de acentuação da divisão internacional do
trabalho resultante da Revolução Industrial e do surgimento da grande indústria na Inglaterra.
Há, portanto, uma vinculação estreita entre a explosão de produtividade na produção fabril com
o maior entrelaçamento entre capitais dentro do mercado mundial, como Marx já havia
adiantado no Livro I de O Capital79, e que forma uma “nova divisão internacional do trabalho”
articulada em torno da desigualdade tecnológica entre países avançados e atrasados. Permite,
assim, a existência da transferência de valor através da troca desigual. Embora Harvey (2005,
p. 57) não conceitue o fato dessa maneira, é sobre isso que ele se refere quando afirma que

[...] nos países avançados, os capitalistas talvez também obtenham uma maior margem
de lucro, vendendo seus bens acima do valor na concorrência com as ‘mercadorias
produzidas em outros países com instalações inferiores de produção [...] da mesma
maneira que um fabricante explora uma nova invenção antes que ela se torne
universal’. (HARVEY, 2005, p. 57, grifos nossos).

Harvey utiliza aqui uma passagem do Capítulo XIV do Livro III de O Capital onde
Marx aponta para o comércio exterior como uma tendência contrariante à lei da queda
tendencial da taxa de lucro. Diz Marx:

[...] capitais empregados em comércio exterior podem conseguir taxa mais alta de
lucro, antes de mais nada, porque enfrentam a concorrência de mercadorias
produzidas por outros países com menores facilidades de produção, de modo que o
país mais adiantado vende suas mercadorias acima do valor, embora sejam mais
baratas que as dos países competidores. (MARX, 2008, p. 313, grifos nossos).

Marx (2008, p. 313-314) ainda relaciona esse processo com o superlucro obtido pelo
capitalista inovador, retomando, claramente, os resultados do Capítulo X do Livro I onde
apontava para a apropriação de mais-valor extra. Na realidade, Marx está indicando que os
resultados expostos por ele naquele momento do Livro I valem para o comércio exterior:

O mesmo se dá com o fabricante que utiliza invenção nova antes de ela generalizar-
se, vendendo mais barato que os competidores, e, apesar disso, vende a mercadoria
acima do valor individual, isto é, faz valer como trabalho excedente a produtividade

79
Cf. Marx (2013, p. 523), citado na subseção 1.3 desta tese.
105

especificamente mais alta do trabalho que emprega. Desse modo, realiza um


superlucro. (MARX, 2008, p. 313-314, grifos nossos)80.

Para que a transferência de valor tenha validade no plano do comércio internacional,


tem que ser pressuposto que os capitais nas regiões atrasadas produzem mais valor do que se
apropriam. Em outros termos, deve ser subentendido que existem capitais que produzem para
a troca e, dessa forma, cristalizam uma determinada quantidade de trabalho abstrato em
mercadorias. Ou seja, para que haja uma relação imperialista, nos termos em que estamos
trabalhando nesta tese, isto é, um imperialismo capitalista, as duas regiões devem estar
integradas ao modo capitalista de produção. Apenas com esse pressuposto poderemos afirmar
que a articulação na “nova divisão internacional do trabalho” compreende uma relação
imperialista. O problema que surge daí é que a forma de exploração do trabalho nas regiões
atrasadas era, predominantemente, de trabalho escravo, não-livre, não-assalariado, oposto da
forma de exploração do trabalho tipicamente capitalista.
Uma resposta a essa questão fora apresentada por Marx nos Manuscritos de 1861-
1863 em trecho parcialmente citado por Harvey (2005, p. 59) e que já mencionamos brevemente
nesta tese. No contexto do debate da teoria da renda diferencial de Ricardo, Marx distingue dois
tipos de colônias, destacando o caráter não-capitalista de uma e capitalista de outra.

Primeiro: trata-se de verdadeiras colônias como nos Estados Unidos, Austrália etc. Aí
a massa dos colonos agricultores, embora traga da terra natal montante maior ou
menor de capital, não constitui classe capitalista, nem sua produção é a capitalista.
São mais ou menos camponeses que trabalham autonomamente, para os quais o
fundamental, antes de tudo, é produzir o próprio sustento, os meios de subsistência, e
cujo produto principal portanto não se torna mercadoria e não se destina ao comércio.
Na segunda espécie de colônias – as grandes fazendas (plantations) – destinadas desde
o início à especulação comercial e com a produção voltada para o mercado mundial,
verifica-se a produção capitalista, embora formalmente apenas, uma vez que a
escravatura negra exclui o assalariado livre, portanto o fundamento da produção
capitalista. Mas são os capitalistas que fazem o tráfico negreiro. O modo de produção
que introduzem não provém da escravatura, mas nela se enxerta. (MARX, 1980, p.
729-730).

Nessa longa passagem, fica claro que o caráter não-capitalista dos colonos de
primeiro tipo decorre do fato de que sua produção não é destinada para a troca, mas sim à
subsistência. Portanto, eles não produzem valores. Já na segunda espécie de colônia, ela é
formalmente capitalista pois produz para a troca, produz para o mercado mundial. (Reforça-se

80
O termo ‘faz valer’ aqui tem o mesmo sentido do termo “funciona como” / “opera como” do capítulo do mais-
valor relativo do Livro I, reforçando a posição de R. Carcanholo (2013, p. 108) sobre a apropriação de mais-valor
extra, via transferência de valor. Este tema será tratado extensivamente na próxima seção.
106

a assertiva de que produzir para a troca equivale a produzir para o mercado mundial ou produzir
de forma capitalista). Ou seja, esses trabalhadores, embora escravos, produzem valores.
Portanto, pode haver, desde as colônias, transferência de valores, ou seja, imperialismo. Esta é
uma passagem que indica que as chamadas ‘colônias de exploração’ integravam o modo
capitalista de produção a partir do momento em que este assume sua especificidade, qual seja,
a subsunção real do trabalho ao capital. O Brasil escravagista, por exemplo, a partir de sua
integração à divisão internacional do trabalho forjada pela Revolução Industrial era
formalmente capitalista. Considerando que a relação imperialista se desenvolve entre duas
regiões capitalistas, ou entre dois Estados-nação capitalistas, a relação desenvolvida, por
exemplo, entre Inglaterra e Brasil no século XIX, era uma relação imperialista. Um
imperialismo de tipo colonial, pode-se dizer, mas, ainda assim, um imperialismo. Com isso,
estamos antecipando a defesa de que o imperialismo não nasce no final do século XIX, como
sustentava Lenin, mas nasce com a própria constituição do mercado mundial capitalista
decorrente da revolução na produtividade fabril.
Retomando o fio da meada da teoria marxista da dependência, podemos afirmar que
a existência da superexploração da força de trabalho nas regiões dependentes como “mecanismo
de compensação” à transferência de valor repercute permanentemente sobre a estrutura dessas
sociedades. No movimento real da formação do capitalismo dependente, esse fardo histórico
equivale, empiricamente, à estratificação social que implica duas esferas relativamente
autônomas de circulação: “da circulação [i.e., troca desigual] à produção [i.e., superexploração],
da vinculação ao mercado mundial ao impacto que isso acarreta sobre a organização interna do
trabalho, para voltar então a recolocar o problema da circulação [em duas esferas]” (MARINI,
2005, p. 161). Esta característica de uma economia dependente e subdesenvolvida moldou o
processo de industrialização.
Forjada através da importação de maquinário estrangeiro, a industrialização latino-
americana no pós-guerra ilustra os reflexos sobre as economias dependentes da exportação de
capital imperialista. Se entrelaçam aqui os dois modos de existência tipicamente econômicos
do imperialismo: troca desigual e exportação de capital. Para resumir o argumento de Marini
(2005), a industrialização foi impulsionada pela elevada concentração de capital em escala
mundial pelas grandes corporações que necessitam de aplicar lucrativamente seu capital. Ao
mesmo tempo em que a superexploração nas economias dependentes gerava uma alta taxa de
lucro, o desenvolvimento do setor de bens de capital nas economias imperialistas exigia
107

mercados para esta indústria, especialmente para o maquinário que se tornava rapidamente
obsoleto para os padrões da concorrência nas regiões centrais (MARINI, 2005).
Com essas características, a industrialização latino-americana não sobrepujou a
velha divisão internacional do trabalho baseada em desigualdades tecnológicas. Ao contrário,
a intensificou, posto que “são transferidas para os países dependentes etapas inferiores da
produção industrial [p. ex.: siderurgia] [...], sendo reservadas para os centros imperialistas as
etapas mais avançadas [...] e o monopólio da tecnologia correspondente” (MARINI, 2005, p.
174-175). Portanto, se desenvolve uma nova hierarquia da economia capitalista mundial na qual
se aprofunda a relação imperialista à medida que se enraíza a desigualdade tecnológica.
A propósito dessa nova hierarquia, cumpre mencionar que os principais países
receptores do capital imperialista se transformam em centros subimperialistas pois adquirem
um patamar intermediário na escala da produtividade social do trabalho. O subimperialismo
“não é nada mais do que uma forma particular que assume a economia industrial que se
desenvolve nos marcos do capitalismo dependente” (MARINI, 2005, p. 180). No emaranhado
de relações imperialistas, a existência do subimperialismo pode ser visualizada quando a
concorrência no mercado mundial defronta vários capitais de origens diversas. A cadeia
imperialista torna-se mais complexa e abrange relações de transferência de mais-valor entre
capitais particulares que na hierarquia global são definidos como dependentes. Ora, se a questão
for tomada nesse nível elevado de abstração, aquele país dependente cujos capitais se
relacionam com outros capitais também de países dependentes apropriando-se de mais valores
do que produzem é o país chamado de subimperialista.
A partir desse entendimento fica bastante evidente o motivo pelo qual Marini
(1977) se referiu aos países subimperialistas como “centros medianos de acumulação”, cuja
composição orgânica (ou produtividade) média deve estar em um patamar intermediário na
integração hierarquizada dos centros de acumulação ou, em nossos termos, na cadeia
imperialista global. O subimperialismo, portanto, é uma categoria subordinada e relativa.
Subordinada, pois só pode ser definida após a caracterização da cadeia imperialista global e
especificamente após a caracterização dos dependentes. Relativa, pois só é definido a partir da
relação bilateral entre dois países ou entre um país e um grupo de países de acordo com os
níveis de produtividade.
Isso posto, a ênfase da teoria marxista da dependência na caracterização dos fluxos
de transferência de valor e na ampliação da cadeia imperialista global, considerando as relações
108

imperialistas desenvolvidas no seio do próprio capitalismo dependente, nos permite caracteriza-


las como representantes de uma nova fase das teorias do imperialismo.
Além dessa identificação puramente teórica, uma das formas de se verificar o quão
próximo a teoria marxista da dependência está da “linha principal” 81 das teorias clássicas do
imperialismo é atestar seu vínculo com a prática revolucionária. Em ambas, a revolução
socialista é quase um corolário político da teoria. Enquanto Rosa Luxemburgo, em 1916, erguia
a palavra de ordem “Socialismo ou barbárie?”82, Andre Gunder Frank, em 1968, exclamava
“Subdesenvolvimento ou revolução”83.
Não estamos aqui defendendo a posição de Frank, apenas constatando um aspecto
do marxismo de sua geração similar ao da geração dos anos 1910 e 1920. Se a famosa assertiva
de Frank (1966), “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, indicar a impossibilidade de
qualquer tipo de desenvolvimento capitalista, trata-se de uma posição à revelia da teoria do
valor de Marx e, para usar um termo de Bambirra (1977), não dialética. O fatalismo expresso
no enunciado de Frank ilustra, na ácida crítica de Callinicos (2009, p. 5), uma “visão caricatural
do imperialismo”, contida numa concepção de “sistemática dominação econômica e política do
Sul pelos países ricos do Norte”, que poderia ser demonstrada equivocada pelos exemplos de
progresso econômico capitalista da China e da Coréia do Sul. A crítica de Portantiero caminha
na mesma direção:

[...] algumas afirmações se revelaram erradas até mesmo no próprio terreno


econômico, no qual se situavam: por exemplo, a que falava de ‘desenvolvimento do
subdesenvolvimento’. A rigor, confundia-se a crise de uma modalidade de
acumulação capitalista (e a determinação que essa exercia sobre a sociedade e o
Estado) com a ante-sala do colapso do capitalismo na América Latina. O fato é que o
tom de tais escritos – absolutamente devedores do clima da época em que haviam sido
escritos, ou seja, o da crise da ideologia reformista do desenvolvimento, da revolução
cubana, da ascensão europeia e norte-americana do neomarxismo – era catastrofista,
para além, talvez, da articulação de teses específicas, a qual poderia revelar a
existência de matizes diferenciados. (PORTANTIERO,1983, p. 352).

81
Este é um termo de Corrêa (2012) para designar as teorias de Bukharin e Lenin.
82
Cf. Luxemburgo (1916): “Nós estamos colocados hoje diante desta escolha: ou bem o triunfo do imperialismo
e a decadência de toda a civilização tendo como consequências, como na Roma antiga, o despovoamento, a
desolação, a degenerescência, um grande cemitério; ou bem vitória do socialismo, ou seja, da luta consciente do
proletariado internacional contra o imperialismo e contra seu método de ação: a guerra. Eis aí o dilema da história
do mundo, sua alternativa de ferro, sua balança no ponto de equilíbrio esperando a decisão do proletariado
consciente. O proletariado deve jogar resolutamente na balança a sua espada do combate revolucionário: o futuro
da civilização e da humanidade dependem disto”.
83
Cf. Frank (1968).
109

Por outro lado, apesar desse certo teleologismo de uma parte das teorias marxistas
da dependência, sua vinculação explícita com a práxis é uma virtude que, certamente, não
deveria ser estranha ao marxismo. Nos termos de Lukács: “Para os marxistas, a análise
concreta da situação concreta não constitui nenhuma oposição à teoria ‘pura’, mas, ao
contrário, o ponto culminante da autêntica teoria, o ponto em que a teoria é verdadeiramente
realizada e, por essa razão, transforma-se em práxis” (LUKÁCS, 2012a, p. 62, grifos do autor).
O contexto latino-americano sob o qual se ergue a teoria marxista da dependência,
com a polarização explícita entre socialismo e capitalismo, propiciava esse acerto de contas
entre teoria e prática. No retrospecto dos pontos altos e baixos do marxismo latino-americano,
Portantiero afirma: “Não há dúvida de que, com os anos 60, inicia-se uma nova etapa na história
do marxismo latino-americano. O principal ponto de ruptura é assinalado, obviamente, pela
vitória da Revolução Cubana e pela proclamação por Fidel Castro, em abril de 1961, do ‘caráter
socialista’ do novo regime” (PORTANTIERO, 1983, p. 333).
Apenas para dar um exemplo, no clássico ensaio de Florestan Fernandes, a
exposição da dominação externa e dos efeitos sobre as sociedades dependentes culmina com a
posição de duas alternativas políticas: capitalismo de Estado, por uma saída “dentro da ordem”,
ou socialismo, por uma saída “contra a ordem”:

Os dois períodos de imperialismo foram e são valiosos para a emergência de uma


consciência social crítica, do radicalismo político e da revolução social, dentro da
ordem ou contra ela. [...] A última alternativa [o socialismo], sem dúvida, abre
caminho para a realização dos padrões mais elevados da razão humana e para a
liberação real das sociedades latino-americanas. Todavia, ambas as soluções poderiam
dar início a novas vias de evolução da América Latina, na direção de uma história de
povos livres e independentes. (FERNANDES, 1975, p. 31-32).

Como veremos na próxima subseção, a partir dos anos 1990 diminui o ímpeto com
que as teorias marxistas do imperialismo reivindicam o socialismo. Na maioria das vezes essa
vinculação não será posta nem pressuposta. Independentemente disso, essa nova fase de
reflexão teórica irá contribuir com a descoberta – ou a devida ênfase – de uma nova forma de
manifestação do imperialismo: a acumulação primitiva ou a expropriação de recursos por
mecanismos de coerção extraeconômicos.
110

2.1.4 Teoria contemporânea do imperialismo e a redescoberta da acumulação primitiva

A emergência do neoliberalismo enquanto estratégia de desenvolvimento


hegemônica e da globalização enquanto fortalecimento da integração internacional do capital
fomenta um novo conjunto de interpretações críticas do imperialismo84. Além de realçar
determinadas manifestações que já ocorriam em contextos históricos antecedentes, como a
exportação de capitais e a troca desigual, algumas das chamadas teorias contemporâneas
captam, com originalidade, um outro modo de existência do imperialismo: as expropriações.
A novidade não é pelo fato em si – exposto magistralmente por Marx no capítulo
“A assim chamada acumulação primitiva” no Livro I e na seção do capital portador de juros no
Livro III – mas por sua integração com teorias do imperialismo. Harvey (2003) e Fontes (2010)
são os autores que irão sustentar a contemporaneidade das expropriações85, de modo que
tentaremos mostrar como a interpretação proporcionada por esses dois autores nos permite
capturar uma terceira forma básica de manifestação do imperialismo, relacionada à
transferência de valor (e/ou valor de uso) via expropriações.
É útil salientar que a base real/concreta sobre a qual passa a ser possível capturar
essa terceira forma de manifestação do imperialismo assenta-se sobre um amplo e profundo
processo global de reformas liberalizantes, privatizações de ativos públicos (estatais ou não) e
aguçamento das rivalidades entre capitais internacionalizados e entre frações nacionais da
própria classe trabalhadora. O massivo processo de urbanização em países asiáticos após os
anos 1990 significa, dentre outras coisas, a ampliação mundial do exército industrial de reserva
cujo efeito direto foi a pressão para diminuição dos salários reais e a agudização da
pauperização absoluta da classe trabalhadora em nível global (PRADELLA, 2015b).
A explosão urbana vivenciada após a Segunda Guerra Mundial é um sintoma, para
Fontes (2010, p. 47-54), da dramaticidade com que se efetiva as expropriações contemporâneas.
Com dados de 1950 e 2007, Fontes (2010, p. 48) mostra que a taxa de urbanização saltou de
29% para 50% no mundo, indicando “apenas que massas crescentes da população mundial
encontram-se a cada dia mais direta e quase completamente subordinadas à dinâmica mercantil,

84
Tentativas de interpretação do imperialismo contemporâneo podem ser encontradas em Callinicos (2009),
Duménil e Lévy (2004, 2007), Harvey (2003), Sakellaropoulos (2009), Went (2001), Wood (2014), entre outros.
Uma crítica destas teorias pode ser encontrada em Corrêa (2012) ou Leite (2014b).
85
Por outro caminho, menos conectado ao imperialismo, outro autor que defende a contemporaneidade das
expropriações é Lapavitsas (2009, 2013) ao tratar das “expropriações financeiras”.
111

precisando, pois, vender, em parte ou totalmente, sua força de trabalho e, em muitos casos, sob
quaisquer condições”. Esse enorme contingente populacional torna-se subitamente dependente
do mercado, o que sugere que estamos “diante de uma formidável expansão das bases primárias
sobre as quais assenta a relação social capitalista” (FONTES, 2010, p. 51). Esse é o processo
que a autora denomina de expropriações primárias e que possui o mesmo significado da
acumulação primitiva marxiana: “A massa profundamente desigual de trabalhadores
disponíveis urbanos assim constituída, por um lado, abriu formidável manancial de exploração
da força de trabalho para capitais e capitalistas de porte variado” (FONTES, 2010, p. 53-54).
Trata-se de um processo permanente de “produção generalizada e caótica de trabalhadores cada
vez mais ‘livres’, expropriados de todos os freios à sua subordinação mercantil”, despojados
das suas próprias condições de subsistência (FONTES, 2010, p. 42)86.
Como a produção de mais-valor depende da existência desse conjunto de
trabalhadores livres que vendem sua força de trabalho no mercado em troca dos salários,
podemos assegurar que “das expropriações emanam as condições de possibilidade do capital”
(FONTES, 2010, p. 44). Nos termos da autora:

A condição fundamental para transformar o conjunto da existência social numa forma


subordinada ao capital é a expropriação dos trabalhadores e sua separação das
condições (ou recursos) sociais de produção, que corresponde a um processo histórico
ao qual se superpõe, na atualidade, a exasperação dessas expropriações, através de
uma disponibilização crescente da população mundial ao capital. Refiro-me à
simultânea produção da base social que nutre o capital. (FONTES, 2010, p. 42).

O tema das expropriações, destaca Fontes, foi tratado por Marx em diversos
momentos de O Capital. No Livro I, ele adquire um caráter de pressuposto da relação-capital
na medida em que garante a existência do conjunto de trabalhadores livres, prontos para serem
explorados. “O crescimento da concentração do capital corresponde a um incremento desigual
e difuso, porém avassalador das massas de trabalhadores, que constituem sua base social
contraditória e tensa.” (FONTES, 2010, p. 42). As expropriações constituem o “lado oculto” da
concentração, que atinge seu máximo desenvolvimento, conforme a argumentação da autora,
com o capital portador de juros. Podemos problematizar o fato de que sendo o capital fictício
um desenvolvimento do capital a juros (CARCANHOLO, R.; NAKATANI, 1999), o ápice da
concentração atingir-se-ia com aquele e não com este. Seja como for, Marx retoma o tema das
expropriações quando examina o capital portador de juros:

86
Cf. Seção Cinco desta tese.
112

Para Marx, a existência de grandes proprietários de capital monetário, ou portador de


juros, com ou sem a orquestração de seus administradores (quer sejam bancos ou
outras formas jurídicas) converte o capital numa força social anônima, ao mesmo
tempo concentrada e extremamente difusa. O capital monetário não se limita a
puncionar: precisa expandir relações sociais capitalistas. (FONTES, 2010, p. 28).

Para que o processo funcione normalmente, o capital funcionante – aquele que


recebe o dinheiro emprestado e deve devolvê-lo ao final de algum período – precisa extrair
mais-valor e compensar o prestamista com juros por ceder o valor de uso do capital monetário87.
Esse processo só é bem-sucedido, portanto, se houver uma massa de trabalhadores à disposição
do capital funcionante livre para a exploração. Logo, as expropriações adquirem um papel
chave no contexto do capital portador de juros (FONTES, 2010).
Defendendo a interpretação do imperialismo de Lenin, Fontes (2010, p. 145)
sustenta que a escalada da concentração e da centralização em patamares inéditos no final do
século XIX ensejaram “uma alteração substantiva que converteu o capitalismo concorrencial
em imperialismo, ou capitalismo monopolista”. No seio do imperialismo, o desenvolvimento
da acumulação elevou a nível gigantesco a concentração de capital e formou a base para a
transição do imperialismo ao que a autora denomina de capital-imperialismo:

O período que medeia do final da Segunda Guerra Mundial até a década de 1980 foi
marcado por uma situação histórica única, na qual a divisão do mundo entre países
pós-revolucionários e países capitalistas impôs modificações substantivas no ritmo,
na extensão e na forma da expansão do imperialismo, e trouxe uma sobrecarga retórica
e ideológica que dificulta a percepção real das transformações então em curso. Falar,
pois, de capital-imperialismo, é falar da expansão de uma forma de capitalismo, já
impregnada de imperialismo, mas nascida sob o fantasma atômico e a Guerra Fria.
Ela exacerbou a concentração concorrente de capitais, mas tendencialmente
consorciando-os. Derivada do imperialismo, no capital-imperialismo a dominação
interna do capital necessita e se complementa por sua expansão externa, não apenas
de forma mercantil, ou através de exportações de bens ou de capitais, mas também
impulsionando expropriações de populações inteiras das suas condições de produção
(terra), de direitos e de suas próprias condições de existência ambiental e biológica.
(FONTES, 2010, p. 149, grifos nossos).

Para além da síntese do que é o capital-imperialismo, há, nesse trecho, duas


questões importantes. A primeira delas é a definição de uma historicidade própria do capital-
imperialismo, que é a “expansão de uma forma de capitalismo, já impregnada de imperialismo”,
no período posterior à Segunda Guerra Mundial. A segunda é a constatação de que a expansão
externa do capital se manifesta “através de exportações de bens ou de capitais, mas também

87
Cf. subseção 4.3 desta tese.
113

impulsionando expropriações”. Fontes reconhece, com isso, as três formas básicas de


manifestação do que chamamos de imperialismo: exportações de capital, troca desigual e
expropriações. O que há de novidade nessa nova “forma de capitalismo” é o grau da
concentração de capitais e, simultaneamente, das expropriações que a acompanham. Nesse
trágico processo, a autora apresenta um novo tipo de expropriações que traduzem mais
fielmente o que ocorre sob o jugo do capital-imperialismo: as expropriações secundárias.

Expandir relações sociais capitalistas corresponde, portanto, em primeiro lugar, à


expansão das condições que exasperam a disponibilidade de trabalhadores para o
capital, independentemente da forma jurídica que venha a recobrir a atividade laboral
de tais seres sociais. A expropriação primária, original, de grandes massas
campesinas ou agrárias, convertidas de boa vontade (atraídas pelas cidades) ou não
(expulsas, por razões diversas, de suas terras, ou incapacitadas de manter sua
reprodução plena através de procedimentos tradicionais, em geral agrários)
permanece e se aprofunda, ao lado de expropriações secundárias, impulsionadas pelo
capital-imperialismo contemporáneo. (FONTES, 2010, p. 44).

De que se trata, então, as expropriações secundárias? Em função da gigantesca


escala de “concentração internacionalizada do capital”, “as expropriações passaram a ter uma
qualidade diversa e incidem também sobre trabalhadores já de longa data urbanizados,
revelando-se incontroláveis e perigosamente ameaçadoras da humanidade tal como a
conhecemos” (FONTES, 2010, p. 54). Como os trabalhadores já residem nas zonas urbanas, a
grande maioria já não dispõe de meios próprios de produção. Nesse sentido, as expropriações
secundárias equivalem a uma “forma de exasperação da disponibilidade dos trabalhadores para
o mercado, impondo novas condições e abrindo novos setores para a extração de mais-valor”
(FONTES, 2010, p. 54).
Uma das formas típicas em que as expropriações secundárias se efetivam é através
das destituições de direitos sociais e trabalhistas que obrigam os trabalhadores a cederem por
mais tempo sua força de trabalho no mercado88. A necessidade dessas formas contemporâneas
de expropriação “demonstram que, para a existência do capital e sua reprodução, é necessário
lançar permanentemente a população em condições críticas, de intensa e exasperada
disponibilidade ao mercado” (FONTES, 2010, p. 47). Essas expropriações ocorrem sobretudo

88
Um dos exemplos apontados por Fontes (2010, p. 55-58) de ataques aos direitos sociais é a elevação das idades
mínimas para aposentadoria. Funcionam como “uma das formas de expropriação de direitos” que obrigam a
população trabalhadora a ceder por mais tempo sua força de trabalho ao capital. Nas reformas previdenciárias,
“realizava-se um duplo movimento, de ameaça diante das aposentadorias e do estímulo às agências privadas de
previdência (fundos de pensão e similares), entidades convertidas em gestoras não bancárias de capital portador
de juros e de seu complemento, o capital fictício” (FONTES, 2010, p. 58).
114

a partir do final do século XX, onde “ocorreu um extenso desmantelamento de direitos sociais
e trabalhistas que contou com forte apoio parlamentar” (FONTES, 2010, p. 55). Nesse caso,
efetiva-se uma transferência do valor de uso da força de trabalho do produtor para o apropriador.
Além da expropriação de direitos, as expropriações contemporâneas “incidem
também sobre o controle direto dos Estados capital-imperialistas sobre matérias-primas
estratégicas” (FONTES, 2010, p. 58). O exemplo sintomático recente é a expropriação das
fontes do petróleo iraquiano executadas por forças militares estadunidenses. A conjunção das
diversas formas de expropriação secundária desvela um aspecto crucial: as expropriações
equivalem à transferência de valor de uso de um polo a outro. Nas expropriações primárias, por
exemplo, o produtor direto transfere o valor de uso de sua força de trabalho ao capital. Nas
expropriações secundárias, utilizando o exemplo anterior, empresas iraquianas transferem o
valor de uso do petróleo às companhias internacionais. Não há necessariamente uma
transferência de valor posto que o expropriado pode não ser, de antemão, produtor de valor. Há,
de fato, uma transferência de riqueza mediada pelo valor de uso que pode, na sequência, integrar
um processo produtor de valor.
Em síntese, a relação entre expropriações primárias e secundárias é a seguinte:

Expropriações primárias seguem extirpando os recursos sociais de produção das


mãos dos trabalhadores rurais, incidindo diretamente sobre os recursos sociais de
produção, em especial sobre a terra. Processo em curso há mais de quatro séculos,
experimenta nos últimos anos uma aceleração impactante e vem reduzindo a margem
de sobrevivência de semiproletarizados em praticamente todas as regiões do planeta.
Mas expropriações secundárias se abatem também sobre conhecimentos (como já
ocorreu no século XIX, na introdução das grandes indústrias e no século XX, com o
fordismo), sobre a biodiversidade, sobre técnicas diversas, desde formas de cultivo
até formas de tratamento de saúde utilizadas por povos tradicionais. Somente de
maneira muito cautelosa poderíamos supor que tais populações mantêm-se externas
ao capitalismo, quando boa parte delas já depende – parcialmente, ao menos – de
relações mercantis plenamente dominadas pelo grande capital-imperialismo.
(FONTES, 2010, p. 59).

As expropriações também integram o centro da interpretação de Harvey (2003)


sobre o imperialismo, sendo chamadas de espoliação (ou despossessão). A acumulação por
espoliação, ou a acumulação primitiva em termos contemporâneos, “está no cerne das práticas
imperialistas” e consiste na apropriação de novos campos para a acumulação do capital
(HARVEY, 2003, p. 144). Assim como, para Fontes, a escalada das expropriações situa-se nas
últimas décadas do século XX, para Harvey a funcionalidade das expropriações se manifesta
como uma resposta à crise da reprodução ampliada nos anos 1970. Harvey distingue claramente
dois processos de acumulação: um baseado na reprodução ampliada e outro nas espoliações.
115

A acumulação de capital tem de fato caráter dual. Mas os dois aspectos, o da


reprodução expandida e o da acumulação por espoliação, se acham organicamente
ligados, entrelaçados dialeticamente. […] Se o atual período tem visto a mudança de
ênfase passar da acumulação mediante a reprodução expandida para a acumulação por
espoliação, e se esta última está no cerne das práticas imperialistas, conclui-se que o
balanço de interesses no interior do movimento antiglobalização e pró-globalização
alternativa tem de reconhecer na acumulação por espoliação a contradição primária a
ser enfrentada. (HARVEY, 2003, p. 144).

A resposta capitalista à crise dos anos 1970 fez com que a acumulação por
espoliação se tornasse “a forma dominante de acumulação” (HARVEY, 2003, p. 126-127).
Portanto, combater esse processo é, seguindo a interpretação de Harvey na passagem
supracitada, o dever principal do movimento dos trabalhadores. O corolário dessa posição é a
diminuição da importância do trabalho assalariado e da exploração, que atinge seu ápice quando
Harvey, em seu compêndio sobre o Livro I de O Capital, conforme destacado por Callinicos
(2014, p. 198), enquadra a própria exploração como um processo de expropriação, de roubo:

[...] a extração de mais-valor é, acima de tudo, uma forma específica de acumulação


por espoliação, já que ela não é nada mais que alienação, apropriação e despossessão
da capacidade dos trabalhadores para produzir valor no processo de trabalho.
(HARVEY, 2010, p. 311).

Concordamos com Callinicos (2014, p. 199), para o qual esta interpretação de


Harvey é “desastrosa” pois a “análise de Marx no Livro I de O Capital sistematicamente assume
que mercadorias se trocam pelos seus valores”. Portanto, a exploração não é roubo. Pelo
contrário, ela é justa do ponto de vista das relações mercantis. A exposição de Marx “da relação-
capital pretende mostrar que a exploração é uma ‘característica normal’ de um sistema de
produção generalizada de mercadorias onde a força de trabalho foi transformada em uma
mercadoria” (CALLINICOS, 2014, p. 199). Callinicos reproduz uma passagem de O Capital
onde Marx explicitamente diferencia a reprodução ampliada como o lugar onde a “compulsão
silenciosa das relações econômicas” se manifesta da acumulação primitiva, a qual depende do
uso de “força extraeconômica direta”89.
Na realidade, continua Callinicos (2014, p. 199-200), a posição de Harvey o coloca
em “risco de regressar a uma posição pré-marxiana”, compartilhada por Hardt e Negri e Zizek.
Na crítica à posição de Hardt e Negri que tratam o capital como “força externa”, Callinicos

89
Desenvolveremos esse argumento na subseção 5.2.
116

reforça a crítica à posição de Harvey e indica, de passagem, uma concepção de mercado mundial
ao apontar a centralidade da “relação-capital”:

A implacável pilhagem de recursos é indiscutivelmente um aspecto importante da


globalização neoliberal contemporânea, mas escamotear a relacionalidade do capital
bloqueia qualquer entendimento da forma distintiva da acumulação de capital
atualmente, e em particular a gigantesca ampliação da relação capital representada
pela expansão de capitalismos industriais no Leste Asiático produzindo para o
mercado mundial. (CALLINICOS, 2014, p. 200).

A potência do argumento de Callinicos (2014) em desmontar a tese da


predominância da acumulação por espoliação reforça, ao mesmo tempo, a interpretação de
Fontes (2010), que nivela a reprodução ampliada às expropriações. De fato, a “expansão de
capitalismos industriais” só foi possível na medida em que haviam populações livres para serem
exploradas, ou seja, o processo de expropriações deve ser entendido como “base da relação-
capital” (FONTES, 2010, p. 46):

Desiguais segundo os países e regiões nos quais nasceram, forjadas segundo direitos
e costumes tradicionais diversos, constituem extensa massa de força de trabalho
desigualmente liberada para o capital internacional, diferenciadamente formada, mas
igualmente disponível (e necessitada) para as variadas formas de exploração de mais-
valor e para as mais diversas modalidades de concorrência entre os próprios
trabalhadores. (FONTES, 2010, p. 45).

Dito de outra forma, a expansão da exploração demanda a expansão das


expropriações:

Ora, a condição social para a extração do mais-valor não pode se limitar a um


momento prévio ou anterior ao pleno domínio do capital, embora seja correto dizer
que a plena expansão do mercado pressuponha populações extensamente
expropriadas. As expropriações constituem um processo permanente, condição da
constituição e expansão da base social capitalista e que, longe de se estabilizar,
aprofunda-se e generaliza-se com a expansão capitalista. (FONTES, 2010, p. 45,
grifos nossos).

Esta é a distinção principal entre Harvey e Fontes: enquanto a última analisa as


expropriações dentro da simbiose com a reprodução ampliada e a exploração, o primeiro eleva
as expropriações ao posto de categoria principal, subalternizando, dessa forma, a exploração.
Harvey trata a acumulação por despossessão como uma atualização contemporânea da
acumulação primitiva. Ou seja, ele pressupõe que a acumulação primitiva é datada
historicamente, isto é, típica do nascedouro do capitalismo, e não permanente como enfatiza
117

Fontes. Para ele, os pressupostos de Marx “relegam a acumulação baseada na atividade


predatória e fraudulenta e na violência a uma ‘etapa original’ tida como não mais relevante”
(HARVEY, 2003, p. 120-121)90. Nos termos de Fontes:

Harvey supõe que Marx trata a expropriação como um momento original


(‘primitivo’), que desaguaria em seguida na acumulação ampliada, normalizada,
embora sujeita a crises. Por essa razão nomeia a situação atual de acumulação por
espoliação, pois seria qualitativamente diferente da forma tradicional, produtiva e
ampliada, do capital. (FONTES, 2010, p. 63).

Fontes discorda frontalmente da tese de que haveria um tipo de acumulação


normalizada, baseada exclusivamente na coação econômica, contraposta à violência aberta das
expropriações. Após apresentar uma série de exemplos históricos, incluindo a implantação das
ditaduras militares na América Latina, onde a “subalternização dos trabalhadores foi realizada
sob condições extremas” (FONTES, 2010, p. 64), Fontes conclui:

Assim, a dualidade entre um capitalismo normalizado e um capitalismo predatório


não parece se sustentar, e sim formas de conexão peculiares a cada momento histórico,
no qual as forças capitalistas dominantes (quer tenham origem em países centrais ou
nos demais) aproveitam-se de situações sociais, históricas e culturais díspares,
subalternizando populações sob relações desiguais, mas imbricadas, utilizando ou
recriando formas tradicionais como trampolim para sua expansão. A violência
primordial do capital é permanente e constitutiva: a produção em massa da
expropriação, sob formas variadas, em função da escala da concentração de capitais,
jamais se reduziu ou “normalizou” em escala mundial. (FONTES, 2010, p. 64).

Esse argumento de Fontes captura a forma de funcionamento da lógica expansiva


do capital: a violência. Não se trata, entretanto, de novidade. Como já destacamos, para Marx
(2013, p. 829-830) a violência é um traço constitutivo da acumulação primitiva: “se o dinheiro
[...] ‘vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces’, o capital nasce
escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”. Para Kohan (2003, p. 244 et.
seq.), a violência integra o argumento de O Capital desde o primeiro capítulo – embora “não
apareça na superfície” até o Capítulo XXIII –, posto que é “essencial para a reprodução e a
acumulação capitalista” (KOHAN, 2003, p. 244):

Toda la sociedad mercantil de productores y propietarios independientes y


mútuamente ajenos de mercancías que intercambian a posteriori sus trabajos
particulares como parte del trabajo social global por normas válidas socialmente sería
impensable sin violencia, sin el terror, sin la policía, sin el ejército. ¿Quién

90
Adiante, na Seção 5, mostraremos que essa interpretação de Marx feita por Harvey está incorreta.
118

garantizaría, si esto no fuera así, que se respeten - como mínimo - las normas del
cambio, los contratos entre poseedores de mercancías, la validez del curso legal del
.ropaje nacional del dinero, (la moneda), etc.? (KOHAN, 2003, p. 244).

Também não é novidade que esse foi um dos temas principais com o qual Rosa
Luxemburgo se deparou. Além dela, Hilferding (1985, p. 299) também capturou a necessidade
da violência: na falta de trabalhadores livres, “o capital apela à violência estatal, empregando-
a a serviço da expropriação violenta, que arranja o proletariado livre necessário”.
Entretanto, assumindo um elevado nível de desenvolvimento do mercado mundial,
a acumulação capitalista pode decorrer sem o uso da tradicional violência expropriatória?
Quando Marini (2005, p. 150), em passagem citada anteriormente, afirma que a “violência
política e militar” se torna supérflua com o desenvolvimento do mercado mundial, ele está
pressupondo um mundo predominantemente dominado pela reprodução ampliada do capital,
onde o recurso às forças extraeconômicas de dominação deixa de ser o modus operandi do
capitalismo. Mesmo assim, nesse mundo abstratamente considerado, a violência econômica não
desaparece. Pelo contrário: a agudização da concorrência intercapitalista através da batalha pelo
mais-valor extraordinário deixa como legado vencedores e perdedores. A disputa mercantil faz
com que as expropriações de capitalistas por capitalistas sejam um atributo permanente do
capitalismo. Assim a violência econômica torna-se cotidiana e é possível perceber que “a
expropriação massiva é, portanto, condição social inicial, meio e resultado da exploração
capitalista” (FONTES, 2010, p. 21-22, grifos nossos). Ademais, na medida em que a batalha
intercapitalista redunda na redução da taxa média de lucro, a luta de classes se objetiva na maior
ou menor taxa de exploração – com o braço capitalista permanentemente a empurrando para
cima:

Para dar conta do processo real em curso, é preciso incorporar as formas específicas
de interpenetração de capitais no plano internacional, sob o predomínio do capital
monetário contemporâneo, que conduziu a um aprofundamento da “união íntima”
apontada por Lenin [em O imperialismo], em direção a uma fusão pornográfica de
capitais das mais diversas procedências, cuja valorização exige e impõe as mais
variadas formas de extração de sobretrabalho e de expropriação. (FONTES, 2010,
p. 359, grifos nossos).

As variadas formas de expropriação citadas por Fontes (2010), compreendidas do


ponto de vista primário e secundário, são bastante similares às formas de manifestação da
acumulação por espoliação de Harvey (2003, p. 124), cujo objetivo é “liberar um conjunto de
ativos (incluindo a força de trabalho) a custo muito baixo (e, em alguns casos, zero)”.
119

Independentemente das formas com as quais se manifestam as expropriações, o certo é que elas
existem e são fomentadas a serviço dos capitais – ou, melhor dizendo, parafraseando Fontes
(HARVEY, 2003, p. 124), a serviço da “fusão pornográfica de capitais das mais diversas
procedências”.
Essa “fusão pornográfica” aparentemente descoordenada faz com que seja difícil
mapear origem e destino do fluxo de valor e/ou valor de uso sendo expropriado. Quando
falamos em fluxo de valor via expropriações, estamos nos referindo ao processo em que uma
massa de valor cristalizada em algum ativo é roubada, pilhada, expropriada e, em função disso,
ocorre uma mudança na propriedade desse determinado quantum de valor. Talvez o exemplo
mais ilustrativo sejam as privatizações, onde um estoque de trabalho morto objetivado em meios
de produção, portanto, valor, é cedido às empresas privadas: “apossar-se desses ativos e vendê-
los como se fossem estoques a empresas privadas é um processo de despossessão bárbara numa
escala sem paralelo na história” (ROY91 apud HARVEY, 2003, p. 133).
Por outro lado, ocorre uma transferência de valor de uso via expropriações quando
uma determinada coisa ainda não mercantilizada é roubada, pilhada, expropriada. É o típico
exemplo da força de trabalho, por cujo valor de uso os produtores são obrigados a cederem
quando seus meios de produção são expropriados. Antes de acontecer, não faz sentido falar em
valor da força de trabalho, mas sim, e apenas nesse sentido, de valor de uso da força de trabalho.
Outro exemplo é a conversão da natureza em mercadoria, via, por exemplo, patenteamento de
material genético de sementes (HARVEY, 2003, p. 123). Não é valor haja visto que não fora
produzido pelo trabalho humano, mas é valor de uso, riqueza. Neste caso, ocorre transferência
de riqueza via expropriações.
A consideração da existência de transferência de valor e/ou valor de uso é suficiente
para considerarmos as expropriações como uma forma de manifestação do imperialismo.
Mesmo já tendo sido enfatizada por autores clássicos do marxismo, como Rosa Luxemburgo,
apenas o desenvolvimento concreto do objeto e o aguçamento da extração de valores baseado
nas forças extraeconômicas como um aspecto constitutivo da globalização neoliberal é que
permite considerá-la como uma forma permanente de imperialismo; e não meramente fortuita
ou ocasional.
A crítica de Callinicos (2014) a Harvey, centrada na inter-relação global entre
diversos capitais (“expansão de capitalismos industriais no Leste Asiático produzindo para o

91
ROY, A. Power politics. New York: South End Press, 2001. p. 43
120

mercado mundial”), já destacada nessa seção, é uma constatação de que o imperialismo se


fundamenta na relação-capital, isto é, na acumulação baseada na reprodução ampliada, que
pressupõe e reforça a existência de formas de acumulação baseadas nas forças não econômicas.

2.1.5 Síntese das formas de imperialismo capitalista

O exame do desenvolvimento das teorias do imperialismo permite capturar, cada


uma a seu tempo, determinados aspectos do objeto imperialismo. Por ser um objeto
multifacetado, as múltiplas interpretações sobre ele são plenamente justificáveis. Existem
representações teóricas mais ou menos completas, as quais apreendem parcialmente o objeto,
posto que, em geral, tratam determinadas formas de manifestação como se fossem sua
verdadeira natureza. Como essas formas de manifestação se alteram historicamente, essas
teorias serão tão mais datadas (e menos verdadeiras) quanto menos tiverem sido capazes de se
aproximar da essência da categoria. O multifacetamento do objeto e sua versatilidade em se
adaptar ao que a reprodução do capital exige em cada período histórico nos obriga a parafrasear
Harvey (2005, p. 66) repetindo uma assertiva presente na introdução desta tese: cada teoria
“talvez seja correta para seu lugar e tempo”.

Em geral, o problema com a teoria marxista do imperialismo é que ela se tornou uma
teoria ‘em si mesma’, divorciada da teoria da acumulação de capital de Marx. Em
consequência, o argumento sobre o que é o imperialismo se degenerou num
argumento sobre quais dos diversos princípios rivais devem ser utilizados para defini-
lo. (HARVEY, 2005, p. 70).

Como uma tentativa de síntese do que foi argumentado até aqui, podemos dizer que
o imperialismo capitalista se manifesta basicamente de três formas, as quais serão expostas a
seguir ordenadas segundo os níveis de abstração em que se situam (que será diferente da
ordenação desenvolvida anteriormente, baseada no momento histórico em que tiveram a devida
ênfase). Lembremos que o grau de concretude de determinada categoria depende de seu lugar
no sistema teórico como um todo, ou seja, uma categoria é mais ou menos concreta se ela possui
mais ou menos determinações do que outra. Todas as formas descritas a seguir serão
esmiuçadas na Parte II desta tese.
Nesse sentido, a forma de manifestação mais abstrata do imperialismo é a troca
desigual. Para que ela se efetive são necessários capitais industriais que se diferenciam de
121

acordo com os graus de desenvolvimento tecnológico do processo de trabalho, isto é, de acordo


com os níveis de produtividade. Com essas condições, a transferência de valor se efetiva
instantaneamente no momento em que a troca é materializada. O fato de se situar no maior nível
de abstração relativamente às outras manifestações do imperialismo se reflete no fato de que a
transferência de valor é oculta, invisível, velada: não aparece nas estatísticas internacionais. As
trocas no mercado parecem ser neutras, superficialmente iguais. Entretanto, compra e venda
pelos preços de mercado abarcam uma série de mecanismos que possibilitam que valores sejam
transferidos gratuitamente, isto é, sem compensação, de capitais de um lugar a outro. Por isso
o nome de troca desigual.
Na realidade capitalista, contudo, a distribuição do mais-valor abarca um conjunto
de apropriadores maior do que o conjunto dos capitais industriais. O mais-valor total se reparte
entre várias frações do capital social, assumindo, na superfície da sociedade capitalista, formas
de manifestação variadas, como lucro comercial, lucro do empresário, juro e renda de
monopólio. Quando incluímos essas determinações mais concretas na análise da concorrência
no mercado mundial, conseguimos perceber a segunda forma de manifestação do imperialismo,
a exportação de capitais, a qual possui mais determinações concretas do que o comércio. Tal
concretude se cristaliza no fato de que a transferência de valor por esse caminho precisa de
algum tempo para se materializar e, além disso, é detectável (pelo menos a maior parte) nos
balanços internacionais de pagamentos, ou seja, é visível, aparente.
Finalmente, a forma de manifestação mais concreta do imperialismo são as
expropriações. Enquanto o imperialismo pela via do comércio é praticamente invisível e pela
via dos investimentos é visível nas estatísticas internacionais, as expropriações representam
uma forma de imperialismo mais do que visível: sentida, violenta, bárbara. Elas precisam de
uma determinação ainda mais concreta, a força extraeconômica, para se materializar.
Diferentemente das exportações de capitais, as expropriações geralmente são encarnadas pelos
trabalhadores, embora, como destacado anteriormente, também existam expropriações de
capitalistas por capitalistas. Os tipos de expropriação enfatizados deixam claro que esta forma
de imperialismo atinge sobretudo as camadas sociais mais vulneráveis da população – e
exatamente com esse objetivo, qual seja, tornar os produtores vulneráveis ao apetite do capital.
122

2.2 A ESSÊNCIA DO IMPERIALISMO CAPITALISTA

Embora já tenhamos indicado o que entendemos por essência do imperialismo, não


o fizemos rigorosamente. Utilizaremos o procedimento abstrativo para identificar o que existe
de comum entre as diversas formas de manifestação do imperialismo, considerando que “o geral
vive no particular, sua existência se desvela através de mediação: geral e particular são
momentos da totalidade dialética” (PRADELLA, 2015a, p. 153). Apresentamos anteriormente
forma por forma realçando intencionalmente a conexão de cada uma delas com alguma
modalidade de transferência de riqueza, que, entretanto, equivale a uma concepção de
imperialismo cuja historicidade antecede o capitalismo. Portanto, esta concepção não contribui
diretamente para o entendimento da especificidade do imperialismo capitalista. Apenas
indiretamente e à medida que sua constatação nos permitiu examinar cada forma de
imperialismo capitalista sob esse prisma: ocorre transferência de riquezas sob o capitalismo? Já
demonstramos que sim, mas, além disso, qual a especificidade capitalista dessa riqueza? Se
trata de valor, produto do trabalho humano abstraído de suas determinações concretas, e valor
de uso, resultado útil e concreto do trabalho humano e da natureza.
Chamamos de determinação mais abstrata do imperialismo capitalista, ou sua
essência, o processo sistemático de transferência de riquezas sob a forma capitalista, portanto,
valor e/ou valor de uso, de um lugar a outro do planeta. O famoso primeiro parágrafo de O
Capital expressa claramente: “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção
capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’” (MARX, 2013, p. 113). Como
a mercadoria é a unidade dialética entre valor de uso e valor, a riqueza sob a forma mercantil,
típica do capitalismo, também se constitui nesse par dialético e é produto do trabalho humano.
A riqueza em geral, enquanto um conjunto de valores de uso, decorre do trabalho e da natureza,
como Marx assegura na Crítica ao Programa de Gotha:

O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é a fonte dos valores de uso (e é
em tais valores que consiste propriamente a riqueza material!), tanto quanto o é o
trabalho, que é apenas a exteriorização de uma força natural, da força de trabalho
humana. (MARX, 2012, p. 23).

Portanto, apenas sob o modo capitalista de organização da sociedade, a riqueza se


apresenta como valor e valor de uso. O imperialismo em sua dimensão mais abstrata é o
123

resultado das dinâmicas centrífuga e centrípeta do valor: o valor precisa se expandir e, ao


mesmo tempo, voltar ao ponto de partida.
Dussel (1988, p. 327-331) aponta que Marx já havia percebido (no começo de
Teorias Sobre a Mais-Valia) que a essência da dependência é a transferência de valor:

Porque hay transferencia de plusvalor de un capital global nacional menos


desarrollado hacia el que es más desarrollado, y ésta es la esencia o fundamento de la
dependencia (diría Marx), es necesario compensar dicha pérdida extrayendo más
plusvalor al trabajo vivo periférico. (DUSSEL, 1988, p. 327)92.

Para nossos propósitos, nos interessa a pertinente e ao mesmo tempo problemática


interpretação de Dussel (1988, p. 331) sobre o chamado “conceito abstrato de dependência” a
partir de suas determinações essenciais. Seu argumento parte da abstração de que a totalidade
do modo de produção capitalista pode ser decomposta em dois “capitais globais nacionais”,
cada um deles circunscrito a um determinado país. No nível abstrato da “dependência em geral”,
um “capital global nacional” é dependente se, na concorrência, é menos desenvolvido que o
outro, ou seja, possui menor composição orgânica e, em função disso, transfere valores na
distribuição do mais-valor produzido mundialmente. Nesse nível de abstração, o país que
contêm esse capital pode ser denominado de dependente, já que o fluxo de valores para fora é
maior do que para dentro. Por oposição, os países imperialistas seriam aqueles cujos capitais,
através da concorrência no mercado mundial, se apropriariam de uma grandeza de valor maior
do que produziram. Finalmente – e essa é a pertinência da tese de Dussel – é possível perceber
que imperialismo e dependência são e não são a mesma coisa. Eles compartilham a mesma
essência, qual seja, a transferência de valor (que pode se efetivar por mais condutos do que o
exposto por Dussel se incorporarmos as manifestações mais concretas do imperialismo). O que
os distingue – e esse é o fundamental para a compreensão da diferença entre ambos – é a direção
sob a qual se processa a transferência de valor.
Apesar de concordarmos com o evolver do argumento de Dussel, há um problema
em considerar a existência de “capitais globais nacionais” como o pressuposto da análise.
Afinal, não faz sentido tratar de nacionalidade de capitais pois apenas quem pode possuir uma
identidade nacional é o capitalista. Dussel parece deslizar em uma premissa weberiana.

92
Para M. D. Carcanholo (2013a, p. 81), Dussel confunde, como se tivessem o mesmo sentido, fundamento com
essência. Trata-se de um equívoco que se torna explícito, por exemplo, quando Dussel (1988, p. 313) critica o
tratamento dado por Marini à superexploração do trabalho.
124

Podemos contornar esse problema e manter a lógica do argumento recorrendo à categoria


“padrão de reprodução do capital”, como desenvolvida por Jaime Osorio:

A noção de padrão de reprodução do capital surge para dar conta das formas como o
capital se reproduz em períodos históricos específicos e em espaços geoterritoriais
determinados [...]. A categoria de padrão de reprodução do capital estabelece, assim,
mediações entre os níveis mais gerais de análise (modo de produção capitalista e
sistema mundial) e os níveis menos abstratos ou histórico-concretos (formação
econômico-social e conjuntura). (OSORIO, 2012, p. 40-41, grifos do autor).

A mediação entre os níveis mais abstratos e mais concretos é, de fato, necessária


para um adequado entendimento da essência do imperialismo (ou da dependência) nos moldes
em que a estamos tratando. Como, em O Capital, a mediação entre os dois níveis de abstração
está posta pelo processo de circulação do capital (Livro II), Osorio (2012, p. 42-61) parte daí
para identificar os ciclos do capital como o suporte teórico para a categoria padrão de
reprodução do capital. Dessa maneira é possível conceituar a “condição de dependência”
eximindo-se do “capital global nacional” e recorrendo ao lugar no qual o capital completa sua
circulação total. Para Osorio (2012, p. 76), o sistema mundial capitalista “constitui uma unidade
heterogênea sob várias perspectivas”:

[...] a mais relevante delas se refere à imbricação que estabelece entre núcleos
econômico-espaciais, o chamado centro, com a capacidade de se apropriar – mediante
diversos mecanismos – de valores produzidos em outras extensões econômico-
espaciais, as chamadas periferias ou economias dependentes. Assim, temos um
sistema mundial que opera com núcleos de acumulação de valor em contraste com
amplos territórios que sofrem de desacumulação. (OSORIO, 2012, p. 76).

Sendo assim, o que define os centros ou as economias imperialistas é a capacidade


de apropriar-se de valores produzidos nas periferias ou economias dependentes. Na medida em
que o autor ainda salienta que essa apropriação de valor ocorre por diversos mecanismos, ele
está descrevendo o que chamamos de essência e aparência do imperialismo. O corolário dessa
imbricação imperialista é a divisão do mundo entre “núcleos de acumulação” em contraposição
aos “territórios que sofrem de desacumulação”, cuja distinção decorre da capacidade dos
capitais localizados ou operantes nesses núcleos/territórios de atrair ou expulsar valores. Ainda
útil aos nossos propósitos é a constatação de Osorio de que o que chamamos de essência do
imperialismo possui uma historicidade específica:
125

Os processos que permitem a transferência de valores de uma região e uma economia


para outra variam no tempo. Se na etapa colonial isso era possível por meios
preferencialmente políticos (as colônias entregando tributos e impostos às metrópoles
ou sofrendo despojos de riquezas e metais preciosos pela simples condição colonial),
posteriormente tal processo tende a se apoiar de maneira predominante em
mecanismos econômicos (deterioração nos termos de intercâmbio ou intercâmbio
desigual93, pagamento de royalties, transferências devido ao monopólio de
conhecimento, juros da dívida, etc.). (OSORIO, 2012, p. 77).

O autor divide a história dos processos de transferência de valor em basicamente


dois períodos: colonial e pós-colonial, sendo que os mecanismos econômicos de transferência
de valor predominam apenas no último período. Se o imperialismo capitalista é definido
exatamente pelo predomínio da coerção econômica sobre a não-econômica (WOOD, 2014), as
relações imperialistas nascem com os processos de independência política das antigas colônias.
Sendo assim, o imperialismo não nasce no final do século XIX, como sustentavam os autores
da teoria clássica. Em termos históricos, portanto, como já desenvolvemos embrionariamente
na seção anterior94, a descolonização americana no final do século XVIII e início do XIX
articulando-se com a transformação da manufatura em grande indústria no continente europeu,
faz com que a junção desses dois processos culmine com a constituição de uma relação
tipicamente imperialista entre Europa e América.
Estamos defendendo, portanto, uma interpretação para a gênese histórica do
imperialismo diferente da visão convencional que se desenvolve a partir da teoria clássica.
Tomando como critério fundamental a exportação de capitais, decorrente, como já vimos95, da
potencialização da concentração e da centralização dos capitais, o modo clássico de explicação
do imperialismo situa sua gênese histórica no final do século XIX. Quando Arrizabalo Montoro
(2014, p. 171-183) defende a posição de Lenin sobre o imperialismo, ele recorre à vitalidade
dos famosos cinco traços do objeto e sustenta que o imperialismo deve ser formulado em termos
de um estágio histórico do capitalismo, nascido no final do século XIX sucedendo o que ele
chama de “estágio do capitalismo ascendente”.
O fundamental desse argumento é que o que marca a transição histórica em direção
ao imperialismo é uma “mudança qualitativa radical” (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p.
176) na relação entre forças produtivas e relações de produção. Diferentemente do primeiro
estágio, no qual a “entronização” das relações capitalistas de produção leva a um “grande

93
Julgamos que Osorio está equivocado quando identifica a deterioração dos termos de troca com o intercâmbio
desigual. Ao fazer isso, ele está utilizando a interpretação equivocada de Emmanuel que já criticamos na subseção
2.1.3.1. A evolução dos termos de troca pode ser vantajosa para a periferia e mesmo assim haver troca desigual.
94
Cf. subseção 1.3.
95
Cf. subseção 2.1.2.
126

impulso às forças produtivas”, no imperialismo “a sobrevivência [dessas relações] imporá


tensões cada vez maiores sobre as mencionadas forças produtivas” pois o desenvolvimento
destas leva a um processo tendencial de rebaixamento da lucratividade média, incompatível,
portanto, com uma sociabilidade cuja força motriz é a própria rentabilidade. As referidas
tensões se manifestam “em processos sistemáticos de destruição de forças produtivas”
(ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 177) através, por exemplo, das guerras e das crises,
características fundantes do imperialismo.
Em nossa leitura, a argumentação de Arrizabalo Montoro (2014) não é suficiente
para negar a existência do imperialismo enquanto uma relação social dentro do “estágio do
capitalismo ascendente”. Para defender que o terreno da acumulação de capital no estágio
imperialista é a “economia mundial como tal” (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 163,
168), ele precisa pressupor que há um processo de internacionalização do capital que o antecede
historicamente e forja, seguindo seus termos, o próprio imperialismo. Uma divisão
internacional do trabalho no suposto estágio pré-imperialista, seguindo Arrizabalo Montoro,
decorrente da operação da lei do valor, impõe-se como uma “relação assimétrica, cujas
diferenças tendem a se reproduzir de forma ampliada no tempo, convertendo a dependência em
um fenômeno crônico” (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 161). O autor caracteriza
corretamente a reprodução da assimetria “entre as distintas nações” (ARRIZABALO
MONTORO, 2014, p. 162) como desenvolvimento desigual, que se constitui como “uma lei de
desenvolvimento capitalista” (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 162). Portanto, a lei do
desenvolvimento desigual explica o “lugar subordinado e dependente [das economias
subdesenvolvidas] na divisão internacional do trabalho” e funciona desde antes do chamado
“estágio histórico” do imperialismo. O autor não desenvolve, contudo, qual o mecanismo lógico
que dá sustentação a essa lei.
Nos nossos termos, o desenvolvimento desigual é alimentado pelo imperialismo.
Como tal, a lei que descreve o primeiro deve ser explicada pelo segundo, entendendo este
enquanto uma relação social tipicamente capitalista que se reproduz de forma ampliada no
tempo a partir da constituição histórica da grande indústria (e da subsunção real do trabalho ao
capital). Sendo assim, uma historicidade do imperialismo não deve partir do final do século
XIX, quando se supõe que ele se manifeste através das exportações de capital, mas, pelo
contrário, deve partir da transição entre os séculos XVIII e XIX. Arrizabalo Montoro tateia
nosso argumento quando diz que
127

[...] o grande desenvolvimento das forças produtivas que implicou o capitalismo


ascendente [1750 a 1900], se materializa na constituição das grandes potências
imperialistas, configuradas em torno de uns capitais cada vez maiores diretamente
respaldados por seus respectivos Estados. (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p.
167, tradução nossa).

O “grande desenvolvimento das forças produtivas” é uma decorrência histórica da


grande indústria. As “grandes potências imperialistas” só podem ser adjetivadas assim enquanto
“capitais cada vez maiores” estabelecem relações econômicas com capitais menos produtivos
e/ou produtores não-capitalistas de outros lugares, constituindo necessariamente processos de
transferência internacional de valor. É por esse motivo que o desenvolvimento desigual se
reproduz no tempo e se firma como uma lei de desenvolvimento capitalista.
Voltando ao argumento lógico, a caracterização de Osorio (2004) da “condição de
dependência” se articula com o que estamos defendendo:

La condición de dependencia de una economía es mucho más que la acentuación de


procesos del capital en general, los cuales se agudizarían en las regiones dependientes.
Son transferencias de valor hacia el mundo central, rupturas en su ciclo del capital
etcétera. También son rasgos sui generis. Muchos procesos propios a toda economía
capitalista, alcanzan en las regiones dependientes connotaciones particulares.
(OSORIO, 2004, p. 81, grifos nossos).

É possível, ademais, desdobrar essa assertiva do autor em uma determinação


adicional que reforça nossa questão desenvolvida anteriormente. Se a condição dependente se
define pela “transferência de valor até o mundo central”, podemos dizer que a condição
imperialista se define pelo inverso: pela apropriação/expropriação do valor produzido no
mundo dependente. Em síntese, não precisamos recorrer à nacionalidade do capital como o faz
Dussel (1988). Basta considerar um mercado mundial no qual a concorrência entre capitais com
distintos níveis de produtividade cujos ciclos individuais se realizam em algum lugar enseja um
processo de transferência de valor para outro lugar. Na medida em que desde o princípio esse
mercado mundial se polariza em duas regiões, nas quais os capitais operando em cada uma
delas se distinguem por diferentes produtividades médias, a existência de dois submundos se
cristalizou: os chamamos, desde o final da primeira seção desta tese, de imperialista e
dependente.
Conferindo à transferência de valor um papel explicativo tão importante,
precisamos compreender como Marx trata essa categoria em sua obra máxima. A transferência
de valor em O Capital tem dois sentidos. O primeiro é a noção de que os elementos materiais
que formam o capital constante transferem valor à mercadoria. Para que a força de trabalho
128

consiga reproduzir seu próprio valor e incorporar um valor excedente na mercadoria, ela
necessita de meios para efetivar a produção. Com a transformação material operada pela força
de trabalho, o valor dos meios de produção reaparece integralmente no valor da mercadoria. Ao
longo dos três livros, Marx refere-se várias vezes à transferência de valor utilizando esse
sentido96. Obviamente que o processo de transferência de riqueza a que estamos nos referindo
enquanto determinação essencial do imperialismo não guarda relação com a transferência de
valor nesse primeiro sentido, isto é, dentro de um mesmo capital.
Para nos aproximarmos da transferência de riqueza precisamos usar o segundo
sentido da transferência de valor: aquela que se efetiva entre distintos capitais. Aqui, há que se
ressaltar que o capitalismo não é apenas um modo de produção de riquezas, mas também, e
sobretudo, um modo de apropriação. A lógica de um não coincide com a lógica do outro e é
exatamente essa não coincidência que garante a existência da transferência de riquezas. O
Capital, como uma obra dedicada ao estudo do capitalismo, precisa reconstituir teoricamente o
modus operandi daquilo que se quer investigar. Callinicos (2014) foi bastante preciso ao afirmar
que o capitalismo e seu reflexo teórico – O Capital – se articulam em torno de duas relações
fundamentais: a que opõe o trabalho assalariado ao capital e a que opõe os diversos capitais
entre si. Enquanto a primeira tem como momento principal a exploração e a produção do mais-
valor, a segunda compreende a esfera da concorrência e a distribuição do mais-valor. Essa
divisão permite visualizar que na relação com a classe social produtora do mais-valor os
diversos capitais agem como um só, afinal importa-lhes apenas extrair o máximo possível de
mais-trabalho. A partir do momento em que a massa global de mais-valor está constituída, os
capitais repartem-no entre si.
A distinção dialética entre produção e apropriação de valores se efetiva nas duas
relações fundamentais. O mais-valor só é apropriado gratuitamente pelo capital pois precisou
ser produzido pela classe trabalhadora sem que esta recebesse uma contrapartida. Pelo fato de
ser obrigada a vender sua força de trabalho no mercado, a classe trabalhadora é obrigada a
ceder, transferir, parte do valor total produzido por ela. Isso ocorre pois o que se transaciona é
o valor de uso da força de trabalho, qual seja, a capacidade de produzir valor. O capital paga o
seu valor para adquirir o direito de se apropriar do resultado do consumo do valor de uso da
força de trabalho. Em outros termos, é a dialética da mercadoria força de trabalho que permite

96
Por exemplo: “A transferência de valor pela depreciação do capital fixo calcula-se com base no período médio
de vida deste último” (MARX, 2014, p. 257); “Por meio do tipo apropriado do trabalho despendido em 666,6
jornadas de dez horas, transferiu-se para o produto o valor dos meios de produção consumidos” (MARX, 2008, p.
44).
129

ao capital a apropriação gratuita do mais-trabalho. Temos aqui um tipo de transferência de valor


que se trata de uma transferência interna a uma relação individual entre um determinado
capitalista e um determinado conjunto de trabalhadores. Subsumida à relação capital-trabalho
assalariado, a transferência de valor só é capaz de explicar uma parte da transferência global de
riquezas. Isto ocorre, neste âmbito, quando os processos de trabalho e de valorização ocorrem
em um lugar geograficamente distinto do lugar de origem do proprietário do capital. Assim,
parte do mais-valor produzido em um lugar e realizado em qualquer lugar é remetido a outros
lugares na forma de lucros ou dividendos.
Outra parte da transferência global de riquezas pode ser explicada pela distinção
dialética entre produção e apropriação de valores na segunda relação fundamental, aquela da
concorrência entre capitais. Aqui se situam os problemas da troca desigual e da fragmentação
do lucro médio em lucro comercial, lucro do empresário, juro e renda da terra, que, para
existirem, demandam alguma mobilidade do capital. Na argumentação de Pradella (2015a, p.
149), a formação da taxa média de lucro é um marco importante na universalização do
capitalismo. Para Marx, na interpretação da autora, o “sistema econômico inclui todos os ramos
de produção onde o capital está livre para se movimentar, incluindo as colônias” (PRADELLA,
2015a, p. 149). Portanto, a mobilidade do capital pode ser entre e dentro dos ramos de produção
internacionalmente considerados, ou seja, no mercado mundial. Transferência de valor ocorre
internacionalmente, portanto: a generalização (universalização) da acumulação capitalista
equivale à generalização do trabalho assalariado e resulta tendencialmente na “completa
implementação da lei do valor internacionalmente” (PRADELLA, 2015a, p. 150). Em outros
termos, a completa implementação internacional da lei do valor equivale à transformação de
valores em preços de produção e na distinção deste com o preço de mercado a nível mundial.
O (grande) capital nivela tendencialmente a taxa de lucro entre países.
Um fato curioso é que na forma de transferência de valores mediada pela
concorrência intercapitalista há um movimento invertido em relação ao que ocorre na relação
entre capital e trabalho assalariado. A apropriação de mais-valor pelo capital na relação com a
força de trabalho se introduz através da circulação (compra e venda de força de trabalho) e “se
completa no interior do próprio processo de produção” (MARX, 2014, p. 487). Por outro lado,
na concorrência entre capitais industriais, a apropriação de mais-valor pelo capital mais
produtivo se introduz através da produção (em função do desnível de produtividade) e se
completa na circulação, na venda do capital-mercadoria.
130

Finalmente, uma última parte dessas transferências pode ocorrer sob a chave das
expropriações. Tomemos o exemplo do capitalista pouco produtivo que, em função de uma
crise, opta (ou é coagido) a se desfazer de seu capital. Independentemente da forma com a qual
ele cede seu capital a outrem, geralmente um grande capitalista, ocorre uma transferência do
estoque de meios de produção; uma transferência de valor, portanto.
Estamos de acordo com a concepção de Pradella (2015a, p. 159), para a qual “a
acumulação de capital é um processo imperialista”. O reconhecimento original da autora de que
a lei do valor tem uma dimensão “inerentemente internacional” e que a análise de Marx em O
Capital está no nível de abstração do mercado mundial97, permitem concluir que a acumulação
de capital concentra valor nos polos mais competitivos do sistema. Esse argumento vale a pena
ser destacado nas palavras da própria autora:

A acumulação é um processo imperialista que tende a concentrar produção de alto


valor agregado e capital nos centros mais competitivos do sistema, determinando uma
especialização forçada dos países dependentes ou menos desenvolvidos em setores de
baixo valor agregado, repatriando lucros extraídos nesses países e levando a formas
de intercâmbio desigual entre as nações com diferentes níveis de produtividade, o que
resulta em formas diferentes mas interativas de exploração do trabalho e
pauperização. A acumulação de capital, para Marx, não elimina processos de extração
de valor de setores pré-capitalistas ou formas de exploração comercial e usurárias,
saque e pilhagem: estas formas de ‘acumulação primitiva’ são, no entanto, subsumidas
e moldadas pela acumulação de capital tout court. Portanto uma lógica unitária liga a
exploração do proletariado na Grã-Bretanha, a extinção de tecelões de teares manuais
indianos, as condições de fome dos camponeses irlandeses, a escravização de
africanos nas plantações americanas, e as diferentes formas de expropriação,
exploração e opressão que Marx estudou em seus cadernos e apresentou em seus
escritos. (PRADELLA, 2015a, p. 159, tradução nossa, grifos nossos).

No rigoroso trabalho de Pradella, ela percebe que Marx, em um texto de julho de


1857 contra as teorias vulgares de Bastiat e Carey, reconhece a existência de “raízes econômicas
do imperialismo”, derivadas do que ele chamaria em O Capital de lei geral da acumulação
capitalista. O famoso artigo The Future Results of British Rule in India, publicado por Marx no
New York Daily Tribune, mostra que os efeitos devastadores da ocupação britânica na Índia, ou
seja, do imperialismo, foram “resultados inerentemente orgânicos da ‘centralização’
capitalista” (PRADELLA, 2015a, p. 131).
Caminhamos para um terreno perigoso, pois definir a essência do imperialismo
como transferência de valor (e valor de uso) nos impõe a necessidade de um esclarecimento
adicional para não incorrermos em algum tipo de reducionismo economicista: afinal, qual é a

97
Defendemos essa posição na subseção 1.2.
131

relação dos Estados-Nação com o imperialismo? Até agora, o papel estatal estava oculto ou
reduzido às margens do argumento. Entretanto, sabemos que, de fato, na realidade concreta do
capitalismo, o Estado está quase sempre presente nas teorias sobre o imperialismo. Nas
interpretações mais vulgares, inclusive, se associa o imperialismo com um tipo de política
externa de uma nação específica, os Estados Unidos. As intervenções militares unilaterais após
o fim da Guerra Fria e especialmente após os atentados de 11 de setembro de 2001 contribuíram
para o fortalecimento de interpretações desse tipo.
Quando associamos a dimensão mais abstrata do imperialismo com a transferência
de valor, não estamos dizendo que o Estado e o sistema de múltiplos Estados não são
importantes ou supérfluos. Pelo contrário, como desenvolveremos na Seção Cinco, sabemos
que na maioria das vezes o aparato estatal é precondição para a expansão do capital. Ele é capaz
de influir decisivamente no processo de reprodução do capital: o Estado “funciona como o
grande organizador tanto da acumulação como da ordem capitalista na medida em que atua na
construção de elementos institucionais e econômicos favoráveis à acumulação do capital”
(PINTO; BALANCO, 2014, p. 41)98. É por esse motivo que, segundo Pradella (2015a, p. 157),
Marx conferiu um papel vital ao Estado, “cuja intervenção não é uma exceção, mas uma parte
integral do processo de reprodução do capital”. No final do Livro I de O Capital, na exposição
da acumulação primitiva, “Marx apresentou alguns elementos que seriam direcionados ao livro
sobre o Estado” conforme o plano original – e abandonado – de seis livros (PRADELLA,
2015a, p. 157):

A seção da Acumulação Primitiva, portanto, não representa uma parte ‘histórica’


separada da ‘econômica’, mas examina o papel do Estado na gênese e na reprodução
ampliada do capital. Para Marx, a lógica do Estado é interna à lógica do capital. Por
esta razão, apesar da intervenção estatal ser historicamente antecedente à gênese do
capital industrial, sua análise é posterior à da acumulação. A aparência de autonomia
do Estado se dissolve junto da aparência autônoma do capital, o qual é resultado
inteiramente de trabalho assalariado. O Estado, então, [...] deve ser entendido no

98
Pinto e Balanco (2014) resgatam o debate marxista sobre o Estado, apontando para a relevância da contribuição
de Poulantzas sobre o bloco no poder. “A compreensão do papel do Estado na acumulação e reprodução do
capitalismo não pode ficar restrita apenas à acumulação do capital em geral (nível maior de abstração ou objeto
abstrato-formal), mas sim também deve incorporar a percepção das maneiras como as frações e as classes (em suas
lutas políticas) exercem seu poder na busca pela manutenção ou ampliação da sua fatia da renda e da riqueza e de
sua legitimação por meio da influência exercida nos aparelhos do Estado e, por conseguinte, da proposição das
políticas públicas” (ibidem, p 44-5). Sobre a relação entre bloco no poder e imperialismo, os autores apontam o
seguinte: “A economia capitalista mundializada apresenta como uma de suas normas principais a procura
permanente da expansão da dominação do bloco no poder dos países capitalistas centrais para além dos seus
espaços nacionais” (ibidem, p. 59).
132

contexto da luta de classes, do devir da classe trabalhadora mundial. (PRADELLA,


2015a, p. 158).

Isso posto, a concepção de Estado coerente com nossa interpretação da essência do


imperialismo não pode ser nem de um simples ente instrumentalizado pela burguesia, nem um
Estado cuja lógica possua o mesmo peso explicativo da lógica do capital. Enquanto a primeira
concepção foi usualmente aceita nas teorias clássicas, a segunda está presente em um conjunto
de teorias contemporâneas que buscam situar o imperialismo “na fronteira do econômico e do
político” (CORRÊA, 2012)99. Callinicos (2009, p. 15), por exemplo, defende que o
imperialismo capitalista “é constituído pela interseção de duas formas de competição, a
econômica e a geopolítica”; interpretação quase idêntica possui Harvey (2003, p. 88-91), que
contrapõe duas lógicas “do poder”, a capitalista e a política/territorial100. Ao fazer isso, eles
“subestimam a dimensão inerentemente internacional da lei do valor” e “como a lógica espacial
é subsumida à lógica do capital, a concorrência ‘econômica’ tem uma intrínseca dimensão
geopolítica” (PRADELLA, 2015a, p. 158). Mesmo que o Estado, efetivamente, tenha a
capacidade de influir na concorrência econômica, sua atuação está circunscrita à garantia da lei
e da ordem necessárias à acumulação de capital. Portanto, é o capital, ou o valor que se valoriza,
que está no topo da ordenação categorial relacionada ao imperialismo.
Harvey, nos anos 1970, faz uma observação pertinente a este debate:

Especificar as relações entre a teoria da acumulação de Marx e a teoria do


imperialismo, como são usualmente elaboradas, impõe, portanto, uma dupla
dificuldade. Temos que especificar como a ‘lógica interna’ do modo capitalista de
produção, abstratamente concebida, relaciona-se com as realidades concretas – ou
seja, as formas fenomenais – do processo histórico. Além disso, também temos de
levar em consideração a influência mediadora das estruturas políticas, ideológicas,
militares e outras, que, embora devam ser organizadas de modo coerente em relação
ao curso da acumulação de capital, não são determinadas unicamente por isso.
(HARVEY, 2005, p. 66, grifos nossos).

O autor está correto nesta questão, afinal se trata de especificar como o nível muito
abstrato das leis gerais da acumulação relaciona-se com o nível concreto do fenômeno,
considerando, ademais, a existência de uma superestrutura de relacionamentos com influência

99
CORRÊA, H. F. S. Teorias do Imperialismo no Século XXI: (in)adequações do debate no marxismo. 2012. 247
f. Tese (Doutorado em Economia)– Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. p. 191 et seq.
100
Callinicos (2009, p. 15) oferece uma descrição sucinta que caracteriza as duas “formas de competição”:
“competição econômica mostramos que é uma das duas interconectadas relações constitutivas do capital.
Competição geopolítica refere-se às rivalidades entre Estados em relação a segurança, território, influência, e temas
correlatos”. Desenvolveremos uma crítica a essa postura na subseção 5.3.
133

também decisiva sobre os rumos do movimento da história. Mesmo levando isso em


consideração, a observação de Lukács (2012b) sobre a existência de um ordenamento categorial
que garante uma primazia explanatória através do critério ontológico para as leis da economia
no capitalismo nos permite investigar, com mediações econômicas (concorrência,
produtividade, transferência de valor, etc.), as relações entre a lei do valor e o imperialismo. A
existência de um aparato político, ideológico, militar, etc., deve ser levado em consideração
enquanto aspectos ontologicamente subordinados à lei do valor101, isto é, mantendo a metáfora,
a base é precondição existencial para a superestrutura. Por exemplo, mesmo que os golpes civis-
militares dos anos 1960 e 1970 na América Latina tenham se apresentado como resultados
políticos-militares de determinados processos históricos, a influência econômica (objetiva ou
subjetivamente) foi decisiva.
Tal como a estamos definindo, a essência do imperialismo capitalista pressupõe a
existência de vários capitais com diferentes produtividades e vários Estados. A transferência de
valor só se torna imperialista quando ultrapassa barreiras socialmente construídas que são as
fronteiras nacionais. Estamos considerando a concorrência entre vários capitais no mercado
mundial projetada sobre uma estrutura de nações pré-estabelecidas.
Levar em consideração essa estrutura demarcada de fronteiras nacionais implica
relacionar a essência do imperialismo com a existência de uma polarização global entre países
imperialistas e dependentes. Se a polarização global é um fato, uma verdade, do modo
capitalista com o qual nossa sociedade se organiza, sua perenidade só pode ser sustentada por
um processo dinâmico que a reforce. Nos termos de Shaikh (1990, p. 207, tradução nossa): “a
desigualdade entre nações é na realidade a manifestação internacional da desigualdade entre
capitais, inerente ao desenvolvimento necessariamente desigual das relações capitalistas de
produção”.
Não parece haver um fatalismo que condena, a priori, qualquer partícipe do
mercado mundial capitalista a permanecer ad aeternum circunscrito a seu polo de origem. Ou
seja, a transferência de riquezas age continuamente na direção de manter a polarização tal qual
ela se encontra, mas isso não impede que hajam forças a atuar na direção contrária; embora a

101
Um dos exemplos em que Marx demonstra a subordinação do Estado à lei do valor refere-se à relação entre
papel moeda e ouro. Ele aponta que qualquer moeda (símbolo) representa uma quantidade de ouro, ou seja,
representa uma quantidade do equivalente universal. O dinheiro pode circular dentro dos países – diretamente ou
representado por papel moeda – ou no mercado mundial. A utilização de papel moeda, entretanto, não é
despossuída de limites. Para Marx, na interpretação de Pradella, “Estados podem emitir qualquer quantidade de
moeda, mas, uma vez em circulação, o símbolo de valor é subordinado às suas leis (da circulação)” (PRADELLA,
2015a, p. 144). Isso reforça nosso argumento de que o imperialismo reside na lei do valor e que suas manifestações
políticas são subordinadas àquela lei (ou à distinção produção/apropriação).
134

história nos mostre que a força mantenedora do status quo se sobrepuja, em geral, à contra
tendência.
Para Pradella (2015a)102, o processo de acumulação de capital em escala mundial
“serve de premissa para a emergência de novos centros de acumulação”. A acumulação de
capital envolve múltiplos padrões de desenvolvimento desigual e combinado, subordinados,
sempre, à lógica unitária do capital que interliga as variadas formas de exploração, opressão e
expropriação ao redor do mundo. Portanto, do ponto de vista da ação política, a autora concebe
a revolução internacional como revolução permanente ao frisar que as lutas proletárias e
anticoloniais estão necessariamente interligadas (PRADELLA, 2015a). Há, portanto, uma
proximidade molecular entre a essência do imperialismo, o desenvolvimento desigual e
combinado e a revolução permanente.

2.3 A RELAÇÃO DIALÉTICA ENTRE ESSÊNCIA E APARÊNCIA DO IMPERIALISMO

Um elo bastante comum entre a teoria do valor de Marx e o imperialismo costuma


ser sua teoria das crises (HARVEY, 2003, 2005). Observações de Marx nos Grundrisse e nos
Manuscritos de 1861-1863 sugerem que a expansão espacial do capital, isto é, a expansão das
fronteiras do mercado mundial capitalista, é resultado das crises no núcleo da produção
capitalista. O desdobramento do conceito de capital implica a expansão contínua da esfera da
circulação, a qual atinge seu ponto máximo com a consolidação do mercado mundial que,
portanto, refere-se a um desdobramento do próprio capital (embora o máximo desenvolvimento
da circulação de mercadorias seja o mercado mundial, ele não é, como já defendemos em outros
momentos desta tese, apenas essa esfera da circulação em escala mundial). Marx (2011b) indica
que “a tendência de criar o mercado mundial está imediatamente dada no próprio conceito do
capital” (p. 332); ou, em outros termos, refere-se a ele como um dos “fatos fundamentais” (p.
346) da produção capitalista. Ele cumpre um papel de superar, inicialmente, uma barreira ao
desenvolvimento do capital; por isso, fundamental. Na medida em que uma possibilidade da
crise é dada pela não realização do mais-valor e o mercado mundial expande a esfera da
circulação possibilitando novos campos de realização, sua gênese inibe a possibilidade das

102
PRADELLA, L. Globalisation and the critique of political economy: new insights from Marx’s writings.
London: Routledge, 2015a. p. 159 et seq.
135

crises. Ao mesmo tempo – e contraditoriamente – ele potencializa as crises à medida que integra
ciclos de capitais que anteriormente não se relacionavam. Nos termos de Marx (1980), as crises
do mercado mundial representam o “fenômeno mais intrincado da produção capitalista” (p.
937); ou “têm de ser concebidas como a convergência real e o ajuste à força de todas as
contradições da economia burguesa” (p. 945, grifos nossos).
A contribuição de Grossmann (1979) também é clássica para a demonstração da
relação entre crises e imperialismo. Ele assume que o imperialismo tem uma função econômica
que se opera através do mercado mundial e se constitui como uma contra-tendência às crises
(seguindo fielmente a terminologia de Grossmann, o imperialismo seria uma contra-tendência
ao “derrumbe del sistema capitalista”). Em termos lógicos e históricos, o imperialismo se
manifesta como um resultado da tendência às crises e da constituição do mercado mundial no
capitalismo. Independentemente da forma sob a qual ocorra essa manifestação, ela significa,
essencialmente, uma apropriação/expropriação de valores no plano internacional e, por isso,
tem o poder de acelerar a acumulação de capital nos países ditos imperialistas e/ou postergar,
atenuar, a realização das crises.
Por representar a expansão à última potência da esfera da circulação, a constituição
do mercado mundial implica a potencialização da concorrência. Consequentemente, conduz à
concorrência entre capitais que atuam contribuindo para o nivelamento da taxa de lucro
mundial. A criação, ao menos tendencialmente, de uma taxa de lucro mundial, equivale à
afirmação de que ocorre, também em nível mundial, transferências e apropriações de valores
entre capitais industriais operando em distintas economias nacionais com diferentes
composições orgânicas. À medida que o desenvolvimento do capitalismo ocorre de forma
desigual, algumas regiões constituem composições orgânicas médias superiores às outras.
Segue, portanto, uma tendência à sistemática transferência de valores de capitais de algumas
específicas regiões para capitais de outras regiões. Tem-se, com isso, a determinação mais
abstrata do imperialismo e o que estamos chamando de essência do imperialismo.
As crises representam momentos de retomada da unidade dialética entre produção
e apropriação de valores a qual periodicamente é rompida pela superprodução de capital. Esta,
por sua vez, é impulsionada pelo desenvolvimento das forças produtivas que se revoluciona
com o advento da grande indústria. Portanto, produção capitalista sob a grande indústria e crises
são aspectos organicamente imbricados, o que significa dizer que a necessidade lógica de
consolidação do mercado mundial responde simultaneamente a ambos os fatores. Como o
136

mercado mundial possibilita uma transferência sistemática de valores entre regiões, nasce a
dimensão mais abstrata do imperialismo a partir da imbricação entre grande indústria e crises.
O imperialismo – que, partindo de sua possibilidade geral, se desdobra em
manifestações mais concretas – representa, portanto, uma decorrência necessária da grande
indústria e das crises. Se isso é verdade, caímos numa contradição: o imperialismo decorre da
produção (grande indústria) e da superprodução (crises). Sendo uma contradição real, existente,
vamos incorporá-la na interpretação que estamos defendendo através de uma análise post-
festum do imperialismo mediada pelas teorias sobre ele.
Conforme sugerimos nesta seção, o desenvolvimento em fases das teorias do
imperialismo reflete, em alguma medida, com imprecisões, as metamorfoses, as mudanças de
forma, do próprio objeto: um movimento que reforça a proposição lukácsiana segundo a qual
uma teoria do conhecimento subordinada à ontologia materialista é equivalente a um
“espelhamento da realidade material que existe independentemente da consciência” (LUKÁCS,
2012b, p. 300)103. Esse desenvolvimento formal, por seu turno, é impulsionado pela eclosão
periódica de crises estruturais. Não é coincidência que as três fases históricas da teoria sucedem
a irrupção das três crises estruturais do capitalismo: no último quarto do século XIX, na década
de 1930 e na década de 1970104.
Se as formas de manifestação do imperialismo são funcionais para a acumulação de
capital, uma crise estrutural – isto é, a interrupção do processo de acumulação – demonstra
exatamente sua não funcionalidade. A crise de um determinado padrão de acumulação – ou de
um padrão de reprodução do capital, para usar os termos de Osorio (2004, 2012) – significa que
as formas predominantes de imperialismo não foram suficientemente fortes para evita-la. Se a
manifestação do imperialismo conforme a lógica do padrão anterior fosse suficiente para manter
a dinâmica normal da acumulação de capital, a crise não ocorreria. Logo, quando uma
determinada estrutura do capitalismo entra em crise, revela-se, também, uma crise da lógica ou
das formas predominantes de imperialismo do período anterior. O resultado é que a superação
da crise estrutural traz consigo e como elemento de recuperação uma nova predominância
histórica de um determinado agrupamento de formas de imperialismo. Em suma, as crises são
potências transformadoras na aparência do imperialismo, ou, em outros termos, o imperialismo
se constitui na aparência como um desenvolvimento em nível mais elevado das crises. Segue,

103
Já nos referimos à essa proposição ao comentar a transição entre as fases dos imperialismos clássico e do pós-
guerra no final da subseção 2.1.2 desta tese.
104
Essa cronologia das crises estruturais baseia-se em Panitch e Gindins (2011).
137

como corolário, que teorizar o imperialismo a partir das crises faz com que o foco da análise
recaia sobre suas formas de manifestação.
Pelo exame das teorias, também foi possível perceber que todas as formas de
manifestação do imperialismo apresentam uma determinação oculta e velada, uma essência.
Isso significa que a essência percorre, histórica e logicamente, todas as formas de imperialismo
sem ter sua natureza abalada pelas crises estruturais. Ela permanece com as mudanças105. Com
isso, o caminho da teoria do valor de Marx para a essência do imperialismo não repousa sobre
a teoria das crises.
A conclusão do parágrafo anterior nos fornece legitimidade para defender que a
gênese histórica do imperialismo antecede a primeira crise estrutural do capitalismo. Como uma
síntese lógico-histórica do que desenvolvemos nesta primeira parte da tese, podemos sustentar
que se a essência do imperialismo é a transferência internacional e sistemática de valores, então
estamos pressupondo, em termos lógicos, a existência de um desnível estrutural de
produtividade entre os dois polos do mercado mundial. Tal desnível é uma condição necessária
para que a essência do imperialismo assuma formas concretas de manifestação, isto é, para que
o imperialismo se apresente historicamente como um fato da realidade capitalista. Sendo assim,
a gênese histórica do imperialismo está situada no período no qual aquele desnível estrutural de
produtividade se estabelece historicamente, qual seja, no período de constituição da grande
indústria (coincidente, como já vimos, com a descolonização americana). É por esse motivo
que defendemos, na Seção Um, que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado
mundial.
Para avançar em direção à segunda parte desta tese, reconheçamos que sendo as
crises uma fundamentação insuficiente para compreender o imperialismo, deve haver um outro
caminho teórico que permita a mediação entre lei do valor e imperialismo: trata-se da análise
da concorrência entre capitais. É o que tentaremos demonstrar na segunda parte, onde
examinaremos detalhadamente os fundamentos da essência do imperialismo percorrendo as

105
Conforme Medeiros (2016, p. 187-188, grifos nossos), isso nos remete à noção de historicidade de Lukács:
“Um objeto é dotado de historicidade se sua própria constituição determina um trânsito irreversível pelo tempo no
qual o objeto preserva-se como objeto por intermédio de suas próprias transformações. O processo histórico, em
outras palavras, é um processo marcado pela “permanência na mudança”, sendo essa permanência dinâmica
apreendida exatamente pela categoria da substância. Com isso, Lukács resgata a categoria da substância, livrando-
a da posição equivocada que a concebe estaticamente com um substrato fixo do ser. Ademais, e muito mais
importante, o autor emprega essa categoria como abrigo da ideia imprescindível de que movimento e permanência
não são determinações excludentes, mas, justo ao contrário, momentos antitéticos sem os quais nenhum dos polos
poderia ser sequer definido (pois, obviamente, não há como definir a mudança sem a permanência ou vice-versa)”.
Agradecemos a Hugo Corrêa por nos alertar sobre esse ponto durante uma apresentação dos resultados
preliminares desta pesquisa no Fórum-NIEP “Marx, imperialismo e crítica ontológica”.
138

possibilidades de distinção entre produção e apropriação de valor na teoria da concorrência de


Marx e utilizando, como recorte metodológico, as formas de manifestação do objeto.
139

PARTE II: Por uma reinterpretação do


imperialismo a partir da teoria do valor de MARX
140

3 IMPERIALISMO PELA VIA DO COMÉRCIO: TRANSFERÊNCIA DE VALOR


ATRAVÉS DA TROCA DESIGUAL

Organizado em quatro subseções, esta seção tem por objetivo demonstrar as


possibilidades de imperialismo a partir do comércio. Seguindo a terminologia da seção anterior,
esperamos verificar as possibilidades de transferência de valor no mercado mundial através da
troca desigual. Na primeira subseção nosso escopo é mostrar que a concorrência não é uma
categoria exclusiva do Livro III de O Capital, como alguns comentadores da obra sustentam.
Pelo contrário, defenderemos que ela tem papel crucial nos Livros I e II. Na sequência, subseção
3.2, mostraremos como o estudo do processo de circulação do capital aponta para as condições
que podem tornar possível um imperialismo comercial. As duas seções que encerram este
capítulo são dedicadas ao exame da troca desigual dentro de um ramo (3.3) e entre ramos de
produção distintos (3.4), nas quais desenvolveremos os fundamentos da distinção entre valor
individual, valor social, preço de produção e preço de mercado.

3.1 CONCORRÊNCIA E SUBSUNÇÃO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL

Encerramos a primeira parte desta tese defendendo que a transferência de valor no


mercado mundial é a essência do imperialismo. Em função desse argumento, levantamos a
hipótese de que a teoria da concorrência de Marx constitui a mediação necessária entre a lei do
valor e o imperialismo. Podemos justificar essa hipótese tendo em vista que “o núcleo da teoria
da concorrência diz respeito à alocação do mais-valor total e, especificamente, às discrepâncias
entre as quantias ‘individuais’ de mais-trabalho extraídas e realizadas por cada uma das
unidades produtivas rivais” (GUERRERO, 2003, p. 75, tradução nossa). Sendo a transferência
de valor um corolário necessário do fato de que existe uma discrepância quantitativa entre o
quantum de mais-valor que cada capital individual extrai e realiza sob a forma de lucro, a
maneira pela qual poderemos compreender teoricamente os fundamentos de sua existência é
através da teoria da concorrência. Em outros termos, a transferência de valor decorre da
141

distinção dialética entre produção e apropriação de valor, que, por sua vez, é o fato nuclear,
parafraseando Guerrero, da teoria da concorrência de Marx106.
Do ponto de vista do capital social total, Marx reconhece no começo do Livro III
de O Capital que “a magnitude do lucro é igual à magnitude pré-determinada do mais-valor”
(MOSELEY, 2015, p. 8, tradução nossa, grifos nossos). Em carta a Engels de 30 de abril de
1868 – que, segundo Moseley (2015, p. 3), resume o conteúdo do Livro III e constitui o único
material que Engels usou para lhe auxiliar na árdua tarefa de editorar este livro –, Marx anota
o seguinte: “como um resultado, o mais-valor assume a forma de lucro, sem haver qualquer
diferença quantitativa entre um e outro. Este é apenas uma manifestação ilusória do mais-valor”
(MARX, 2010c, p. 21, tradução e grifos nossos). Logo, se no âmbito da totalidade, isto é, do
capital social total, presume-se que não ocorre nenhuma distinção quantitativa entre mais-valor
e lucro, ela só pode ocorrer a partir da interação entre os capitais individuais. Nessa mesma
carta, há uma expressão pitoresca utilizada por Marx para descrever o critério com o qual os
capitalistas industriais repartem o mais-valor total: “comunismo capitalista”.

O que a concorrência entre as várias massas de capital – investidos em diferentes


esferas de produção e com diferentes composições [orgânicas] – está batalhando é
para o comunismo capitalista, ou seja, que a massa de capital empregada em cada
ramo da produção deveria obter uma parte alíquota do mais-valor total proporcional
à sua parte do capital social total. (MARX, 2010c, p. 23, grifos do autor, tradução
nossa).

No “comunismo capitalista”, portanto, cada capital se apropria de uma fração do


mais-valor total de acordo com sua contribuição à formação do capital social total107. Guerrero
(2003, p. 75-80) resume os níveis de abstração nos quais a concorrência efetiva a distribuição
do mais-valor total, ou lucro total, entre os diversos capitais individuais. A concorrência entre
capitais industriais, que Guerrero chama de “setor produtivo”, pode ser “convenientemente
separada em dois momentos analíticos diferentes” (GUERRERO, 2003, p. 76): a concorrência
intrassetorial e inter-setorial. Sendo assim, a teoria da concorrência entre capitais industriais de
Marx está construída sobre dois níveis de abstração distintos. No primeiro, analisa-se o

106
No bem-humorado “manual de instruções” ao pensamento de Marx, Bensaïd (2013) projeta uma imagem de O
Capital como se fosse um romance policial, no qual cada livro da trilogia cumpre um papel especial na narrativa:
“no Livro I, o mais-valor foi roubado. No Livro II, ele passou de mão em mão. No Livro III, chega a hora de
dividir o butim, do acerto” (BENSAÏD, 2013, p. 111).
107
Se lermos essa expressão à luz de sua formulação de 1875 na Crítica do Programa de Gotha, na qual a bandeira
da sociedade comunista seria “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”
(MARX, 2012, p. 32), o “comunismo capitalista” parece estar propositadamente invertido, já que quanto mais
forte se é, mais lucro é capaz de se apropriar.
142

entrelaçamento entre capitais industriais produtores de mercadorias portadoras de idênticos


valores de uso. Ao romper com essa abstração, nos deparamos com a concorrência entre capitais
industriais tout court, considerando a existência de distintos valores de uso lançados no
mercado. Com efeito, ainda estamos lidando com uma imensa abstração: a análise está restrita
apenas aos capitais industriais, deixando de lado, por enquanto, a existência de capital
comercial, capital a juros etc.
O objetivo desta seção é compreender os nexos causais entre a concorrência sob o
ponto de vista dos dois níveis de abstração destacados no parágrafo anterior e a essência do
imperialismo. Em outros termos, esperamos apontar as possibilidades de imperialismo a partir
do entrelaçamento entre capitais industriais.
Antes de avançar para este exame, uma breve explicação para a organização da
seção e dos temas tratados em cada subseção. Se utilizássemos a afamada interpretação de
Rosdolsky (2001) sobre O Capital, poderíamos tentar atingir nosso objetivo retomando apenas
os argumentos defendidos por Marx no Livro III. Afinal, segundo essa posição, contra a qual já
nos posicionamos108, os Livros I e II dizem respeito ao estudo do “capital em geral” enquanto
o último livro seria o lugar dos “vários capitais”, ou seja, da concorrência.
Sabemos, entretanto, que esse era um planejamento primitivo da obra magna de
Marx que foi alterado à medida que o autor desenvolvia os manuscritos preparatórios. Tal fato
pode ser comprovado com a constatação de que a concorrência, nos termos de Callinicos (2014,
p. 140-1), tem “papel explanatório em estágio crucial do Livro I”. Para que essa assertiva faça
sentido, duas perguntas precisam ser respondidas: qual é esse estágio crucial? Por que a
concorrência tem um papel explanatório nesse estágio?
Em primeiro lugar, o estágio crucial do Livro I ao qual Callinicos se referia é a
Seção IV sobre a produção do mais-valor relativo. Nesse ponto da exposição de Marx, “a
transformação tecnológica do processo de produção necessária para incrementar a
produtividade do trabalho constitui a subsunção real do trabalho ao capital” (CALLINICOS,
2014, p. 141, grifos nossos). Como já destacamos109, o modo de produção capitalista adquire
uma especificidade que lhe distingue de qualquer outra forma histórica e social de produção, se
torna sui generis, quando o trabalho realmente subsume-se ao capital.
O argumento de Marx, mais detalhado nos Manuscritos de 1861-1863 do que em
O Capital, é que a divisão do trabalho dentro da manufatura, enquanto um método de produção

108
Cf. Subseção 1.2 desta tese.
109
Cf. Subseção 1.3 desta tese.
143

do mais-valor relativo, faz com que o capital detenha todas as condições para a realização da
capacidade de trabalho (ou força de trabalho110). Além de já possuir as condições objetivas do
trabalho (a propriedade dos meios de produção), agora o capital possui “as condições sociais
do trabalho subjetivo”. O mecanismo que torna isso possível é o fato da divisão do trabalho
unilateralizar o trabalho do então produtor da mercadoria, isto é, transformar a capacidade de
trabalho em “mera função de uma parte do mecanismo completo”, “um acessório do capital”,
“elo de um mecanismo que é a existência do capital a ele contraposta” (MARX, 2010f, p. 316-
317). Em uma passagem elucidativa, Marx contrapõe a subsunção formal com a novidade
observada na subsunção real do trabalho ao capital:

Originalmente [i.e. sob a subsunção formal], em lugar da mercadoria, ele [o


trabalhador] tinha de vender ao capitalista o trabalho que produz a mercadoria, uma
vez que faltavam a ele as condições objetivas para a realização de sua capacidade de
trabalho. Agora [i.e. sob a subsunção real] ele deve vendê-la porque sua capacidade
de trabalho só é capacidade de trabalho na medida em que é vendida ao capital.
Portanto, agora ele não é mais subsumido sob a produção capitalista apenas pela
falta dos meios de trabalho, mas por meio de sua própria capacidade de trabalho;
pelo modo de seu trabalho, ele submete-se ao capital, em cujas mãos não se encontram
mais apenas as condições objetivas, mas as condições sociais do trabalho subjetivo
sob os quais seu trabalho em geral ainda é trabalho. (MARX, 2010f, p. 316-317, grifos
nossos).

Portanto, desde o interior do processo de trabalho, o desenvolvimento dos métodos


de produção do mais-valor relativo equivale ao desenvolvimento da subsunção real do trabalho
ao capital. Sendo assim, podemos dizer que o momento máximo no qual o trabalho se encontra
realmente subsumido ao capital é com a introdução da maquinaria ao processo produtivo.
Agora, o trabalho humano pode se despir de qualquer conteúdo na medida em que o “princípio
fundamental” da maquinaria “é a substituição do trabalho qualificado pelo trabalho simples”.
Em outros termos, “é essencial que muitos façam o mesmo” (MARX, 2010f, p. 370).
Com essa breve digressão, é possível dizer, sem hesitações, que a crucialidade da
Seção IV de O Capital repousa sobre o fato de que ali estão postas as condições que foram
pressupostas desde o Capítulo I da obra. Sendo mais direto, o estudo da produção do mais-valor
relativo torna possível perceber que as condições nas quais ocorre a abstração do trabalho
humano são reais, resultado da subsunção real do trabalho ao capital, derivada da expansão de

110
Há uma mudança de terminologia entre os escritos preparatórios de 1861-63 e a publicação da obra em 1867,
quando Marx então passa a se referir exclusivamente ao termo “força de trabalho” no lugar de “capacidade de
trabalho”.
144

um modo de produção especificamente capitalista. Em outros termos, isso nos permite constatar
que Marx lida com este modo de produção desde o primeiro parágrafo da Seção I do Livro I.
Demonstrado, portanto, o caráter crucial da Seção IV, resta-nos responder a segunda
pergunta levantada anteriormente: por que a concorrência tem um papel explanatório nesse
estágio? Mesmo nos Manuscritos de 1861-1863, onde Marx ainda se baseava na distinção entre
capital em geral e vários capitais, algumas vezes ele se encontra tendo que fornecer algum papel
explicativo à concorrência dentro do capítulo do capital em geral. Em uma passagem desse
texto – que parece inspirar a subseção “divisão do trabalho na manufatura e divisão do trabalho
na sociedade” do Capítulo XII do Livro I de O Capital –, Marx expressa sua preocupação em
tratar da concorrência nesse nível da exposição:

No interior da sociedade, [...] a divisão do trabalho aparece livre, isto é, contingente,


unida por um nexo interior que, porém, se representa tanto como o produto das
circunstâncias quanto do arbítrio dos produtores de mercadorias independentes uns
dos outros. Essencialmente distintas, já que a divisão do trabalho – como modo de
produção especificamente capitalista – no interior do ateliê se contrapõe à divisão do
trabalho no todo da sociedade, ambas se condicionando reciprocamente. Em verdade,
isso significa que a grande indústria e a livre concorrência são ambas formas que se
condicionam reciprocamente, figuras da produção capitalista. Porém, deve-se evitar,
aqui, todo recurso à concorrência, uma vez que ela é a ação dos capitais uns sobre
os outros, já pressupondo, portanto, o desenvolvimento do capital em geral. (MARX,
2010f, p. 359-360, grifos nossos).

Mesmo com a cautela, Marx não deixa despercebido que a livre concorrência
enquanto representação da divisão do trabalho na sociedade condiciona e é condicionada pela
grande indústria. Ainda não é o momento para lidar exaustivamente com esse ponto111, embora
algumas indicações preliminares sejam necessárias. Algumas páginas adiante, Marx (2010f, p.
370) oferece uma interpretação parcial desta relação ao afirmar que “o emprego da maquinaria
aumenta a divisão do trabalho no interior da sociedade, a multiplicação dos ramos de atividade
particulares e as esferas de produção independentes”. Na medida em que a maquinaria é uma
“força produtiva produzida” (MARX, 2010f, p. 371), seu desenvolvimento abre novos campos
de investimento ao capital. Aumentam a diversidade dos valores de uso produzidos e, assim, a
complexificação da divisão do trabalho na sociedade. Isso indica, evidentemente, que a
maquinaria contribui para a constituição e consolidação de uma divisão internacional do
trabalho (por ser uma instância da divisão do trabalho no interior da sociedade).

111
A subseção 3.3 (Troca desigual dentro de um ramo de produção) tratará pormenorizadamente das consequências
da concorrência dentro de um ramo de produção.
145

A outra condicionante (da concorrência sobre a grande indústria) pode ser explicada
pela coerção fornecida pela concorrência para o aperfeiçoamento das técnicas produtivas com
vistas à obtenção de mais-valor acima do que seria considerado normal. Há, aqui, dois
movimentos: a concorrência força os capitais individuais a reduzirem o tempo de trabalho
necessário para a produção de determinada mercadoria para usufruírem daquele mais-valor
adicional; e, uma vez que tal valor individual se diferenciou em relação ao valor social, os
capitais menos produtivos se veem coagidos a uniformizar seu processo de trabalho em relação
àquele aplicado pelos concorrentes mais avançados tecnologicamente. Este segundo
movimento provoca uma tendência de convergência do valor social (que se expressa no preço)
em direção aos menores valores individuais. Quando isto ocorre, ou seja, “tão logo a
concorrência tenha reduzido ao seu valor o preço da mercadoria produzida por meio da
maquinaria” (MARX, 2010f, p. 385-386), desaparece o mais-valor adicional apropriado pelo
capital inovador e o aumento do mais-valor repousa sobre o prolongamento relativo do mais-
trabalho através da redução do tempo de trabalho necessário para a reprodução da força de
trabalho.
Podemos notar que a organização da Seção IV do Livro I de O Capital é
severamente parecida com a seção dos Manuscritos de 1861-1863 dedicada à produção do
mais-valor relativo. Por exemplo, em ambas redações, esse assunto se divide em quatro
capítulos (tópicos), o primeiro conceitual e os três seguintes dedicados à cooperação, divisão
do trabalho e maquinaria. Mesmo que na redação da obra de 1867 Marx tenha eliminado a
distinção entre capital em geral e vários capitais, Callinicos (2014, p. 142) nota um “desconforto
de Marx em conceder à concorrência um papel explanatório tão cedo em sua análise”,
textualmente expresso no Capítulo X do Livro I. Entretanto, ele reconhece a necessidade de
expor a concorrência em um nível tão abstrato pois entende o papel crucial da rivalidade entre
capitalistas na explicação da produção do mais-valor relativo.
Nos termos de Callinicos (2014, p. 140-142), o papel da concorrência nesse
processo é definir uma “norma de eficiência [produtiva] média que constitui o tempo de
trabalho socialmente necessário adequado para produzir um dado tipo de mercadoria,
representada por seu valor de mercado [ou social]”. Os capitalistas que conseguem fazer
inovação tecnológica e produzir com uma produtividade acima da média diferenciam o valor
individual de suas mercadorias do valor de mercado, gerando, com isso, um lucro extra, desde
que o preço de venda da mercadoria esteja acima do equivalente ao valor individual e abaixo
do valor de mercado. Quando a nova tecnologia é copiada “em larga escala” pelos demais
146

capitalistas, continua Callinicos, “há uma variação na norma setorial de eficiência e o valor de
mercado se reduz, eliminando o lucro extra do inovador, mas refletindo um maior nível de
produtividade do trabalho e desenvolvimento tecnológico”.
A título de síntese, chegamos a dois resultados fundamentais: a concorrência é o
motor de um processo que promove a abstração do trabalho humano e, ao mesmo tempo, a
nivelação tendencial dos valores individuais em torno de um valor de mercado. Quando, no
Capítulo I do Livro I, Marx descreve o trabalho humano abstraído de suas determinações
particulares como a substância do valor, ele está, portanto, tomando como pressuposto a
existência da concorrência. A necessidade de vários capitais para a exposição adquire um papel
ainda mais ativo quando constatamos que o valor só existe se puder se manifestar, como valor
de troca, em uma segunda mercadoria. Necessita-se, portanto, para que o argumento do Capítulo
I faça sentido, de vários valores de uso, ou seja, de vários capitais.
É digno de nota destacar que Callinicos compara indistintamente preço e valor,
remetendo à interpretação “macro-monetária” de Moseley (2016), para o qual as categorias da
aparência e da essência podem ser equiparadas em termos monetários. Defendendo que o
famoso problema da transformação é na realidade um não-problema112, Moseley argumenta que
a teoria do mais-valor no Livro I é um “pré-requisito essencial para a teoria da distribuição do
mais-valor e dos preços de produção no Livro III” (MOSELEY, 2016, p. 13, tradução nossa)
por determinar a quantidade total de mais-valor que poderá ser distribuída. Nesse sentido, o
“comunismo capitalista” a que Marx se referiu em carta supracitada a Engels é o resultado da
interação entre os temas principais do Livro I (produção do mais-valor social total) e do Livro
III de O Capital (distribuição dessa massa de valor entre os diversos capitais individuais).
O plano da distribuição do mais-valor pressupõe que uma abstração que acompanha
a exposição marxiana desde o começo seja superada. A partir de agora, as mercadorias podem
(e devem) ser trocadas desconsiderando-se a troca de valores equivalentes. Nesse nível mais
concreto, as mercadorias se trocam pelos preços de mercado mediados pelos preços de
produção. Desde o Livro I, aliás, Marx já apontava para a possibilidade dessa distinção
quantitativa entre valores e valores de troca; a qual se torna agora, no Livro III, uma necessidade
teórica. Em outros termos, podemos reescrever esta característica própria da economia
capitalista da seguinte forma: o quantum de valor que determinado capital individual produz se
distingue dialeticamente do quantum de valor apropriado por ele mesmo. Para que isso ocorra,

112
Aprofundaremos esse argumento ao debater a troca desigual entre diferentes ramos de produção. Cf. Subseção
3.4 desta seção.
147

entretanto, é necessário que seja posta na exposição um condicionante adicional: o produto de


cada capital individual, enquanto mercadoria, tem que percorrer ininterruptamente um
determinado ciclo, que Marx denominou de ciclo do capital-mercadoria (pois é o único ciclo
que começa com uma forma que já contém mais-valor, representada por M’). Nesse processo,
e considerando-se as novas determinações concretas postas no Livro III, a massa de valor
incorporada em cada capital-mercadoria no começo do ciclo pode ser maior ou menor do que a
massa de valor que retorna àquele capital no final do ciclo.
Adiantamos, no parágrafo anterior, que a interação entre os Livros I e III pressupõe
que o capital circule, tema, como se sabe, do Livro II de O Capital: neste livro “é preciso
esclarecer todo um conjunto de condições, sob as quais o movimento D-M...P...M’-D’, em que
estão contidos os movimentos D-M-D’ e M...P...M’, pode ocorrer de forma desimpedida e
reiterada” (HEINRICH, 2014b, p. 34). De fato, para que esse movimento ocorra desta forma, é
necessário que os capitais industriais se entrelacem e o façam em determinada proporção
compatível com a reprodução da “totalidade do modo de produção capitalista” (HEINRICH,
2014b, p. 34). Uma explicação para a forma como esse entrelaçamento ocorre pode ser
percebida no assim chamado Capítulo VI Inédito que constituía, até o momento em que foi
redigido, a parte final do Livro I equivalendo à transição lógica entre os dois primeiros livros.
Diz Marx no último parágrafo do texto:

Enquanto mercadoria, o produto do capital deve entrar no processo de intercâmbio


das mercadorias, e deste modo não só ingressa no intercâmbio real de substâncias,
mas experimenta ao mesmo tempo essas mutações formais que apresentamos como
metamorfose das mercadorias. [...]Porém estas mercadorias são agora
simultaneamente portadoras de capital: são o capital valorizado, prenhe de mais-
valia. E a esse respeito a sua circulação, que é agora simultaneamente processo de
reprodução do capital, inclui novas determinações que eram alheias à consideração
abstrata da circulação mercantil. Por conseguinte, agora temos que considerar a
circulação das mercadorias enquanto processo de circulação do capital. (MARX,
2004, p. 169, grifos nossos).

Portanto, o entrelaçamento entre os capitais individuais é mediado pelo intercâmbio


das mercadorias, enquanto portadoras de capital. Estando prenhe de mais-valor, o exame do
processo de circulação do capital vai apontar as condições necessárias para que o mais-valor
potencial se realize.
Se o imperialismo no âmbito do comércio equivale à troca de mercadorias
portadoras de grandezas distintas de valor, isto é, à troca desigual, o pressuposto para que ele
se realize é que os capitais industriais se entrelacem no mercado mundial. As condições para
148

isso devem ser encontradas no estudo do processo de circulação do capital. É o que faremos na
próxima subseção.

3.2 O PROCESSO DE CIRCULAÇÃO DO CAPITAL E OS PRESSUPOSTOS PARA O


IMPERIALISMO PELA VIA DO COMÉRCIO

Na interpretação de Heinrich (2014b), duas definições para o processo de circulação


do capital foram articuladas por Marx na redação do Livro II:

Trata-se aqui, por um lado, da ideia de que o capital se encontra num processo
ininterrupto de circulação. O objetivo desse movimento é aumentar o valor do capital.
Observado desse ponto de vista, o processo D-M-P-M’-D’ não é outra coisa senão o
‘processo de circulação do capital’. Nele está subsumida a fórmula geral do capital D-
M-D’, discutida no Livro I. Na outra definição, o processo de circulação propriamente
dito é contraposto ao processo de produção. Ora, se a troca de mercadoria por dinheiro
é um grande problema, um ‘salto mortale’, como diz Marx em outro lugar, então a
realização do capital-mercadoria com o mais-valor nele contido, ou seja, o ‘processo
de circulação do capital’, é um processo muito mais difícil. (HEINRICH, 2014b, p.
33).

Ambas se engendram mutuamente na medida em que uma é o pressuposto da outra.


O processo cíclico do capital, apresentado por Heinrich através da forma do capital monetário
(D-M...P...M’-D’), se sustenta enquanto ocorre a troca de capital monetário por capital-
mercadoria (D-M) e vice-versa (M’-D’). Por outro lado, este intercâmbio depende da
reprodução do capital industrial pois, assim, o valor de capital necessariamente percorre suas
diversas formas funcionais, percorrendo as transições D-M e M’-D’. Neste sentido,
pressupondo a existência do capital industrial, tanto faz olhar o processo de circulação do
capital por uma definição ou por outra, ambas se condicionam de forma que falar de uma é
necessariamente falar de outra.
Quando Marx examina os diversos ciclos do capital industrial na primeira seção do
Livro II, ele pretende fazer isso abstraindo de fatores que possam encobrir as determinações
essenciais. Para fazer o estudo do ciclo em seu “estado puro”, diz Marx (2014, p. 185), “não
basta pressupor que as mercadorias são vendidas por seu valor, mas que isso ocorre sob
circunstâncias que permanecem inalteradas”. O que ele está dizendo é que a circulação ocorre
sem perturbações, sem “revoluções técnicas” que possam modificar o valor de capital durante
a reprodução. Isto é, a segunda definição posta por Heinrich – na qual se inclui o salto mortal
149

da mercadoria – se desenrola sem sobressaltos que possam interferir no centro da investigação


de Marx nesse momento, que é a metamorfose das formas funcionais do capital, ou, nas palavras
do próprio, é “a simples forma do movimento” (MARX, 2014, p. 184).
Embora o objetivo da exposição de Marx seja o exame do ciclo em sua pureza, sem
perturbações, com troca pelos valores, ele deixa pistas que podem contribuir com o
entendimento da troca desigual. Como esta se refere à troca de valores não equivalentes, ela
pressupõe que o ciclo do capital se desenrole fora de seu estado puro, isto é, com perturbações
na segunda definição da circulação (D-M e/ou M’-D’) que se projetam sobre a primeira (D-
M...P...M’-D’). Examinaremos, em sequência, como a possibilidade para a troca desigual se
patenteia no exame marxiano do ciclo do capital industrial especialmente sob a forma capital-
mercadoria (subseção 3.2.1), no estudo da reprodução do capital social (subseção 3.2.2) e quais
as repercussões dela sobre o processo reprodutivo dos capitais industriais imperialistas e
dependentes (subseção 3.2.3).

3.2.1 Condições objetivas para a troca desigual a partir do ciclo do capital-mercadoria

Como se sabe, Marx estuda o ciclo do capital industrial sob três óticas distintas,
cada uma das quais lança luz sobre distintos enlaces do processo de circulação do capital.
Esquematicamente, podemos representa-las assim:

Figura 2: As três formas do ciclo do capital industrial

Fonte: O autor a partir de MARX, 2014, p. 140


150

Importante destacar que, nos termos de Marx (2014, p. 180-181), a diferença entre
os ciclos é “meramente formal” ou “meramente subjetiva, existente apenas para seu
observador”. Cada capital industrial individual percorre os três ciclos “simultaneamente” e eles
“consumam-se continuamente e lado a lado”. Em outros termos, os ciclos do capital industrial
carregam duas características: simultaneidade e continuidade entre as três formas. Isso significa
que enquanto uma fração do capital industrial está comprando meios de produção, outra está
produzindo a mercadoria utilizando o estoque de meios de produção e uma terceira está
vendendo as mercadorias em estoque. Trata-se de um “traço característico da produção
capitalista, condicionado por sua base técnica, embora nem sempre exequível de forma
incondicional”. Marx distingue, assim, a produção capitalista da pré-capitalista, que, por não
possuir a base técnica assentada sobre a maquinaria, não consegue levar a cabo todas as três
fases do processo continuamente, apenas em saltos, de forma discreta. Esse raciocínio permite
a Marx (2014, p. 181-182) concluir que o capital industrial é “um todo em movimento”, ou “a
totalidade dessas partes”:

Como totalidade, o capital se encontra, então, simultaneamente e em justaposição


espacial em suas diferentes fases. [...] As formas são, portanto, fluidas, e sua
simultaneidade é mediada por sua sucessão. Cada forma segue a outra e a antecede,
de modo que o retorno de uma parte do capital a uma forma é condicionado pelo
retorno de outra parte a outra forma. (MARX, 2014, p. 183, grifos nossos).

A representação esquemática do ciclo é verdadeira tanto para o capital social total


quanto para os diversos capitais individuais. A continuidade da reprodução, entretanto, é certa
para o primeiro (desde que preservadas algumas “condições de equilíbrio”, das quais falaremos
adiante), embora para os últimos “a continuidade da reprodução é, em certos pontos, mais ou
menos interrompida” (MARX, 2014, p. 183). Mantido o pressuposto sobre o “estado puro” da
circulação, podemos nos perguntar por qual motivo a continuidade é “mais ou menos
interrompida” para o capital individual. Marx está tratando aqui de causas fortuitas e mais ou
menos previsíveis, como as estações do ano para um capital empregado na agricultura, no
sentido de que podem afetar o curso da continuidade da reprodução. Como veremos na
sequência, o relaxamento daquele pressuposto levantará outros motivos que interrompem total
ou parcialmente a continuidade da reprodução do capital industrial individual.
O caráter de continuidade do ciclo do capital industrial faz com que ele seja “não
apenas a unidade dos processos de circulação e produção, mas a unidade de todos os seus três
ciclos” (MARX, 2014, p. 182). Sendo uma unidade, o estancamento, a paralisação da transição
151

entre formas funcionais gera perturbações sobre todo o ciclo. Ao invés de estancamento
completo, ou seja, engessamento integral do valor de capital em determinado estágio do ciclo,
podemos reproduzir esse argumento de Marx levando em consideração um estancamento
parcial, que ocorre, por exemplo, quando o valor cristalizado em determinada forma não
consegue se metamorfosear sem ter alguma parte de si subtraída. Estamos dizendo, ainda
preliminarmente, que o imperialismo (através da troca desigual) pode efetivar um estancamento
parcial do ciclo do capital industrial dependente. A possibilidade teórica para isso foi levantada
por Marx na seguinte passagem, na qual complementamos, por nossa conta em itálico e entre
colchetes, certas orações:

Se, por exemplo, o movimento M’-D’ se estanca numa de suas partes e não se
consegue vender a mercadoria [ou não se consegue vender pelo valor que foi
produzida], o ciclo dessa parte é interrompido [ou subtraído] e a reposição pelo seu
meio de produção não é realizada; as sucessivas partes que resultam do processo de
produção como M’ tem sua mudança de função bloqueada pelas partes anteriores. Se
isso persiste por certo tempo, restringe-se a produção e o processo inteiro é suspenso.
Cada estancamento da sucessão provoca uma desorganização da justaposição [das
partes]; cada estancamento num estágio causa um estancamento maior ou menor em
todo o ciclo, não apenas da parte do capital imobilizado, mas também do capital
individual em sua totalidade. (MARX, 2014, p. 182, grifos e inserção nossos).

Para que haja um estancamento da forma como estamos lidando aqui, precisamos
pressupor alguma diferença quantitativa entre o valor produzido e o valor apropriado pelo
capital individual, seja na compra de meios de produção ou na venda do capital-mercadoria.
Em outros termos, é preciso superar aquela abstração segundo a qual as mercadorias são
vendidas pelos valores. Ao mesmo tempo, é preciso ainda estudar o ciclo do capital industrial
sob uma forma que permita entender as condições para o entrelaçamento entre vários capitais,
ou seja, é preciso estudar a forma do ciclo que melhor se encaixa na perspectiva da
concorrência. A partir disso poderemos investigar os resultados do entrelaçamento entre
capitais individuais com distintos níveis de produtividade.
Das três formas do ciclo, duas começam pelo valor de capital e terminam com valor
de capital valorizado (D...D’ e P...P) e uma começa já com o valor de capital valorizado
(M’...M’). Esta característica do ciclo do capital-mercadoria lhe confere uma especificidade
importante aos nossos propósitos. Como é indiferente se consideramos reprodução simples
(M’...M’) ou ampliada (M’...M’’), iremos representar esse ciclo por M’...M’ para tornar a
representação mais simples:
152

Figura 3 – Ciclo do capital-mercadoria

Fonte: O autor a partir de MARX, 2014, p. 173

Consideramos que o valor do capital-mercadoria (M’) se decompõe no valor de


capital adiantado (M) e no mais-valor (m). Nestas condições, o capital-mercadoria está, sob a
forma natural, prenhe de mais-valor. Sua realização em D’ permite ao capitalista comprar
mercadorias, meios de produção (Mp) e força de trabalho (FT), para iniciar um novo processo
de produção (...P...) e consumir improdutivamente outras mercadorias (m) de valor equivalente
a d para seu próprio consumo. Por conseguinte, pressupõe-se, seguindo o argumento de Marx
(2014, p. 173), por duas vezes a existência de capital-mercadoria “fora do ciclo”
(diferentemente dos ciclos D...D’ ou P...P, nas quais a forma do extremo final pode ser a
primeira aparição “na cena histórica” do capital monetário ou do capital produtivo). As duas
vezes em que M “aparece como capital-mercadoria” ao longo do ciclo são em D-M e d-m, ou
seja, quando valor de capital acrescido de mais-valor sob a forma capital monetário precisa
adquirir no mercado meios de produção ou força de trabalho e produtos para o consumo
individual do capitalista.
A forma M’...M’ do ciclo “pressupõe M (= FT + Mp) como mercadorias alheias
em mãos alheias, mercadorias essas atraídas para o ciclo pelo processo inicial de circulação e
incorporadas ao capital produtivo, de cuja função resulta que M’ se converte novamente na
forma final do ciclo” (MARX, 2014, p. 174, grifos nossos). Em função disso e à medida que
este ciclo parte desde o início da mercadoria como produto de um capital, ele permite
vislumbrar o entrelaçamento entre os vários capitais individuais:

[...] precisamente porque o ciclo M’...M’ pressupõe, dentro de seu percurso, outro
capital industrial em forma de M (=FT+Mp) [...] ele exige que o consideremos não
apenas como formal geral do ciclo, isto é, como uma forma social sob a qual pode ser
considerado todo capital industrial individual (fora de seu primeiro desembolso) –
portanto, não apenas como uma forma de movimento comum a todos os capitais
industriais individuais –, mas, ao mesmo tempo, como a forma de movimento da soma
dos capitais individuais e, portanto, do capital total da classe capitalista, um
153

movimento em que cada capital industrial individual aparece apenas como um


movimento parcial, entrelaçado com os demais e por eles condicionado. (MARX,
2014, p. 174-175, grifos nossos).

O entrelaçamento entre capitais industriais individuais posto pelo ciclo do capital-


mercadoria permite a Marx (2014, p. 175-6, grifos nossos) constatar que “em todas as suas
peculiaridades, esse ciclo aponta para além de si mesmo como ciclo isolado de um capital
meramente individual”. Ao contrário dos ciclos D...D’ e P...P, em M’...M’ “o movimento do
valor de capital aparece, desde o início, apenas como parte do movimento da massa geral dos
produtos”. Sendo a forma de movimento do capital total, o ciclo do capital-mercadoria faz com
que os ciclos dos capitais individuais apareçam necessariamente como movimento parcial e
condicionado pelo todo. Essa relação de condicionalidade, na verdade, é dupla. Por um lado, os
ciclos dos capitais individuais são condicionados pelo ciclo do capital-mercadoria (total) à
medida que este põe o valor de capital já valorizado como pressuposto, como primeira forma
funcional, para os ciclos individuais. Por outro lado, o valor de capital só se valoriza se os
capitais individuais percorrerem um determinado processo produtivo no qual a força de trabalho
explorada seja capaz de produzir o mais-valor.
A consideração anterior sugere que o ponto de partida do ciclo M’...M’ pode
representar o valor total produzido pela sociedade capitalista. Para que a reprodução social se
processe, é necessário que esse ponto de partida também contenha os valores de uso em
proporções adequadas às necessidades técnicas de valorização do valor. Marx ainda não explica
nesse ponto da exposição quais os critérios (as “condições de equilíbrio”113) para que a
reprodução do capital social se efetive levando-se em consideração as necessidades e
contribuições de cada ramo para a produção total. Enquanto a resposta para isso é fornecida
pelo autor apenas na terceira e última seção do Livro II, o que nos interessa, neste momento, é
compreender a dinâmica entrelaçada entre as cota-partes do valor total: nos referimos ao
movimento dos valores individuais lançados na circulação sob a forma capital-mercadoria (M’-
D’) e dela retirados para integrar um novo processo produtivo (D’-M [Mp e FT])114.
Marx pressupõe, neste nível da exposição, ao longo dos Livros I e II e até o Capítulo
IX do Livro III, que as mercadorias são vendidas por seus valores. Isto permite ao autor se

113
Cf. M. D. Carcanholo (2003).
114
A vinculação entre o ciclo do capital-mercadoria e a reprodução do capital social é apontada em outros lugares
do Livro II, como, por exemplo, no Capítulo VII: “A última forma [M’...M’] é importante para a última seção, na
qual o movimento dos capitais individuais é concebido em conexão com o movimento do capital social total”
(MARX, 2014, p. 236).
154

concentrar apenas com as mudanças de forma do valor quando expõe os ciclos do capital.
Entretanto, a possibilidade de que tais metamorfoses não percorram seu “curso normal”, para
usar um termo do próprio autor115, se torna realizável – embora, analiticamente, nunca seja
levada adiante – em qualquer momento no qual Marx (2014) representa os desdobramentos de
uma determinada operação de compra e venda ou vice-versa. Quando argumenta (MARX,
2014, p. 167-169) que, na venda do capital-mercadoria, o valor de capital valorizado pode ser
decomposto em tantas frações de valor quanto sejam desejáveis independentemente das
características naturais do tipo de mercadoria produzida, ele exemplifica com uma produção de
fios que pesam 10 mil libras e se vendidos a 500 libras-esterlinas recompõem todo o valor de
capital adiantado e o mais-valor integralmente. Sendo assim, o valor de uma libra de fio
equivale a um xelim116.
No cotidiano mercantil, entretanto, o que ocorre é a possibilidade real de que cada
libra de fio seja vendida por um preço que apenas fortuitamente coincida com um xelim. É o
que Marx (2014, p. 169, grifos nossos) nos informa quando diz que se o comprador “decompõe
o valor total em seus elementos constitutivos [c + v + m], é com a capciosa intenção de
demonstrar que mesmo se a libra fosse vendida abaixo de 1 xelim o vendedor ainda faria um
bom negócio”. Ora, o vendedor “faria um bom negócio” mesmo se vendesse sua libra de fio
abaixo de um xelim pois parte do valor desta libra decorreu da apropriação gratuita de trabalho
vivo por parte do capitalista. Em outros termos, Marx coloca em foco o fato segundo o qual o
mais-valor apropriado na troca da mercadoria por dinheiro pode ser retraído em relação ao que
fora produzido por determinado capital. Esta assertiva também pode ser lida com sinal trocado:
o mais-valor apropriado pode ser superior ao produzido.
Um pouco adiante, Marx novamente marca o nível de abstração:

Aqui [...] está pressuposto que M’ é vendida pelo seu valor e que, portanto, trata-se
apenas de sua transmutação de forma-mercadoria em forma-dinheiro. Para M’, como
forma funcional no ciclo desse capital individual, com o qual o capital produtivo tem
de ser reposto, o decisivo é, naturalmente, saber se e até que ponto o preço e o valor
diferenciam-se um do outro na venda; mas isso não nos interessa neste momento, em
que nos ocupamos somente com as diferenças de forma. (MARX, 2014, p. 170, grifos
nossos).

115
“Na forma M’...M’, o consumo do produto-mercadoria inteiro [em termos de valor e valor de uso, segundo
nossa interpretação] é pressuposto como condição do curso normal do próprio processo de capital” (MARX,
2014, p. 171, grifos nossos).
116
Pela unidade monetária utilizada em O Capital, uma libra-esterlina é igual a 20 xelins.
155

Se o “decisivo” é “se e até que ponto o preço e o valor diferenciam-se um do outro”,


abre-se, enfaticamente, a possibilidade da transferência de valor entre capitais individuais.
Entretanto, a preocupação exclusiva com as mutações de forma deve-se ao fato de que o ciclo
do capital-mercadoria também representa o movimento do capital social total, que se realiza
necessariamente com base na igualdade entre preços e valores117. Portando uma dupla
representação – do movimento total e dos movimentos parciais –, o ciclo do capital-mercadoria
pode oferecer uma variedade de fenômenos, quer se olhe por um ângulo ou por outro, para além
do exame meramente formal do ciclo. É por isso que afiançamos que a análise desse ciclo
permite vislumbrar a possibilidade real do imperialismo. Marx resume a possibilidade de outros
fenômenos na seguinte passagem:

O fato de que o capital social é = a soma dos capitais individuais (inclusive dos capitais
em ações e do capital estatal, na medida em que os governos empregam trabalho
assalariado produtivo em minas, ferrovias etc. e, assim, funcionam como capitalistas
industriais), e de que o movimento total do capital social é = a soma algébrica dos
movimentos dos capitais individuais, não exclui aqui de modo algum a possibilidade
de que esse movimento, como movimento do capital individual isolado, ofereça outros
fenômenos distintos do mesmo movimento, considerado como uma parte do
movimento total do capital social e, portanto, em conexão com os movimentos de suas
outras partes, nem que, ao mesmo tempo, resolva problemas cuja solução tem de estar
pressuposta na consideração desse ciclo de um capital individual isolado, em vez de
resultar dele. (MARX, 2014, p. 175, grifos nossos).

Como assinalamos anteriormente, o movimento total do capital social se realiza


com base na identidade entre valores e preços (pois, na totalidade, preços, entendidos aqui como
preços de produção, e valores, são quantitativamente iguais). Do ponto de vista do movimento
do capital individual isolado, ao contrário, é possível que ele se enlace com outros capitais
industriais que operem em distintos níveis de produtividade. Segue que, deste ponto de vista,
existe a possibilidade real de distinção entre valores e preços. Portanto, um dos “outros
fenômenos distintos do mesmo movimento” a que Marx se refere poderia ser, evidentemente,
o imperialismo. Devemos ter a precaução aqui de distinguir a transferência de valor tout court
da transferência de valor imperialista. A última necessariamente tem que ser o resultado do
entrelaçamento dos ciclos de dois capitais individuais cujos processos produtivos tenham

117
Este é um resultado lógico da transformação de valores em preços de produção e será demonstrado ainda nesta
seção (subseção 3.4). Por ora, tomamos a igualdade entre a totalidade de valores e de preços de produção como
pressuposto. Abstraímos, ademais, da diferença entre preços de produção e preços de mercado, de modo que
assumimos que os primeiros representam a norma de intercâmbio.
156

transcorrido em territórios nacionais distintos118. Se a produção (...P...) imediatamente põe


capital-mercadoria de determinado valor (M’) à venda, a troca de M’ por D’ pode representar
um processo imperialista desde que D’, em primeiro lugar, possua um valor diferente de M’ e,
em segundo lugar, seja, do ponto de vista do comprador, a resultante forma capital monetário
de um ciclo cujo processo produtivo ocorreu alhures. Cumprindo essas duas condições, efetiva-
se uma transferência internacional de valor: parte do mais-valor produzido em um país é
apropriado gratuitamente em outro lugar.
A existência da transferência de valor tout court é, portanto, uma condição
necessária, mas não suficiente para a existência da essência do imperialismo. Enquanto uma
representação da totalidade, o ciclo do capital-mercadoria diz respeito ao mercado mundial e,
enquanto tal, seu exame pode ser feito abstraindo-se do comércio exterior:

Como em M’...M’ o produto inteiro (o valor inteiro) é o ponto de partida, aqui se


evidencia que (abstraindo do comércio exterior) a reprodução só pode ocorrer em
escala ampliada – pressupondo-se que a produtividade se mantenha inalterada – se
na parte do mais-produto a ser capitalizada já estão contidos os elementos materiais
do capital produtivo adicional. (MARX, 2014, p. 177, grifos nossos).

Marx indica aqui que no mercado mundial deve haver uma conexão entre os valores
de uso produzidos por uns capitais e aqueles desejados por outros para realizar o processo de
produção em sua inteireza. A abstração do comércio exterior serve para marcar esse nível de
abstração – assim como o autor fez no começo do Capítulo XXII do Livro I119. Se
desconsiderarmos esse pressuposto, isto é, se analisarmos o ciclo do capital-mercadoria
considerando a existência do comércio exterior, acrescentaremos determinações mais concretas
à análise: as diversas formações sociais nacionais tornam-se totalidades mais complexas
(subjugadas à totalidade abstrata do mercado mundial) posto que trazem consigo a influência
da categoria nação sobre o processo capitalista de reprodução, que se manifesta com a
diversidade de taxas de câmbio, de políticas econômicas, de poderes militares, etc. Apenas
assim é possível discutir, por exemplo, o entrelaçamento entre o ciclo de um capital industrial
dependente e o ciclo de um capital industrial imperialista cujo resultado possível é a
transferência de valor do primeiro para o segundo.

118
Do contrário, teríamos transferências de valor dentro de um país. Embora existam realmente, não se configuram
como imperialista exatamente por não cruzarem a fronteira nacional. Sobre as implicações da transferência de
valor dentro de um país específico, cf. R. Carcanholo (1981, 2013, p. 177 et seq.).
119
Sobre isso, ver subseção 1.2 desta tese.
157

Na citação anterior de Marx, percebemos uma segunda marcação do nível de


abstração: “pressupondo-se que a produtividade se mantenha inalterada”. Para identificar a
transferência de valor imperialista precisamos superar, também, essa abstração. Fazendo isso,
ou seja, supondo que a evolução da produtividade em uns capitais seja mais acelerada do que
em outros, e agregando isso aos resultados do parágrafo anterior, temos as condições objetivas
para a existência da essência do imperialismo.

3.2.2 Possibilidade do imperialismo a partir da reprodução do capital social

Para que a reprodução do capital social se processe intertemporalmente, a totalidade


dos produtos-mercadorias deve contemplar a reposição tanto do valor quanto da matéria a que
lhe dá sustentação. Nos termos de Marx (2014, p. 498), o processo é “condicionado tanto pela
inter-relação dos componentes de valor do produto social como por seu valor de uso, sua
configuração material”. Apenas para ilustrar a questão, isso significa que, por exemplo,
considerando-se a reprodução simples, se a parcela constante de valor do capital social para o
ano seguinte é equivalente a 1000 libras-esterlinas (£1000), deve haver ao final do ano
antecedente uma quantidade de meios de produção enquanto produto-mercadoria no valor de
£1000 na qualidade adequada às necessidades do capitalista coletivo120. Se essas condições
forem cumpridas e estiverem incorporadas no produto anual, este passa a englobar “a
reprodução (isto é, a conservação) da classe capitalista e a da classe trabalhadora, bem como,
por conseguinte, a reprodução do caráter capitalista do processo total de produção” (MARX,
2014, p. 495). Portanto, falar em reprodução do capital social é falar em reprodução do modo
capitalista de produção.
Em função da conclusão do parágrafo anterior, podemos assegurar que se o
imperialismo é uma relação social funcional à reprodução do capital, isto é, uma relação entre
capitais em concorrência no mercado mundial, ele está subsumido à própria reprodução do
capitalismo. O imperialismo, nesse sentido, isto é, nos termos em que o estamos concebendo
nesta tese, se manifesta sob distintas formas pois cada padrão de reprodução do capital demanda

120
O ano é a unidade de tempo à qual Marx predominantemente se refere ao longo do Livro II, especialmente a
partir do estudo da rotação do capital, sendo assim justificado: “Assim como a jornada de trabalho é a unidade de
medida natural para a função da força de trabalho, o ano é a unidade de medida natural para as rotações do capital
em processo. A base natural dessa unidade de medida repousa sobre o fato de que os mais importantes frutos da
terra na zona temperada, que é o seio da produção capitalista, são produtos anuais” (MARX, 2014, p. 237-238).
158

um conjunto específico de relações, dentre as quais o imperialismo, a sustentá-lo. A reprodução


do capital, quando examinada a partir de sua totalidade – o mercado mundial – abarca a
possibilidade lógica e histórica do imperialismo. Embora Marx não tenha desenvolvido seu
argumento nessa direção, ele abstraiu o comércio exterior e, portanto, sua concepção de
reprodução do capital social envolve a reprodução do capitalismo mundialmente considerado.
Abstrair o comércio exterior da exposição não significa desconsiderar sua
importância real, procedimento que Marx (2014, p. 575) explicita quando assegura que “a
produção capitalista não pode existir de modo algum sem comércio exterior”. Entretanto, é
possível analisar a reprodução capitalista sem considerá-lo, pois, ao pressupor que as
mercadorias se vendem pelo seu valor, a função do comércio exterior se reduz à mera troca de
valores de uso, cuja operação não pode afetar, conforme os pressupostos já explicitados, as
“relações de valor” (MARX, 2014, p. 575). Dentro da breve exposição intitulada “A reprodução
do capital monetário” no Capítulo XX do Livro II de O Capital, há uma passagem de Marx que
nos auxilia a sustentar nosso argumento:

Desse modo, a introdução do comércio exterior na análise do valor-produto


anualmente reproduzido só pode confundir, sem contribuir com nenhum elemento
novo, nem para o problema, nem para a sua solução. Devemos, portanto, abstrair dele
por completo, pois aqui temos de tratar o ouro como elemento direto da reprodução
anual, não como elemento de mercadoria importado do exterior por meio do
intercâmbio. (MARX, 2014, p. 575).

É salutar destacar que a possível confusão criada pela introdução do comércio


exterior na análise deriva do pressuposto destacado no parágrafo anterior (da identidade entre
preços e valores). Sustentando que nos marcos desse nível de abstração as “relações de valor”
não se alteram, o comércio exterior, de fato, pode ser omitido da análise121.
A segunda metade da citação nos permite desenvolver outro ponto, já que a
abstração do comércio exterior poderia ser interpretada em duas vias opostas e mutuamente
excludentes. A primeira, defendida por nós, se baseia nessa abstração para inferir que Marx
trabalha ao longo de O Capital no nível do mercado mundial. A segunda interpreta que Marx
estaria considerando uma economia nacional fechada, isto é, sem relações com o exterior.
Apesar desse debate já ter sido feito na subseção 1.2 desta tese, a citação anterior nos ajuda a
defender nossa posição na medida em que a mercadoria de exemplo escolhida pelo autor, o

121
Em outros lugares, Marx também pressupõe que o comércio exterior não altera as “relações de valor”. Ver, por
exemplo, Marx (2014, p. 512).
159

ouro, é produzida em pouquíssimos lugares do mundo: o próprio autor cita apenas Estados
Unidos, Rússia, México, América do Sul e Austrália como os lugares nos quais o ouro é
produzido (MARX, 2014, p. 575). Reconhecendo isso, a afirmação de que se deve tratá-lo como
“elemento direto da reprodução anual” e não como elemento “importado do exterior” é uma
indicação explícita de que o nível de abstração no qual a exposição está sendo conduzida
considera todo o mundo como o espaço da reprodução do capital. Nesse sentido, os esquemas
de reprodução do capital social desenvolvidos na última seção do Livro II referem-se ao plano
do mercado mundial enquanto uma totalidade abstrata na qual a existência de fronteiras
nacionais está, por suposição, ainda ausente.
Essa totalidade, por outro lado, abarca um tipo de relação especificamente histórica,
a relação de produção capitalista, que conecta dois tipos de relacionamentos distintos,
representantes, nos termos de Arrizabalo Montoro (2014, p. 152), dos “dois grandes conflitos
sociais” de nossa era: entre capital e trabalho assalariado; e, através da concorrência, entre
capitalistas entre si. Poderemos perceber o imperialismo como uma categoria subsumida a esse
“nexo de relacionamentos”, para usar um termo de Callinicos (2014, p. 16-17)122, se
adicionarmos uma determinação mais concreta à exposição, qual seja, a existência das
fronteiras nacionais. Um indício dessa percepção pode ser encontrado no próprio Marx quando
ele explica – em uma passagem escrita em tons metodológicos, em um contexto de crítica à
naturalização burguesa do modo de produção capitalista, dentro do capítulo sobre a reprodução
simples no Livro II – a sua concepção de totalidade:

Quando se fala do modo social de considerar as coisas, ou seja, quando se examina o


produto total do ponto de vista social, que engloba tanto a reprodução do capital social
como o consumo individual, não se deve incorrer no modo de proceder de Proudhon,
imitado da economia burguesa, e examinar a questão como se uma sociedade
existindo sob um modo de produção capitalista, uma vez considerada em bloc, como
totalidade, perdesse seu caráter histórico-específico. Pelo contrário. Nesse caso, temos
de lidar com o capitalista coletivo. O capital total aparece como o capital acionário de
todos os capitalistas individuais combinados. Essa sociedade por ações tem em
comum com muitas outras sociedades por ações o fato de que cada um sabe o que nela
coloca, mas não o que dela retira. (MARX, 2014, p. 537, grifos do autor).

Mantivemos propositadamente os grifos de Marx para destacar a última negativa


no final da passagem: o capitalista individual, aparentemente sócio de uma sociedade por ações,

122
Callinicos (2014) desenvolve um sofisticado argumento para demonstrar a centralidade de ambas as relações
em O Capital, o que o leva a sustentar que o capital deve ser apreendido como um “nexo de relacionamentos” (p.
16-7).
160

sabe o quanto contribui, mas não sabe o quanto pode retirar dela. Essa indicação está
relacionada com a concorrência, afinal, ela gera a incerteza quanto às possibilidades de
apropriação de valor. Por outro lado, o capitalista enquanto um ser coletivo se choca,
necessariamente, com seu oposto, isto é, com o trabalho assalariado, produtor do mais-valor
que se distribui desarmonicamente entre os vários partícipes da exploração.
Ao expor o problema da mediação do intercâmbio de mercadorias pela circulação
monetária, também é possível perceber o caráter geral, totalizante, da interpretação de Marx.
Diz o autor que o capital monetário transformado em capital variável, isto é, o pagamento de
salários, “desempenha o papel principal na própria circulação monetária” pois “em todos os
países de produção capitalista, o capital monetário assim adiantado constitui uma parte
proporcionalmente decisiva da circulação total, tanto mais porque o mesmo dinheiro, antes de
seu refluxo ao ponto de partida, corre pelos canais mais variados e funciona como meio de
circulação para um sem-número de negócios” (MARX, 2014, p. 518). Se o argumento é válido
para “todos os países de produção capitalista”, não há por que, como salientamos anteriormente,
reduzir a análise a um ou outro país.
Pode-se, por conseguinte, lidar nesse nível de abstração com o mercado mundial. O
próprio Marx – em uma passagem relativamente desconhecida, posto que fora excluída por
Engels da edição final do Livro II, mas trazida à tona em função da nova edição de O Capital
a partir da MEGA-2123 – indica claramente a natureza global, mundial, de seu sistema teórico:
“Para cada capital individual existe, do lado de fora, um mundo de mercadorias. Mas o capital
social e seu produto abarcam em si o mundo inteiro das mercadorias” (MARX, 2014, p. 670,
grifos de Marx). Nos parece que essa é uma passagem definitiva para concluir esse raciocínio
a favor da tese segundo a qual a reprodução do capital social, segundo a interpretação de Marx,
é a reprodução do capitalismo mundialmente considerado.
A constatação de que a reprodução do capital social ocorre no âmbito do mercado
mundial não é suficiente para identificar o imperialismo como uma relação social imanente a
essa reprodução. Isso porque Marx (, 2014, p. 496-497), naquele momento do texto, mantém o
pressuposto de que não há variação na base técnica na qual os capitais operam: “não só se
pressupõe que os produtos se trocam por seu valor, mas também que não ocorre nenhuma

123
Na transição entre as seções VII (Capital variável e mais-valor nos dois setores) e VIII (O Capital constante
nos dois setores) do Capítulo XX do Livro II, os tradutores indicam em nota de rodapé à página 532 que “Engels
deixou de incluir um trecho do manuscrito II” o qual está reproduzido na íntegra como Apêndice 10 desta edição
do Livro II de O Capital (MARX, 2014). Vale destacar que este manuscrito está datado pela MEGA-2 como
redigido entre maio de 1868 e meados de 1870 – Cf. Marx (2014, p. 72-75).
161

revolução de valor nos componentes do capital produtivo”. Do ponto de vista do capital social,
esse pressuposto é perfeitamente coerente, tendo em vista que preços e valores das mercadorias
se igualam quando se considera o todo. Entretanto, e aqui está uma pista para o imperialismo,
as revoluções de valor, ou as revoluções de produtividade, exercem influência sobre o
movimento dos capitais individuais em concorrência:

Embora os preços divirjam dos valores, essa circunstância não pode, de resto, exercer
nenhuma influência no movimento do capital social. Tal como antes, trocam-se, no
total, as mesmas massas de produtos, ainda que a participação dos capitalistas
individuais nas relações de valor deixem de ser proporcionais a seus respectivos
adiantamentos e às massas de mais-valor produzidas individualmente por cada um
deles. (MARX, 2014, p. 497, grifos nossos).

Marx reconhece, então, ainda no âmbito da reprodução do capital social, que a


“participação” dos capitalistas individuais deixa de ser proporcional “às massas de mais-valor
produzidas individualmente”. Ou seja, a distinção entre produção e apropriação de valor pelos
capitalistas individuais está ocorrendo no mundo subterrâneo da reprodução do capital social,
na qual todo o valor produzido é apropriado. Embora Marx não analise as repercussões disso,
pois simplesmente não pode analisar em função do nível de abstração, ele atesta sua existência.
Ao distinguir o movimento que pertence ao todo daquele relativo às partes, o
argumento de Marx é suficiente para demonstrar que não há falácia da composição em sua
teoria da reprodução. De fato, quando criticava a teoria de Smith no Capítulo XIX (“Exposições
anteriores do mesmo objeto”) do Livro II, Marx já indicava o que seria esclarecido no capítulo
seguinte: “que, no movimento do capital social – isto é, da totalidade dos capitais individuais –
, as coisas se apresentam de outro modo que no caso de cada capital individual considerado em
particular, ou seja, do ponto de vista de cada capitalista individual” (MARX, 2014, p. 486).
Retornando ao argumento do Capítulo XX, podemos dizer que o pressuposto de
que as mercadorias se vendem pelos seus valores tem como corolário direto que a troca não
pode enriquecer nenhum capitalista. Sendo assim, o dinheiro que é lançado na circulação
monetária para mediar a circulação das mercadorias retorna integralmente a eles: as
mercadorias “se pagaram uma à outra integralmente, mediante o intercâmbio de seus
respectivos equivalentes-mercadoria” (MARX, 2014, p. 505). Em outro lugar, Marx afirma: “a
venda dessas mercadorias, na medida em que não implique fraudes etc., mas seja um
intercâmbio de equivalentes em mercadoria e dinheiro, não é um processo mediante o qual o
capitalista enriquece” (MARX, 2014, p. 517). Por isso, nos marcos do nível de abstração com
o qual a exposição está situada, a condição para que a reprodução em escala simples ocorra sem
162

perturbações é que o valor equivalente ao capital variável e ao mais-valor do setor I “tem de ser
igual” (MARX, 2014, p. 517) ao valor do capital constante do setor II124.
Podemos inverter o raciocínio de Marx desenvolvido no parágrafo anterior,
mantendo sua lógica, e inferir que se a troca for de não equivalentes, uma troca desigual, há o
enriquecimento através do comércio de uma das partes envolvida. Mesmo que os pressupostos
da exposição não permitam ao autor esmiuçar essa questão, iremos destacar dois pontos que
sugerem sua importância. O primeiro deles vem de um trecho do manuscrito II de Marx
excluído por Engels da redação final do Livro II, o qual, segundo os tradutores, continha uma
“análise diferenciada do produto social, dividida em seis setores” (MARX, 2014, p. 594). Nesta
análise, depois de desenvolver um processo de reprodução na base da troca pelos valores e com
setores com diferentes composições orgânicas, Marx (2014, p. 729) abre repentinamente um
parêntese: “Vejamos, de passagem, como a questão se apresenta sob o pressuposto da taxa geral
de lucro”. Após fazer alguns cálculos elementares, ele indica que apenas no setor onde a
composição orgânica é média, o produto é vendido por um preço idêntico ao valor; e fecha o
parêntese com um lembrete a si próprio: “Examinar isso mais adiante” (MARX, 2014, p. 729,
grifos do autor).
Se apenas o setor com composição orgânica média vende suas mercadorias pelo
valor, segue que para os demais cuja composição difere da média há necessariamente diferença
entre preço e valor. Enquanto redigia esse manuscrito, entre 1868 e 1870125, Marx já havia
desenvolvido a explicação para a transformação de valores em preços de produção nos
Manuscritos Econômicos de 1864-1865126, os quais se tornariam o suporte fundamental para a
versão final do Livro III. Portanto, é com base em sua teoria dos preços de produção que aquela
passagem excluída do Livro II deve ser analisada, o que nos leva à constatação que já nos
esquemas de reprodução do capital social seria possível perceber a existência da transferência
de valor entre capitais individuais operantes sob distintas composições orgânicas e distintos
setores. Que Marx não avance na explicação desse fenômeno na Seção III do Livro II justifica-
se pois ali não é (ainda) o lugar de explicá-lo. Sua preocupação evidente é explicar a reprodução

124
Foge ao escopo de nosso trabalho demonstrar por que Iv + Im (capital-mercadoria produzido pelo setor I
equivalente ao valor do capital variável [Iv] e do mais-valor [Im]) igual a IIc (capital-mercadoria produzido pelo
setor II equivalente ao valor do capital constante) é a condição para que a reprodução do capital social em escala
simples ocorra sem perturbações. Para este propósito, Cf. Marx (2014, p. 502-505), M. D. Carcanholo (2003) ou
Ribeiro (1979).
125
Cf. Marx (2014, p. 72-75)
126
Cf. Marx (2015, p. 265 et seq.)
163

do capital social em sua pureza, livre de distúrbios que possam embaçar aquilo que é o central
naquele momento.
Para comprovar esse ponto, vejamos o que diz Marx após tecer longos comentários
sobre várias supostas possibilidades para fechar o esquema de reprodução após a introdução da
depreciação do capital fixo:

Vemos aqui, para além de nosso verdadeiro objetivo, como é absolutamente


necessária a consideração do processo de reprodução em sua forma fundamental –
livre de todas as circunstâncias menores que o obscurecem – a fim de nos
desembaraçarmos desses falsos subterfúgios que proporcionam a aparência de uma
explicação ‘científica’ quando o processo da reprodução social, em sua complicada
forma concreta, é imediatamente transformado em objeto da análise. (MARX, 2014,
p. 562, grifos nossos).

Dentre esses “falsos subterfúgios”, isto é, dentre essas possibilidades teóricas


erradas neste nível de abstração para resolver o problema em questão, duas devem ser objeto
de nossa atenção. A dificuldade posta pela introdução do capital fixo decorre do fato de que
este “reaparece como elemento de valor da mercadoria” (MARX, 2014, p. 554) à medida que
se deprecia, isto é, de acordo com o ritmo com o qual perde seu próprio valor. Como esse
processo dura, em geral, mais do que o período de uma rotação, o dinheiro recebido pelo
capitalista correspondente à depreciação deve se entesourar até o momento em que o capital
fixo deva ser reposto127. Portanto, durante a formação desse tesouro (até que se esgote a vida
útil do elemento fixo), o montante de dinheiro retirado da circulação passa a ser maior do que
aquele efetivamente lançado na circulação em cada período. Nos termos de Marx:

O dinheiro obtido com a venda de mercadorias, na medida em que realiza a parcela


de valor-mercadoria equivalente à depreciação de capital fixo, não se converte de
novo no componente do capital produtivo, cuja perda de valor ele repõe. Ele se
precipita ao lado do capital produtivo e se cristaliza em sua forma-dinheiro. (MARX,
2014, p. 555).

127
No nível de abstração em que a exposição está situada, o mais-valor ainda não se fragmentou em renda, juro
etc. Em função disso, relações de crédito não podem ser incluídas na análise, motivo pelo qual os tesouros
cumprem um papel importante nessa altura da exposição (HEINRICH, 2014a, p. 20-22). Por exemplo, no contexto
da conversão do mais-valor em capital constante, Marx se questiona de onde surge o dinheiro adiantado pelos
capitalistas. Sua resposta: “é preciso supor a existência, nas mãos do capitalista e ao lado do capital produtivo, de
certas reservas de dinheiro” (MARX, 2014, p. 503). Para Heinrich (2014a, p. 20-22), “a existência de tesouros é
apenas um pressuposto auxiliar; na realidade, são as relações de crédito que possibilitam a circulação do mais-
valor”.
164

Considerando a divisão do capital social em dois setores, I e II, produtores,


respectivamente, de meios de produção e meios de consumo, vimos que a condição para que a
reprodução se processe normalmente em escala simples é IIc = Iv + Im. A dificuldade posta
pela introdução do capital fixo no setor II, por exemplo, se resume no fato de que durante algum
tempo maior do que o período de uma rotação, o valor equivalente à depreciação vai se
entesourar em II, “não volta a funcionar como meio de circulação” (MARX, 2014, p. 558),
impossibilitando, consequentemente, que o valor produzido por I se realize em sua inteireza. A
questão, portanto, é: como esse valor não-realizado pode ser realizado?
Antes de resolver a questão nos marcos do correto nível de abstração, Marx recorre
aos já citados “falsos subterfúgios” – dentre eles, a possibilidade das trocas se efetivarem em
proporções diferentes daquelas envolvendo os valores e a introdução de agentes externos. Por
exemplo, nas trocas entre os setores I e II, poderia ser suposto que I enviasse uma quantidade
de mercadorias mais uma soma de dinheiro que excedesse o valor total produzido por II, de
forma que II conseguisse entesourar o valor correspondente ao desgaste do capital fixo e, ao
mesmo tempo, tivesse uma capacidade de pagamento no montante adequado à produção do
setor I. Contudo, se assim ocorresse, o setor I “compraria a massa mercantil IIc acima de seu
valor” (MARX, 2014, p. 559). Embora essa solução esteja fora de cogitação em virtude de ser
incompatível com o nível de abstração que exige que preços e valores sejam idênticos, o simples
fato de Marx a tê-la lançado aqui no conjunto dos “falsos subterfúgios” a coloca no rol das
soluções “aparentemente possíveis” (MARX, 2014, p. 559). Poderia ser possível, portanto, no
plano fenomênico, uma troca desigual entre os setores I e II desde que os ciclos dos capitais de
cada um desses setores estivessem localizados em países distintos.
Outra possibilidade tida como “absurda” por Marx (2014, p. 561) é a utilização de
um elemento externo (“deus ex machina”128) à lógica do processo social de reprodução, como
se o dinheiro que tem que fluir para o setor II viesse da renda fundiária ou dos juros, por
exemplo. Isso não é possível, no longo prazo, pois se I não está realizando todo seu mais-valor,
cedo ou tarde as rendas e os juros deixariam de existir. É possível perceber, com esse
argumento, que juro e renda são categorias ontologicamente subordinadas ao mais-valor
produzido pelo capital industrial. Não é por outro motivo que a fragmentação do mais-valor
representa uma transição entre níveis de abstração e só será incorporada na análise no Livro III.

128
Conforme explicação dos tradutores, “deus ex machina” é “um elemento externo que resolve uma história sem
seguir sua lógica interna”, sendo originária dos teatros greco-romanos da Antiguidade. Cf. Nota dos tradutores em
Marx (2014, p. 561).
165

Antes de avançar para a resposta satisfatória à dificuldade posta pela depreciação,


uma última observação sobre os “falsos subterfúgios”. Quando Marx abstrai das “circunstâncias
menores” que dificultam a correta apreensão do objeto, ele está nos fornecendo uma pista
metodológica importantíssima: também podemos considerar o processo imperialista em sua
forma fundamental, abstraindo de circunstâncias menores e falsos subterfúgios. Tal é o
procedimento necessário para a real compreensão do processo em suas dimensões imanentes.
O enigma da reprodução do capital social, considerando-se a existência da
depreciação, é resolvido por Marx (2014, p. 563-568) quando ele considera que o próprio setor
II “lança na circulação o dinheiro com o qual o componente de valor de suas mercadorias é
convertido em dinheiro destinado a repor a depreciação de seu capital fixo”. O autor fornece
vários exemplos, todos eles mostrando como a reposição da depreciação do capital fixo de uma
parte do setor II pode ser feita pelo adiantamento em dinheiro por outra parte do próprio setor.
A lógica é simples: divide-se o setor II em duas partes: II-1 precisa renovar seu capital fixo
agora e II-2 precisa acumular dinheiro equivalente ao valor da depreciação do capital fixo.
Então, II-1 compra os elementos fixos do capital do setor I adiantando um dinheiro que refluirá
para ele ao longo de várias rotações, de forma que para II-1 não retorna, no instante da
renovação do capital fixo, a mesma quantidade de dinheiro desembolsada por ele. Esse dinheiro
fica no setor I que o utilizará para comprar meios de consumo do setor II-2. Como o dinheiro
não foi adiantado por I, não precisa refluir a ele129 e será entesourado por II-2 equivalendo à
parcela do capital fixo depreciada.
Continuando com o argumento de Marx (2014, p. 571-573), a condição necessária
para que o dinheiro flua de II-1 para I e, em seguida, para II-2, é que o valor do capital fixo de
II-1 seja igual ao de II-2 e que eles se renovem em períodos distintos. Se assumirmos que os
valores de ambas as partes do setor II são diferentes, haverá um excedente em dinheiro, caso o
valor lançado por II-1 na circulação seja maior do que o necessário para a reposição do desgaste
de II-2, ou um déficit em dinheiro, caso II-1 lance na circulação um valor menor do que o
necessário para II-2. Caso se analise esse desequilíbrio dentro de uma economia nacional, ele
poderia ser resolvido pelo comércio exterior, recorrendo à importação caso haja “excedente

129
Em outro lugar, Marx (2014, p. 516-517) havia desenvolvido uma “lei geral” segundo a qual “sempre que a
circulação transcorre normalmente, esse dinheiro retorna aos produtores de mercadorias que adiantam dinheiro à
circulação”. “Do que se segue, diga-se de passagem, que quando detrás do produtor de mercadorias em geral se
encontra um capitalista monetário, que, por sua vez, adianta capital monetário (...) ao capitalista industrial, o
verdadeiro ponto de retorno desse dinheiro é o bolso desse mesmo capitalista monetário”.
166

monetário” ou exportação caso a situação seja de excesso de mercadorias a realizar. Nos termos
de Marx:

Em ambos os casos, o comércio exterior poderia proporcionar um remédio: no


primeiro, para converter em meios de consumo a mercadoria I imobilizada em forma-
dinheiro; no segundo, para escoar o excedente de mercadorias. Mas o comércio
exterior, na medida em que não se limita a repor elementos (também no que diz
respeito ao valor), não faz mais do que deslocar as contradições a uma esfera mais
ampla, abrindo-lhes um maior campo de ação. (MARX, 2014, p. 573, grifos nossos).

A questão de fundo desse argumento, e que nos interessa mais diretamente, é a


percepção de que uma determinada contradição no processo de reprodução do capital no âmbito
nacional pode ser contida através do comércio exterior. Dialeticamente, contudo, a resolução
da contradição nesse âmbito restrito a empurra para uma “esfera mais ampla”, o mercado
mundial, reforçando-a. Então, para resumir, de uma contradição real na produção do capital
fixo, a ação do comércio exterior resulta em dois movimentos: de amenização e de
potencialização da contradição.
Mantendo-se os pressupostos da reprodução do capital social em escala simples,
segue que, nos termos de Marx (2014, p. 572-573), as perturbações nas proporções entre o
capital fixo que se extingue e o que “continua a operar em sua velha forma natural” produziria
“déficits de reprodução” ou um “excedente inconversível em dinheiro”. Como corolário,
“teríamos a crise – crise de produção –, mesmo com a reprodução em escala constante”. Os
distúrbios na produção de capital fixo são relevantes tanto do ponto de vista ontológico, na
medida em que é uma característica real da própria reprodução do capital, quanto do ponto de
vista epistemológico, haja vista a ênfase direcionada a eles pelas teorias (burguesas) que se
propõem a elucidá-los. Por isso, diz Marx:

O exemplo do capital fixo – mantendo-se invariável a escala da reprodução – é


decisivo. O desequilíbrio na produção de capital fixo e capital circulante é uma das
causas favoritas de que os economistas lançam mão para explicar as crises. Para eles,
é algo novo o fato de que esse desequilíbrio possa e deva surgir quando se trata da
mera conservação do capital fixo; que ele possa e deva surgir no pressuposto de uma
produção normal ideal, com reprodução simples do capital social já operante.
(MARX, 2014, p. 574, grifos do autor).

Assim como os economistas usam o desequilíbrio na produção de capital fixo para


explicar as crises, eles também o fazem para explicar o imperialismo. Celso Furtado, por
exemplo, é explícito ao indicar o imperialismo como uma saída a esse desequilíbrio através da
167

exportação do capital fixo em excesso das economias centrais, que se desenrola historicamente,
segundo o autor, a partir dos últimos decênios do século XIX (FURTADO, 2000, p. 248-
249)130.
Apesar de já termos sustentado que a gênese histórica do imperialismo antecede
este período131, é fato que ele adquire um status diferente no fim do século XIX pois é o
momento em que o desequilíbrio na produção de capital fixo se manifesta com maior gravidade.
É por isso que os capitalistas precisam recorrer à exportação de capital fixo – como, além de
Lenin e da teoria clássica, os próprios economistas burgueses reconhecem. Fazendo isso,
entretanto, conforme a passagem de Marx citada anteriormente, a ação individual dos grandes
capitalistas eleva a esfera em que as contradições deste modo de produção podem se manifestar.
Em outro lugar do Livro II, no Capítulo VIII, Marx aponta para algumas relações
entre capital fixo e mercado mundial. Ao mostrar que o caráter de capital fixo não se define
pela mobilidade ou imobilidade espacial dos meios de trabalho, ele fala de “economia das
nações” e “mercado mundial”:

Nem a imobilidade lhe confere, num caso, o caráter de capital fixo, nem a mobilidade
o priva desse caráter, no outro. No entanto, a circunstância de que os meios de trabalho
sejam espacialmente fixos, enraizados na terra, confere a essa parte do capital fixo um
papel especial na economia das nações. Eles não podem ser mandados ao exterior,
para circular como mercadorias no mercado mundial. Os títulos de propriedade sobre
esse capital fixo podem ser trocados, permitindo a esse capital ser comprado e vendido
e, nessa medida, circular idealmente. Tais títulos de propriedade podem até mesmo
circular em mercados estrangeiros, por exemplo, na forma de ações. Mas com a
mudança das pessoas que detêm a propriedade desse tipo de capital fixo não se altera
a relação entre a parte permanente, materialmente fixa da riqueza num país, e a parte
móvel dessa mesma riqueza. (MARX, 2014, p. 245, grifos nossos).

Partindo do entendimento de que o caráter fixo do capital não se define por sua
mobilidade ou imobilidade espacial, Marx mostra como esse capital pode ser duplicado em
títulos de propriedade de tal forma que ganhe possibilidades de circulação no mercado mundial.
Ainda não é a hora nem o lugar de examinar detidamente as consequências desse ponto pois
demanda as reflexões desenvolvidas no Livro III sobre o capital fictício. Entretanto, já é

130
Furtado mostra que havia na Inglaterra desse período uma queda da taxa de lucro decorrente de dois fatores
principais – “grande massa de bens de capital em permanente produção” e a melhora da “posição de barganha da
classe trabalhadora” – que estariam conduzindo a economia inglesa à “eutanásia precoce”. Para evitar esse
resultado, ela lançou-se “numa grande ofensiva internacional. Foi quanto bastou para que tivesse início a fase de
total liberalização do comércio inglês, das maciças exportações de capital, que mantinham a indústria de
equipamentos funcionando a plena capacidade, e da ofensiva comercial sob a forma do audacioso imperialismo
vitoriano” (FURTADO, 2000, p. 248-249).
131
Cf. seções 1.3 e 2.3 desta tese.
168

possível apontar desde aqui, mesmo de passagem, uma possibilidade de imperialismo através
da circulação no mercado mundial desses títulos: essa circunstância permite que o proprietário
dos meios de trabalho espacialmente fixos receba rendimentos produzidos em qualquer lugar
no qual os meios de trabalho estejam enraizados132.

3.2.3 Repercussões da troca desigual sobre os ciclos dos capitais industriais imperialistas
e dependentes

Analisamos anteriormente as condições objetivas (3.2.1) e as possibilidades de


imperialismo (3.2.2) a partir do estudo do ciclo do capital-mercadoria e da reprodução do capital
social. Agora, iremos concluir o exame sobre a relação entre o processo de circulação do capital
e o imperialismo indicando as repercussões da troca desigual sobre os ciclos dos capitais
industriais imperialistas e dependentes. Em outros termos, antes de examinar os determinantes
da troca desigual (subseções 3.3 e 3.4), iremos pressupô-la, rompendo o que Marx chama de
“estado puro” da circulação, para verificar que tipo de implicações fundamentais ela gera.
Como o ciclo do capital-mercadoria se inicia com as duas fases da circulação de
mercadorias concatenadas (M’-D’-M), a possibilidade de distinção entre valor e preço – e,
portanto, da troca desigual – se patenteia claramente e, se efetivada, gera repercussões sobre o
próprio desenvolvimento da reprodução do capital industrial. A troca desigual “condiciona o
processo de produção, imprimindo-lhe características próprias” (MARINI, 2012a, p. 28).
Examinando, como uma ilustração, a venda do capital-mercadoria (M’-D’), iremos pressupor
que, como argumentado na seção anterior, (a) o capital dependente produz um valor maior do
que o que ele se apropria na venda de sua mercadoria, e (b) o capital imperialista se apropria de
um valor superior ao que ele produziu. A partir disso, os ciclos do capital industrial dependente
e do capital industrial imperialista, olhados sob a ótica da forma do capital-mercadoria, se
diferenciam da seguinte maneira.
Do ponto de vista do capital industrial dependente, a primeira transmutação de
forma no ciclo do capital-mercadoria já possibilita transferência de valor. Com base nos
pressupostos levantados no parágrafo anterior, o valor de capital (c+v) acrescido de mais-valor
(m) que abre o ciclo (forma M’) se troca por uma quantidade de dinheiro (D’) portadora de uma

132
Voltaremos a esse ponto na quarta seção desta tese. Cf. subseções 4.3 e 4.4.
169

quantidade menor de valor. Ou seja, o valor representado em M’ é maior do que o valor de D’.
Seguindo o exemplo numérico de Marx, o capital-mercadoria de 500 libras-esterlinas (£500)
seria trocado por £500 menos o valor transferido (vt) ao capital imperialista (£500 – vt). Sendo
o mais-valor dividido entre uma parcela destinada ao consumo do capitalista (mC) e outra
destinada à acumulação (mA), o ciclo do capital dependente pode se desenrolar, supondo que
não haja distinção entre preço e valor em nenhuma das demais mudanças de forma dentro do
ciclo, com as seguintes alternativas: (a) se vt>mA, o capital dependente entra em um processo
de “desacumulação” e não consegue realizar nem a reprodução simples; (b) se vt=mA, o capital
dependente realiza apenas a reprodução simples; (c) se vt<mA, o capital dependente consegue
realizar reprodução ampliada.
Se acrescentarmos a possibilidade de novas distinções entre preço e valor no correr
do ciclo, o capital dependente pode compensar a primeira transferência de valor caso (a) os
meios de produção (Mp) que ele compre com D’ sejam produzidos por outros capitais cujas
produtividades sejam ainda menores (a transmutação D’-Mp, sendo o valor de D’ inferior ao
valor de Mp); ou (b) caso ele remunere a força de trabalho (FT) por um salário menor que o
próprio valor desta mercadoria (D’-FT, sendo o valor de D’ inferior ao valor de FT). Esta última
possibilidade é o clássico mecanismo de compensação da troca desigual via superexploração
da força de trabalho (MARINI, 2005, p. 164-71)133. Esses mecanismos de compensação ao
longo do ciclo funcionam como contratendências dentro da tendência geral à qual o capital
dependente está subordinado.
Do ponto de vista do capital industrial imperialista, a troca desigual ocorreria com
sinal contrário, isto é, o valor inicial representado no capital-mercadoria (M’) seria trocado por
um preço superior representado por D’. Mais uma vez seguindo o exemplo de Marx, o valor de
£500 seria trocado por £500 + vt. Evidentemente, isso reforçaria o processo de acumulação
desenvolvido por esse capital. O capital-mercadoria do final do ciclo (M’’) seria, portanto,
maior do que o que seria esperado caso esse capital não se envolvesse em uma troca desigual.
Mais do que as possibilidades esquemáticas de troca desigual, o que é fundamental
nesse pequeno exercício é destacar como o imperialismo reforça a polarização entre regiões do

133
Em Dialética da dependência, de 1973, Marini (2005) coloca a troca desigual como a forma de transferência
de valor que gera a superexploração da força de trabalho como mecanismo de compensação para os capitais
operantes nas economias dependentes. Por outro lado, em O ciclo do capital na economia dependente, de 1979, a
troca desigual é vista, da perspectiva da economia dependente, como uma das formas de transferência de valor
para o exterior, as quais, em conjunto, engendram o processo de superexploração da força de trabalho (MARINI,
2012a). As demais formas de transferência de valor citadas por Marini (2012a, p. 26-28), como remessa de lucros,
pagamentos de juros, royalties, etc., serão analisadas na seção seguinte.
170

mundo. Mesmo ainda nesses termos abstratos, o exame da troca desigual no ciclo do capital-
mercadoria permite visualizar como sua realização altera profundamente o desenrolar da
reprodução do capital. Em função disso é possível falar, inspirado em Osorio (2004, 2012), de
um padrão de reprodução típico do capital dependente diferente daquele padrão típico do capital
imperialista. As implicações disso sobre os territórios nos quais os capitais industriais
dependente e imperialista executam suas funções de capitais produtivos são diversas e
profundas, “incidindo nos níveis de acumulação, condições de exploração e superexploração
da força de trabalho, nos tamanhos e modalidades de constituição dos mercados internos e
externos, enfim, no conjunto de fatores que incidem na reprodução do capital” (OSORIO, 2012,
p. 77).

3.3 TROCA DESIGUAL DENTRO DE UM RAMO DE PRODUÇÃO

Nosso propósito nesta subseção é investigar os determinantes da troca desigual


dentro de um ramo de produção, isto é, os motivos teóricos que fazem com que haja
transferência de valor entre capitais produtores de valores de uso idênticos. Precisaremos
mostrar que a concorrência dentro de um ramo de produção promove a equalização dos valores
e a dispersão das taxas individuais de lucro, de modo que os capitais que operam com níveis de
produtividade superiores se apropriam de um quantum de valor adicional vis-à-vis os capitais
menos produtivos, resultado de um processo de transferência de valor destes para aqueles.
Ademais, mostraremos que esse resultado se verifica também no comércio internacional,
engendrando a manifestação mais abstrata de imperialismo.

3.3.1 Valor individual e valor social

Nosso primeiro passo deve ser demonstrar a existência de uma distinção


quantitativa entre valor individual e valor social, fundamento lógico para a efetivação da troca
desigual neste nível de abstração.
Partindo da teoria do valor de Marx, podemos reconhecer que as mercadorias são,
aparentemente, a unidade entre valor de uso e valor de troca. Como mercadorias, as coisas
171

produzidas por trabalho humano só se realizam na esfera da circulação se forem portadoras de


uma forma natural, de tal maneira que satisfaça as necessidades do comprador e, portanto,
revelem-se como coisas úteis, isto é, como coisas possuidoras de valor de uso.
Ao mesmo tempo, essas coisas precisam assumir uma forma de valor que
possibilite, ao vendedor, usufruir do poder de compra fornecido pela alienação de sua
mercadoria. O valor de troca se expressa, portanto, numa igualdade quantitativa entre duas
mercadorias. Quando a relação de troca ocorre entre uma mercadoria B qualquer e uma
mercadoria especial que passa a “desempenhar o papel do equivalente universal” (MARX,
2013, p. 145), a igualdade quantitativa entre elas revela o preço da mercadoria B. Se, nessa
relação, ambas são quantitativamente iguais, é porque existe algo em comum entre elas que as
torne comensuráveis. Para encontrar esse “algo em comum”, Marx abstrai de todas as
particularidades e singularidades presentes na mercadoria. Fazendo isso, descobre que resta a
elas apenas uma coisa em comum: são produtos do trabalho humano, na qualidade de trabalho
humano abstraído de suas determinações concretas, logo, trabalho humano abstrato (MARX,
2013, p. 116-119).
Portanto, o que se esconde sob o valor de troca é o fato de as mercadorias serem
cristalizações de mesma quantidade de trabalho humano abstrato, ou, em outros termos, serem
portadoras de mesma grandeza de valor. Ou seja, o valor de troca (preço quando o equivalente
é o dinheiro) é a forma de manifestação do valor. A divergência entre ambos é, antes de tudo,
qualitativa: se referem a duas distintas dimensões da mercadoria: aparência e essência
(CARCANHOLO, R., 2011b, p. 42). Em outros termos, o valor de troca é a face visível,
aparente, está inscrita na testa das mercadorias, portando uma dinâmica a qual possui uma
determinação invisível, essencial, que é simplesmente o valor, medido pelo tempo de trabalho
socialmente necessário para a produção de cada mercadoria. Embora exista realmente, o valor
só pode ser percebido indiretamente através do valor de troca, que é, por isso, entendido como
sua forma de manifestação.
Por outro lado, como a forma-preço representa a igualdade quantitativa entre duas
grandezas de valor, a divergência também pode assumir o caráter de incongruência quantitativa:
como a grandeza de valor se expressa no preço, a relação da mercadoria com o quantum de
trabalho abstrato aparece como uma relação de troca entre duas mercadorias e, portanto, a
determinação quantitativa do preço aparece como se fosse autonomizada da produção. Segue
que, em função disso, o preço flutua, dentro de certos limites, de acordo com as circunstâncias
172

– relativas à concorrência e à necessidade social – que tornem aquela grandeza de valor


realizável134.
A concorrência entre capitais possui várias consequências para a teoria do valor de
Marx. Como já defendemos, a estrutura expositiva de O Capital não envolve uma separação
entre “capital em geral” e “vários capitais”, o que nos habilitou a dizer que a concorrência
possui centralidade argumentativa desde o Livro I135. Ao longo de sua exposição neste livro,
Marx supõe que as mercadorias são intercambiadas pelos valores, de forma que até um
determinado momento não faz sentido diferenciar valores individuais e valores sociais. Nesse
sentido, quando tratávamos de valor como a determinação essencial do valor de troca,
estávamos nos referindo ao valor social.
Apenas na seção do mais-valor relativo, quando Marx introduz na exposição uma
determinação mais concreta, a mudança na base técnica, que se faz necessário diferenciar os
valores enquanto valores sociais dos valores individuais. Como o valor é determinado
quantitativamente pelo quantum de trabalho abstrato contido em determinada mercadoria, a
existência de valores individuais e sociais está necessariamente vinculada com o fato de que
produtores diferentes de uma mesma mercadoria podem cristalizar quantidades diferentes de
trabalho abstrato de acordo com distintos níveis de produtividade. Um suposto problema deste
argumento é que a produtividade se refere ao aspecto técnico-material da produção e, portanto,
seguindo a sugestão de Rubin (1987, p. 156), é uma dimensão concreta do trabalho humano.
Por outro lado, a produtividade também tem um aspecto social, relacionada ao valor. Temos
um aparente paradoxo: se a produtividade é um aspecto do trabalho concreto e, ao mesmo
tempo, cria grandezas individuais de valores que se diferenciam uns em relação aos outros, o
trabalho abstrato deixa de ter importância em relação à determinação quantitativa dos valores
individuais?
Para responder essa questão, precisamos compreender o que estava em discussão
no momento da exposição do Livro I no qual Marx procede com essa alteração no nível de
abstração. O objetivo dessa alteração é permitir que haja a expansão do mais-valor mediante a
redução do valor da força de trabalho e não apenas, como era considerado anteriormente,
através do aumento da intensidade do trabalho – via prolongamento da jornada de trabalho ou
não. A questão, portanto, que se apresenta para Marx, é desvendar o mecanismo da lógica
capitalista que permite a produção do chamado mais-valor relativo.

134
Na próxima subseção desenvolveremos a teoria dos preços de Marx.
135
Cf. subseção 3.1.
173

Supondo, como o faz Marx, que a força de trabalho é remunerada pelo seu valor,
isto é, que este é igual à parte variável do capital, e mantendo a jornada de trabalho intacta, a
única forma de aumentar socialmente a extração de mais-trabalho é aumentar a produtividade
nos setores ligados à produção de meios de subsistência para os trabalhadores. Com isso, reduz-
se o tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho e, ao mesmo tempo,
aumenta o tempo de trabalho excedente. Em termos de valor, equivale ao aumento do mais-
valor apropriado pelo capital.
O determinante do mais-valor relativo, portanto, é a elevação da força produtiva do
trabalho que, em Marx (2013), significa o seguinte:

Por elevação da força produtiva do trabalho entendemos precisamente uma alteração


no processo de trabalho por meio da qual o tempo de trabalho socialmente necessário
para a produção de uma mercadoria é reduzido, de modo que uma quantidade menor
de trabalho é dotada da força para produzir uma quantidade maior de valor de uso.
(MARX, 2013, p. 389).

Se o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma mercadoria


é reduzido e ele representa a grandeza de valor da mercadoria, segue que a elevação da força
produtiva do trabalho tem como resultado inequívoco a diminuição do valor da mercadoria.
Com a produção de mais-valor relativo há uma redução global no valor da força de
trabalho e, consequentemente, um aumento na taxa geral do mais-valor. Cumpre destacar, como
faz Marx (2013, p. 390-391), que esse resultado social é não-teleológico pois resulta do agir de
capitalistas individuais motivados por decisões exclusivamente privadas. Apesar dessa decisão
ser aparentemente autônoma, o capitalista individual é coagido a agir dessa maneira sendo que
a autoridade sobre ele reside no “movimento externo dos capitais” que se manifesta através das
“leis compulsórias da concorrência”.
Embora o exemplo ilustrativo apresentado por Marx seja trivial, ele carrega uma
passagem em especial que alimenta uma polêmica dentro do marxismo sobre a origem do mais-
valor extra (ou mais-valor adicional, de acordo com os termos da última tradução brasileira de
O Capital). Por isso, tentaremos reproduzir na sequência o exemplo de Marx para captar seu
argumento central.
Seguindo o exemplo numérico de Marx, consideremos que uma hora de trabalho
equivale a ½ xelim (doravante, para facilitar a exposição, substituiremos a antiga unidade
monetária inglesa pelo símbolo do cifrão). Uma jornada de trabalho de 12 horas produz,
portanto, um valor equivalente a $6 dividido, por hipótese, em 12 unidades de um valor de uso
174

qualquer. Cada unidade contém $½ de valor novo produzido pela força de trabalho e, por
hipótese, $½ de meios de produção são transmitidos a cada peça. Portanto, cada peça custa $1,
o equivalente a 2 horas de trabalho social.
A introdução do progresso técnico faz com que, suponhamos, as mesmas 12 horas
de trabalho produzam 24 unidades de valor de uso ao invés de 12. O valor novo adicionado pela
força de trabalho continua sendo de $6 em uma jornada já que o tempo de trabalho continua o
mesmo. A diferença é que essa grandeza de valor se distribui agora em 24 peças, fazendo com
que cada uma carregue $¼ de valor novo, o qual, somado ao valor dos meios de produção de
$½ incorporado em cada peça, significa que o valor unitário passa a ser de $¾.
Se, conforme Marx (2013, p. 391, grifos nossos) o aumento da força produtiva do
trabalho não alterar as “condições sociais médias” de produção dessa mercadoria, o resultado é
que “o valor individual dessa mercadoria se encontra, agora, abaixo de seu valor social” pois
“custa menos trabalho”. Trata-se da primeira vez na obra onde Marx apresenta o “valor
individual” distinguindo-o do “valor social”.
De acordo com o exemplo, o valor individual de $¾ representa 1,5 hora de trabalho
social. Ou seja, cada mercadoria produzida sob condições técnicas superiores contém uma
porção menor de trabalho social136. Entretanto, como as condições médias de produção
continuam intactas, o “valor efetivo” (p. 392) da mercadoria continua o mesmo, já que é
determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção e, portanto,
equivale ao valor social.
Considerando que as mercadorias são vendidas pelos valores sociais (ou efetivos),
o capitalista que utiliza menos trabalho do que a média em sua produção pode trocá-la por uma
quantidade de valor (social) superior ao valor (individual) que lhe custou produzi-la. Dito de
outra forma, ele passa a ter o direito de se apropriar de um quantum de trabalho abstrato superior
ao que ele produziu. Se essa relação for lida em termos de valores, o capital mais produtivo –
ou o capitalista inovador, nos termos de R. Carcanholo (2013)137 – pode se apropriar de mais-
valor adicional.
Para ser fiel à exposição do autor, precisamos destacar que ele sugere, a princípio,
que o valor total realizado pelo capitalista inovador pela produção de uma jornada de trabalho,

136
Em trecho do final do Livro III, Marx (2008, p. 992) assegura que o valor produzido num dado intervalo de
tempo mantém-se o mesmo: “O mesmo trabalho gera o mesmo valor para o produto criado num dado lapso de
tempo; mas, a grandeza ou a quantidade desse produto, e portanto a fração de valor configurada em parte alíquota
desse produto, depende, para dada quantidade de trabalho, unicamente do volume da produção, e, este, por sua
vez, da produtividade de dada quantidade de trabalho e não da magnitude dessa quantidade”.
137
CARCANHOLO, R. Capital: essência e aparência São Paulo: Expressão Popular, 2013. (v. 2).p. 108 et seq.
175

$20 (ou $10/12 × 24 peças, supondo que o capitalista inovador venda suas mercadorias por um
preço intermediário entre os valores individual e social), representa um valor produzido pelo
capital inovador e não simplesmente apropriado. As seguintes passagens ilustram esse
ponto138:

O valor do produto da jornada de trabalho de 12 horas é 20 xelins. [...]


O trabalho excepcionalmente produtivo atua como trabalho potenciado ou cria, no
mesmo tempo, valores maiores do que o trabalho social médio do mesmo tipo.
(MARX, 2013, p. 392-393, grifos nossos).

Na interpretação da questão sob a ótica da transferência de valor, R. Carcanholo


(2013) aponta para as palavras escolhidas por Marx: “atua como”. Marx não diz que o “trabalho
excepcionalmente produtivo” é “trabalho potenciado”, mas “atua como”, ou seja, parece ser139.
(Como se vê, Marx antecipa um recurso argumentativo que seria utilizado novamente no
Capítulo XX do Livro I sobre a diversidade nacional dos salários e que será destacado na
subseção seguinte). Isso significa que o autor foi cauteloso nesse momento do argumento. R.
Carcanholo (2013) apresenta uma justificativa convincente para essa cautela: nessa altura da
exposição, Marx ainda não analisou a possibilidade de incongruência quantitativa entre valor
produzido e apropriado, que será feito apenas no Livro III:

A diferença entre produção e apropriação só surgirá quando o autor chegar a discutir


a transformação dos valores em preços de produção. Só depois disso é que terá
condições de estudar a forma como a mais-valia será repartida entre os diferentes
capitais, entre as suas diversas frações. Só então poderia discutir adequadamente o
problema da mais-valia extra. (CARCANHOLO, R., 2013, p. 110).

De fato, é por isso que a abstração que percorre inteiramente os Livros I e II é que
as mercadorias são vendidas pelos valores. Portanto, se o capitalista se apropria de $20 e
estamos respeitando o nível de abstração, este valor de $20 deve ter sido produzido por ele
mesmo. Não haveria outra explicação logicamente consistente até esse momento da obra. Como
o tempo e a intensidade do trabalho são as mesmas, o aumento de valor realizado pelo capital
inovador só pode ter sido decorrente de uma potencialização do trabalho, ou seja, a mesma hora

138
Estas duas passagens, especialmente a segunda, são amplamente utilizadas pelos defensores da tese de que o
mais-valor extra resulta do trabalho potenciado e não da transferência de valor. Cf. Borges Neto (2011).
139
Na tradução de Reginaldo Sant’Anna para a edição da Civilização Brasileira (Marx, 2004), o termo em destaque
é “opera como” (p. 369) que, evidentemente, tem o mesmo sentido.
176

de trabalho concreto se converte (aparentemente) em uma quantidade maior de trabalho abstrato


(CARCANHOLO, R., 2013).
Mesmo com a cautela adotada por Marx, a exposição do autor impõe uma
mistificação sobre a realidade, cuja base real-concreta é que o capitalista inovador realmente
enxerga assim: mais-valor adicional apresenta-se a ele como fruto da maior complexidade do
processo de trabalho:

O trabalho mais produtivo aparece como se fosse potenciado ou como trabalho


complexo. Mas essa aparência se esclareceria tão logo observássemos o conjunto do
ramo considerado, e a maior apropriação surgiria, então, como resultado da
transferencia. (CARCANHOLO, R., 2013, p. 112).

Voltando ao exemplo numérico, o capitalista inovador produziu cada peça por $¾


ou 1,5 hora de trabalho social e pode se apropriar de $1 ou 2 horas de trabalho social. Como ele
produziu mais valores de uso do que antes, o valor de troca da mercadoria deverá diminuir para
concretizar a venda, caso a necessidade social por ela permaneça a mesma de antes. Este é o
ponto central que merece ser enfatizado: o progresso técnico dota o capitalista inovador de força
para produzir mais unidades da mercadoria, permitindo-lhe ocupar uma fatia maior do
mercado140 à medida que há uma redução necessária e estrutural do valor de troca – pois
devemos manter a abstração de que a necessidade social é a mesma de antes. A redução
estrutural (não fortuita nem conjuntural) do valor de troca expressa, manifesta, uma redução do
valor social da mercadoria em função da maior redução do valor individual produzido pelos
trabalhadores contratados pelo capitalista inovador. Nesse caso, em qualquer situação em que
o preço (valor de troca) esteja acima do valor individual, o capitalista inovador pode realizar
mais-valor adicional e, portanto, aumentar sua taxa individual de mais-valor.
Do ponto de vista da ótica da apropriação de valor entre capital e trabalho, Marx
indica, ainda no Capítulo X do Livro I, o seguinte:

140 Cf. Marx (2008, p. 892, grifos nossos): “Quanto ao capitalista individual, mede o volume de sua produção
pelo tamanho do capital disponível, na medida em que ainda possa pessoalmente controlá-lo. Seu objetivo é obter
a maior participação possível no mercado. Se há superprodução, atribui a culpa não a si, mas aos concorrentes. O
capitalista individual pode expandir sua produção, tanto por apropriar-se de parte alíquota maior do mercado tal
como existe, quanto por ampliá-lo ele mesmo”. Por isso, qualquer interpretação da teoria de Marx que não associe
o desenvolvimento da produtividade com a redução do valor individual e aumento da produção, não faz sentido.
É a própria dinâmica do modo capitalista de produção que leva a esse resultado, como nos parece ser a posição de
Marini (1979, p. 9): “En el juego entre los capitales individuales y entre las ramas entre sí, así como entre los
sectores de la producción, el aumento de la productividad y la baja de costos provoca transferencias de plusvalía
y alteraciones en las relaciones básicas de distribución precisamente porque se derivan de modificaciones en la
proporción de valor producida y apropriada por dichas ramas y capitales que no se corresponden con
modificaciones en la masa global de valor producida en la economía en su conjunto”.
177

O capitalista que emprega o modo de produção aperfeiçoado é, portanto, capaz de


apropriar-se de uma parte maior da jornada de trabalho para o mais-trabalho do que
os demais capitalistas no mesmo ramo de produção. Ele realiza individualmente o que
o capital realiza em larga escala, na produção do mais-valor relativo. (MARX, 2013,
p. 393).

Essa apropriação maior de valor pelo capitalista inovador origina-se em um valor


produzido e não apropriado pelo capital menos produtivo. Nesse caso, como funciona o
mecanismo da transferência de valor entre os capitais do mesmo ramo?
A solução, apontada por R. Carcanholo (2013, p. 104) de que o valor social é o
resultado da “média aritmética ponderada” dos valores individuais nos parece ad hoc. Se essa
hipótese for verdadeira, os capitais produtores de valores individuais acima da média (menos
produtivos) transferem parte do mais-valor aos capitais mais produtivos sob a forma de mais-
valor extra. Entretanto, sob quais condições essa hipótese é verdadeira? Tentaremos demonstrar
que, de fato, ela é verdadeira.

3.3.2 Fundamentos lógicos da distinção entre valor individual e valor social

Se, na produção de um valor de uso qualquer, cada capital isoladamente produz seu
próprio valor individual, segue que podem existir tantos valores individuais quanto o número
de capitais produtores daquela mercadoria. Como todos os capitais lançam suas mercadorias na
esfera da circulação em busca do valor de troca com a mercadoria-dinheiro, é sob esta roupagem
relativa e casual que o valor se manifesta no mundo exterior. Atesta-se, portanto, que aquela
mercadoria possui apenas um valor com legitimidade social, isto é, apenas um valor social de
determinada grandeza.
O valor social equivale à alíquota de trabalho social que cada capital tem direito a
se apropriar. Por outro lado, o valor individual expressa o quantum de trabalho privado contido
em uma determinada mercadoria com o qual cada capital contribui para o trabalho social total.
Portanto, a possibilidade de que distintos capitais produtores do mesmo valor de uso produzam
valores individuais diferentes implica que alguns (ou todos) produzirão valores de grandeza
diferente daquela de que se apropriarão.
Apesar dessa distinção ser explicitada por Marx apenas no Capítulo X do Livro I,
entendemos que os fundamentos para seu entendimento já são fornecidos ao longo de toda a
obra, especialmente na seção Mercadoria e Dinheiro. No Capítulo I, por exemplo, há uma
178

passagem bastante elucidativa a esse respeito e que está inserida na seção do fetichismo da
mercadoria no contexto da reificação das relações sociais entre os produtores:

Os objetos de uso só se tornam mercadorias porque são produtos de trabalhos privados


realizados independentemente uns dos outros. O conjunto desses trabalhos privados
constitui o trabalho social total. Como os produtores só travam contato social
mediante a troca de seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais
de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca. Ou, dito de outro
modo, os trabalhos privados só atuam efetivamente como elos do trabalho social total
por meio das relações que a troca estabelece entre os produtos do trabalho e, por
meio destes, também entre os produtores. (MARX, 2013, p. 148, grifos nossos).

As duas passagens grifadas merecem nossa atenção. Em primeiro lugar, a expressão


“o conjunto desses trabalhos privados constitui o trabalho social total” é uma pronta indicação
de que independentemente da forma com a qual o trabalho privado é executado, ou seja, se com
maior ou menor produtividade, ele constitui parte do trabalho social total. Por outro lado, o
trabalho privado só atua como elo do trabalho social quando o produto daquele trabalho adentra
a esfera da circulação de mercadorias. Portanto, o caráter social do trabalho privado se efetiva
quando o produto do trabalho é efetivamente trocável, argumento que se torna mais claro
quando Marx (2013, p. 148) afirma, adiante, que a partir do momento em que os produtos do
trabalho sejam produzidos como “coisas úteis destinadas à troca”, “o caráter de valor das coisas
passou a ser considerado no próprio ato de sua produção”141. O trabalho privado, então, adquire
um duplo caráter social: como trabalho útil e como trabalho permutável.
Ainda no nível de abstração elevado, insuficiente, mas necessário para compreender
a relação entre valor individual e valor social, Marx conclui esse argumento da seguinte forma:

Portanto, os homens não relacionam entre si seus produtos do trabalho como valores
por considerarem essas coisas meros invólucros materiais de trabalho humano de
mesmo tipo. Ao contrário. Porque equiparam entre si seus produtos de diferentes tipos
na troca, como valores, eles equiparam entre si seus diferentes trabalhos como
trabalho humano. Eles não sabem disso, mas o fazem. Por isso, na testa do valor não
está escrito o que ele é. (MARX, 2013, p. 149).

Conforme o exposto, o trabalho privado revela-se social à medida que os produtos


do trabalho são equiparados. Portanto, o trabalho privado é social (em potência) desde o ato de
produção posto que o produto do trabalho não foi produzido para o consumo do próprio

141
É por esse motivo que na subseção 1.3 assumimos, baseados em Marx (1980, p. 729-730), que a produção
escravocrata destinada para o mercado mundial era formalmente capitalista, ou seja, eram produzidos valores
mesmo sem a configuração do assalariamento.
179

produtor. Além disso, o caráter de valor não surge na troca, mas, ao contrário, em função da
troca ele surge na produção. Rubin (1987, p. 158-159) faz uma sistematização elucidativa sobre
esse ponto quando afirma que o trabalho privado e concreto só manifesta seu caráter social
quando igualado a uma dada “quantidade de trabalho impessoal, homogêneo, abstrato, ‘trabalho
em geral’”. Essa igualação precede a troca (mental e previsivelmente, ou seja, na cabeça do
capitalista), embora se efetive no processo real de troca.
Como a grandeza de valor é determinada pelo quantum de trabalho abstrato, como
ocorre essa abstração? O mesmo Rubin (1987, p. 159) indica que a abstração das propriedades
concretas do trabalho ocorre “através de uma troca e igualação multilaterais de produtos das
mais variadas formas de trabalho concretas”. A troca significa o vínculo entre as diversas
formas concretas de trabalho e, portanto, promove sua abstração:

Na teoria de Marx sobre o valor, a transformação do trabalho concreto em abstrato


não é um ato teórico de abstração com a finalidade de encontrar uma unidade geral de
medida. Esta transformação é um fato social real. A expressão teórica deste fato social,
qual seja, a igualação social das diferentes formas de trabalho, e não sua igualdade
fisiológica, constitui a categoria trabalho abstrato. (RUBIN, 1987, p. 160).

Ainda segundo Rubin (1987, p. 81), na troca os trabalhos são igualados como
“parcela do trabalho total da sociedade”. O trabalho que cria valor aparece “como ‘trabalho
social’, entendido como a massa total de trabalho homogêneo, igual, de toda a sociedade”. Na
economia mercantil a conversão do trabalho individual em social ocorre na troca, quando é
igualado a outro trabalho e isso acontece pois “na troca os valores de uso concretos e as formas
concretas de trabalho são inteiramente abstraídas”.
A abstração ocorre efetivamente na troca e, em função disso, o valor se torna real,
isto é, se realiza. Apesar disso, como os produtos, no capitalismo, são produzidos para a troca,
o caráter de trabalho abstrato já se manifesta, segundo Rubin (1987, p. 166-167), “no próprio
processo de produção direta” e, portanto, também o produto deste trabalho tem o caráter de
valor (ideal). No seguinte trecho fica bastante clara a interpretação de Rubin: “O trabalho do
produtor de mercadorias é diretamente privado e concreto, mas adquire uma propriedade social
complementar, ‘ideal’ ou ‘latente’, na forma de trabalho abstrato-geral e social”. Como Rubin
lida abstratamente com uma “economia mercantil”, ele não tem condições de assegurar, como
180

já o fizemos nesta seção, que a produção sob a grande indústria opera essa abstração do trabalho
humano142.
Marx (2013) faz uma indicação semelhante no Capítulo III, quando trata do
dinheiro como medida dos valores. Nesse contexto, o autor assume o ouro como dinheiro, ou
seja, como “a forma necessária de manifestação da medida imanente de valor das mercadorias:
o tempo de trabalho” (p. 169). Considerando isso, diz Marx: “A fim de exercer praticamente o
efeito de um valor de troca, a mercadoria tem de se despojar de seu corpo natural,
transformando-se de ouro apenas representado em ouro real” (p. 177, grifos nossos).
Transformar-se de ouro representado em ouro real indica, claramente, que na produção direta a
mercadoria é valor representado que se realiza na troca.
Com base no exposto, há uma relação inequívoca entre trabalho concreto e trabalho
abstrato na teoria do valor de Marx. Este responde às determinações daquele como pode ser
visto na seguinte citação que, embora longa, é valiosa:

[...] a força motriz que transforma todo o sistema de valor origina-se no processo
técnico-material de produção. O aumento da produtividade do trabalho expressa-se
numa diminuição da quantidade de trabalho concreto que é dispendida de fato, em
média, na produção. Como resultado disto (devido ao duplo caráter do trabalho, como
trabalho concreto e trabalho abstrato), a quantidade de trabalho considerado como
‘social’ ou ‘abstrato’, isto é, como parte do trabalho total, homogêneo, da sociedade,
diminui. O aumento da produtividade do trabalho modifica a quantidade de trabalho
abstrato necessária para a produção. Provoca uma modificação no valor dos produtos
do trabalho. Uma modificação do valor dos produtos afeta, por sua vez, a distribuição
do trabalho social entre os diversos ramos de produção. (RUBIN, 1987, p. 82).

Antes de avançar nesse terreno do argumento, uma ressalva: no esforço por realçar
o ponto central de seu argumento, Rubin exagera ao caracterizar o “processo técnico-material”
como a origem da “força motriz que transforma todo o sistema de valor” 143. Apesar disso o
argumento é inteiramente compatível com a tese de transferência de valor e, ao que nos parece,
com a teoria do valor de Marx. Vejamos.
Resultado de um aumento de produtividade, a mudança na quantidade de trabalho
concreto despendida de fato na produção possibilita ao capital introduzir uma quantidade maior
de mercadorias na circulação. Mantendo tudo o mais constante, inclusive a necessidade social,

142
Cf. subseção 3.1.
143
Julgamos, depois de um alerta feito pelo colega Maracajaro Mansor, que há um certo “exagero” nesta assertiva
de Rubin pois a origem última da força motriz só pode ser o próprio capital. Na verdade, é a existência do capital
como “sujeito automático”, para usar um termo de Marx (2013, p. 229-230), que transforma o processo técnico-
material e, consequentemente, o sistema de valor.
181

diminui a proporção com que este valor de uso específico pode ser trocado por outros, ou seja,
há uma mudança não acidental no valor de troca que significa, no caso do intercâmbio por
dinheiro, diminuição no preço de mercado da mercadoria. Insistamos nesse ponto: a mudança
do valor de troca é uma manifestação de uma alteração no valor, no quantum de trabalho
abstrato, que, por sua vez, é reflexo de uma alteração no processo concreto de trabalho. Dito de
outro modo, há uma alteração na proporção em que o produto do trabalho privado se troca por
trabalho homogêneo, alterando, com isso, a proporção com a qual o trabalho concreto se
transforma em trabalho abstrato e, consequentemente, efetivando uma variação no valor. Em
função disso – e essa é a ênfase de Rubin ao longo de toda a sua obra – tende a ocorrer uma
redistribuição do trabalho social entre os diversos ramos de produção já que a maior
produtividade torna esse produto mais barato podendo substituir outros valores de uso que se
tornam obsoletos.
Adaptando o argumento de Rubin para um aumento de produtividade em um capital
individual no interior de um determinado ramo de produção, podemos visualizar o processo sob
o qual ocorre a apropriação de mais-valor extra. Um avanço das forças produtivas reduz a
quantidade de trabalho concreto necessária para a produção de uma unidade da mercadoria,
levando o capital a aumentar a quantidade de valores de uso produzidas por jornada de trabalho.
Aumentam, portanto, a quantidade de mercadorias despejadas por esse ramo na esfera da
circulação reduzindo a proporção em que estas mercadorias são trocadas por outras o que, tudo
o mais constante, reduz seu preço de mercado. Conforme os termos de Cipolla (2003, p. 98,
grifos nossos), “a diminuição do preço de mercado revela uma diminuição da quantidade de
trabalho necessária para a produção da mercadoria”, ou seja, revela uma diminuição do
quantum de trabalho abstrato que significa uma diminuição no valor (efetivo) da mercadoria
movida por uma diminuição não proporcional no valor individual de um capital singular. Se a
diminuição do valor individual promove uma redução do preço de mercado que revela a
diminuição do valor social, a determinação quantitativa deste está vinculada com a
determinação quantitativa do valor individual. Logo, há uma relação umbilical entre valor
individual e valor social.
Considerando a existência de uma situação anterior ao aumento de produtividade
onde havia equilíbrio entre a massa de produtos ofertados e a necessidade social por elas, a
diminuição dos preços de mercado reduz a apropriação de valor pelos capitais que se
mantiveram com o nível de produtividade antigo vis-à-vis a quantidade produzida por eles. E,
desde que o novo preço de mercado se situe acima do valor individual dos capitais mais
182

produtivos, aumenta a apropriação de valor por estes vis-à-vis a quantidade produzida. Para
que este desnível entre produção e apropriação de valor no nível intrassetorial seja nomeado
como transferência de valor, deve haver um elemento de mediação – o dinheiro.
Como estamos considerando capitais produtores de um mesmo valor de uso, não há
troca entre eles. Portanto, o valor que um perde não é direcionado diretamente para outro. Essa
transferência só pode ser realizada indiretamente: devem haver agentes da troca dispostos a
ceder a mesma quantidade de valor na forma de dinheiro. Se assim ocorrer, serão os possuidores
de dinheiro que efetivarão a transferência do mais-valor extra: para o comprador das
mercadorias, não interessa como elas foram produzidas, já que, como estamos supondo que a
troca se desenvolve com valores sociais idênticos aos preços de mercado, o comprador troca
valores de igual grandeza. Por outro lado, se todas as mercadorias são realizadas, esses
compradores ajustam, por assim dizer, os balanços dos capitais individuais – isto é, garantem
que os mais produtivos se apropriem de mais do que produziram e vice-versa – quando
oferecem uma determinada quantidade de dinheiro, possuidora de uma determinada quantidade
de trabalho abstrato equivalente ao valor social daquelas mercadorias e não equivalente ao valor
individual.
Como nossos propósitos mais amplos são investigar a transferência de valor no
mercado mundial, portanto entre capitais operando em distintos territórios nacionais, a
mediação efetuada pelo dinheiro implica, para a análise teórica, uma novidade: tem que existir
uma mercadoria portadora de tempo de trabalho socialmente necessário que execute a função
de dinheiro mundial. Não se trata de um preciosismo, pois, se não existir essa mercadoria, a
transferência de valor entre capitais do mesmo ramo de produção não se efetivará. Portanto,
precisamos pressupor a existência do dinheiro mundial144.
Para finalizar essa subseção, precisamos estabelecer algum senso sobre como os
valores individuais determinam a grandeza quantitativa do valor social. Sabemos que a hipótese
de R. Carcanholo (2013) é que o valor social resulta da média aritmética ponderada dos valores
individuais; hipótese que, como exposto anteriormente, soou como ad hoc.
Com base no que discutimos nesta subseção, quando um capital diferencia seu valor
individual dos demais, há uma modificação não acidental do valor de troca que expressa a

144
Reconhecemos a existência de uma profunda divergência no campo marxista sobre a forma contemporânea do
dinheiro mundial, cujo exame foge ao escopo desta tese. As posições divergentes podem ser situadas em dois
polos: aqueles que sustentam que a vinculação – explícita ou implícita, mais ou menos direta – do dinheiro mundial
com o ouro ainda é válida (GERMER, 2005; PRADO, E. F. S., 2013); e aqueles que negam a contemporaneidade
de qualquer forma de dinheiro metálico (ARTHUR, 2005; PAULANI, 2009).
183

alteração prévia do valor social. A alteração no valor de troca é proporcional à nova massa de
valores de uso ofertada pelo capital singular. Segue que, quanto mais rápido a inovação
tecnológica se espraia entre os demais capitais, maior a velocidade com que cresce a oferta de
valores de uso e, tudo o mais constante, mais rápido é a alteração no valor de troca expressando
a diminuição acelerada do valor social. Quando todos os capitais do mesmo ramo produzirem
sob as novas condições técnicas, os valores individuais serão todos iguais entre si e idênticos
ao valor social. Portanto, (a) a dinâmica do valor social segue a direção dos valores individuais
produzidos pelos capitais mais produtivos; (b) e ele, quantitativamente, se aproxima do valor
individual daqueles capitais que produzem sob as condições técnicas predominantes.
O raciocínio anterior sugere que o valor social é determinado quantitativamente
como uma média aritmética ponderada pelo tamanho dos capitais individuais, sendo este
mensurado em termos de quantia de capital-dinheiro adiantada. O valor social segue as
propriedades da média aritmética pois esta é um parâmetro estatístico que varia se qualquer
uma das grandezas que compõem seu cálculo variarem e se aproxima da porção mais densa da
distribuição. Entretanto, como as categorias marxianas são tendenciais, então a grandeza do
valor social é muito próxima de uma média aritmética dos valores individuais ponderada pela
quantidade de mercadorias produzida por capital. Temos que ter muita cautela nesse ponto pois
a teoria de Marx se desenvolve sobre leis de tendência, refletindo aquilo que acontece na base
concreta da economia capitalista, a qual é dinâmica por natureza. Não é possível, portanto,
inferir, em um dado instante do tempo, a média dos valores individuais, posto que a média se
calcula sobre grandezas estáticas e – mesmo que assumíssemos, por simplicidade, alguma
possibilidade de mensuração empírica deles – os valores são dinâmicos. Por isso, e pela forma
como ele se manifesta tendencialmente, o valor social parece uma média, mas não pode ser
mensurado como tal.

3.3.3 Concorrência intrassetorial e transferência de valor no Livro I de O Capital

Podemos resumir os principais resultados a que chegamos sobre a troca desigual


dentro do ramo de produção da seguinte forma: a) o valor individual é determinado
essencialmente pelas condições técnico-materiais da produção; b) a dinâmica do valor social
resulta dos movimentos dos valores individuais; c) a concorrência em um mesmo ramo de
produção promove a distinção entre valores individuais e sociais; d) a transferência de valor é
184

o processo mediante o qual os capitais mais produtivos se apropriam de um mais-valor extra


produzido pelos capitais menos produtivos.
Estas proposições se articulam em torno de uma característica fundamental do
modo de produção capitalista: a tendência ao desenvolvimento das forças produtivas sob a
pressão da concorrência. Pretendemos, nesta subseção, analisar algumas passagens do Livro I
de O Capital onde Marx ilustra os argumentos apresentados com exemplos envolvendo a
concorrência e que reforçam nosso entendimento exposto anteriormente acerca do mais-valor
extra.
Já na primeira seção do Capítulo I, Marx precisa explicar a relação entre
produtividade e valor e, nesse contexto, recorre ao seguinte exemplo:

Após a introdução do tear a vapor na Inglaterra, por exemplo, passou a ser possível
transformar uma dada quantidade de fio em tecido empregando cerca da metade do
trabalho de antes. Na verdade, o tecelão manual inglês continuava a precisar do
mesmo tempo de trabalho para essa produção, mas agora o produto de sua hora de
trabalho individual representava apenas metade da hora de trabalho social e, por isso,
seu valor caiu para a metade do anterior. (MARX, 2013, p. 116).

Nessa passagem chocam-se o capital inovador (que utiliza tear a vapor) e o capital
atrasado (do tear manual). Duplicou-se a produtividade, reduziu-se pela metade o tempo de
trabalho socialmente necessário à produção de tecidos e, consequentemente, reduziu-se o valor
social pela metade. A partir de então, uma hora de trabalho social produz o dobro de valores de
uso do que antes. Reparemos que, para usar a formulação de Rubin, a “força motriz” da
modificação do sistema de valores está ligada ao aspecto técnico-material da produção. Pela
discussão da subseção anterior, a relação entre os capitais inovadores e atrasados só pode ser a
seguinte: o aumento da produtividade permitiu a alguns capitais reduzir o tempo de trabalho
necessário à produção de tecidos pela metade; o aumento da massa de mercadorias produzidas
reduziu o valor de troca delas com as demais; essa redução se refletiu nos preços de mercado,
de forma que, enquanto a inovação não é plenamente disseminada, ele se localiza em um
intervalo entre os menores e maiores valores individuais; ao longo desse processo os capitais
inovadores realizam uma taxa maior de lucro e o contrário acontece aos atrasados; socialmente
há um processo de migração das condições técnicas atrasadas em direção às modernas, que se
reflete na diminuição mais rápida do valor social até o ponto em que, como indicado no
exemplo, o tempo de trabalho socialmente necessário coincide com o tempo de trabalho
necessário para os capitais inovadores; como o tecelão manual produz com o mesmo tempo que
185

antes, seu valor individual permanece o mesmo e o valor apropriado por ele representa metade
do anterior, já que houve a diminuição pela metade da grandeza de valor social.
Mas, se isso é verdade, por que Marx disse que “seu valor caiu pela metade”?
Recorremos à resposta de R. Carcanholo (2013): nesse nível de abstração não é possível
diferenciar produção de apropriação de valor. Em termos concretos, isso parece ser verdade sob
a ótica do tecelão manual: parece-lhe que houve uma diminuição em seu valor. Insistamos no
contexto: para inferir que a grandeza do valor depende da quantidade de trabalho humano
abstrato, ou do tempo de trabalho socialmente necessário, Marx está supondo a mercadoria
como um “exemplar médio de sua espécie”. Não está explícito, mas nos parece que o “exemplar
médio” se refere às condições técnicas normais, predominantes. Portanto, sob tais condições, a
produção de um determinado valor de uso contém uma grandeza de valor determinada pelo seu
tempo de produção; por estarmos em condições técnicas médias, trata-se do tempo de trabalho
socialmente necessário. Parece-nos que Marx está permitindo, embora não explicitando, a
possibilidade de condições individuais de produção diferentes, de tempos de trabalho
individuais diferentes e, consequentemente, de valores individuais diferentes.
Essa questão pode ser apreendida sob uma outra ótica no Capítulo III, onde Marx
(2013, p. 180-181) examina detalhadamente o dinheiro. Uma das funções desenvolvidas pela
mercadoria que desempenha o papel do dinheiro é de meio de circulação ou, em outros termos,
mediador do “metabolismo do trabalho social”. Nos meandros do “salto mortal da mercadoria”,
Marx precisa introduzir na exposição a relação entre oferta, demanda, preço de mercado e valor.
A seguinte passagem fundamenta essa discussão e, para facilitar nossa interpretação,
fragmentamo-la:

Suponhamos, porém, que o valor de uso de seu produto se confirme e, assim, o


dinheiro seja atraído por sua mercadoria. Pergunta-se, então: quanto dinheiro? A
resposta já está antecipada no preço da mercadoria, no expoente de sua grandeza de
valor. […] Suponhamos que ele despendeu em seu produto somente a média
socialmente necessária de tempo de trabalho. Desse modo, o preço da mercadoria é
apenas a denominação monetária da quantidade de trabalho social nela objetivado.
(MARX, 2013, p. 181, grifos nossos).

Marx explicita o que havíamos feito anteriormente: o preço – ou o valor de troca –


é o “expoente”, a expressão, a manifestação, da grandeza de valor da mercadoria. Se o produtor
despendeu a “média socialmente necessária de tempo de trabalho” (grifos nossos), o preço – ou
a parcela de valor apropriada pelo capital – equivale à “quantidade de trabalho social nela
objetivado” – ou à grandeza de valor produzida por esse capital. Segue:
186

No entanto, sem a autorização e pelas costas de nosso tecelão, as condições de


produção da tecelagem de linho, já há muito estabelecidas, entraram em ebulição. O
que até ontem era, sem dúvida, tempo de trabalho socialmente necessário à produção
de 1 braça de linho, hoje deixa de sê-lo, tal como o possuidor de dinheiro o demonstra
prontamente exibindo ao tecelão as cotações de preços de seus diversos concorrentes.
Para sua desgraça, há muitos tecelões no mundo. Suponhamos, por fim, que cada peça
de linho existente no mercado contenha apenas o tempo de trabalho socialmente
necessário. Apesar disso, a soma total dessas peças pode conter tempo de trabalho
despendido de modo supérfluo. Se o estômago do mercado não consegue absorver a
quantidade total de linho pelo preço normal de 2 xelins por braça, isso prova que foi
despendida uma parte maior de tempo de trabalho socialmente necessário na forma
da tecelagem de linho. (MARX, 2013, p. 181, grifos nossos).

O fundamental nessa passagem é o seguinte: o aumento da produtividade reduziu o


tempo de trabalho socialmente necessário e, portanto, o valor social (manifestado, vale a pena
ser exaustivo nesse ponto, pela queda dos preços de mercado). Marx supõe que nem todas as
peças conseguirão ser vendidas: como “foi despendida uma parte maior de tempo de trabalho
socialmente necessário na forma da tecelagem de linho”, o autor está indicando, claramente,
que foi produzida uma massa de valores maior do que a necessidade social e, portanto, parte
dos trabalhos torna-se “supérfluo” pois nem todos os valores produzidos conseguirão ser
realizados. A questão central, para nosso contexto, é indicar que, independentemente das
necessidades sociais, ou seja, independentemente das condições da circulação, valores foram
produzidos. Dadas as condições técnicas do trabalho concreto, insistamos nesse ponto,
produziram-se valores (ao menos idealmente). Mesmo que o nível de abstração do Livro I
indique produção igual à apropriação, em alguns momentos o autor precisa se desfazer de
algumas suposições relativas a essa abstração.

O efeito é o mesmo que se obteria se cada tecelão individual tivesse aplicado em seu
produto individual mais do que o tempo de trabalho socialmente necessário. Aqui vale
o provérbio: apanhados juntos, enforcados juntos [mitgefangen, mitgehangen]. Todo
linho no mercado vale como se fosse um artigo único, sendo cada peça apenas uma
parte alíquota desse todo. E, de fato, também o valor de cada braça individual é apenas
a materialidade da mesma quantidade socialmente determinada de trabalho humano
de mesmo tipo. (MARX, 2013, p. 181).

Enquanto na passagem antecedente o ramo como um todo não conseguia se apropriar


da massa total de valores produzidos, agora o mesmo efeito ocorre para o capital individual que
gastou mais tempo na produção do que o tempo de trabalho socialmente necessário: o valor que
ele produziu é maior do que o valor que a sociedade está disposta a realizar.
Seguindo com a exposição de Marx, no Capítulo VI o objetivo é apresentar as
categorias de capital constante e capital variável. O primeiro conserva seu valor no produto
187

enquanto o segundo adiciona valor novo; um é resultado do caráter concreto e outro o resultado
do caráter abstrato do trabalho humano. Nesse contexto a seguinte passagem ilustra o efeito de
um desenvolvimento das forças produtivas:

Suponha que, em consequência de uma invenção qualquer, o fiandeiro possa fiar em


6 horas a mesma quantidade de algodão que ele antes fiava em 36 horas. Como
atividade adequada a um fim, útil e produtiva, seu trabalho sextuplicou sua força. Seu
produto é seis vezes maior, 36 libras de fio em vez de 6. Mas as 36 libras de algodão
absorvem agora apenas o mesmo tempo de trabalho antes absorvido por 6 libras. A
quantidade de trabalho novo que lhes é adicionada é 6 vezes menor do que com o
método antigo, portanto apenas 1/6do valor anterior. Por outro lado, o valor de
algodão agora contido no produto é 6 vezes maior, isto é, 36 libras. Nas 6 horas de
fiação é conservado e transferido ao produto um valor de matéria-prima 6 vezes maior,
embora à mesma matéria-prima seja adicionado um novo selo, 6 vezes menor.
(MARX, 2013, p. 278-279, grifos nossos).

Mais uma vez temos a indicação expressa de Marx de que a ampliação do efeito
concreto do trabalho resulta na diminuição da quantidade de trabalho abstrato por unidade de
produto: a “quantidade de trabalho novo” diminui proporcionalmente ao incremento na
produtividade. Em termos de valor individual, poderíamos dizer que houve uma redução no
valor individual proporcional ao desenvolvimento das forças produtivas.
Apesar dessas passagens esporádicas ligadas ao progresso técnico, apenas na Seção
IV (Produção do mais-valor relativo) que ele entra, de fato, na análise teórica. Após ter exposto,
no Capítulo X, a distinção entre valor individual e valor social em função de variações na
produtividade, no Capítulo XII (Divisão do trabalho e manufatura) o argumento do mais-valor
extra entra sutilmente:

Que numa mercadoria seja aplicado apenas o tempo de trabalho socialmente


necessário para sua produção é algo que aparece na produção de mercadorias em geral
como coerção externa da concorrência, dado que, expresso superficialmente, cada
produtor individual é obrigado a vender a mercadoria pelo seu preço de mercado.
(MARX, 2013, p. 420).

A “coerção externa da concorrência” força os capitais a aplicarem “apenas o tempo


de trabalho socialmente necessário” pois, se não o fizerem, estarão transferindo valores para
outros e, consequentemente, diminuindo a taxa de mais-valor realizada por eles. Por venderem
pelo preço de mercado estarão gerando mais-valor extra para os concorrentes. Por outro lado,
o capital mais produtivo tem a possibilidade de vender abaixo do preço de mercado exatamente
para aumentar sua participação nas vendas totais ocupando posições que eram de seus rivais:
“no cálculo do preço da mercadoria não é preciso incluir a parte não paga do preço do trabalho.
188

Ela pode ser presenteada ao comprador da mercadoria. Esse é o primeiro passo que impele a
concorrência” (MARX, 2013, p. 619).
O aspecto técnico-material e a produtividade voltam a tomar lugar privilegiado na
argumentação de Marx na Seção VII sobre a acumulação do capital. No Capítulo XXII
(Transformação de mais-valor em capital), Marx analisa as condições e implicações da
acumulação de parte do mais-valor realizado. Uma das circunstâncias que permitem a
acumulação independentemente da divisão do mais-valor entre renda e capital é o
desenvolvimento das forças produtivas na medida em que aumenta a produção do mais-valor
relativo e, consequentemente, a taxa do mais-valor. Ademais, esse incremento de produtividade
atinge não só o novo capital, mas o capital original ou o que está produzindo sob condições
técnicas antigas:

Tal como no caso de uma exploração aumentada das riquezas naturais mediante o
simples aumento na distensão da força de trabalho, a ciência e a técnica constituem
uma potência de ampliação do capital em funcionamento, independente da grandeza
determinada que esse capital alcançou. [...] Por certo, esse desenvolvimento da força
produtiva é, ao mesmo tempo, acompanhado de uma depreciação parcial dos capitais
em funcionamento. Na medida em que essa depreciação se torna mais aguda em
razão da concorrência, o peso principal recai sobre o trabalhador, com cuja
exploração aumentada o capitalista procura se resarcir. (MARX, 2013, p. 680, grifos
nossos).

A “depreciação parcial dos capitais em funcionamento” parece-nos uma manifestação


da menor produtividade dos capitais operando meios de trabalho menos eficientes. Nossa
interpretação ancora-se no argumento exposto por Marx de que a concorrência acelera essa
depreciação: isso só é possível pois para os capitais menos produtivos a concorrência impõe
uma apropriação menor de valor que é tanto menor quanto mais intenso é o desenvolvimento
das forças produtivas e o acicate da concorrência. Ora, o capital menos produtivo recorre à
“exploração aumentada” para intensificar a apropriação de trabalho não-pago e, portanto, “se
ressarcir” da transferência de valor aos mais produtivos.
Marx, aqui, aponta para a tese da superexploração de Marini (2005) – simplesmente
aponta, pois, sob o nível de abstração desse momento da exposição, preços e valores são
idênticos, de forma que é conceitualmente impossível derivar a superexploração da força de
trabalho nessas circunstâncias (CORRÊA; CARCANHOLO, M. D., 2016)145. De toda forma,

145
A abstração operada ao longo do Livro I, relativa à identidade entre preços e valores, decorre do próprio objetivo
do livro, como lembram Corrêa e M. D. Carcanholo (2016, p. 20), que é “entender o processo de produção do
capital, o que faz com que seja pressuposta a sua circulação, a realização (no preço) desse valor. Disto trata a lei
189

enquanto Marini associa a superexploração como uma característica específica das economias
dependentes em função da concorrência no mercado mundial que promoveria a transferência
de valor para as economias imperialistas, Marx dá um estatuto mais geral ao efeito da
concorrência sobre a exploração do trabalhador.
Ainda nesse capítulo – na verdade um parágrafo adiante – Marx explicita aquilo
que R. Carcanholo (2013) enfatiza e que é um aspecto chave para a compreensão da
transferência de valor nesse nível de abstração: trabalho em quantidade e intensidade igual
agrega “sempre a seus produtos a mesma soma de valor novo” independentemente das
condições da produtividade. Fica explícito na comparação entre a produção de um trabalhador
inglês e um chinês:

Se um fiandeiro inglês e um chinês, por exemplo, trabalhassem o mesmo número de


horas com a mesma intensidade, ambos produziriam, numa semana, valores iguais.
Apesar dessa igualdade, há uma enorme diferença entre o valor do produto semanal
do inglês, que trabalha com uma poderosa máquina automática, e o do chinês, que
dispõe apenas de uma roda de fiar. No mesmo intervalo de tempo em que o chinês fia
1 libra de algodão, o inglês fia várias centenas de libras. Uma soma de valores
anteriores várias centenas de vezes maior incha o valor do produto do fiandeiro inglês,
produto no qual tais valores são conservados sob uma nova forma útil e podem, assim,
funcionar novamente como capital. (MARX, 2013, p. 681, grifos nossos).

Apesar do trabalho produzir o mesmo valor, os produtos têm valores absolutamente


diferentes em função da enorme discrepância técnica entre os processos de trabalho. Em uma
jornada de trabalho o valor produzido pelo trabalhador com melhores meios de produção é
maior pela maior parcela de valor transferido pelo capital constante. Um detalhe que em geral
passa despercebido nessa passagem é que Marx compara trabalhos de nacionalidade diferentes
supondo que possuem a mesma intensidade média – uma abstração cuja finalidade é captar tão-
somente o efeito da produtividade sobre o valor. O autor parece se referenciar em uma discussão
desenvolvida no Capítulo XX (Diversidade nacional dos salários), onde se refere à “aplicação
internacional” da “lei do valor” em uma passagem muito utilizada pelos defensores da tese de

do valor. Marx nunca sustentou que os preços correspondem aos valores quantitativamente, apenas que, nos
marcos do Livro I, para estudar a produção do valor-capital, assume-se que ela se realiza (corresponde) no (ao)
preço”. Nos marcos desse nível de abstração, os momentos da exposição nos quais Marx sugere a existência real-
concreta de superexploração da força de trabalho não possuem relevância teórica: nesses casos, Marx “está
explicando a forma concreta pela qual opera, em circunstâncias históricas determinadas, a exploração do trabalho
pelo capital” (ibidem, p. 17). Uma posição divergente, que defende a existência de uma “teoria da
superexploração” no Livro I de O Capital, contra a qual Corrêa e M. D. Carcanholo (2016) se posicionam, é a de
Nascimento, Dillenburg e Sobral (2015).
190

que não há transferência de valor através da concorrência intrassetorial. Pela sua relevância no
debate marxista, reproduziremos essa passagem integralmente:

Em cada país vigora certa intensidade média do trabalho, abaixo da qual o trabalho
para a produção de uma mercadoria consome mais do que o tempo socialmente
necessário e, por isso, não conta como trabalho de qualidade normal. Apenas um grau
de intensidade que se eleva acima da média nacional modifica, numa dada nação, a
medida do valor pela mera duração do tempo de trabalho. O mesmo não ocorre no
mercado mundial, cujas partes integrantes são os diversos países. A intensidade média
do trabalho varia de país a país, sendo aqui maior, lá menor. Essas médias nacionais
constituem, pois, uma escala, cuja unidade de medida é a unidade média do trabalho
universal. Assim, comparado com o menos intensivo, o trabalho nacional mais
intensivo produz, em tempo igual, mais valor, que se expressa em mais dinheiro.
(MARX, 2013, p. 631-632, grifos nossos).

Uma questão preliminar a se destacar é que a grandeza produzida de valor depende


do tempo (produtividade) e da intensidade do trabalho, inversa e diretamente proporcional,
respectivamente: um trabalho executado com mais intensidade cristaliza uma quantidade maior
de trabalho abstrato por hora trabalhada. Com base nisso, o argumento de Marx desenvolvido
na passagem anterior constata que há uma tendência real de formação de uma “intensidade
média do trabalho” em cada país, que funciona como uma intensidade-padrão. Ademais, Marx
supõe que entre países não há um processo real de convergência em direção à uma intensidade
média, fato que faz com que ele considere a existência de “uma escala” de “médias nacionais”:
portanto, supondo produtividades iguais entre os “trabalhos nacionais”, aqueles mais intensivos
produzem uma quantidade maior de valor por hora de trabalho que “se expressa em mais
dinheiro”.
No desenvolvimento desse raciocínio, Marx ainda indica que

[...] a lei do valor, em sua aplicação internacional, é ainda mais modificada pelo fato
de, no mercado mundial, o trabalho nacional mais produtivo também contar como
mais intensivo, sempre que a nação mais produtiva não se veja forçada pela
concorrência a reduzir o preço de venda de sua mercadoria a seu valor. (MARX, 2013,
p. 632).

Quando Marx afirma que o trabalho mais produtivo conta como mais intensivo,
desde que “a nação mais produtiva”, ou os capitais mais produtivos, não rebaixem o preço ao
valor de sua mercadoria, ele está reforçando uma indicação que já fizemos anteriormente: a
maior produtividade reduz o valor individual das mercadorias produzidas em tal base técnica.
Com isso, se esses capitais não se verem coagidos pela concorrência a reduzir o preço, eles se
apropriarão de um mais-valor extra exatamente na medida da diferença entre preço e valor.
191

Portanto, se apropriarão de um valor não produzido por eles, de forma que parece que eles são
mais intensivos, tendo em vista que no nível da aparência a apropriação maior deve ser resultado
de uma produção maior de valor (CARCANHOLO, R., 2013).
Por trás dessa questão, precisamos enfatizar que a passagem anteriormente citada
sugere que o próprio Marx percebeu o efeito da concorrência no mercado mundial sobre os
vários capitais industriais localizados em variadas nações. Explícita e literalmente, o autor
reconhece a possibilidade de que a distinção entre preços e valores se efetive no mercado
mundial, fato que favoreceu historicamente a universalização do modo capitalista de produção
como já indicamos em outro lugar146. Não é por outro motivo que ele se refere à constituição
de uma divisão internacional do trabalho a partir da constituição da grande indústria (MARX,
2013, p. 523), momento histórico no qual os capitais ingleses instauram um desnível estrutural
de produtividade com o resto do mundo que os permite moldá-lo “à sua imagem e semelhança”,
para usar uma famosa expressão do Manifesto comunista (MARX; ENGELS, 2007, p. 44).
Vinculado a esse raciocínio, encontramos no Capítulo XXIII do Livro I um
momento crucial na exposição da relação entre concorrência e produtividade. Na lei geral da
acumulação capitalista, a concorrência e o mais-valor extra têm um papel decisivo no processo
de centralização dos capitais:

As leis dessa centralização dos capitais ou da atração do capital pelo capital não
podem ser desenvolvidas aqui. Bastará uma breve indicação dos fatos. A luta
concorrencial é travada por meio do barateamento das mercadorias. O baixo preço das
mercadorias depende, caeteris paribus, da produtividade do trabalho, mas esta, por
sua vez, depende da escala da produção. Os capitais maiores derrotam, portanto, os
menores. (MARX, 2013, p. 702).

O resultado cabal é que a concorrência impõe a necessidade de barateamento das


mercadorias que só pode ocorrer mediante aumento da produtividade e, como constatado
anteriormente, essa conclusão é válida para a concorrência no mercado mundial. Dois pontos
aqui merecem ser destacados: o aspecto técnico-material da produção é o determinante causal
de uma das leis mais importantes desenvolvidas no Livro I, qual seja, a lei da centralização dos
capitais; e o “baixo preço” ou a alteração do valor de troca é a manifestação da alteração do
valor oriunda do aumento da produtividade. O corolário do argumento (“Os capitais maiores
derrotam, portanto, os menores”) é plenamente inteligível se considerarmos que os capitais
maiores produzem mercadorias com valores individuais menores, apropriam-se de mais-valor

146
Cf. subseção 1.3 desta tese.
192

extra que funciona como combustível a favor da centralização dos capitais. Na medida em que
a concorrência no mercado mundial se desenvolve sobreposta a uma malha pré-definida de
fronteiras nacionais, a transferência internacional de valor, resultado da concorrência, parece
ser o motor de um processo de polarização global que se retroalimenta com o fortalecimento da
centralização dos capitais no polo imperialista do mercado mundial147.
Vale lembrar que esse argumento de Marx se desenvolve a partir do pressuposto do
mercado mundial, tal como exposto na primeira nota de rodapé do Capítulo XXII148. Essa
abstração, segundo Pradella (2015a, p. 155), possibilita a Marx identificar a “tendência
expansiva do capital dos estados dominantes” materializada na lei geral da acumulação
capitalista. Sistematicamente, aponta Pradella, Marx leva em conta a dimensão internacional
do campo de ação do capital e da classe trabalhadora. Por exemplo, ele considera que o capital
britânico investido no exterior constitui parte do capital social total, de forma que ele “não
precisa de determinações particulares já que o Livro I não considera a circulação”.
Nesse sentido, seguindo a sugestiva interpretação da autora, a lei geral é o atestado
da tendência de expansão do sistema: as tendências à concentração e centralização elevam as
possibilidades de mobilidade internacional do capital, potencializando maior concentração.
Portanto, tendencialmente, a lei geral implica que o capital integra e subordina outras formas
de exploração não-capitalistas, permitindo a Marx presumir a tendência à proletarização
universal – impulsionada pela concorrência entre capitais e pela intervenção estatal direta – já
que, nos termos de Pradella (2015a, p. 156), “todos os trabalhadores engajados na produção de
mercadorias são trabalhadores assalariados”.

3.4 TROCA DESIGUAL ENTRE RAMOS DE PRODUÇÃO

Tentamos manter o argumento da subseção anterior o mais próximo possível do


nível de abstração do Livro I, isto é, nos esforçamos para manter a suposição de que as
mercadorias se vendem pelos seus valores sociais (ou de mercado). Para isso, mostramos que é
possível verificar a existência da transferência de valor dentro de um ramo de produção com
base no arsenal de categorias exposto por Marx no primeiro livro de O Capital. Como

147
Desenvolveremos esse argumento na Seção Cinco, especialmente na subseção 5.3.
148
Cf. subseção 1.2 desta tese.
193

destacamos, nos momentos em que o argumento do autor caminhava para um terreno que o
colocaria em contradição com o nível de abstração desejado – explicitamente nos Capítulos X
e XX do Livro I – o próprio criava subterfúgios que lhe permitiam explicar o ponto em questão
dentro dos marcos permitidos. Esse recurso argumentativo resolve parcialmente o problema
lançando-o automaticamente para frente: o enigma do mais-valor extra, por exemplo, pode ser
resolvido em sua inteireza de posse das categorias desenvolvidas nas duas primeiras seções do
Livro III.
Além desta questão, que abarca novamente a transferência de valor dentro de um
ramo, a mudança no nível de abstração a partir do primeiro capítulo do Livro III ensejará uma
explicação para a transferência de valor entre ramos com base na teoria dos preços de produção.
Tentaremos mostrar, nesta subseção, como a formação da taxa geral de lucro subjacente à
transformação de valores em preços de produção engloba o mercado mundial e, com isso,
explica a troca desigual entre setores. Com isso, esperamos concluir este Capítulo III tendo
demonstrado os fundamentos do imperialismo pela via do comércio a partir da teoria do valor
de Marx.

3.4.1 Da essência à aparência, ou do mais-valor ao lucro: a importante transição entre


níveis de abstração

Pelo famoso método de exposição marxiano, o movimento teórico em O Capital


parte da essência em direção à aparência do modo capitalista de produção (CARCANHOLO,
R., 2011a; NETTO, 2011). Já mostramos que a aparência é mistificadora, embora também seja
real, isto é, ela oculta uma determinada parte da realidade (CALLINICOS, 2014)149. Nesse
sentido, o Capítulo I do Livro III tem um papel-chave na concatenação lógico-teórica entre os
três livros na medida em que promove uma transição crucial em direção ao nível da aparência:
ele mostra como o valor de capital adiantado se transforma em preço de custo e como o mais-
valor se transforma em lucro, entendido, pela teoria burguesa, como mero excedente sobre o
preço de custo num processo que oculta, conforme a crítica de Marx, suas verdadeiras origens.
O preço de custo para o capitalista é, como o próprio nome diz, quanto custa a ele
produzir suas mercadorias: equivale ao “preço dos meios de produção consumidos e o da força

149
Cf. Subseção 1.1 desta tese.
194

de trabalho aplicada” (MARX, 2008, p. 42). Como, nessa conta, falta incorporar o trabalho não-
pago, ou seja, o mais-valor, o custo real da mercadoria é maior do que o que custa ao capitalista
pois “a parte constituída pela mais-valia nada custa ao capitalista, justamente por custar ao
trabalhador trabalho que não é pago”. Essa distinção entre o custo individual, para o capitalista,
e o custo social, real, revela “o caráter específico da produção capitalista”, qual seja, de que os
verdadeiros produtores da mercadoria transferem gratuitamente parte de seu trabalho para os
proprietários das condições de produção.
A mistificação do preço de custo começa quando se homogeneíza dois elementos
qualitativamente distintos: o capital constante e o capital variável. Sabemos, desde o Livro I,
que o primeiro transfere seu valor à mercadoria enquanto o segundo “tem a função de criar
valor” (MARX, 2008, p. 44) pois se transforma em “força de trabalho viva” durante o processo
imediato de produção. A diferença entre os dois componentes do preço de custo se evidencia
quando se observa qualquer variação quantitativa entre eles. Por exemplo, se há um aumento
nos preços dos meios de produção, tanto o preço de custo quanto o valor da mercadoria
aumentam exatamente na mesma proporção (em decorrência da transferência do valor do
capital constante para a mercadoria). Por outro lado, um aumento no preço da força de trabalho
não altera o valor da mercadoria, apenas do preço de custo. Isso ocorre pois não é o preço da
força de trabalho que é transferido ao valor da mercadoria, mas sim a quantidade de valor novo
criado por dada quantidade de trabalho.
Portanto, seguindo o argumento de Marx (2008, p. 45-47), as duas partes do preço
de custo só têm em comum o fato de representarem reposição do capital adiantado. Essa fórmula
oculta a distinção qualitativa entre capital variável e capital constante: oculta a diferença de
função entre força de trabalho e meios de produção no processo de produção do valor. No preço
de custo, “só vemos valores prontos e acabados, os componentes do valor do capital adiantado,
que entram na formação do valor do produto; nenhum elemento aparece que crie valor” (grifos
nossos).
Essa mistificação se patenteia no próprio preço de custo na medida em que ele se
diferencia internamente entre capital fixo e capital circulante, ou seja, do ponto de vista da
rotação do capital150:

150
Marx desenvolveu essas questões no Capítulo VIII do Livro II, o que indica como o processo de circulação
compreende uma etapa de transição entre a essência e a aparência do processo capitalista de produção. Cf. Marx
(2014, p. 239-266).
195

Essa diferença entre capital fixo e circulante, do ponto de vista do cálculo do preço de
custo, demonstra apenas a origem aparente do preço de custo [...]. Além disso, o
capital variável despendido em força de trabalho, classificado como capital circulante,
é, no tocante à formação do valor, expressamente identificado com o capital constante
(consistente em matérias de produção), e assim mistifica-se completamente o processo
de valorização do capital. (MARX, 2008, p. 48).

A ocultação das diferenças entre capital constante e capital variável transforma o


mais-valor em simples excedente sobre o preço de custo, como acréscimo de valor sobre todo
o capital “pois existe depois do processo de produção e não existia antes” (MARX, 2008, p.
50). Como o capital todo “serve materialmente para formar o produto”, o mais-valor parece
provir “igualmente dos componentes fixos e circulantes do capital utilizado” (MARX, 2008, p.
51).
Em função desse movimento alienado, “como fruto imaginário de todo o capital
adiantado, a mais-valia toma a forma transfigurada de lucro” (MARX, 2008, p. 51). Derivado
do modo de produção capitalista, o mais-valor aparece dissimuladamente sob a forma de lucro,
uma “forma dissimulada”, portanto. Ou seja, esse argumento comprova que o capitalismo põe
categorias dissimuladas, isto é, que ocultam um determinado aspecto da realidade: “por
aparecer, num polo, o preço da força de trabalho na forma transmutada de salário, aparece a
mais-valia, no polo oposto, sob a forma transmutada de lucro” (MARX, 2008, p. 51). É o que
Callinicos (2014, p. 125) chama de “processo de progressiva externalização”, isto é, de
desaparecimento, ocultamento, das conexões intrínsecas da produção através da concorrência.
Esta transforma e fragmenta o mais-valor e, portanto, implica uma mistificação da maneira com
que ocorre a criação de valor. Neste sentido, o Livro I descreve fundamentalmente a “vida
orgânica do capital” através da relação entre capital e trabalho assalariado e o Livro III descreve
suas relações externas (por isso trata-se de um processo de “externalização”) expressas na
interação entre vários capitais e que se aprofunda sucessivamente desde a transformação dos
valores em preços de produção, passando pela fragmentação do mais-valor151 e chegando na
fórmula trinitária (CALLINICOS, 2014)152.
Sendo o preço de venda igual ao preço de custo mais o lucro, Marx abre a
possibilidade de distinção quantitativa entre preço e valor, pois, diz ele:

151
A fragmentação do mais-valor em rendas é o tema da próxima seção.
152
CALLINICOS, A. Deciphering Capital: Marx’s Capital and its destiny. London: Bookmarks Publications,
2014. p. 125 et seq.
196

Entre o valor da mercadoria e o preço de custo existe, evidentemente, a possibilidade


de uma série indeterminada de preços de venda. Quanto maior a parte do valor-
mercadoria constituída pela mais-valia, tanto mais amplo o espaço em que podem
operar esses preços intermediarios. (MARX, 2008, p. 52).

Desse raciocínio, segue que se o chamado preço de venda for igual à expressão
monetária do valor, o lucro será igual ao mais-valor. Do contrário, ou seja, se o preço de venda
se situar abaixo do valor, o lucro apropriado pelo capitalista será menor do que o mais-valor.
Essa diferença entre preço e valor fundamenta a teoria dos preços de produção e é chamada por
Marx de “lei fundamental da concorrência”:

Isto explica fenômenos cotidianos da concorrência, como, por exemplo, certos casos
em que se vende mais barato (underselling), rebaixa anormal de preços das
mercadorias em determinadas indústrias etc. A lei fundamental da concorrência
capitalista, até hoje não apreendida pela economia política, a lei que regula a taxa
geral de lucro e os preços de produção determinados por essa taxa, baseia-se,
conforme veremos mais tarde, nessa diferença entre valor da mercadoria e preço de
custo, e na possibilidade daí resultante de vender a mercadoria abaixo do valor, mas
com lucro. (MARX, 2008, p. 52).

A possibilidade de vender abaixo do valor é a possibilidade de distinção entre preço


e valor e, consequentemente, a possibilidade de transferência de valor. A mistificação se
fortalece quando o capitalista percebe que o preço de custo é o “limite inferior do preço de
venda” e, por isso, aparece como o “valor intrínseco da mercadoria”. Desse modo, parece que
“a mais-valia, em vez de realizar-se em dinheiro com a venda da mercadoria que a contém,
origina-se da própria venda” (MARX, 2008, p. 53) – uma falsa ideia com legitimidade social
nos chamados economistas vulgares e outros pensadores. Comentando as proposições de
Proudhon, há uma passagem interessante na qual Marx indica que se a mercadoria (sob a forma
natural de fios) é vendida por um preço de venda abaixo do valor, ao preço de custo, por
exemplo, “o trabalhador realizou, de qualquer modo, trabalho excedente, só que agora para o
comprador do fio, e não para o produtor capitalista” (MARX, 2008, p. 55). Embora não ponha
a questão nesses termos, o que houve é uma transferência de trabalho excedente objetivado em
uma mercadoria: portanto, transferência de mais-valor do produtor para o comprador de fio.
No capítulo seguinte, Marx retoma esse argumento e explicita que a possibilidade
de distinção entre valor e preço equivale à possibilidade de repartição do mais-valor:

[...] ao vender-se uma mercadoria acima ou abaixo do valor, a mais-valia apenas se


reparte de maneira diferente, e essa modificação, essa nova proporção em que diversas
pessoas repartem entre si a mais-valia, em nada altera a natureza e a magnitude dela.
197

No processo efetivo de circulação, além de ocorrerem as transformações observadas


no Livro Segundo, sincronizam-se com elas a concorrência existente, a compra e
venda das mercadorias acima ou abaixo do valor, de modo que a mais-valia que os
capitalistas, individualmente, realizam depende tanto do logro recíproco como da
exploração direta do trabalho. (MARX, 2008, p. 61).

Uma questão que surge é que se a mais-valia total já está dada, a possibilidade de
venda por preço abaixo do valor implica necessariamente uma outra venda por preço acima do
valor, de forma que a soma de valores realizados se iguale ao valor total produzido. Isso sugere
que o que um capitalista perde na venda, outro ganhe, se revelando um jogo de soma zero. Essa
compensação mútua reforça a tese de R. Carcanholo (2013) segundo a qual o valor social é a
média aritmética ponderada dos valores individuais.
A distinção quantitativa entre valor e preço se desfaz quando consideramos a
totalidade, afinal, nesse nível, todo o mais-valor se transforma em lucro: “a mais-valia ou o
lucro consiste justamente no excedente do valor-mercadoria sobre o preço de custo, isto é, no
excedente da totalidade de trabalho contida na mercadoria sobre a soma de trabalho pago nela
contida” (MARX, 2008, p. 60, grifos nossos). O lucro, na cabeça do capitalista individual,
decorre da aplicação de uma taxa de lucro sobre o preço de custo: essa é a norma desde as
formas antediluvianas de capital. É por esse motivo que a taxa de lucro é o “ponto de partida
histórico” (MARX, 2008, p. 61) do lucro, de forma que “a conversão da mais-valia em lucro
deve ser inferida da transformação da taxa de mais-valia em taxa de lucro, e não o contrário”
(MARX, 2008, p. 61). A despeito dessa ordem histórica, o mais-valor e a taxa de mais-valor
são o ponto de partida teórico – nesse sentido, objeto do Livro I – pois compreendem a essência
da produção capitalista: “relativamente, mais-valia e taxa de mais-valia são o invisível, o
essencial a investigar, enquanto a taxa de lucro e, por conseguinte, a mais-valia sob a forma de
lucro transbordam na superfície dos fenômenos” (MARX, 2008, p. 61). Exatamente com este
sentido dissemos que a transferência de valor (ou mais-valor) é a essência do imperialismo, da
forma histórica e social do mercado mundial.
Estamos, portanto, no nível da aparência, onde o lucro parece provir da circulação
(e o imperialismo, igualmente, parece provir do comércio, isto é, da circulação). Essa aparência
“se robustece porque, efetivamente, em meio à concorrência, no mercado real, depende das
condições deste a possibilidade de realizar-se e o grau em que se realiza em dinheiro esse
excedente” (MARX, 2008, p. 61), que, não custa lembrar, já está dado desde a produção. A
observação do todo pela forma como ele se apresenta no nível concreto dos fenômenos joga
uma sombra sobre esses dois processos – o processo imediato de produção e o processo de
198

circulação, os quais efetivamente “confluem constantemente, interpenetram-se” (MARX, 2008,


p. 62) – de forma que parecem não se diferenciar (o mesmo pode ser dito da confusão entre
essência e aparência do imperialismo, a qual comentamos extensamente na Seção Dois). Por
isso que o método abstrativo levado à cabo por Marx é fundamental e necessário para o exame
de cada processo isoladamente.
O processo de circulação pode ser projetado como a vida externa do capital
(MARX, 2008, p. 62): ali o capital deixa para trás sua “vida orgânica interna”, isto é, o processo
imediato de produção, e passa a se confrontar não mais com o trabalho, mas sim com os
compradores da mercadoria, a qual, para chegar até aqui, atravessou as metamorfoses de seu
ciclo. Na prática, argumenta Marx (2008), ao se confrontarem como compradores e vendedores
de mercadorias – e não como capital e trabalho –, “entrecruzam-se os caminhos do tempo de
circulação e do tempo de trabalho e ambos igualmente parecem determinar a mais-valia”
(MARX, 2008, p. 62, grifos nossos). Nesse mundo das aparências, “a própria mais-valia não
resulta mais de apropriar-se o capitalista de tempo de trabalho”, de forma que,
mistificadamente, “o lucro aparece como excedente do preço de venda sobre o valor imanente
das mercadorias” (MARX, 2008, p. 62).
A transformação do mais-valor em lucro, por intermédio da taxa de lucro, é a
constatação de que o modo capitalista de produção provoca, entre os próprios agentes da
produção, uma representação invertida da realidade na qual a verdadeira origem do excedente
nessa forma histórica de sociabilidade – a exploração da força de trabalho – aparece
completamente dissimulada. “Conhecida a taxa e dada a grandeza da mais-valia, a taxa de lucro
exprime apenas aquilo que efetivamente é, outra mensuração da mais-valia [...]. Mas, na
realidade (isto é, no mundo dos fenômenos), dá-se o inverso” (MARX, 2008, p. 65).
Vimos que mais-valor e lucro podem se diferenciar quantitativamente do ponto de
vista do quantum de valor apropriado pelo capitalista individual. Na totalidade, ao contrário, a
identidade quantitativa entre ambas explicita que se trata de duas distintas dimensões, em níveis
distintos de abstração, da mesma realidade:

A taxa de lucro difere quantitativamente da taxa de mais-valia, embora mais-valia e


lucro sejam de fato idênticos e quantitativamente iguais; entretanto, o lucro é a forma
transfigurada da mais-valia, desta dissimulando e apagando a origem e o segredo da
existencia. (MARX, 2008, p. 66, grifos nossos).
199

Esse raciocínio permite a Marx concluir o argumento dizendo que “quanto mais
seguimos o processo de valorização do capital, mais dissimulada fica a relação-capital, e menos
se percebe o segredo de sua estrutura interna” (MARX, 2008, p. 67).
A identidade quantitativa entre mais-valor e lucro no âmbito da totalidade é crucial
para enfrentar a polêmica sobre o assim chamado problema da transformação de valores em
preços de produção, como veremos na próxima subseção. Por agora, podemos registrar que a
edição feita por Engels dos escritos de Marx reunidos nos Manuscritos de 1864-1865 suprimiu
alguns parágrafos do texto original os quais poderiam reforçar a tese de que o problema da
transformação é, na realidade, um não-problema (MOSELEY, 2015, p. 8-16).
Por exemplo, logo no primeiro capítulo, Engels cortou quatro parágrafos que
sucediam o primeiro. Na interpretação de Moseley (2015, p. 8), estes parágrafos argumentam
que o mais-valor total fora produzido nos Livros I e II, isto é, ele já é uma magnitude dada
quando se examina sua distribuição no Livro III. Portanto, como já enfatizamos anteriormente,
“a magnitude do lucro é a mesma do mais-valor; a diferença é que essa magnitude pré-
determinada é vista subjetivamente de uma perspectiva diferente (a perspectiva dos
capitalistas)”.
Outra passagem de Marx não incluída por Engels na versão final do Livro III –
destacada por Moseley (2015, p. 12) – e que é útil aos nossos propósitos é a seguinte:

Deveria finalmente ser assinalado que o que nós apresentamos aqui como movimentos
de partes diferentes do mesmo capital durante um período de tempo poderia muito
bem ser apresentada como diferenças entre distintos capitais em várias áreas de
investimento colocados um ao lado do outro em um sentido espacial e o que foi
apresentado até agora será utilizado nesta última forma no próximo capítulo. (MARX,
2015, p. 143, tradução nossa, grifos do autor). 153

Ou seja, as diferentes partes do capital em sua totalidade podem ser interpretadas


como diferentes capitais produzindo mercadorias um ao lado do outro. Se, na totalidade, mais-
valor e lucro se equivalem, o mesmo vale quando vários capitais concorrem entre si: a
magnitude total do mais-valor se iguala à do lucro e as diferenças entre ambos para cada capital
individualmente considerado devem se compensar, como iremos constatar na próxima
subseção.

153
O que Engels chamou de seções do Livro III, Marx havia chamado de capítulos nos Manuscritos. Então, o
“próximo capítulo” a que Marx se refere nessa passagem é, na realidade, a segunda seção do Livro III (Conversão
do lucro em lucro médio).
200

Antes de avançar, precisamos enfatizar que a transição entre níveis de abstração


executada por Marx na primeira seção do Livro III, especialmente nos dois primeiros capítulos,
tem uma relação direta com a interpretação de imperialismo que estamos sugerindo nesta tese.
A proposição segundo a qual a aparência põe, como fala Marx (2008, p. 63), uma “concepção
invertida, uma percepção transposta” da relação-capital, é válida, também, quando examinamos
um aspecto subordinado à própria relação-capital. O imperialismo, nesse sentido, enquanto um
fato da realidade capitalista que se manifesta no mundo fenomênico sob variadas roupagens,
também gera uma representação dissimulada sobre si próprio quando o ponto de partida para
sua representação é a dimensão aparente da realidade.
Em última instância, o que levantamos no parágrafo anterior vincula-se diretamente
com a justificativa desta tese: tentar reinterpretar o imperialismo através de uma reconstrução
teórica que parta de sua dimensão mais abstrata, de sua essência. Mas a própria essência existe
enquanto um conjunto de complexos que se sobrepõem entre si de acordo com graus variados
de abstração; em outros termos, as dimensões essenciais não se justapõem linearmente uma ao
lado da outra, mas as mais abstratas contêm, em germe, as mais concretas. O mesmo vale para
a aparência. A distinção entre uma e outra não é binária, mas segue a multiplicidade de
determinações concretas que vão crescentemente se avolumando em camadas até formar uma
imagem próxima da realidade sob investigação.
É por isso que partimos, nesta seção, da troca desigual enquanto a forma de
manifestação da transferência de valor no nível mais abstrato possível, posto que não depende
de determinações concretas necessárias para a existência de outras formas de transferência de
valor (remessa de lucros, pagamento de juros, expropriações, etc.). Ou seja, o desenrolar
categorial proposto aqui tenta seguir o movimento do mais abstrato ao mais concreto, da
essência recôndita (transferência de valor) à aparência, a qual se revela em camadas concretas
cada vez mais visíveis: uma mais velada (comércio), outra descoberta (investimentos) e uma
terceira escancarada (expropriações).
Esse movimento é necessário, nos parece, para tentar desvelar a mistificação da
realidade posta pelo escrutínio apenas da aparência. Por não fazer isso, as teorias burguesas não
são capazes de explicar o desenvolvimento desigual e o mecanismo que o gera, isto é, o
imperialismo. A confusão, portanto, para nos atermos ao tema deste seção, é mistificar o
comércio internacional, como o demonstra o “caráter apologético” da “teoria ortodoxa”, isto é,
neoclássica, do comércio (CAPUTO; PIZARRO, 1970, p. 40-41): se desconsiderássemos que
por trás da troca envolvendo os preços de mercado há um processo de transferência de valor,
201

perderíamos de vista que essa troca reforça o desenvolvimento desigual e a polarização do


mercado mundial, e, ademais, não teríamos motivo para julgá-la como uma forma de
manifestação da relação social chamada por nós de imperialismo.
Na rigorosa crítica metodológica às teorias convencionais de comércio exterior,
Caputo e Pizzaro (1970, p. 37-41) mostram que estas teorias carregam um caráter aistórico
decorrente do “desconhecimento das relações sociais como elementos integrados
organicamente à teoria” que as leva “à impossibilidade de compreender o processo de mudança
de uma sociedade a outra e mostra, em última análise, o caráter apologético da teoria”. Também
a assim chamada teoria desenvolvimentista, alicerçada institucionalmente na Cepal a partir de
1945 (RODRÍGUEZ, 1981), objeto de extensa crítica de Caputo e Pizarro (1970)154, não escapa
à armadilha da aparência: é isso o que demonstra a insistência em conferir à deterioração dos
termos de troca papel explicativo primordial em sua teoria das relações internacionais. Até uma
fração do marxismo do pós-Segunda Guerra Mundial se enclausurou nos meandros da aparência
e não distinguiu os preços dos valores em sua teoria da troca desigual (EMMANUEL, 1990)155.
Tentaremos mostrar, no restante da seção, que o ocultamento da realidade presente
nessa mistificação pode ser desvelado recorrendo à teoria de Marx dos preços.

3.4.2 Teoria dos preços de produção e a troca desigual entre ramos

Quando Marx desenvolve sua teoria dos preços de produção, ele supera uma
inconsistência fundamental da teoria do valor de Ricardo: este não conseguiu explicar a
existência de uma taxa geral de lucro a partir do valor-trabalho. Havia uma incoerência interna
que, nos termos de Callinicos (2014, p. 90), “ajuda a entender porque a escola ricardiana se
estagnou e gradualmente se desintegrou após a morte de Marx”. Para resolver essa contradição,
Ricardo tratou a taxa geral de lucro como uma “premissa básica”, um pressuposto decorrente
de sua “noção essencialmente empirista do processo econômico” (CALLINICOS, 2014, p. 91),
o que conferia ao modo capitalista de produção um status aistórico, natural. Dada essa
inconsistência, o reconhecimento de que, na realidade do capitalismo, existe uma taxa geral de
lucro, abriu duas possibilidades: (a) abandonar a teoria do valor trabalho, decisão tomada pelos

154
CAPUTO, O.; PIZARRO, R. Imperialismo, dependencia y relaciones economicas internacionales. Santiago:
Universidad de Chile, 1970. p. 58 et seq.
155
Desenvolvemos essa crítica à teoria da troca desigual na subseção 2.1.3.1 desta tese.
202

marginalistas; ou (b) reformular a teoria do valor trabalho de forma que ela consiga explicar a
existência da taxa média de lucro (CALLINICOS, 2014, p. 93).
Conforme o argumento de Pradella (2015a, p. 104-106), a falha ricardiana em não
explicar a taxa geral de lucro expandiu as inconsistências de sua teoria. Segundo a autora,
Ricardo não percebeu a existência de renda absoluta, isto é, a renda auferida pelo proprietário
da terra por ceder seu direito de uso, por não haver distinguido os valores dos preços de
produção. Marx percebe esse problema na teoria da renda de Ricardo a partir dos cadernos de
Londres (1850-3), embora, naquele tempo, ainda não tivesse condições de superá-lo. Pradella
registra que Marx percebe isso através da crítica de Thomas Hopkins à Ricardo, uma crítica que
retrocedia na compreensão do fenômeno pois “não fundamentava a teoria da renda absoluta nos
marcos da teoria do valor trabalho” (PRADELLA, 2015a, p. 106). Callinicos (2014, p. 94)
demonstra que já nos Manuscritos de 1861-1863 Marx havia superado essa contradição
ricardiana ao trabalhar com o tema da taxa geral de lucros pelo “ângulo da teoria da renda”. A
solução marxiana decorre da demonstração de que as mercadorias não se trocam pelos valores,
mas sim pelo que ele chamava de preços médios, depois preços de custo em 1861-63, e,
finalmente, de preços de produção em O Capital.
A partir do argumento desenvolvido na primeira seção do Livro III, segundo o qual
o lucro é uma “forma transfigurada” do mais-valor (MARX, 2008, p. 51), Marx vai iniciar o
argumento da segunda seção demonstrando que, na base da venda pelos valores, a taxa de lucro
cresce com a composição do capital: capitais com maior participação do capital variável no
capital adiantado total se apropriarão de taxas maiores de lucro que os demais.
Para chegar a essa conclusão, alguns passos são importantes. Pressupõe-se, em
primeiro lugar, que as taxas de mais-valor e a duração da jornada de trabalho são iguais entre
os diversos ramos de produção (MARX, 2008, p. 191). Trata-se de uma abstração para evitar
que variações nessa taxa mascarem o efeito das variações da composição do capital sobre a taxa
de lucro, mas, sobretudo, trata-se de uma abstração real: tendencialmente, esse nivelamento se
efetiva cada vez mais com o próprio “progresso da produção capitalista”:

E, embora os mais variados obstáculos locais dificultem a nivelação dos salários e das
jornadas de trabalho – por conseguinte, da taxa de mais-valia – nos diversos ramos de
produção e mesmo nos diversos investimentos no mesmo ramo de produção, ainda
assim ela se realiza cada vez mais com o progresso da produção capitalista e com a
subordinação de todas as relações econômicas a esse modo de produção. (MARX,
2008, p. 191).
203

O processo real de nivelamento das taxas de mais-valor em torno de uma taxa média
– que Marx quase sempre irá supor como 100% – está umbilicalmente ligado com o processo
de subsunção real do trabalho ao capital na medida em que este equivale à destituição completa
do conteúdo do trabalho humano e à redução tendencial de qualquer tipo de trabalho à condição
de trabalho simples. Esse movimento se articula com o “progresso da produção capitalista” pois
este resulta do processo de concentração dos recursos sociais em torno do capital que se
materializa com a migração de trabalhadores e capitais. Por isso, se determinado ramo de
produção produz uma taxa de mais-valor acima dos demais, a concorrência entre capitais e o
deslocamento de trabalhadores atuam forçando uma redução dela ao longo do tempo (MARX,
2008, p. 231).
Relacionado com esse fato, o “progresso da produção capitalista” tende a integrar
o mercado mundial em torno da produção mercantil. Isto significa que no mercado mundial
também tende a ocorrer uma equalização tendencial das taxas de mais-valor. Que haja
discrepâncias empíricas entre taxas médias nacionais, isto não invalida a tendência a configurar-
se uma taxa média de mais-valor em termos mundiais: é o mesmo raciocínio que Marx (2008,
p. 161-162) indica quando afirma que existem discrepâncias entre taxas de mais-valor entre
setores, mas que “na investigação geral da produção capitalista, devem ser postas de lado como
fortuitas e acessórias”. Por isso, conclui o autor, “nesta pesquisa de ordem geral, suporemos
sempre que as condições reais correspondem ao respectivo conceito, ou, em outras palavras, as
condições reais só estarão presentes na medida em que configuram o tipo geral delas”.
A existência de barreiras à realização plena da equalização não impede de
considerar a própria equalização como um “pressuposto efetivo [real] do modo de produção
capitalista” (MARX, 2008, p. 231). Isto só é possível na medida em que as leis gerais do
capitalismo são desenvolvidas por Marx como leis de tendência. Nesse sentido, a convergência
entre a posição teórica – equalização, nesse caso – e sua efetividade prática “é tanto maior
quanto mais se desenvolve o modo capitalista de produção e quanto mais se eliminam as
contaminações e as misturas com as sobrevivências de condições econômicas antigas” (MARX,
2008, 231). O desenvolvimento real do capitalismo efetiva em intensidade cada vez maior as
leis de tendência, de forma que exatamente por esse motivo defendemos que a equalização das
taxas de mais-valor e de lucro ocorrem no mercado mundial a partir de sua constituição como
204

tal156. Isso demonstra que teoria e história são indissociáveis para Marx: a troca aos preços de
produção “exige determinado nível de desenvolvimento capitalista” (MARX, 2008, p. 233).
A questão central aqui é a seguinte: a possibilidade de equalização (seja da taxa de
mais-valor seja da taxa de lucro) depende da possibilidade de mobilidade espacial da força de
trabalho e do capital. Como já argumentamos157, se existe alguma mobilidade podemos
pressupor a formação tendencial da taxa média de mais-valor ou de lucro. Derivada dessa
questão, há uma passagem de Marx que pode gerar uma confusão sobre o locus geográfico no
qual essas taxas se equalizam:

Não interessam a esta pesquisa as diferenças nas taxas de mais-valia dos diversos
países nem nos correspondentes graus de exploração do trabalho, portanto. O que
pretendemos estudar agora é justamente a maneira como se forma num país uma taxa
geral de lucro. (MARX, 2008, p. 192, grifos nossos).

O condicionante “num país” deve ser entendido como relacionado ao fato de que a
possibilidade de migração de força de trabalho e capital é sensivelmente mais forte no interior
de determinada fronteira nacional. Seguindo o raciocínio que desenvolvemos anteriormente, o
condicionante em questão não indica que a teoria da taxa geral de lucro só é válida intra-nação.
A centralidade não é o espaço nacional em si, mas a possibilidade maior ou menor de migração
internacional. Marx, de fato, não exclui a possibilidade de uma taxa média de mais-valor
mundial:

A primeira coisa a observar é a divergência entre as taxas nacionais de mais-valia,


comparando-se a seguir, na base dessas taxas, a diversidade nas taxas nacionais de
lucro. Quando esta diversidade não decorre da divergência entre as taxas nacionais
mais-valia, é porque é devida a circunstâncias em que a mais-valia, como sucede nesta
pesquisa, se supõe igual, constante por toda parte. (MARX, 2008, p. 192, grifos
nossos).

Apesar de constatar essa divergência entre as taxas nacionais de mais-valor, o autor


indica a possibilidade de equalização das taxas nacionais de lucro (“se supõe igual, constante
por toda parte”) que, como vimos no raciocínio anterior, depende do “progresso da produção
capitalista”. Em outros lugares, Marx se refere à nivelação na sociedade e não no país158, o que

156
Nossa crítica a Mandel (1985) baseou-se em um raciocínio deste tipo. Cf. subseção 2.1.3.1.
157
Cf. Subseção 2.1.3.1 desta tese.
158
No Capítulo IX do Livro III, por exemplo, sempre que Marx (2008) se refere ao capital global, ao capital total,
à totalidade dos capitais, ele se refere em termos da “sociedade” e não do país: “capital global da sociedade” (p.
205

comprova que a noção geográfica aqui tem um papel puramente formal: embora a concorrência
e a acumulação se efetivem sobrepostas a uma malha pré-estabelecida de Estados-nações, a
existência deles não interfere concreta e diretamente na teoria dos preços de produção, pois,
neste nível de abstração, pressupomos a “subordinação de todas as relações econômicas a esse
modo de produção” (MARX, 2008, p. 191).
Quando, no Capítulo X do Livro III, Marx retoma a noção de equalização da taxa
geral de lucro em um país, ele sustenta o argumento que apresentamos nos parágrafos
anteriores. Ele está comentando o fato real de que “os valores das mercadorias precedem os
preços de produção, não só teórica, mas historicamente” (MARX, 2008, p. 233, grifos do autor)
e argumentando que a transformação histórica dos valores em preços de produção pressupõe a
mobilidade espacial dos recursos produtivos. Sendo o lucro médio “calculado sobre a parte do
capital social que entra no processo de uniformização” (MARX, 2008, p. 230), quando, em
épocas passadas, em “fase social primitiva”, os meios de produção não se transferiam (ou se
transferiam com muita dificuldade) entre ramos de produção distintos, as mercadorias eram
vendidas por seus valores pois o processo de uniformização, se houvesse, atingia uma
proporção ínfima da produção total. Nesse caso, os ramos de produção “se comportam
reciprocamente como se fossem países estrangeiros” (MARX, 2008, p. 234, grifos nossos).
Fica explícito que o raciocínio de Marx para supor a formação da taxa geral de lucro
dentro de um país e não entre países se baseia no pressuposto de que não ocorre, ou é muito
incipiente, a concorrência entre capitais de diferentes países. Vale lembrar que para que a
tendência de equalização dos preços de mercado em torno do preço de produção se efetive, é
preciso que a produção total do setor aumente ou diminua, seja com a entrada/saída de novos
capitais ou com aumento/diminuição nas produções dos capitais já instalados. É por isso que,
anteriormente, Marx havia comentado que “também no comércio internacional não importa às
nações a diversidade das taxas de lucro relativas à troca das mercadorias” (MARX, 2008, p.
233): não importa, pois, evidentemente, seu pressuposto é de que as trocas no comércio
internacional se realizam pelos valores em função da inexistente ou incipiente concorrência no
plano internacional. Embora tal pressuposto pudesse ser factível na época de Marx, toda nossa
exposição na seção anterior tentou demonstrar a efetivação prática da mobilidade internacional
de capital.

211), “capital total da sociedade” (p. 216), “composição do capital médio da sociedade” (p. 216), “todo o capital
da sociedade” (p. 218) etc.
206

Considerando, então, a factibilidade de supor a formação tendencial de “mesmo


grau de exploração do trabalho” (MARX, 2008, p. 193) entre ramos e países, segue que:

Se infere naturalmente que as taxas de lucro de ramos de produção diversos, existentes


um ao lado do outro, são diferentes, quando, não se alterando as demais condições,
difere o tempo de rotação ou a relação de valor entre os componentes orgânicos dos
capitais aplicados nesses ramos. O que antes examinávamos como alterações
sucessivas ocorridas com o mesmo capital, examinaremos agora como diferenças
verificadas ao mesmo tempo entre capitais que estão investidos em diferentes ramos
de produção. (MARX, 2008, p. 193).

O objeto de investigação se torna, então, a relação entre diferentes composições


orgânicas e diferentes tempos de rotação com as taxas de lucro. Ademais, ao examinar as
diferenças “ao mesmo tempo”, Marx está retirando do horizonte desse argumento, por
enquanto, variações na produtividade ao longo do tempo (tema que se será examinado logo na
sequência).
Da composição do capital, derivam-se duas relações importantes: a composição
técnica, determinada pela relação entre a quantidade de trabalhadores necessários para produzir
uma determinada mercadoria a partir de um determinado conjunto de meios de produção, e a
composição orgânica. A primeira “é o verdadeiro fundamento de sua composição orgânica”
(MARX, 2008, p. 194) e devemos considera-la “dada para cada nível de desenvolvimento da
produtividade” (MARX, 2008, p. 194), ou seja, a composição técnica representa o nível de
produtividade vigente. Como a necessidade capitalista por força de trabalho e meios de
produção se expressa, em termos de valor, no capital variável e no capital constante, segue que
ramos de produção com mesma composição técnica podem ter composições segundo o valor
diversas. Retomando um conceito já discutido no Capítulo XXIII do Livro I, Marx chama de
composição orgânica do capital a “composição do capital segundo o valor, na medida em que
é determinada pela composição técnica e a reflete” (MARX, 2008, p. 195)159. Assim como
desenvolvemos na subseção 3.3.1, o aspecto técnico-material da produção é importantíssimo
para a possibilidade de transferência de valor que decorre da teoria dos preços de Marx.
O corolário direto dessa definição de composição é que capitais que mobilizam
mais força de trabalho em relação aos meios de produção (menor composição), produzem uma

159
No Livro I, o entendimento de Marx sobre a composição orgânica do capital pode ser resumido como segue:
“Entre ambas [composição técnica e composição segundo o valor] existe uma estreita correlação. Para expressá-
la, chamo a composição de valor do capital, porquanto é determinada pela composição técnica do capital e reflete
suas modificações, de composição orgânica do capital. Onde se fala simplesmente de composição do capital,
entenda-se sempre sua composição orgânica” (MARX, 2013, p. 689).
207

quantidade maior de mais-valor do que os demais e, consequentemente, mais lucro. As taxas


de lucro, portanto, diferem entre capitais com composições técnicas ou orgânicas diferentes.
Isso ocorre, pois, a “substância” do mais-valor e, consequentemente, do lucro, é o trabalho
excedente: “a única fonte de mais-valia é o trabalho vivo” (MARX, 2008, p. 198). Toda a
explicação de Marx, até esse momento do argumento, está na produção do valor. O autor
começa a avançar propositadamente em direção a uma contradição entre a exposição teórica
(lucro proporcional à composição do capital) e o movimento real (lucro proporcional à
magnitude do capital):

Se um capital, com a composição percentual de 90c + 10v, produzisse, com o mesmo


grau de exploração do trabalho, tanta mais-valia ou lucro quanto um capital com a
composição 10c + 90v, seria evidente que a mais-valia e, por conseguinte, o valor em
geral não teriam o trabalho por fonte, e assim se eliminaria todo o fundamento racional
da economia política. (MARX, 2008, p. 198, grifos nossos).

No âmbito do suposto que “as mercadorias se vendem pelos respectivos valores”


(MARX, 2008, p. 199), capitais com menor composição orgânica, 10c + 90v no exemplo
anterior, se apropriarão de lucros maiores. Portanto, demonstra-se que capitais de iguais
magnitudes geram lucros desiguais em face de composições orgânicas diferentes, de forma que
os lucros “em diferentes ramos de produção não são proporcionais às magnitudes dos
correspondentes capitais aí aplicados” (MARX, 2008, p. 199).
Outro exemplo muito interessante exposto por Marx (ibidem, p. 200) refere-se a
uma situação na qual capitais aplicados em dois países distintos produzem mercadorias com
taxas de mais-valor diferentes (100% para o capital europeu e 25% para o capital asiático). Ele
recorre ao expediente enunciado no começo do Capítulo VIII e assume, coerentemente, taxas
de mais-valor distintas entre esses capitais. Nesse pequeno exercício, capitais de países com
menor composição tendem a gerar maior taxa de lucro, mesmo se a taxa de mais-valor for
menor (até algum limite).

Tabela 5 – Diferenças entre taxas de lucro entre capitais com distintas taxas de mais-valor

Capital adiantado 𝒎
m 𝑽 =𝒄+𝒗+𝒎 𝒍′ =
c v C 𝑪
País europeu 84 16 100 16 116 16%
País asiático 16 84 100 21 121 21%
Fonte: MARX, 2008, p. 200
208

Esse exercício – que está entre parênteses nos Manuscritos de 1864-65160,


diferentemente de O Capital onde ele está exposto no correr do texto – é suficiente para mostrar
a possibilidade de interação entre capitais operando em países diferentes. Ainda não é
desenvolvido aqui, posto que o pressuposto é a venda pelo valor, mas o fato de Marx ter
representado no mesmo exemplo capitais de dois países não nos parece ser casualidade,
especialmente relacionando Europa e Ásia.
Marx, nos estudos dos anos 1850, desenvolveu uma vasta produção sobre o
entrelaçamento entre o capital britânico em expansão, a formação do mercado mundial e a
dominação dos mercados asiáticos, especialmente Índia e China (PRADELLA, 2015, p. 155-
202). Miranda (2016)161, em rigorosa interpretação sobre os textos para o New York Daily
Tribune sobre a Índia, afirma que “cabia a Marx analisar em que medida, apesar de destrutivo,
o imperialismo britânico colocava a possibilidade da libertação nacional indiana, pré-requisito
para uma organização social superior”. Ou seja, Marx já delineava uma “noção ontológica de
progresso” a partir da qual “estava preocupado com a análise das possibilidades de uma
revolução que aproximasse a humanidade de um mundo livre da dominação estranhada do
capital e suas consequências, o que inclui, obviamente, a superação da dominação colonial”
(MIRANDA, 2016, p. 123). Em suma, nesses escritos Marx começa a elaborar uma “noção de
revolução permanente em plano genuinamente internacional” (PRADELLA, 2015, p. 122) que,
necessariamente, possuía contrapartida em uma noção de acumulação de capital também em
escala mundial. Por isso, julgamos que a comparação entre capitais europeus e asiáticos no
Capítulo VIII do Livro III é intencional pois integra no mesmo plano analítico a possibilidade
da troca desigual, isto é, a possibilidade da interação comercial em benefício do capital do país
europeu.
Ainda no Capítulo VIII, Marx precisa responder ao efeito do tempo de rotação sobre
as taxas de lucro. Como já sabido desde o Livro II, a diminuição do tempo de rotação do capital
promove o aumento da taxa anual de mais-valor (MARX, 2014, p. 401-402). Mantendo
invariáveis os demais fatores, segue que “as taxas de lucro se comportam em razão inversa aos
tempos de rotação” (MARX, 2008, p. 201).
Para encerrar esse primeiro momento do argumento, vejamos a conclusão de Marx
até o momento:

160
Cf. Marx (2015, p. 258-259).
161
MIRANDA, F. F. Mercado mundial e desenvolvimento desigual: uma contribuição teórica a partir de Marx.
2016. 210 f. Tese (Doutorado em Economia)– Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2016. p. 115 et seq.
209

Para igual taxa de mais-valia, só para capitais de igual composição orgânica –


admitidos tempos de rotação iguais – é válida a lei segundo a qual os lucros se
comportam de acordo com as magnitudes dos capitais, e, assim, capitais de magnitude
igual fornecem, em prazos iguais, lucro de igual magnitude (de acordo com a
tendência geral). A validade do exposto depende da base em que se fundamentou até
agora nosso estudo: a de que as mercadorias são vendidas pelos valores. (MARX,
2008, p. 202-203).

Marx está contrapondo os dois polos da contradição do sistema ricardiano: a


determinação do valor pelo trabalho e a lei empírica segundo a qual capitais de igual magnitude
se apropriam de taxas iguais de lucro. Até aqui, o argumento se concentrou especialmente em
demonstrar que, a partir de sua teoria do valor e na base de que “as mercadorias são vendidas
pelo valor”, o lucro é diretamente proporcional à composição orgânica dos capitais e não à
magnitude dos mesmos. Entretanto, essa derivação é “incompatível com o movimento real”:

Não existe diversidade nas taxas médias de lucro relativas aos diferentes ramos
industriais, nem poderia existir, sem pôr abaixo todo o sistema de produção capitalista.
Parece, portanto, que a teoria do valor é neste ponto incompatível com o movimento
real, com os fenômenos positivos da produção, e que, por isso, se deve renunciar a
compreendê-los. (MARX, 2008, p. 203, grifos nossos).

O que Marx faz nesse momento da exposição é colocar um paradoxo real cuja
solução ainda não havia sido desenvolvida e que levou, como vimos, à desagregação da escola
ricardiana. A solução do enigma deverá ser necessariamente dialética, assim como é típico do
método de exposição em O Capital conforme a instigação representação de Jameson:

Uma das formas de ler O Capital – isto é, de compreender o lugar de cada análise e
proposições individuais na construção do todo – consiste em vê-lo como uma série de
enigmas, mistérios e paradoxos, para os quais uma solução é oferecida no momento
certo. Não é surpresa que esta solução será dialética; ela não dissipará a estranheza do
paradoxo ou antinomia iniciais por meio de um desmascaramento seco e racional, mas
preservará a estranheza do problema dentro de novas estranhezas da solução dialética.
(JAMESON, 2014, p. 35, tradução nossa, grifos nossos).

A chave da solução dialética do enigma é fornecida por Marx no último parágrafo


do Capítulo VIII. Trata-se da consideração de que o preço de custo (c+v) é o mesmo para todo
capital adiantado de igual magnitude, não importando a composição (c/v) de cada um deles:
“essa igualdade de custos constitui a base da concorrência entre os capitais investidos, e a partir
daí se forma o lucro médio” (MARX, 2008, p. 203, grifos nossos). Assim, a concorrência passa
a desempenhar o papel de pivô na resolução do problema.
210

Para isolar corretamente o enigma e resolvê-lo satisfatoriamente, Marx pressupõe,


no Capítulo IX do Livro III, taxas de mais-valor e tempos de rotação constantes entre os
diversos capitais e ausência de capital fixo (MARX, 2008, p. 207). A partir desses pressupostos,
monta um exemplo com cinco capitais de cinco setores diferentes, cada um representando a
composição média de seu ramo, conforme Tabela 6:

Tabela 6 – Formação da taxa média de lucro (sem depreciação do capital fixo)

Taxa de Valor do Taxa de


Capitais Mais-valia
mais-valia produto lucro
I 80c + 20v 100% 20 120 20%
II 70c + 30v 100% 30 130 30%
III 60c + 40v 100% 40 140 40%
IV 85c + 15v 100% 15 115 15%
V 95c + 5v 100% 5 105 5%
Fonte: MARX, 2008, p. 208

Marx (2008, p. 208-209) passa a considerar o capital total investido de 500 como
se fosse “um capital único”, dividido em 390c + 110v, ou seja, com composição percentual de
78c + 22v. Essa é a “composição média” que origina uma “mais-valia média” de 22 por cada
100 de capital investido, uma “taxa média do lucro” de 22% e “seria de 122 o preço de cada
quinta parte do produto global produzido pelos 500”. É possível perceber uma novidade no
discurso do autor: enquanto antes só se referenciava no valor, agora apresenta o preço após ter
derivado a taxa média do lucro.
Mesmo se considerássemos a existência de capital fixo que se desgasta de acordo
com velocidades diferentes para cada capital investido (Tabela 7), pode ser provado, seguindo
o argumento de Marx (2008, p. 209), que “isto não influencia a taxa de lucro”. Como esta é
determinada pela proporção do mais-valor sobre o capital adiantado total, não interfere a
proporção com a qual o capital constante se subdivide em capital fixo e circulante.
211

Tabela 7 – Formação da taxa média de lucro (com depreciação do capital fixo)

Preço
Taxa de Mais- Taxa de Desgaste Valor das
Capitais de
mais-valia valia lucro de c mercadorias
custo
I 80c + 20v 100% 20 20% 50 90 70
II 70c + 30v 100% 30 30% 51 111 81
III 60c + 40v 100% 40 40% 51 131 91
IV 85c + 15v 100% 15 15% 40 70 55
V 95c + 5v 100% 5 5% 10 20 15
Soma 390c + 110v 110
Média 78c + 22v 22 22%
Fonte: MARX, 2008, p. 209

Enquanto um “capital global único” (MARX, 2008, p. 209), continua a mesma


composição e foi produzida a mesma quantidade de mais-valia (110). O valor do capital
constante se transfere para o valor da mercadoria de acordo com seu desgaste, cujos valores
foram acrescentados de forma aleatória. A partir daí, Marx calcula o novo preço de custo
(desgaste do capital constante mais capital variável) e, conforme Tabela 8, o novo preço das
mercadorias (preço de custo mais lucro médio) e o desvio do preço em relação ao valor:

Tabela 8 – Formação da taxa média de lucro e desvio do preço em relação ao valor

Desvio do preço
Mais- Valor das Preço de Preço das Taxa de
Capitais (em relação ao
valia mercadorias custo mercadorias lucro
valor)
I 80c + 20v 20 90 70 92 22% +2
II 70c + 30v 30 111 81 103 22% -8
III 60c + 40v 40 131 91 113 22% -18
IV 85c + 15v 15 70 55 77 22% +7
V 95c + 5v 5 20 15 37 22% +17
Fonte: MARX, 2008, p. 210

Nesse caso, “os desvios de preços reciprocamente se anulam com a repartição


uniforme da mais-valia” (MARX, 2008, p. 210), isto é, de acordo com o tamanho de cada capital
que, no exemplo, é 100: “uma parte das mercadorias se vende acima do valor na mesma medida
em que a outra é vendida abaixo” (MARX, 2008, p. 210). Vender a esses preços é a condição
necessária para que a taxa de lucro seja uniforme (22% do capital adiantado):

Os preços que obtemos, acrescentando a média das diferentes taxas de lucro dos
diferentes ramos aos preços de custo dos diferentes ramos, são os preços de produção.
Requerem a existência da taxa geral de lucro, e esta, por sua vez, supõe que as taxas
212

de lucro consideradas de per si em cada ramo particular de produção já estejam


reduzidas a outras tantas taxas médias. (MARX, 2008, p. 210, grifos do autor).

Em síntese, o movimento teórico se inicia na essência, os valores, e se desenvolve


através do preço de custo, taxa particular de lucro por ramo de produção, formação de uma taxa
geral de lucro “por força da concorrência” e, enfim, preços de produção: “Nos Livros Primeiro
e Segundo só tínhamos de nos ocupar com os valores. Agora, destacou-se como parte do valor
o preço de custo e, além disso, surgiu uma forma transmutada do valor, o preço de produção da
mercadoria” (MARX, 2008, p. 216). O preço de produção está para o valor como o lucro está
para o mais-valor: “na figura transmutada de lucro, a mais-valia encobre sua origem, perde seu
caráter, torna-se irreconhecível” (MARX, 2008, p. 221).
Um corolário direto de sua teoria dos preços de produção é a efetivação da distinção
entre produção e apropriação de valor:

Os capitalistas dos diferentes ramos, ao venderem as mercadorias, recobram os


valores de capital consumidos para produzi-las, mas a mais-valia (ou lucro) que
colhem não é a gerada no próprio ramo com a respectiva produção de mercadorias,
e sim a que cabe a cada parte alíquota do capital global, numa repartição uniforme da
mais-valia (ou lucro) global produzida, em dado espaço de tempo, pelo capital global
da sociedade em todos os ramos. (MARX, 2008, p. 211, grifos nossos).

Finalmente a exposição de Marx conclui, dentro dos marcos de sua teoria do valor,
que os capitalistas dos diferentes ramos (portanto, com diferentes composições do capital) se
apropriam (“colhem”) um mais-valor que não é produzido (“gerado”) no próprio ramo. Com
isso, percebemos que “em regra, lucro e mais-valia, e não apenas as respectivas taxas, são
magnitudes de fato diferentes” (MARX, 2008, p. 221). Há uma repartição do mais-valor global
produzido “pela sociedade em todos os ramos” que o distribuem de acordo com a magnitude
de cada um, como se os capitalistas fossem “simples acionistas de uma sociedade anônima em
que os dividendos se repartem segundo percentagem uniforme” (MARX, 2008, p. 211-212).
Nessa sociedade anônima, representante figurado da “totalidade dos ramos de produção”, a
soma dos preços de todas as mercadorias vendidas é “a expressão monetária da quantidade total
de trabalho contido nas mercadorias I a V, o passado e o novo acrescentado” (MARX, 2008, p.
213), ou seja, é a expressão monetária dos valores de todas as mercadorias. Portanto, na
totalidade, na sociedade, no capitalismo, no mercado mundial, a soma dos preços é igual à soma
dos valores. Marx demonstra, com isso, que o fundamento dos preços na forma capitalista de
organização da sociedade são os valores.
213

A formação da taxa geral de lucro, fundamental para a conversão dos valores em


preços de produção, depende do “peso relativo” de cada ramo de produção, isto é, da “repartição
do capital total da sociedade nesses diferentes ramos, portanto pela magnitude relativa do
capital aplicado em cada ramo particular” (MARX, 2008, p. 216). Sendo assim, a taxa geral de
lucro é a média aritmética ponderada das taxas particulares de lucro. Sobrepondo a totalidade
dos ramos de produção sobre a malha pré-definida de fronteiras nacionais, parece plausível
supor que os países imperialistas tendem a concentrar um volume de capital maior do que os
países dependentes, o que significa que os primeiros devem possuir um peso maior na formação
da taxa mundial de lucro. Dessa forma, a dinâmica da taxa geral de lucro mundial – que afeta
indistintamente a todos, inclusive do ponto de vista do ritmo da acumulação de capital162 – é
determinada mais fortemente pela dinâmica da acumulação nos países imperialistas, o que ajuda
a compreender porque a dependência “seria uma situação em que uma economia estaria
condicionada pelo desenvolvimento e expansão de outra à qual está subordinada”
(CARCANHOLO, M. D., 2013b, p. 193).
O ritmo desigual de desenvolvimento dos setores de produção e, consequentemente,
das economias nacionais, se expressa na existência de desiguais composições orgânicas,
reflexo, por sua vez, do “desenvolvimento específico da produtividade social do trabalho” em
cada ramo e país. Existem composições superiores e inferiores à composição do “capital médio
da sociedade”, definida sempre pela relação entre capital constante e capital variável (MARX,
2008, p. 217), de forma que os primeiros se apropriam de preços acima dos valores, o inverso
ocorrendo com os últimos.
O preço de produção, ou a capacidade dos ramos particulares em se apropriarem do
mais-valor global, se modifica por “variação efetiva no valor das mercadorias [produzidas pelo
ramo], por variação na quantidade global do trabalho necessário para produzi-las”, que só é
possível por “modificação técnica” (MARX, 2008, p. 220). Evidentemente, variações na taxa
geral de lucro afetam os preços de produção, mas não alteram a capacidade relativa de
apropriação de nenhum ramo pois é uma modificação proporcional sobre todos. Há ainda um
efeito mais concreto sobre a capacidade de apropriação dos ramos particulares, que é a variação
nos preços de mercado, tema que desenvolveremos na subseção 3.4.3.
A distinção cada vez mais concreta entre produção e apropriação do valor contribui
para acentuar a mistificação do processo global de produção capitalista. Desaparece para o

162
Marx desenvolve esse ponto no Capítulo XV do Livro III. Cf. Marx (2008, p. 319-347).
214

capitalista individual a “noção do valor”, encobre-se a própria base da determinação do valor”,


pois a quantidade do mais-valor produzida num ramo particular se desvincula da magnitude de
valor a que esse ramo terá direito a se apropriar sob a forma de lucros. A contribuição do
capitalista individual para o lucro médio, nos termos de Marx (2008, p. 222), “é um processo
de que não toma consciência, que não vê, não compreende e efetivamente não lhe interessa”. O
lucro se projeta para o capitalista como uma imagem exteriorizada, aparece-lhe “como algo
extrínseco ao valor encerrado na mercadoria”. Ou seja, o capitalista cria uma imagem falsa
sobre o processo real pois a própria realidade molda, através dos mecanismos reais que
transformam os valores em preços de produção, uma imagem falsa sobre si própria que se
reflete, no plano epistemológico, no que Marx (2008, p. 222) chama de “confusão teórica”: o
mistério aberto em torno da distinção entre mais-valor e lucro “é a melhor prova de que o
capitalista prático não está em condições de ver além dos fenômenos da concorrência que o
empolga; de reconhecer, ultrapassando a aparência, a essência recôndita e a estrutura interna
desse processo” (2008, p. 222-223, grifos nossos).
Mais do que em qualquer outro lugar, Marx faz aqui uma indicação metodológica
da maior relevância: a aparência é a superfície na qual os “fenômenos da concorrência” se
manifestam; é, por isso, a instância da realidade que pode ser vista, observada. Por outro lado,
a ultrapassagem dessa barreira superficial nos conduz à “essência recôndita”, oculta, velada,
obscura, à “estrutura interna” desse determinado aspecto da realidade163.
Constatada a mistificação do processo real, a questão seguinte é: qual sua base real
e concreta? Marx oferece uma resposta satisfatória quando expressa o seguinte:

O capitalista individual, ou o conjunto dos capitalistas em cada ramo particular, com


horizonte limitado, tem razão em acreditar que seu lucro não deriva do trabalho
empregado por ele ou em todo o ramo. Isto é absolutamente exato com referência a
seu lucro médio. Até que ponto esse lucro se deve à exploração global do trabalho por
todo o capital, isto é, por todos os confrades capitalistas, é uma conexão para ele
submergida em total mistério, tanto mais quanto os teóricos da burguesia, os
economistas políticos, até hoje não a desvendaram. (MARX, 2008, p. 224).

Há uma desconexão real e concreta entre a ação individual do capitalista e os


resultados sociais derivados do conjunto das práticas individuais. Do ponto de vista isolado, o
aumento da composição técnica é uma operação “absolutamente certa do ponto de vista

163
Essa é a concepção com a qual estamos trabalhando nesta tese, diferenciando a essência da aparência do
imperialismo a partir do que pode ou não ser visto, diferenciando a estrutura externa da interna do processo real.
Cf. Subseção 1.1.
215

econômico”, diz Marx (2008, p. 224): “se o decréscimo da quantidade de trabalho necessária
para a produção parece não prejudicar o lucro, revelando-se antes, em certas circunstâncias,
fonte direta de aumento do lucro”, o trabalho vivo não é e não pode ser, nesta perspectiva
individual, a fonte do lucro. O que ocorre, neste ponto de vista, é exatamente o oposto e reforça
a mistificação: o progresso técnico aumenta os lucros dentro das fronteiras espaço-temporais
que isolam tal progresso da tendência social, qual seja, da queda da taxa média de lucro. Além
disso, mesmo a queda da taxa média, um resultado social não-teleológico, significa, per se, o
aumento do lucro para os capitalistas individuais inovadores à medida que, para estes, há o
rebaixamento do valor individual de sua mercadoria, assunto da subseção 3.4.3.

3.4.2.1.Sobre o não-problema da transformação

Nesse pequeno aparte à subseção sobre a teoria dos preços de produção de Marx,
esperamos apenas pontuar brevemente as linhas gerais do famoso debate sobre o problema da
transformação e defender o procedimento marxiano.
Dentro de sua exposição sobre a formação da taxa geral de lucro, Marx percebe que
a conversão dos valores em preços de produção faz com que os preços de custo, que são preços
de produção para outros capitalistas, também se desviem dos valores. Portanto, ele diz: “em
virtude dessa significação modificada do preço de custo, é necessário lembrar que é sempre
possível um erro quando, num ramo particular de produção, se iguala o preço de custo da
mercadoria ao valor dos meios de produção consumidos para produzi-la” (MARX, 2008, p.
218). Dessa possibilidade, que o próprio autor enfatizou, surgiu uma série interminável de
objeções ao procedimento adotado por Marx e à própria relevância dos valores na determinação
dos preços de produção164.
Como já assinalamos ao longo dessa seção, para Marx os preços representam a
“expressão monetária” dos valores e só podem ser obtidos a partir destes. O método lógico de
Marx envolve a determinação sequencial das variáveis e não simultânea, como sustenta boa
parte das interpretações ricardianas (CALLINICOS, 2014, p. 130; CARCANHOLO, R., 2013,
p. 63). Nesse sentido, a determinação dos valores precede logicamente a determinação dos

164
Lopes (2012) apresenta as fases históricas do debate sobre a transformação, desde a crítica negativa de Böhm-
Bawerk, passando pelo “Efeito Sraffa” em ressignificar a polêmica e culminando com o debate contemporâneo
centrado na crítica da redundância ao sistema de valores.
216

preços de produção. São duas instâncias em níveis de abstração distintos e, como tal, são
determinadas em momentos distintos da teoria de Marx. Moseley (2016, p. 4) sustenta
corretamente que O Capital está organizado em torno de dois níveis básicos de abstração,
relativos à produção e à distribuição do mais-valor: enquanto no primeiro se produz o mais-
valor total, no segundo ele é distribuído. Ambas determinações estão construídas sobre uma
mesma “estrutura lógica” – e isto é fundamental para perceber o não-problema da
transformação –, qual seja, o circuito do capital monetário (D-M...P...M’-D’): é por isso que as
duas magnitudes – valores e preços – podem ser comensuráveis na totalidade.
Os termos de Moseley resumem adequadamente o verdadeiro procedimento de
Marx:

O ‘problema da transformação’ é usualmente concebido como uma transformação dos


valores individuais em preços de produção individuais. Mas a teoria dos preços de
produção de Marx não é sobre isso; sua teoria é sobre a transformação do preço
agregado em preços de produção individuais e do mais-valor total em suas partes
individuais. (MOSELEY, 2016, p. 6, tradução nossa, grifos do autor).

A comprovação de que o argumento de Marx se desenvolve em dois estágios sobre


a mesma “estrutura lógica” é o fato de que “existe apenas um único conjunto de preços de custo,
não dois, e assim não há nenhuma transformação dos preços de custo que deveria ter sido feita”
(MOSELEY, 2016, p. 152). Um único conjunto de preços de custo, portanto, possui uma única
magnitude (c+v), determinada pelos valores e determinante dos preços de produção. Na
Introdução à edição inglesa dos Manuscritos de 1864-1865, Moseley (2015, p. 15-16) mostra
que Engels omitiu três parágrafos do que conhecemos como Capítulo IX do Livro III onde Marx
apresenta uma concisa representação algébrica da determinação do valor e do preço de
produção a partir de uma única representação dos preços de custos, reforçando sua própria tese.
Para reforçar esse ponto, vejamos o que Marx (2008, p. 471) fala sobre preço e
valor em outro lugar do Livro III: “Preço é o valor da mercadoria (o que se estende ao preço de
mercado, que não difere do valor qualitativamente, mas apenas quantitativamente, isto é, quanto
à magnitude em valor), coisa diversa do valor-de-uso. Preço diferindo qualitativamente do valor
é contradição absurda”165.
Com esse procedimento, fica patente que a totalidade dos preços de produção é
igual à totalidade dos valores expressos em termos monetários, como desenvolvemos na

165
Essa passagem estava em nota de rodapé nos Manuscritos de 1864-1865 (MARX, 2015, p. 459) e foi
incorporada por Engels no corpo do texto do Capítulo XXI (Capital portador de juros) do Livro III de O Capital.
217

subseção anterior. E, ademais, a totalidade dos preços de custo “é igual à totalidade dos preços
de produção dos insumos” (MARX, 2008, p. 15). Nos termos do próprio Marx, a resolução do
suposto problema decorre da consideração da economia capitalista como um todo:

Em nossa pesquisa atual, é desnecessário insistir nesse ponto. Entretanto, continua


correta a afirmativa de que o preço de custo das mercadorias é menor que o valor.
Assim, por mais que o preço de custo da mercadoria se desvie do valor dos
correspondentes meios de produção consumidos, temos aí desacerto pretérito que não
interessa ao capitalista. [...] A afirmativa de ser o preço de custo menor que o valor da
mercadoria se transforma agora praticamente na afirmativa de ser o preço de custo
menor que o de produção. As duas afirmativas são idênticas, quando consideramos
todo o capital da sociedade, pois, para ele, o preço de produção é igual ao valor. [...]
O preço de custo de uma mercadoria refere-se à quantidade do trabalho pago nela
contido; o valor, à totalidade do trabalho nela contido, pago e não-pago; o preço de
produção, à soma do trabalho pago, acrescida de determinada quantidade de trabalho
não-pago, segundo cada ramo de produção e independente dele. (MARX, 2008, p.
218-219, grifos nossos).

Ou seja, Marx recorre à totalidade para indicar que o preço de custo será menor que
o valor ou que o preço de produção, o que não inviabiliza, de forma alguma, seu sistema teórico
desenvolvido até aqui.

3.4.3 Concorrência e a busca pelo superlucro no mercado mundial

Vimos os fundamentos da distinção entre valor individual e valor social em um


nível mais elevado de abstração (3.3) e mostramos que a formação da taxa média de lucro
converte o que chamávamos de valores sociais nos preços de produção (3.4.1 e 3.4.2),
aproximando o argumento do nível mais concreto. Para completar a exposição, precisamos
ainda discutir a distinção entre preços de produção e preços de mercado. À medida que
desenvolvermos essa questão, tentaremos organizar numa mesma estrutura analítica as várias
possibilidades de troca desigual decorrentes desse processo. Portanto, concluiremos o
argumento desta seção mostrando que chamamos de troca desigual qualquer processo no qual
ocorre transferência internacional de valor através do comércio, da circulação de mercadorias.
Ao contrário de Mandel (1985) 166, por exemplo, que coloca lado-a-lado, no mesmo nível, a

166
Cf. Subseção 2.1.3.1 desta tese.
218

troca desigual e a obtenção de superlucros, sustentaremos que estes integram os mecanismos


daquela.
Para defender esse argumento, nos apoiaremos essencialmente no Capítulo X do
Livro III de O Capital e na interpretação de Shaikh (2016, p. 259-272). Marx (2008, p. 230)
põe a seguinte questão tida como “propriamente difícil”: “como se opera essa uniformização
dos lucros na taxa geral de lucro, uma vez que, evidentemente, é resultado, e não pode ser ponto
de partida?”. Ora, a taxa geral de lucro é formada após e como consequência da concorrência,
mas, por outro lado, é utilizada pelos vários capitais na formação dos preços que eles lançam
no mercado, os preços de produção. Sabemos que os capitais “exigem, na proporção da
respectiva magnitude, [...] participação igual na totalidade da mais-valia” (MARX, 2008, p.
231-232), o que resulta em que essa exigência deve ser satisfeita pelo preço global, o somatório
do preço de produção das mercadorias particulares produzidas por cada capital. Ou seja, a
apropriação do lucro médio é uma exigência real, não uma suposição meramente
teórica/analítica, e que se efetiva na troca pelos preços de produção.
Por outro lado, sendo a produção capitalista de tipo descoordenada, anárquica,
existem contingências da troca que fazem com que as mercadorias se troquem efetivamente
pelos preços de mercado, e não mais pelos preços de produção. Nesse caso, abre-se a
possibilidade de determinados capitais ou conjuntos de capitais se apropriarem de
“superlucros”, nome dado por Marx (2008, p. 235) às magnitudes de lucro efetivamente
apropriadas de tal forma que sejam maiores do que o lucro médio.
Os superlucros remetem diretamente, mas não exclusivamente, à efetivação do
mais-valor extra que discutimos na subseção 3.3. A primeira vez que Marx (2008, p. 234-235,
grifos do autor) fala em “distinguir um valor de mercado [...] do valor individual das diversas
mercadorias produzidas pelos diferentes produtores” é nesse contexto. Seguindo a terminologia
do autor, valor de mercado é o valor médio dentro de determinado ramo, ou valor individual
das mercadorias produzidas sob condições médias, o qual “constitui por sua vez o centro das
flutuações dos preços de mercado”. Nesse sentido, como a média dos valores individuais, o
valor de mercado é o que chamávamos anteriormente de valor social. Entretanto, “em
conjunturas excepcionais”, o valor de mercado pode ser regulado pelas mercadorias produzidas
nas piores ou nas melhores condições, ou seja, por aquelas mercadorias que representam os
maiores ou menores valores individuais dentro do conjunto de mercadorias de um determinado
ramo. A questão, agora, é a relação entre a massa total de mercadorias produzidas e ofertadas e
a necessidade social por elas:
219

Quando a oferta das mercadorias ao valor médio, isto é, ao valor da massa situada
entre aqueles dois extremos, satisfaz a procura corrente, realizam as mercadorias, de
valor individual abaixo do valor de mercado, mais-valia extra ou superlucro,
enquanto as de valor individual acima do valor de mercado não podem realizar parte
da mais-valia nelas contida. (MARX, 2008, p. 235).

Nessa primeira condição, qual seja, de que a oferta total ao valor médio, social,
“satisfaz a procura corrente”, as mercadorias serão vendidas pelo valor de mercado, ou seja, o
valor de mercado é igual ao preço de mercado, comum a todas as mercadorias do ramo
independentemente das condições técnicas de produção. O superlucro, então, nesse caso, é a
expressão monetária do mais-valor extra.
O valor de mercado pode ser determinado fora do valor médio “em conjunturas
excepcionais”, como Marx afirmou anteriormente, caso a necessidade social seja maior ou
menor que a quantidade de mercadorias ofertadas ao valor médio. Supondo um nível de procura
elevado, suficiente para consumir todas as mercadorias ofertadas ao valor das mercadorias
produzidas nas piores condições, estas podem determinar o valor de mercado. Ou seja, quando
a procura está acima do “nível ordinário”, os capitalistas podem vender as mercadorias acima
do valor médio e, portanto, estabelecer novo valor de mercado. Por outro lado, se, ao valor
médio, a procura é insuficiente dado o conjunto de mercadorias ofertadas, o valor de mercado
pode ser determinado pelos capitais com melhores condições, ficando abaixo do valor médio.
Dentro de determinado ramo de produção, a concorrência equaliza valores e preços
de mercado “a partir dos valores individuais” (MARX, 2008, p. 237). A concorrência faz com
que todos os produtores de uma mercadoria (com distintos valores individuais) se defrontem
com os mesmos valores e preços de mercado. Ou seja, só existe um valor de mercado e um
preço de mercado em cada ramo, o que é evidente, pois se trata de apenas um valor de uso. Por
outro lado, “é a concorrência dos capitais nos diferentes ramos que dá origem ao preço de
produção que uniformiza neles as taxas de lucros” (MARX, 2008, p. 237), ou seja, a taxa média
de lucro é determinada idealmente antes do preço de produção, mas se efetiva nas trocas através
do preço de produção. Como a concorrência e a produção de mercadorias são processos
temporalmente contínuos, intermináveis e inseparáveis, a constituição ideal do lucro médio
converge tendencialmente para seu efetivo valor, no sentido de realmente existente. Este
processo só ocorre “depois que o modo de produção capitalista alcança desenvolvimento
superior ao exigido para haver a primeira” equalização, isto é, relativa à equalização de valores
e preços de mercado dentro do ramo (MARX, 2008, p. 237).
220

No Capítulo XXII do Livro III, quando diferencia as taxas de lucro e de juro, Marx
explica com mais detalhes o papel da concorrência no nivelamento da taxa média de lucro:

A concorrência entre os capitalistas – que já é esse movimento [de nivelamento das


taxas particulares de lucro em torno da taxa geral] – consiste em retirar gradualmente
capital dos ramos onde o lucro está por algum tempo abaixo da média e em fornecer
gradualmente capital para os ramos onde o lucro está acima dela; ou também em
repartir progressivamente capital adicional entre esses ramos, em diferentes
proporções. Variam sem cessar a entrada de capital nesses diversos ramos e a saída
deles. (MARX, 2008, p. 486).

A entrada e saída de capitais nos diversos ramos, responsável pela equalização das
taxas de lucro, não significa apenas a realização de investimentos novos, mas, também, a
ampliação ou redução da produção nos capitais já instalados (MARX, 2008, p. 487).
Portanto, a transformação dos valores em preços de produção é um processo em
dois estágios: (a) a concorrência dentro do ramo equaliza os diversos valores individuais em
um valor de mercado e um preço de mercado levando, necessariamente, a distintas taxas de
lucro determinadas pelas distintas produtividades; e (b) a concorrência entre ramos equaliza as
taxas individuais de lucro dos capitais que operam em condições reprodutíveis, como veremos
adiante, em uma taxa média, base para a formação dos preços de produção que se transformam
no “centro em torno do qual giram os preços quotidianos de mercado, que nele tendem a nivelar-
se dentro de determinados períodos” (MARX, 2008, p. 236).
Importante ter em vista que a equalização dos valores de mercado dentro do ramo
ou das taxas de lucro entre os ramos é um processo “turbulento”, na linguagem de Shaikh (2016,
p. 268-269, tradução nossa), que ocorre ao longo do tempo167. Cada capital opera sob o
imperativo do lucro, “colidindo com outros que tentam fazer o mesmo, algumas vezes obtendo
sucesso, outras vezes apenas sobrevivendo e às vezes falhando completamente. Esta é a
concorrência real, antagônica por natureza e turbulenta em sua operação” (SHAIKH, 2016, p.
259, grifos do autor).
No nível mais concreto do mundo fenomênico, os valores individuais são
associados, por Marx (2008, p. 249), em nota de rodapé do Capítulo X do Livro III, com custos
de produção168. Por isso, os capitais com composição superior obtêm necessariamente uma taxa

167
A interpretação de Shaikh (2016) é muito tributária, embora o autor não cite, da exposição de Marx na Seção
VI do Livro III de O Capital, sobre a renda da terra.
168
Na nota de rodapé 31 deste capítulo de O Capital, no contexto da crítica à tautologia da oferta e demanda como
determinantes do valor, Marx (2008, p. 249, grifos nossos) comenta um “disparate” de Malthus e afirma
221

de lucro maior do que seus concorrentes do mesmo ramo de produção, posto que todos
encontram o mesmo valor e o mesmo preço de mercado. Shaikh resume graficamente essa
questão:

Figura 4: Efeitos da concorrência dentro do ramo de produção sobre a taxa de lucro

Fonte: SHAIKH, 2016, p. 268

No exemplo do autor, três setores diferentes (A, B e C) possuem quantidades


distintas de capitais operantes (m, n e k) e, dentro de cada setor, cada capital individual se
apropria de uma taxa individual de lucro maior ou menor que a taxa média do setor (𝑟̅𝐴 , 𝑟̅𝐵 e
𝑟̅𝐶 ). A concorrência dentro de cada setor – a busca pelo mais-valor extra – conduz à divergência
entre as taxas de lucro individuais. Não há uma necessidade teórica para que as taxas médias
sejam iguais entre os setores (SHAIKH, 2016, p. 268).
A equalização das taxas de lucro entre os setores decorre da possibilidade de novos
investimentos em cada um deles. Nos termos de Marx que desenvolvemos anteriormente, a
equalização pressupõe que os setores estejam abertos à concorrência, o que significa, em termos
concretos, a possibilidade de mobilidade de capitais e força de trabalho entre ramos e o
desenvolvimento do sistema de crédito (MARX, 2008, p. 254). Duas características que,

peremptoriamente que a mudança no valor está associada com mudança nos custos: “justamente a mudança nos
custos de produção, no valor, portanto, provocara alteração na procura”.
222

certamente, existem no mercado mundial. Pressuposta, então, a mobilidade entre ramos, segue
que a existência de diferencial de taxa de lucro entre capitais operando sob “condições de
produção reproduzíveis” em setores diferentes conduz ao aumento dos investimentos
produtivos nos setores mais lucrativos. “A reprodutibilidade é importante porque novos
investimentos devem ser capazes de replicar as condições desses capitais particulares. A taxa
de lucro desses capitais reguladores será o foco do novo investimento” (SHAIKH, 2016, p.
265).
Supondo, por exemplo, que a taxa de lucro dos “capitais reguladores” do setor A
(𝑟𝐴∗ ), isto é, aqueles com condições de produção reproduzíveis, é maior do que a taxa de lucro
dos “capitais reguladores” do setor B (𝑟𝐵∗ ), deve ocorrer um aumento dos investimentos no setor
A maior do que o crescimento da necessidade social pelo valor de uso produzido nesse setor.
Esse movimento conduzirá, ao longo do tempo e turbulentamente, à diminuição do preço de
mercado em A e, consequentemente, da taxa de lucro auferida por todos os capitais desse setor.
Essa diminuição da taxa de lucro em A afeta, inclusive, os “capitais reguladores”, de forma que
ocorre uma equalização geral – em termos tendenciais – entre as taxas de lucro dos “capitais
reguladores” em todos os setores (SHAIKH, 2016)169.
A ênfase de Shaikh nos “capitais reguladores” é importante e, nos parece, coerente
com a teoria de Marx, permitindo visualizar a relação entre a formação da taxa geral de lucro e
a renda da terra170, por exemplo. É possível que os “capitais reguladores” estejam nas condições
médias, superiores ou inferiores de cada ramo. Depende do que o autor chama de “estrutura de
custos”, que podem variar basicamente em três formas. Na primeira estrutura, os “capitais
reguladores” são aqueles com custo de produção médio e, portanto, taxa média de lucro dentro
do ramo. É o caso onde não há uma determinação estrutural que force novos adiantamentos de
capitais a ocupar as piores ou as melhores condições de produção. Nesse caso há uma
distribuição homogênea dos custos de produção ao redor da média, “dependendo de fatores
mais concretos, desde a idade das máquinas até a sorte ou habilidade dos trabalhadores e
gerentes” (SHAIKH, 2016, p. 265), como está representado na Figura 5.

169
SHAIKH, A. Capitalism: competition, conflict, crises. Nova York: Oxford University Press, 2016. p. 265 et
seq.
170
A próxima seção desta tese será dedicada ao estudo do imperialismo pela via dos investimentos, incluindo,
nesse bojo, a questão da renda da terra.
223

Figura 5: Estrutura de custo no setor A (condições de produção homogêneas)

Fonte: SHAIKH, 2016, p. 266

No eixo vertical estão representados os custos unitários e no eixo horizontal o


produto total do setor, de forma que a linha mais grossa dentro da distribuição dos custos
representa o custo médio e a linha pontilhada o caminho de expansão do setor: como a
distribuição de custos é homogênea ao redor da média, espera-se que novos investimentos
representem o custo médio. Os “capitais regulares”, portanto, possuem condições médias de
produção e sua taxa de lucro é usada como referência para comparação com outros setores.
A segunda estrutura de custo apontada por Shaikh (2016) é aquela na qual as
condições reproduzíveis representam as piores condições de produção (). É o caso, por exemplo,
da mineração ou da agricultura, nas quais se espera que as melhores minas ou terras já estejam
ocupadas e, com isso, a única alternativa possível para novos investimentos seria ocupar as
piores minas ou terras disponíveis, que oferecem, evidentemente, taxas menores de lucro
comparado aos capitais já em operação. Nesse caso, o preço de produção das piores locações,
“definido por seus custos e uma taxa normal de lucro funcionará como o centro de gravidade
para o preço de mercado das mercadorias agrícolas” ou minerais, o que significa que as
melhores terras e minas “receberão lucro extra [ou superlucro, nos termos que definimos
anteriormente] para seus produtores simplesmente por causa de suas condições não
reproduzíveis” (SHAIKH, 2016, p. 266, inserção nossa).
224

Figura 6: Estrutura de custo no setor B (agricultura ou mineração)

Fonte: SHAIKH, 2016, p. 267

As áreas B1 e B2 representam condições de produção que já estão plenamente


utilizadas, de forma que novos investimentos devem ocupar a área B3 onde ainda há locação
disponível. Esta área, portanto, representa as condições reproduzíveis nesta estrutura de custo
de forma que os “capitais reguladores” se apropriam das menores taxas de lucro dentro do ramo.
Finalmente, a terceira estrutura de custo representa um setor no qual novos
investimentos utilizam tecnologia superior e, portanto, produzem valores individuais menores
e se apropriam das maiores taxas de lucro dentro do ramo (Figura 7). Os velhos capitais ainda
em operação possuem os maiores custos de produção. “Apesar de não haver limite técnico à
reprodução dos tipos mais antigos de capital, eles não são competitivos. Logo, capitais do tipo
C3 representam as condições reguladoras da produção” (SHAIKH, 2016, p. 267).
225

Figura 7 – Estrutura de custo no setor C (novas tecnologias versus antigas)

Fonte: SHAIKH, 2016, p. 267

Portanto, como a concorrência entre ramos força a equalização das taxas de lucro
dos “capitais regulares”, podemos concluir que aproximadamente metade dos capitais do setor
A se apropriarão de superlucro, o mesmo ocorrendo com a maioria dos capitais do setor B
(aqueles localizados nas minas e terras mais férteis, produtivas) e com a minoria dos capitais
do setor C (apenas aqueles que dentro da área C3 da Figura 7 estão abaixo da linha mais grossa).
Graficamente essa equalização pode ser apresentada como segue:

Figura 8 – Efeitos da concorrência entre ramos de produção sobre as taxas de lucro

Fonte: SHAIKH, 2016, p. 269


226

Uma implicação do argumento do argumento de Shaikh é que as taxas médias de


lucro em cada ramo não precisam necessariamente convergir entre si. O que ocorre ao longo do
tempo com a entrada de novos capitais em cada ramo é, supondo que não há progresso técnico,
aumentar a distância entre a taxa média e a taxa dos “capitais reguladores” no ramo B e, em
sentido oposto, encurtar essa distância no ramo C. Por outro lado, a introdução de progresso
técnico, mantendo constante o número de capitais em cada ramo, provoca o efeito inverso. Os
ramos B e C no modelo de Shaikh são os ramos nos quais Marx assumiu que os valores de
mercado são regulados pelas piores e pelas melhores condições respectivamente.
Poderíamos supor, como o faz Shaikh (2016, p. 269-270), que a “localização
nacional dos capitais” seja representada como na Figura 9:

Figura 9 – Concorrência e diversidade nas taxas de lucro entre nações

Fonte: SHAIKH, 2016, p. 270

A existência de diferentes taxas individuais de lucro faz com que as taxas médias
nacionais de lucro também sejam diferentes e, mesmo assim, com que ocorra a equalização
tendencial entre as taxas de lucro reguladoras dos ramos distintos. Na imagem hipotética da
Figura 9, os capitais do país I se apropriam de superlucro no mercado mundial através da troca
desigual dentro e entre ramos. Em outros termos, os capitais do ramo A localizados no país I,
227

por exemplo, se apropriam do lucro médio mais o lucro extraordinário decorrente de sua
condição de produção superior dentro do próprio ramo.
Em síntese, acreditamos que a abordagem de Shaikh proporciona uma
representação gráfica auxiliar à argumentação de Marx no Capítulo X do Livro III. As próprias
conclusões de Marx se encaixam à interpretação desenvolvida aqui: “A análise precedente
revelou como o valor de mercado (e o que se disse a respeito estende-se, com as restrições
necessárias, ao preço de produção) compreende um superlucro para os que produzem nas
melhores condições em cada ramo particular de produção” (MARX, 2008, p. 257).
Antes de encerrar a seção, vejamos onde estamos em relação ao argumento geral da
tese. Demonstramos, aqui, que o comércio internacional gera um processo de transferência de
valor, ou mais-valor, como queira, entre capitais industriais com diferentes produtividades cujos
processos produtivos transcorram em territórios nacionais distintos. Sendo as mercadorias
compradas e vendidas pelos preços de mercado, as trocas mercantis são, aparentemente, justas.
Entretanto, é possível visualizar uma relação imperialista através do comércio internacional se
utilizamos o procedimento abstrativo capaz de revelar a existência de uma determinação
essencial aos preços: os valores. A partir daí foi possível seguir Marx na incorporação de
determinações mais concretas que fazem com que valores individuais se convertam em valores
sociais, estes em preços de produção e, finalmente, em preços de mercado. Em função disso,
foi possível dizer que esta forma de manifestação do imperialismo ainda é mistificada posto
que nas relações de troca no mercado mundial o comércio é aparentemente neutro. Embora seja
uma aparência ainda velada do imperialismo, a troca desigual é o primeiro conduto – no sentido
de ser o mais abstrato – a instalar a transferência de valor no mercado mundial.
Como veremos nas próximas seções, a troca desigual enseja as outras duas grandes
formas de manifestação do imperialismo: os investimentos e as expropriações. Por um lado, a
formação dos preços de produção – pressuposto para a distinção entre produção e apropriação
de valor pelo comércio – impõe que as frações do capital social total adiantadas neste ou naquele
setor/país não são instâncias rígidas, mas fluidas. Essa fluidez, independentemente se motivada
por novos investimentos ou por ampliação da produção em investimentos já realizados, é o que
garante a mobilidade dos preços de mercado de tal forma que as taxas individuais convirjam
tendencialmente para uma taxa geral de lucro. Em um sentido mais concreto, a fluidez de valor
de capital de um setor/país a outro se revela no fracionamento do capital industrial em capitais
produtivos, capitais comerciais, capitais a juros. O exame das formas de imperialismo que se
derivam desta fluidez, objeto da Seção 4 desta tese, são indissociáveis, portanto, da própria
228

troca desigual. Neste nível de abstração, o imperialismo se manifesta descoberto: é possível


visualizar, dentro das próprias relações mercantis, processos de transferência de valor (remessas
de lucro, pagamento de juros, royalties, etc.).
Por outro lado, é impossível tratar do imperialismo via comércio ou investimento
sem nos referirmos às expropriações. Em um sentido ainda mais concreto do que
desenvolvemos no parágrafo anterior, qualquer uma dessas formas tipicamente econômicas se
relaciona com o espraiamento das relações de produção capitalistas. Para além das trocas
desiguais entre capitais industriais ou do fracionamento do capital industrial total, as
expropriações, tema da Seção 5, demandam concretamente a violência estatal.
229

4 IMPERIALISMO ATRAVÉS DOS INVESTIMENTOS: TRANSFERÊNCIA DE


VALOR PELA FRAGMENTAÇÃO DO MAIS-VALOR EM LUCRO, JURO E
RENDA

A análise precedente revelou como e em quais circunstâncias o comércio


internacional pode ser uma forma de manifestação do imperialismo. Agora deslocaremos nosso
foco para um segundo e tradicional aspecto presente nas abordagens marxistas sobre o
imperialismo: a assim chamada exportação de capitais. Questão central nas teorias clássicas,
como claramente posto em O imperialismo de Lenin, esse aspecto também se evidencia, em
diferentes roupagens, na teoria marxista da dependência e nas teorias contemporâneas do
imperialismo.
A seção está organizada em cinco subseções. Na primeira, faremos breves
considerações sobre o sentido da categoria “exportação de capitais” através de um mapeamento
das formas empíricas com as quais ela pode se realizar. Consideraremos, na subseção 4.2, como
a autonomização do capital comercial põe uma nova possibilidade de imperialismo através da
apropriação de lucro comercial. Na sequência, subseção 4.3, mostraremos como o juro
apropriado pelo proprietário de capital-dinheiro é resultado de uma transferência oriunda dos
capitais industrial e comercial. Neste ínterim, tentaremos demonstrar que a divisão qualitativa
do lucro em juro e lucro de empresário fornece a forma adequada para a compreensão das
repatriações de lucros. Como uma potencialização do capital portador de juros, discutiremos na
subseção 4.4 como o capital fictício engendra a possibilidade de imperialismo através da
apropriação de lucros fictícios. Por fim, resgataremos a teoria da renda fundiária de Marx na
subseção 4.5 para mostrar como o poder de monopólio põe a possibilidade de apropriação de
valores sob a forma de renda.

4.1 O QUE É “EXPORTAÇÃO DE CAPITAIS”?

Antes de qualquer desenvolvimento da questão, precisamos especificar com


precisão o sentido da categoria exportação de capitais tal como atribuído pelas teorias do
imperialismo. Se ao longo de sua reprodução o capital se apresenta simultânea e circularmente
como capital-dinheiro, capital produtivo e capital-mercadoria, a expressão exportação de
230

capitais pode referir-se a qualquer uma dessas três formas de capital apresentadas por Marx no
Livro II de O Capital. Neste sentido, quando falávamos em comércio internacional na seção
anterior, nos referíamos à exportação/importação de capitais sob a forma capitais-mercadoria.
Não é este, entretanto, o sentido atribuído ao termo pelas interpretações marxistas
do imperialismo. Quando Lenin, por exemplo, referia-se à exportação de capitais, utilizava a
categoria apresentada por Hilferding (1985, p. 296, grifos nossos), que a especificou da seguinte
maneira: “entendemos por exportação de capital a exportação de valor destinado a gerar mais-
valia no exterior”. Para que isso seja possível, seguindo a tese do austríaco, o capital que
“emigra ao estrangeiro” deve fazê-lo como “capital produtor de lucro ou de juros”171. Essa
especificação conceitual evidencia que as formas de capital sendo consideradas na categoria em
análise são o capital produtivo ou comercial, capazes de gerar lucro no exterior (lucro do
empresário e lucro comercial), e o capital-dinheiro, que permite ao seu proprietário gerar juros.
Doravante, sempre que tratarmos de exportação de capital estaremos nos referindo a este
sentido atribuído à categoria.
A exportação de capital põe um novo modo de apropriação de mais-valor produzido
nos países que recebem esse capital. Essa forma de imperialismo, contudo, articula produção e
apropriação de valor no mercado mundial de tal forma que parece possuir um caráter
abertamente contraditório. O fluxo de valor das economias dependentes para os centros
imperialistas é visível a olho nu – não mais encoberto, oculto, invisível, como ocorria com o
comércio exterior. Basta abrir um balanço internacional de pagamentos e constatar a existência
da conta “rendas de investimentos”, dentro da qual se inclui os montantes de lucros e dividendos
remetidos ao exterior e o pagamento de juros. Para que o capital estrangeiro se aproprie dessa
renda, ele buscou uma aplicação rentável para seu capital, seja na forma de investimento
estrangeiro direto, investimento em carteira, compra de títulos de renda fixa, derivativos etc.
Diferentemente do que ocorria com o comércio exterior, no qual a transferência de
valor era imediata, no ato de compra ou venda do capital-mercadoria, o imperialismo pela via
dos investimentos depende de um certo intervalo de tempo para que o capital cumpra sua função
imperialista. Em outras palavras, o valor investido numa determinada economia precisa se
incorporar em algum valor de uso (uma fábrica, uma ação, um título público etc.) durante

171
Cf. Campos e Sabadini (2014) para uma análise específica sobre a conexão entre capital financeiro e exportação
de capitais na obra de Hilferding. Uma das contribuições dos autores é cotejar a tradução brasileira de O Capital
financeiro com as versões inglesa e francesa e observar a existência de alguns erros na versão brasileira que levam
a “inconsistências teóricas” derivadas da tradução e não da redação de Hilferding (1985, p. 5). Por exemplo, na
passagem citada, o correto seria “capital portador de lucro ou de juros”, mas foi traduzido como “capital produtor
de lucro ou de juros”.
231

determinado tempo para que consiga se retirar carregando consigo parte do mais-valor
produzido. Tomemos, por exemplo, o caso das ações. O capitalista estrangeiro que compra uma
ação numa determinada bolsa de valores, por mais especulativa que seja sua intenção, só
consegue realizar lucro, independentemente da magnitude, se vender a ação decorrido algum
hiato temporal (mesmo que seja milésimos de segundo, no caso de negociações feitas por robôs
computadorizados) e assim se apropriar de lucro fictício, do qual trataremos adiante172, ou
esperar um tempo maior e se apropriar de dividendos173.
A existência desse hiato temporal reflete o fato de que os investimentos são uma
manifestação mais concreta de imperialismo do que o comércio exterior. Os investimentos
precisam de mais mediações para existirem enquanto imperialismo do que o comércio; por isso
são mais visíveis enquanto tal no cotidiano do mercado mundial. Se apresentam de forma mais
imediata na aparência, refletindo mais nitidamente o que de fato são na essência, transferência
de valor. Ao mesmo tempo, por isso alegamos um caráter contraditório para essa forma de
imperialismo, essa aparência mistifica o fato de que a essência do imperialismo é um motor
para o desenvolvimento desigual e combinado: dialeticamente, os investimentos estrangeiros
possuem um caráter progressivo à medida que contribuem para um tipo de desenvolvimento
capitalista nos países receptores174.
Desde a teoria clássica este problema precisou ser enfrentado. Por um lado, os
capitais imperialistas que se dirigiam aos países dependentes se enclausuravam, via de regra,
nos ramos de produção mais rentáveis e, com isso, se aliavam às “velhas oligarquias”
(BAMBIRRA, 1977, p. 18-19). Embora o investimento estrangeiro pudesse desenvolver as
forças produtivas nestes setores, ensejar um processo de urbanização e de proletarização da
massa de trabalhadores, ele não era capaz per se, como a análise post-festum consegue
demonstrar, de superar a condição de atraso estrutural dessas sociedades, que se manifesta,
dentre outras coisas, na marginalização social e na superexploração da força de trabalho175. Isso
significa que as economias que se integraram à divisão internacional do trabalho de forma
subordinada atravessaram um processo de desenvolvimento sui generis, acoplado ao que

172
Cf. subseção 4.4.
173
Cf. subseção 4.3.
174
Como já enfatizamos em outro lugar (subseção 1.2), ao tratar de desenvolvimento nos referimos ao “recuo das
barreiras naturais” (Cf. LUKÁCS, 2012b, p. 289 e p. 319-320), ou seja, à explicitação cada vez maior das
determinações puramente sociais.
175
Cf. Marini (2005) para uma explicação teórica da necessidade da superexploração da força de trabalho em
economias dependentes; e Duarte (2015) para um exame comparado desta categoria com a marginalidade social.
232

ocorria nos países imperialistas e que “se impõe desde fora pela expansão comercial e financeira
do capital estrangeiro” (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 159-160, tradução nossa).
A exportação de capitais, portanto, intensifica um desenvolvimento desigual e
combinado. No Esbozo inicial de las tesis sobre los problemas nacional y colonial preparado
para o II Congresso da Internacional Comunista em 1920, Lenin (1979, p. 441) o reconhece ao
falar em “espoliação financeira” dos países dependentes pelas potências imperialistas e ao
assumir que a situação de dependência se reproduz no tempo: “en la situación internacional
presente, no hay para las naciones dependientes y débiles otra salvación que la unión de
repúblicas soviéticas”.
A despeito do fato de que a exportação de capital assuma uma centralidade analítica
para o marxismo no começo do século XX, o próprio Marx já havia reconhecido seu papel no
espraiamento contraditório das relações de produção capitalistas. Nesse sentido, concordamos
com a tese de P. G. Paula (2014, p. 194): para Marx, o que se chama hoje de subdesenvolvimento
“equivale a uma expressão da expansão contraditória do capital”. Ou seja, a noção de que o
desenvolvimento é desigual e necessariamente combinado já estava presente em Marx
(MIRANDA, 2016; PAULA, P. G., 2014). Os investimentos estrangeiros, junto com o comércio
exterior e as expropriações, conformam os condutos adequados que garantem a existência da
transferência internacional de valor, ou seja, do imperialismo. Este, por sua vez, alimenta aquele
desenvolvimento desigual dando-lhe o caráter de combinado.
A teoria marxista da dependência formulou uma crítica radical do
subdesenvolvimento dentro da qual os investimentos estrangeiros diretos seriam responsáveis
por elevar a composição orgânica média do capital em algumas economias subdesenvolvidas,
seguindo Marini (1977), conferindo a estas uma posição intermediária, subimperialista, na
cadeia imperialista internacional. Este mesmo autor mostra, empiricamente, que a exportação
de capitais não era, no período do pós-Segunda Guerra Mundial, uma novidade em si, pois já
existia anteriormente. Sua novidade nesta conjuntura era a escala, “a predominância do
investimento direto e, mais recentemente, o peso dos empréstimos e financiamentos; a
amplitude do raio geográfico que cobrem, e a porcentagem cada vez maior dedicada à indústria
manufatureira” (MARINI, 1977, p. 3). A abordagem de Marini, como podemos notar, segue
claramente a indicação de Hilferding a respeito da exportação de capitais, abarcando capitais
produtivos (investimentos diretos) e capitais portadores de juros (empréstimos e
financiamentos), sugerindo que a exportação de capitais pode ter mantido as mesmas
características gerais que se observara no começo do século XX.
233

Com a transformação do capitalismo mundial entre os anos 1970 e 1980, as


exportações de capitais adquirem novas características. Por um lado, o desenvolvimento
extraordinário de novas formas de capital fictício se traduz no processo de financeirização176, o
qual, nos termos de Lapavitsas (2009, p. 115, tradução nossa), “aprofundou a complexidade do
imperialismo”. Um dos traços que revela essa maior complexidade é o novo padrão,
aparentemente paradoxal, das exportações de capitais: a maior parte dos fluxos de investimento
estrangeiro direto ocorre entre capitais localizados nos Estados Unidos, Europa e Japão – fato
observado por muitos (ASHMAN; CALLINICOS, 2006; CALLINICOS, 2009, p. 199-201;
LAPAVITSAS, 2009, p. 125; WENT, 2001, 2003, p. 490).
Os dados oficiais de investimento estrangeiro direto parecem contradizer, ou no
mínimo enfraquecer, uma tese vital para as teorias marxistas do imperialismo: aquela segundo
a qual o imperialismo representa a universalização das relações de produção capitalistas. Se
grande parte das exportações de capitais produtivos se concentra na tríade EUA-Europa-Japão,
parece que o capital, nos termos de Ashman e Callinicos (2006), “continua a evitar amplamente
o hemisfério Sul” (ASHMAN; CALLINICOS, 2006, p. 125, tradução nossa). Entretanto, a
imagem de que o Sul é escamoteado da reprodução global do capital não se sustenta se
considerarmos que a exportação de capitais também incorpora os capitais a juros. É o que
observam os autores supracitados em uma nota de rodapé, na qual afirmam: “é verdade que
investimentos em carteira em ações e títulos privados, ao contrário do IED, têm sido
direcionados para os assim chamados ‘mercados emergentes’ nos anos recentes” (ASHMAN;
CALLINICOS, 2006, p. 125-126).
Mesmo considerando a exportação de capitais produtivos, não é verdade, como
sustenta Smith (2016, p. 71-75), que o hemisfério Sul é irrelevante para os capitais dos
principais países imperialistas. A desagregação dos dados de investimentos estrangeiros diretos
revela que: (a) os fluxos de IED entre países imperialistas são contaminados por investimentos
financeiros não-produtivos, o que mascara o resultado final; (b) são principalmente
relacionados a fusão e aquisição, ou seja, transferência de propriedade do capital, e não
investimentos estrangeiros em campos novos (“greenfield foreign direct investment”)177, como
é o caso do IED que se destina aos países em desenvolvimento; (c) “talvez o mais importante”:

176
Itoh e Lapavitsas (1999) desenvolvem uma base teórica para a compreensão da financeirização a partir de Marx.
Lapavitsas (2009, 2013) retoma o trabalho citado anteriormente e desenvolve a relação entre financeirização e
capitalismo contemporâneo.
177
Conforme Ietto-Gillies (2005, p. 23), os investimentos greenfield implicam necessariamente a “construção de
novas plantas, edifícios ou outros capitais fixos onde não existia nenhum”, ao contrário de fusões e aquisições, que
denotam apenas a mudança de propriedade do capital.
234

“boa parte do que é contado como fluxos de IED entre países imperialistas são investimentos
em firmas que realocaram parte ou todo processo de produção para países de baixo salários”
localizados no hemisfério Sul (SMITH, 2016, p. 72-73, grifos do autor).
Essa relocalização industrial é, na verdade, o principal fator que torna as estatísticas
de IED insuficientes como medidas da exportação de capital produtivo, posto que a
relocalização operada pelas empresas transnacionais não envolve, necessariamente,
investimentos diretos. Seguindo Smith (2016), o que está havendo no capitalismo
contemporâneo é o desenvolvimento de uma nova forma de apropriação de valores produzidos
nos países mais pobres que não envolve investimentos estrangeiros diretos: trata-se da
terceirização (outsourcing) de partes ou de todo o processo produtivo sob o comando de grandes
empresas transnacionais sediadas nos países imperialistas que contratam empresas sediadas em
países subdesenvolvidos. Essa modalidade de terceirização, na qual a empresa-mãe contrata
subsidiárias através de relações de mercado é chamada de outsourcing via arm’s-length,
diferente do outsourcing tradicional via investimento estrangeiro direto, no qual a empresa-mãe
assume a responsabilidade direta pelo processo produtivo (SMITH, 2016)178.
Smith comenta sobre as cadeias produtivas de três “mercadorias globais” (camiseta,
iPhone e uma xícara de café) como exemplos de processos de transferência de valor produzido
no Sul e apropriado pelo Norte sem que o capital imperialista tenha sido diretamente investido
nos países dependentes. No caso do iPhone, por exemplo, a Apple contrata várias subsidiárias
no mundo todo, mas principalmente asiáticas, sendo a principal delas a chinesa Foxconn179,
para executar todo o processo produtivo: desde a fabricação dos circuitos eletrônicos até a
montagem do produto final. Como a Apple contrata a Foxconn, e ambas são empresas
juridicamente independentes, o lucro gerado por esta não é remetido para a sede daquela nos
Estados Unidos, ou seja, não consta nos balanços de pagamentos. A relação imperialista, como
diz Smith (2016, p. 22), não aparece na superfície dos “dados econômicos nem nos cérebros
dos economistas”. Os lucros da Apple aparecem como uma mera relação mercantil: compram
os produtos por um preço baixo, em função de um “brutal regime de trabalho” (SMITH, 2016,
p. 23), e os vendem por um preço maior. Nessa “troca”, a empresa sediada no Vale do Silício
se apropria de uma margem bruta de lucro (lucro bruto menos custo de produção) de mais de

178
SMITH, J. Imperialism in the TWENTy-First Century: the globalization of production, super-exploitation, and
the crisis of capitalism. Nova York: Monthly Review Press, 2016. p. 68 et seq.
179
Smith coleta alguns dados impressionantes sobre esta empresa: 40% dos eletrônicos consumidos no mundo são
montados pela Foxconn, que possui jornada média de trabalho de 11 horas por dia durante as temporadas de pico.
Essa empresa ficou famosa por instalar redes de proteção nos dormitórios coletivos como mecanismo de contenção
dos suicídios. Houveram 14 suicídios reportados dentro da empresa em 2010.
235

50%, resultado basicamente de dois fatores: da concorrência entre empresas espalhadas ao redor
do mundo para integrar a cadeia de valor do iPhone e da posição monopolista, em função de
ser a detentora da marca, na venda do produto.
Como o vínculo da Apple com a Foxconn se estabelece através do mercado em um
contrato com duração determinada, a pressão por reduzir custos é premente nesse processo
produtivo. Smith relata que o crescimento dos salários na China provocou diminuição nas
margens de lucro nas empresas que fornecem componentes para a montagem dos produtos da
Apple. Como resposta, as fornecedoras aumentaram a procura por força de trabalho ainda mais
barata, migrando linhas de produção para o interior do país. Ao mesmo tempo, a Apple procura
diminuir sua dependência da Foxconn e “terceiriza parte da produção do iPhone 6 para outra
empresa de eletrônicos sediada em Taiwan, chamada Pegatron” (SMITH, 2016, p. 30-31).
O que parece haver, nesse caso, é uma forma de imperialismo situada numa área
cinzenta entre a troca desigual e a exportação de capital, fundamentada no poder de monopólio
que faz com que o lucro apropriado pela Apple seja resultado de renda fundiária e lucro
comercial, assuntos que trataremos adiante180.
A relação imperialista que acabamos de descrever sucintamente também se aplica
a outras “mercadorias globais” cujos processos produtivos são executados nas assim chamadas
cadeias globais de valor. O exemplo das camisetas de marca, vendidas por grandes redes
varejistas, como Walmart, Carrefour, dentre outras, é sintomático. Norfield (2011), citado por
Smith (2016, p. 12-13), conta a história de uma camiseta vendida pela varejista sueca H&M por
4,95 euros na Alemanha. A H&M paga €1,35 por cada camiseta ao fabricante que as produz em
Bangladesh, do qual €0,40 cobre o custo de importar matéria-prima oriunda dos EUA. “Assim,
€0,95 do preço de venda final fica em Bangladesh, para ser dividido entre o proprietário da
fábrica, os trabalhadores, os ofertantes de insumos e serviços e o governo de Bangladesh”
(SMITH, 2016, p. 12-13). Tirando €0,06 que correspondem ao transporte entre os dois países,
ficam €3,54 que são contabilizados como valor adicionado na Alemanha, ou seja, contribuem
com o PIB alemão. Destes, €2,05 ficam com intermediários (transporte, atacadista, propaganda,
etc), €0,60 é o lucro da H&M por peça vendida, €0,79 é absorvido pelo Estado na forma de
impostos e o restante corresponde a outros itens (NORFIELD, 2011; SMITH, 2016, p. 12-13).
O ponto que Smith quer chamar a atenção é precisamente o montante de impostos
retidos pelo país imperialista a despeito dos vultosos lucros da H&M: os belos lucros “são

180
Cf. subseções 4.2 e 4.5.
236

ofuscados pelo que o Estado absorve” (SMITH, 2016, p. 13). Um dado impressionante: “Em
2013, as tarifas cobradas pelo governo dos Estados Unidos sobre as importações de vestuário
de Bangladesh excederam o total de salários recebidos pelos trabalhadores que fizeram esses
produtos”, os quais recebem os menores salários médios do mundo181 (SMITH, 2016, p. 14,
20). Em síntese, os baixos salários no hemisfério Sul, nos locais onde o processo de produção
do valor transcorre, ajudam a explicar o poder dos Estados e dos grandes capitais imperialistas
no hemisfério Norte (SMITH, 2016, p. 13-20).
Todo esse processo de outsourcing – via IED ou arm’s-length – contribuiu para o
que Smith (2016, p. 50) chama de “globalização da produção”, que se caracteriza por
fragmentar a produção em diversas tarefas individuais executadas separadamente por
trabalhadores em vários continentes. Com essa nova característica, a “velha concepção” de
comércio Norte-Sul envolvendo manufaturados versus matérias primas precisa ser
“atualizada”. “Empregadores agora tem uma maneira alternativa de tornar seus empregados
redundantes, uma maneira alternativa de cortar custos, através do outsourcing das tarefas
individuais, isto é, dos empregos, para onde os salários são significativamente menores”
(SMITH, 2016, p. 51).
A maior flexibilidade proporcionada pelo outsourcing de tipo arm’s-length é o
motivo que está estimulando as empresas transnacionais a optarem cada vez mais por esse tipo
de contratação, tornando anacrônica qualquer abordagem sobre a globalização da produção que
trate apenas dos investimentos diretos (SMITH, 2016, p. 68-69, 79). Cumpre destacar que o
outsourcing via arm’s-length é um desdobramento a partir dos investimentos estrangeiros
diretos, cuja diferença formal/jurídica impõe diferenças na forma, e apenas na forma, com a
qual a transferência internacional de valor se manifesta. Ou seja, a essência da relação
imperialista se mantém.
Vejamos, por exemplo, um caso hipotético. Suponhamos que uma empresa
transnacional tenha um estoque de investimento estrangeiro direto sob a forma de filiais
espalhadas ao redor do mundo que produzem, cada uma em seu lugar, uma parcela do produto
final. Ao final do ano, cada filial remete uma determinada parte dos lucros para a matriz. Se
observa, então, um fluxo de valor que representa o lucro repatriado. Agora, imaginemos que
esta corporação transforme suas filiais em empresas independentes, isto é, transfira a

181
De acordo com dados de Norfield (2011), o salário de cada trabalhador em Bangladesh que opera nas fábricas
de vestuário é igual a €1,36 por dia, sendo que eles produzem 250 camisetas por hora e trabalham 10 a 12 horas
por dia. Mesmo com crescimento dos salários nominais depois de ondas de greves e manifestações, o salário ainda
corresponde a 1/5 do que seria necessário para uma família de 4 pessoas sobreviver.
237

propriedade das filiais para outrem. A relação entre elas passa a ser de tipo arm’s-length. Nesse
caso, conforme os termos de Smith (2016, p. 69), a “repatriação dos lucros [...] desapareceria
sem deixar rastros”. Como os capitalistas só fariam esse tipo de operação se fosse rentável, a
apropriação de mais-valor pela empresa transnacional se realizaria sob uma nova roupagem182.
De uma forma ou de outra, não é nosso propósito investigar empiricamente o
desenvolvimento dos padrões de exportação de capital ao longo do tempo. O que pretendemos
resgatar, com essas breves considerações iniciais, foi um mapa das várias modalidades possíveis
de exportação de capital. No restante da seção iremos discutir como cada uma dessas
modalidades representam, na verdade, formas de manifestação da essência do imperialismo.
Enquanto na seção anterior nosso foco recaiu sobre a transferência internacional de valor entre
capitais industriais, agora daremos um passo à frente no processo de incorporar determinações
mais concretas.

4.2 LUCRO COMERCIAL: O IMPERIALISMO EM ATACADO

4.2.1 Funcionalidade e disfuncionalidade do capital comercial

Até a Seção III do Livro III de O Capital, na qual Marx enuncia a famosa lei da
tendência decrescente da taxa média de lucro, a exposição está se atendo rigorosamente à
seguinte abstração: todos os capitais individuais envolvidos na trama são produtivos, uns mais,
outros menos, é verdade, mas todos produzem valor. Que existam diferentes níveis de
produtividade entre eles, é condição necessária para a transferência de valor. Ou seja, a condição
para um capital individual se apropriar gratuitamente de mais-valor produzido por outrem é
também produzir valor. Trata-se, portanto, de uma interação entre capitais industriais, entre
capitais que contratam trabalho assalariado para que este produza valor e valor de uso.

182
Smith cita quatro motivos que tornam o arm’s-length preferível em relação ao investimento direto: 1) empresas
transnacionais (ETN) pagam salários maiores do que as companhias locais, motivo pelo qual a terceirização da
produção aumenta a pressão por reduzir salários e intensificar o trabalho; 2) ETN lava suas mãos em relação a
problemas provocados pela companhia terceirizada, como poluição, violência contra sindicatos, etc., reduzindo os
riscos indiretos associados ao negócio; 3) a terceirização facilita a adaptação da ETN aos ciclos econômicos: em
caso de depressão do mercado mundial, elas podem facilmente cortar produção rescindindo contrato com
fornecedores; 4) por não envolver a mobilização de capital fixo no exterior, a ETN fica com uma margem maior
para aplicar seu capital no circuito financeiro (SMITH, 2016, p. 80-81).
238

Nas seções quarta, quinta e sexta do Livro III, Marx introduz progressivamente
determinações mais concretas à análise, se aproximando com isso da superfície na qual o modo
capitalista de produção se manifesta. A partir de então, se incorporam frações do capital social
total que se apropriam de parte do valor total produzido sem que produzam nenhuma unidade
de valor – embora, em alguns casos, como veremos, essas frações potencializem a produção de
valor pelos capitais industriais. Nos concentraremos, agora, na existência do capital comercial
enquanto figura autonomizada do capital industrial.
Como já ficou claro na análise do Livro II, o processo de reprodução do capital
envolve um processo de produção (...P...) e dois atos de circulação, compra de meios de
produção e força de trabalho (D-M) e venda do capital-mercadoria (M’-D’). O capital social
total percorre ininterruptamente esse ciclo, ou, como diz Marx (2008, p. 361), “está ele sempre
em via de transformar-se, de efetuar essa mera mudança de forma”. A figura do capital
comercial183 surge quando a função de comprar e vender “adquire autonomia como função
particular de um capital particular, tornando-se, em virtude da divisão do trabalho, função
própria de determinada categoria de capitalistas” (MARX, 2008, p. 361).
Com isso, o capital industrial passa a assumir “duas formas de existência
diferentes”, quer seja como capital de circulação, a qual se autonomiza como capital comercial,
ou como capital produtivo. Marx (2008, p. 366-367) aponta dois fatores que dão ao capital
comercial “o caráter de capital como função autônoma”. Em primeiro lugar, a atividade do
comerciante “é uma forma da divisão social do trabalho, e desse modo parte da função a efetuar
em fase especial do processo de reprodução – a circulação – aparece como função exclusiva de
um agente específico, distinto do produtor”. Mas isso só garante ao capital comercial um caráter
autônomo desde que, em segundo lugar, o comerciante adiante, “de acordo com sua condição”,
“capital-dinheiro próprio ou emprestado” o qual lhe retorna acrescido de lucro.
Como ao longo de sua exposição Marx está preocupado em captar o processo em
sua pureza, ele abstrai das compras e vendas feitas diretamente entre os próprios capitalistas

183
Embora estejamos seguindo a tradução de Reginaldo Sant’Anna da editora Civilização Brasileira (CB),
alteramos alguns termos por nossa conta após comparação com a tradução de Regis Barbosa e Flávio Kothe da
Nova Cultural (NC) e com a tradução inglesa dos Manuscritos de 1864-65. Sant’Anna, por exemplo, usa os termos
“capital comercial” e “capital financeiro” no lugar do que Barbosa e Kothe designaram por “capital de comércio
de mercadorias” e “capital de comércio de dinheiro”. Neste caso, utilizaremos a tradução de Barbosa e Kothe,
sempre deixando claro os momentos nos quais mudanças desse tipo forem feitas. Sobre o “capital comercial”,
Barbosa e Kothe deixam claro que na própria redação de Marx esse pode ser um termo mais genérico que designa
o capital de comércio, independentemente se de mercadorias ou dinheiro, e também possui um sentido mais estrito
designando apenas o capital de comércio de mercadorias. Na tradução inglesa dos Manuscritos de 1864-1865
também se usa “capital comercial” no lugar de “capital de comércio de mercadorias”, Mas não se usa capital
financeiro, e sim “capital de comércio de dinheiro”.
239

industriais, “pois em nada nos ajudam para determinar o conceito, para penetrar na natureza
específica do capital mercantil [capital comercial]” (MARX, p. 362-363). Fica explícito, então,
que o propósito dessa categoria específica de capitalistas é executar as compras e vendas
necessárias para que o capital social total, incluindo-se o capital industrial, se reproduza:

O capital comercial, portanto, nada mais é do que o capital-mercadoria que o produtor


fornece e tem de passar por processo de transformação em dinheiro, de efetuar a
função de capital-mercadoria no mercado, com a diferença apenas de que essa função,
em vez de ser operação acessória do produtor, surge como operação exclusiva de
variedade especial de capitalistas, os comerciantes, e adquire autonomia como
negócio correspondente a um investimento específico. (MARX, 2008, p. 364-365).

O comerciante adianta capital-dinheiro para comprar as mercadorias produzidas


pelo capital industrial com o propósito de revende-las com lucro. Com o capital-dinheiro em
mãos, o comerciante “repete constantemente” a forma simples do capital, D-M-D’ (MARX,
2008, p. 363). Com a primeira circulação do capital de comércio de mercadorias (D-M), o
capital-mercadoria, “mera forma de existência do capital industrial”, muda de dono, do produtor
para o comerciante, embora continue “no mercado como capital-mercadoria destinado a efetuar
a primeira metamorfose, a ser vendido”. O comerciante assume a “função de vende-lo” como
seu “negócio particular” depois que o produtor tenha concluído “a função de produzi-lo”. Se o
comerciante não consegue vender a quantidade de capital-mercadoria que comprou, “então
para, cessa a reprodução” para essa quantidade estocada: se demonstra com isso que as
operações do comerciante são “indispensáveis” para que a reprodução do capital social
transcorra sem interrupções (MARX, 2008, p. 363-364).
A possibilidade de o dinheiro servir como meio de pagamento faculta ao
comerciante a possibilidade de não adiantar capital-dinheiro. Nesse caso, pode o comerciante
lucrar com a intermediação da venda da mercadoria desde que consiga efetivá-la para o
consumidor final antes do prazo negociado para a quitação da dívida com o industrial e caso os
preços de mercado permaneçam mais ou menos estáveis. Em outros termos, se o dinheiro
funciona como meio de pagamento, pode o comerciante receber a mercadoria do capital
industrial – linho no valor de 3000 libras esterlinas, seguindo o exemplo de Marx – com a
promessa de pagar o equivalente em dinheiro em um prazo futuro. Se vender o linho antes deste
prazo, com o dinheiro recebido restitui o industrial e embolsa o lucro. Por outro lado, “se não
vender o linho, a data para adiantar as 3000 libras é a do vencimento da dívida, posterior à do
recebimento da mercadoria. E se, em virtude de queda dos preços de mercado, vender o linho
abaixo do preço de compra, terá de repor a diferença com o próprio capital” (MARX, 2008, p.
240

366, grifos nossos). Grifamos a passagem anterior para destacar o fato de que a possibilidade
de variação do preço de mercado, com o qual o comerciante vende as mercadorias, aponta para
a possibilidade de transferência de valor entre ele e o industrial. Neste exemplo em específico,
a redução do preço de mercado fez com que o comerciante transferisse seu próprio capital para
o industrial, isentando este de sentir os efeitos do mercado. Absorver por algum tempo estes
efeitos é justamente uma das funcionalidades do capital comercial.
Como o capital comercial não participa de nenhuma parte do processo de produção,
apenas intermediando compras e vendas, ele não contribui com a produção de valor: “há sempre
uma parte do capital da sociedade, sob a forma de capital mercantil [capital comercial], a qual
está sempre na esfera da circulação” (MARX, 2008, p. 369). Ele apenas se apropria de valor
sob a forma do lucro comercial e esta é sua disfuncionalidade para o capital industrial. Em outro
lugar, Marx (2008, p. 380) sustenta que o capital de comércio de mercadorias tem como “sua
verdadeira função” a tarefa de “comprar para vender”. Estritamente sob essa função, portanto,
“despojado de todas as funções heterogêneas com ele relacionadas, como estocagem,
expedição, transporte, classificação, fracionamento das mercadorias”, “ele não cria valor nem
mais-valia, mas propicia sua realização e por isso a troca real das mercadorias, sua transferência
de uma mão para outra, o intercâmbio material da sociedade” (MARX, 2008, p. 380). Desse
raciocínio se infere que as chamadas funções heterogêneas, como estocagem, expedição, etc.,
criam valor, integram o capital produtivo.
Entretanto, sem a figura do comerciante, seguindo o argumento de Marx, maior
seria o tempo no qual o capital-mercadoria ficaria na esfera da circulação, o retorno de capital-
dinheiro ocorria numa velocidade menor, o que demandaria maior reserva de dinheiro para que
o processo de produção continue sem cessar, “o que acarretaria decréscimo da escala da
reprodução”. Portanto, o capital comercial contribui indiretamente para a produção de valor,
ele é funcional à reprodução do capital.
No final do Capítulo XVI do Livro III, Marx resume os aspectos que tornam a
existência do capital comercial funcional à reprodução do capital industrial:

Ao concorrer para abreviar o tempo de circulação, pode indiretamente contribuir para


aumentar a mais-valia produzida pelo capitalista industrial. Ao contribuir para ampliar
o mercado e ao propiciar a divisão do trabalho entre os capitais, capacitando, portanto,
o capital a operar em escala cada vez maior, favorece a produtividade do capital
industrial e a respectiva acumulação. Ao encurtar o tempo de circulação, aumenta a
proporção da mais-valia com o capital adiantado, portanto, a taxa de lucro. Ao reter
na esfera da circulação parte menor de capital na forma de capital-dinheiro, aumenta
a parte do capital diretamente aplicada na produção. (MARX, 2008, p. 374-375, grifos
nossos).
241

O aspecto chave que torna a funcionalidade do capital comercial superior à sua


disfuncionalidade é a velocidade com a qual ele rota, “uma vez que a intervenção deste tem o
efeito de reduzir os tempos de rotação dos capitais e aumentar consequentemente a taxa anual
de mais-valia” (GERMER; BELOTO, 2006, p. 66).

4.2.2 Lucro comercial

Embora o capital comercial não crie valor, ele participa da nivelação das taxas
individuais de lucro em torno do lucro médio. Ou seja, nos termos de Marx (2008, p. 380), ele
“tem de proporcionar, como o que opera nos diversos ramos de produção, o lucro médio anual”.
Sendo um capital autônomo, a própria concorrência converge tendencialmente o lucro
comercial ao lucro médio. Essa constatação levanta a seguinte questão: sendo o mais-valor que
lhe cabe sido produzido “pela totalidade do capital produtivo”, “como consegue o capital
mercantil [capital comercial] puxar para si essa cota de mais-valia ou de lucro?” (MARX, 2008,
p. 380).
Aparentemente, no mundo das aparências, sugere Marx (2008, p. 380), “o lucro
mercantil [lucro comercial] é mero acréscimo, elevação nominal do preço acima do valor das
mercadorias”. Sendo a preocupação científica do autor investigar as determinações essenciais
dos fenômenos, esta primeira resposta não lhe cabe. Para chegar à verdadeira resposta, o autor
partirá de uma abstração: supõe que não existam custos adicionais ao capitalista comercial entre
o momento da compra e da venda, isto é, desconsidera inicialmente a existência de despesas de
circulação. Fazendo isso, a diferença entre preço de venda e preço de compra representa apenas
lucro para o capitalista comercial.
Marx é bastante cauteloso nesse momento da exposição em usar os termos precisos
para designar situações referentes ao capital industrial individual ou ao capital social total. As
referências ao primeiro tomam por base os preços de produção como a norma dos preços de
venda. Em relação ao segundo, como sabemos que na totalidade preços de produção são iguais
aos valores, Marx se refere aos preços de venda como valores, isto é, como trabalho
materializado, como se constata na seguinte contradição engendrada pelo autor: no mundo das
aparências, parece ser possível “gerar o lucro na circulação” desde que o comerciante faça “um
acréscimo nominal a seus preços (se consideramos a totalidade do capital-mercadoria, a venda
se faz acima do valor), e embolsa esse excedente de valor nominal sobre o valor real; em suma,
242

vende as mercadorias mais caro” (MARX, 2008, p. 380). Nessa “forma de acréscimo”, “tudo
se reduziria a um rodeio para participar da mais-valia e do mais-produto184 por meio de elevação
nominal do preço das mercadorias” (MARX, 2008, p. 381-382).
Essa possibilidade de geração do lucro comercial leva a uma contradição se
supomos “dominante o modo capitalista de produção”. A hipótese de que o lucro comercial
deriva do acréscimo nominal ao preço de compra, isto é, ao preço de produção, equivale, “em
última análise”, ao fato de que “deverá o comerciante vender todas as mercadorias acima dos
respectivos valores” (MARX, 2008, p. 382). Por trás da suposição de que o capitalista industrial
vende suas mercadorias ao comerciante pelo preço de produção, estava pressuposto que o
capital comercial “não entra na formação da taxa geral de lucro”. A exposição tinha de ser feita
dessa maneira pois “o capital mercantil [capital comercial] como tal não existia então para nós”
e porque o lucro médio e a taxa geral de lucro “tinham de ser estudados antes como nivelamento
dos lucros ou mais-valias, produzidos pelos capitais industriais dos diferentes ramos” (MARX,
2008, p. 382-383). Ou seja, o nível de abstração fez com que se supusesse que o capital
industrial vendia suas mercadorias pelo preço de produção. A entrada do capital comercial como
um negócio autônomo em relação ao capital industrial pôs uma contradição: a venda da
mercadoria para o comerciante pelo preço de produção obrigaria o conjunto dos comerciantes
a vender as mercadorias aos consumidores finais (individuais e produtivos) por um preço acima
do valor. Ou seja, na totalidade se verificaria essa distinção quantitativa entre preço e valor,
contradizendo um resultado fundamental atingido no Capítulo IX do Livro III.
Agora, pela primeira vez na exposição de O Capital, “temos de nos haver com um
capital que participa do lucro, sem participar de sua produção. É necessário, portanto, completar
o estudo anterior” (MARX, 2008, p. 383). Como o capital comercial se apropria de lucro sem
ter contribuído para produzi-lo, o argumento de Marx vai mostrar que ele compra a mercadoria
do capital industrial por um preço abaixo do preço de produção (valor, se consideramos a
totalidade) e a revende pelo preço de produção (valor).
O exemplo de Marx é o seguinte: supondo que o capital adiantado total pelo capital
industrial seja 720c + 180v = 900, com taxa de mais-valor = 100%, o produto será de 720c +
180v + 180m = 1080. Taxa média de lucro, desconsiderando a existência do capital comercial,
igual a 180/900 = 20%.

184
“Mais-produto” é uma designação posta pela tradução da NC, que julgamos ser mais apropriada do que “produto
excedente”, como consta na tradução da CB.
243

Incluindo um capital comercial de 100 na análise, o capital total passa a ser igual a
1000 e a taxa média de lucro igual a 180/1000 = 18%. O capital comercial, com esses
pressupostos, se apropria de um lucro de 18, enquanto o capital industrial se apropria de um
lucro de 162. O novo preço de produção para o capital industrial será 900 + (18%*900) = 900
+ 162 = 1062. Quando o capital comercial adiciona seu lucro de 18 ao seu preço de compra
(1062), as mercadorias são vendidas para os consumidores por 1080 e Marx resolve a
contradição posta anteriormente, já que a venda ocorre

[...] pelo preço de produção, considerada a totalidade do capital-mercadoria, pelo


valor, embora faça seu lucro na circulação e por meio dela, e só mediante o excedente
do preço de venda sobre o preço de compra. Apesar disso, não vende as mercadorias
acima do valor ou acima do preço de produção, justamente porque as comprou do
capitalista industrial abaixo do valor ou abaixo do preço de produção. (MARX, 2008,
p. 383).

Ou seja, a autonomização do capital comercial reduz a taxa geral de lucro. O preço


de produção continua a ser igual ao preço de custo (k) mais o lucro médio (l). “Mas agora se
determina o lucro médio de maneira diferente. É determinado pelo lucro global gerado pela
totalidade do capital produtivo; [...] calculado em relação à soma do capital produtivo global e
do capital mercantil [capital comercial]”. Representando o lucro comercial por g, “o valor real
ou o preço de produção da totalidade do capital-mercadoria é, portanto, k + l + g” (MARX,
2008, p. 384).
Marx distingue o preço de produção do capitalista industrial do “preço real de
produção”, o qual é pago pelos consumidores. “Se consideramos a totalidade das mercadorias,
os preços por que as vende a classe capitalista industrial são menores que os respectivos
valores” (MARX, 2008, p. 384). Marx não fala nesses termos, mas há uma transferência de
valor dos industriais para os comerciantes.
Sendo o lucro comercial uma dedução do lucro industrial, seguem dois resultados,
dado um determinado tempo de rotação: “quanto maior o capital mercantil [capital comercial]
em relação ao capital industrial, tanto menor a taxa do lucro industrial, e vice-versa; [...] na taxa
média de lucro do capitalista que explora diretamente, a taxa de lucro aparece menor do que é
na realidade” (MARX, 2008, p. 385). Em outros termos, a introdução do capital comercial
mistifica ainda mais a realidade, mistifica o grau de exploração do trabalho, revelando que a
exposição em O Capital, como Callinicos (2014, p. 151) descreveu, se desenvolve em um
processo de progressiva externalização. Como Marx (2008, p. 519, grifos do autor) afirma
244

adiante, no Capítulo XXIV do Livro III, o lucro comercial na verdade “configura-se como
produto de uma relação social e não em produto de uma simples coisa”.
O argumento de Marx torna-se mais completo, embora aponte para uma solução
incongruente com sua própria teoria dos preços de produção, quando incorpora na explicação
do lucro comercial a existência de custos de circulação. Concordamos com Germer e Beloto
(2006, p. 69-70) quando estes afirmam que a exposição de Marx no Capítulo XVII sobre o
repasse dos custos de circulação ao preço de venda “parece equivocada”, resultado do
“reconhecido caráter preliminar da redação”185.
Nesse momento da exposição, Marx (2008, p. 386-387) considera, inicialmente,
dois tipos de custos de circulação: “estritamente comercial” e “relativos a processos de
produção acrescentados depois no processo de circulação, como expedição, transporte,
armazenamento, etc.”, cuja diferença, como já observado, é que o primeiro não cria valor,
enquanto o segundo cria. Quaisquer que sejam sua natureza, eles supõem desembolso de “um
capital adicional para adquirir e pagar esses meios de circulação” e “entram como elemento
adicional no preço de venda das mercadorias, integralmente quando consistem em capital
circulante, e, na medida do desgaste, quando consistem em capital fixo” (grifos nossos). Por
serem repassados ao preço de venda, Marx aponta que “constituem valor nominal mesmo
quando não adicionam valor real à mercadoria, como se dá com os estritos custos comerciais
de circulação” (grifos nossos).
Os “estritos custos comerciais de circulação” ou, seguindo uma tradução
alternativa, os “custos puros de circulação”, “reduzem-se aos custos necessários para realizar o
valor da mercadoria, [...] para propiciar a troca das mercadorias” (MARX, 2008, p. 387). Podem
ser capitais constante (escritório, papel, etc.) ou variável e são considerados estrita ou
puramente de circulação pois “nenhum desses custos se faz para produzir o valor-de-uso das
mercadorias, mas para realizar o valor delas” (MARX, 2008, p. 387). O custo de circulação,
como adverte Germer e Beloto (2006, p. 65), existe independentemente da autonomização do
capital comercial. Se o próprio capital industrial executar a venda do capital-mercadoria, ele irá
incorrer nesses custos puros de circulação. É inescapável pelo próprio caráter de mercadoria do
produto. Decorre daí que a operação comercial é necessária, vital, para o capitalista industrial,
mesmo que não crie valor.

185
Conforme Moseley (2015, p. 23-24), Marx havia redigido apenas um “rascunho exploratório inicial” sobre o
capital comercial antes da redação dos Manuscritos de 1864-1865, no final dos Manuscritos de 1861-63, e Engels
fez pouquíssimas alterações no texto que se tornou a Seção IV do Livro III de O Capital.
245

Do ponto de vista individual, compete ao capitalista industrial escolher entre


internalizar a função comercial ou exteriorizá-la para terceiros. Se a escolha for pela primeira,
continua Marx (2008, p. 389-390), ele “embolsa então tanto o lucro industrial quanto o
comercial”. Apesar da possibilidade de o capitalista industrial embolsar o lucro comercial, ele,
em geral, não o faz, pois teria que adiantar um capital adicional, o que diminuiria,
possivelmente, sua taxa de lucro. A escolha real para o capitalista industrial, segundo o
apontamento de Marx, é entre “ceder parte do lucro ao comerciante” ou “fazer lucro menor”. O
corolário desse apontamento é que o comércio é necessário para a reprodução do capital social:
“No tocante ao capital social em sua totalidade ressalta aí que parte dele é necessária para
operações secundárias [como o comércio] que não entram no processo de valorização, devendo
essa parte ser para esse fim continuamente reproduzida” (MARX, 2008, p. 390).
Marx sugere que os custos estritos de circulação aumentam a soma do capital
comercial adiantado. Se isso ocorrer, a implicação lógica é a redução do lucro médio em função
do acréscimo de capital improdutivo em relação ao volume de capital produtivo. No exemplo
numérico de Marx (2008, p. 390-391), se os custos de circulação fossem 50, o capital comercial
seria de 150 e o capital total de 1050 = 900 + 150. A taxa média de lucro seria de 180/1050 =
17,14% e o preço de produção do capitalista industrial de 900 + (900*17,14%) = 1054,26. O
comerciante se apropriaria de um lucro de aproximadamente 25,74 vendendo as mercadorias
por 1080 + 50 = 1130, sendo 50 o repasse dos custos puros de circulação. Ou seja, a
incongruência posta pela exposição é considerar que a introdução dos custos puros de
circulação aumenta o preço de venda das mercadorias acima do “preço real de produção”,
aquele pelo qual o industrial venderia a mercadoria na ausência do capital comercial, ou do
valor, sendo ambos iguais a 1080. Em resumo, a introdução dos custos puros de circulação faz
com que os preços de mercado se situem estruturalmente acima dos valores, mesmo se
considerando o capital social total. Marx deixa essa contradição não resolvida com a esperança
de que a tendência da produção capitalista é de diminuir os custos de circulação: “De resto, é
de supor-se que a dissociação entre capital mercantil [capital comercial] e capital industrial está
ligada à centralização dos custos comerciais e por conseguinte, à diminuição deles” (MARX,
2008, p. 391).
O problema na exposição de Marx, seguindo a interpretação de Germer e Beloto
(2006), é considerar que os custos de circulação surgem com a autonomização do capital
comercial, o que é um erro. Como já observamos, o capital industrial quando executa as funções
246

comerciais incorre, também, em custos de circulação. Estes apenas se deslocam para outro tipo
de capitalista quando essa função se autonomiza.

É a necessidade do comércio, que decorre da propriedade privada, que impõe um custo


à sociedade, e não a autonomização deste custo na forma do capital comercial ao lado
do capital industrial. Nesta medida, tais custos existiriam mesmo que o capital
comercial não existisse, e o capitalista industrial teria que incorrer neles ao
comercializar ele mesmo a sua produção. (GERMER; BELOTO, 2006, p. 66).

Em termos agregados, portanto, os custos puros de circulação não são simplesmente


adicionados ao preço real de produção (ou ao valor, se consideramos o capital social total), mas,
conforme Germer e Beloto (2006, p. 70), referem-se à dedução do mais-valor social. Na prática,
os capitalistas repõem os custos de circulação no próprio ato de compra, seja de meios de
produção, de meios de consumo individual ou de força de trabalho.
Retomando os dados do exemplo de Marx, o raciocínio de Germer e Beloto sugere
que após a primeira rotação, os capitalistas terão que incorporar os custos de circulação em seus
desembolsos. Supondo que os comerciantes repassam homogeneamente esse custo sobre os
preços de produção, deverá haver um acréscimo médio de 50/1080 = 4,63% sobre cada compra.
Assim, em números arredondados, os capitalistas terão que desembolsar 720 + 34 = 754 para
adquirir meios de produção no valor de 720 e 188 para adquirir força de trabalho equivalente a
180186. “Deste modo, os capitalistas industriais cobriram, com parte da sua mais-valia, os custos
de circulação dos capitais constante e variável, num total de 42, que constituem ao mesmo
tempo os custos de circulação, adiantados e recuperados pelos comerciantes” (GERMER;
BELOTO, 2006, p. 76). Os capitalistas comerciais e os trabalhadores comerciais, por sua vez,
adquirem meios de produção e meios de consumo de outros comerciantes, incorrendo assim em
custos de circulação de valor aproximadamente igual a 2, resultado da aplicação de 4,63% sobre
50. A classe capitalista como um todo despendeu 44 em custos de circulação, restando 180 – 44
= 136 de mais-valor. Tratando-se de reprodução simples, esse valor é gasto em meios de
consumo dos capitalistas, sobre os quais também incidem custos de circulação de
aproximadamente 6. Repõem-se, assim, os custos de circulação totais de 50 e a classe capitalista
consome, finalmente, mercadorias no valor de 130. Conclui-se, portanto, que a introdução dos

186
Embora os trabalhadores não incorporem custos de circulação à sua força de trabalho, as mercadorias adquiridas
por eles aumentam de preço em função desses custos, aumentando, em termos nominais, o custo de reprodução da
força de trabalho e, consequentemente, o desembolso de capital variável pelo capitalista (GERMER; BELOTO,
2006, p. 73-74).
247

custos de circulação reduz o mais-valor disponível e, com isso, a taxa média de lucro
(GERMER; BELOTO, 2006, p. 75-78).
Considerando-se que o capital adiantado total continua a ser de 1050 – sendo 900
pelo capital industrial e 150 pelo capital comercial – e o mais-valor social à disposição da classe
capitalista passa a ser de 136 (=180-44), a nova taxa média de lucro é de 12,95% (=136/1050).
O lucro e o preço de produção do capitalista industrial em conjunto passam a ser,
respectivamente, 117 e 1017. Os comerciantes, por sua vez, ao venderem por 1080 o capital-
mercadoria, se apropriam do lucro médio de 12,95%, em termos de valor, 19, e repõem os 44
de custos de circulação. Como o valor total continua sendo de 1080, Germer e Beloto (2006),
por esse caminho original, apontam uma saída coerente para a incongruência entre produção e
apropriação sugerida pela exposição de Marx.
Sendo valores iguais a preços de produção do ponto de vista do capital social, todo
valor produzido é apropriado (mesmo com a introdução dos custos de circulação). Portanto,
como o capital comercial não produz valor, seu lucro só pode ser resultado de transferência de
valor. Ao resumir sua teoria do lucro comercial, Marx explicitamente o trata dessa maneira:

A relação que o capital mercantil [capital comercial] estabelece com a mais-valia


difere da que o capital industrial mantém com ela. Este produz a mais-valia
apropriando-se diretamente de trabalho alheio não-pago. Aquele se apropria de parte
dessa mais-valia fazendo que essa parte se transfira do capital industrial para ele.
(MARX, 2008, p. 392).

Em outros termos, Marx (2008, p. 412) diz que o capital comercial “retira seus
dividendos do montante de lucro produzido pelo capital industrial”, o que é válido tanto para o
capital de comércio de mercadorias quanto para o capital de comércio de dinheiro. Sobre este,
o autor afirma que “é claro que seu lucro [do comerciante de dinheiro] é apenas dedução da
mais-valia, pois só lidam com valores já realizados, mesmo quando realizados apenas na forma
de créditos” (MARX, 2008, p. 429).
Portanto, o lucro comercial abre uma nova possibilidade de imperialismo. O capital
comercial “retira algo da mais-valia produzida pelo capital em seu conjunto” (MARX, 2008, p.
392, grifos nossos), pelo capital, adicionemos de nossa parte, em operação no mercado mundial.
Podemos constatar que a exposição de Marx está situada no nível do mercado mundial quando
ele diz que a autonomização do capital comercial faz com que “algures, num ponto invisível,
há mercadoria que não foi vendida” (MARX, 2008, p. 407, grifos nossos). Depois, quando
comenta que “a crise aparece quando os reembolsos dos comerciantes que vendem em mercados
248

distantes (ou tem estoques acumulados no mercado interno) se tornam tão lentos e escassos que
os bancos reclamam pagamento ou as letras correspondentes às mercadorias compradas vencem
antes de estas serem revendidas” (MARX, 2008, p. 408, grifos nossos). Confirma-se aí o
entendimento de mercado mundial como correspondente aos mercados distantes (externos)
mais o mercado interno.
Isso ajuda a explicar o papel arrasador de gigantes corporações varejistas sobre
pequenos produtores espalhados ao redor do mundo, como contemporaneamente destacado por
Smith (2016)187. Tomemos o caso da maior corporação comercial do mundo, Walmart188. A
concorrência com outras companhias do mesmo ramo sugere que a empresa é forçada a vender
as mercadorias pelo preço real de produção (preço de produção industrial mais lucro comercial),
de forma que seu gigantesco lucro não advém de elevar artificialmente o preço de venda acima
do preço de produção (como é o caso da Apple, embora ela também se aproprie de lucro
comercial, ou da antiga Companhia Holandesa das Índias Orientais, como diz Marx (2008, p.
410), para a qual era possível alterar “a seu bel-prazer” as margens de lucro de acordo com os
interesses comerciais, em função do monopólio do comércio e da produção). O lucro dos
grandes capitais comerciais de hoje, como Walmart, parece ser explicado pelo baixo preço de
aquisição com o qual adquire as mercadorias. A cadeia global para a produção de uma camiseta
ou de uma xícara de café, seguindo os exemplos de Smith (2016), comportam várias relações
imperialistas, uma das quais se cristaliza no lucro comercial apropriado pelos capitais
imperialistas.
A Apple, por exemplo, parece se beneficiar de uma dupla relação imperialista: renda
de monopólio, a qual trataremos na subseção 4.5, e lucro comercial. Abstraindo aqui as funções
produtivas da empresa, como desenvolvimento de novos produtos, novas tecnologias etc., ela
desenvolve uma operação de pura intermediação comercial entre a compra dos iPhones prontos
e sua revenda através de sua rede de distribuição, o que nos indica que ela pode se apropriar
sob a forma de lucro comercial de parte do mais-valor produzido através dos capitais industriais
que operam nessa cadeia produtiva. Os indícios de superexploração da força de trabalho nas
empresas asiáticas contratadas pela Apple, conforme largamente documentado em Smith
(2016), sugerem a plausibilidade dessa hipótese.

187
SMITH, J. Imperialism in the TWENTy-First Century: the globalization of production, super-exploitation, and
the crisis of capitalism. Nova York: Monthly Review Press, 2016. p. 12 et seq.
188
De acordo com o ranking “The World’s Biggest Public Companies” de 2016 publicado pela revista Forbes
(c2016), Walmart é a maior empresa do ramo comercial do mundo, seja em quantidade de ativos ou de receitas.
Na comparação entre empresas de vários setores, é a maior do mundo em receitas.
249

Uma questão que os exemplos do Walmart e da Apple permitem iluminar é que


quanto maior o tamanho do capital comercial, maior tende a ser o poder dele em se apropriar
de valor produzido pelos capitais industriais. Nos termos de Marx (2008, p. 392), “o montante
do lucro [comercial] depende do montante de capital [comercial] que pode aplicar nesse
processo, e poderá aplicar tanto mais capital em compra e venda quanto maior o trabalho não-
pago que extrai de seus empregados”. Considerando-se vários capitais comerciais em
concorrência, a velocidade de rotação de cada um é fator decisivo que também determina o
montante de lucro apropriado, como Marx sugere no Capítulo XVIII do Livro III: por trás da
rotação da totalidade do capital comercial, cada comerciante rota seu capital em velocidades
diferentes e quanto mais rotações faz, maior o lucro extra que poderá se apropriar, posto que
poderá vender a mesma mercadoria que seu concorrente por um preço inferior (MARX, 2008,
p. 415).

Obterá então um lucro extra se estiver em situação análoga à do capitalista industrial


que produz em condições mais favoráveis que as que constituem a média. Se forçado
pela concorrência, poderá vender mais barato que seus companheiros, sem que o lucro
fique abaixo da média. Se puder comprar as condições que possibilitam rotação mais
rápida, por exemplo, a localização dos pontos de venda, poderá pagar uma renda extra
para obtê-la, convertendo parte do lucro extra em renda fundiária. (MARX, 2008, p.
418).189

A possibilidade do lucro extra acima do lucro médio para os capitais comerciais


mais avançados do ponto de vista tecnológico – isto é, que detenham o “monopólio do método
aperfeiçoado de produção” (MARX, 2008, p. 417-418, grifos nossos) – ou locacional sugere
que esse pode ser um fator que alimenta a centralização do capital comercial, explicando, ao
menos em parte, a existência de corporações tais como Walmart e outras. O motor desse
processo é a busca por acelerar a rotação do capital comercial.
A aceleração da rotação do capital comercial com o desenvolvimento do sistema de
crédito equivale ao aumento da circulação das mercadorias com a mesma quantidade de
dinheiro (MARX, 2008, p. 406), o que indica que, assim como no caso da rotação do capital
industrial, estamos lidando com uma dimensão temporal da acumulação de capital. Por outro
lado, ao tratar da aceleração da rotação do capital comercial imperialista, conectamos o espaço
à dimensão temporal. Ao acelerar a circulação de mercadorias no mercado mundial com uma
mesma quantidade de dinheiro, os capitais comerciais imperialistas conseguem intensificar a

189
Nos Manuscritos de 1864-65, Marx (2015, p. 420) fala apenas em “renda”, não em “renda fundiária”.
250

integração mundial entre capitais industriais. Enquanto a relação imperialista pode ser descrita
como a interação entre as dinâmicas centrífugas e centrípetas do valor, como descrevemos na
subseção 2.2 desta tese, o significado abstrato da aceleração da rotação do capital comercial
imperialista é potencializar essa interação. Em termos concretos, ela conecta com mais rapidez
compradores e vendedores, onde quer que estejam, potencializando, assim, um duplo
movimento: a dilaceração de formas sociais pré-capitalistas190 e a socialização a nível mundial
do trabalho humano.

4.3 JURO E LUCRO DE EMPRESÁRIO: O PAR CATEGORIAL ADEQUADO PARA


INVESTIMENTO ESTRANGEIRO DIRETO E DÍVIDA EXTERNA

4.3.1 Capital a juros: a forma irracional do capital

No desenvolvimento expositivo do Livro III, a Seção V põe uma nova forma de


capital: o capital portador de juros, ou, simplesmente, capital a juros191. Embora anteceda
historicamente o próprio advento do modo capitalista de produção, o capital a juros é
incorporado na exposição de Marx em um nível tão avançado pois ele é um desdobramento
teórico do próprio dinheiro. Aqui, o dinheiro é visto como capital potencial, ou seja, como
mercadoria que possui valor de uso específico: a capacidade de funcionar como capital.
Supondo uma taxa média de lucro de 20%, como o faz Marx (2008, p. 454), uma
pessoa que dispõe de 100 libras esterlinas pode transferi-las a outra pessoa, a qual poderá usar
essa quantia para produzir, em média, 20 libras esterlinas de lucro. “A parte do lucro que paga
ao cedente chama-se de juro, que nada mais é que nome, designação especial da parte do lucro,
a qual o capitalista em ação, em vez de embolsar, entrega ao dono do capital” (MARX, 2008,
p. 454, grifos nossos). Ou seja, o juro paga “o valor de uso das 100 libras esterlinas, o valor de
uso de sua função de capital” (MARX, 2008, p. 454). O pagamento de juros “em nada altera o

190
É o que Marx (2008, p. 445) sugere ao comentar os efeitos do capital comercial britânico sobre a Índia no
Capítulo XX do Livro III de O Capital, onde parece reafirmar a tese do Manifesto sobre a artilharia pesada da
produtividade. Miranda (2016, p. 118) oferece uma interpretação cuidadosa e original sobre esta questão.
191
Optamos por “capital portador de juros”, como traduzido por Regis Barbosa e Flávio Kothe, do que “capital
produtor de juros”, como consta na tradução de Reginaldo Sant’Anna. Na versão inglesa dos Manuscritos de 1864-
1865 e do Livro III consta “interest-bearing capital”.
251

valor [...], e sim apenas a distribuição por diversas pessoas da mais-valia que já está inserida
nesse valor” (MARX, 2008, p. 462, grifos nossos).
Marx (2008, p. 455) agora designa uma nova categoria de capitalista, o “capitalista-
empresário”, aquele que “exerce a função de capitalista”, isto é, aquele responsável por executar
o movimento D-M...P...M’-D’. Se para executar esse movimento o capitalista-empresário
precisa recorrer a capital de terceiro, o movimento do dinheiro, na verdade, passa a ser o
movimento do capital a juros:

Figura 10 – Movimento do dinheiro como capital portador de juros

𝑫 − 𝑫 − 𝑴 … 𝑷 … 𝑴′ − 𝑫′ − 𝑫′
Fonte: MARX, 2008, p. 456

Devemos destacar, nesse ínterim, que o lucro realizado pelo capital industrial (D’-
D =ΔD) é absorvido, em primeiro lugar, pelo capitalista-empresário que, então, transfere parte
dele sob a forma de juro para o capitalista-monetário192, ou, em outros termos, capitalista
endinheirado, aquele que lhe emprestou a quantia D inicial. O “caráter específico” do capital
portador de juros, sustenta Marx (2008, p. 459), que o distingue do capital-mercadoria e do
capital-dinheiro, é funcionar como mercadoria-capital: “é valor que possui o valor-de-uso de
obter mais-valia, lucro”.

O dinheiro, portanto, se afasta do dono por algum tempo, passando de suas mãos para
as do capitalista ativo; não é dado em pagamento nem vendido, mas apenas
emprestado; só cedido sob a condição de voltar, após determinado prazo, ao ponto de
partida, e ainda de retornar como capital realizado, positivando seu valor-de-uso de
produzir mais-valia. (MARX, 2008, p. 459).

Como “dinheiro que gera dinheiro”, a mercadoria-capital despe-se do “movimento


mediador” interposto pelo processo de produção e assume sua própria vocação (MARX, 2008,
p. 460). De fato, o que distingue o capital a juros das outras formas de capital “é a forma externa
do retorno, dissociada do ciclo mediador” (MARX, 2008, p. 463, grifos nossos). O “retorno do
dinheiro ao capitalista, a volta do capital ao ponto de partida, assume no capital portador de
juros uma configuração inteiramente exteriorizada, dissociada do movimento efetivo de que é

192
Mais uma vez optamos pela tradução de Regis Barbosa e Flávio Kothe, seguindo a tradução inglesa dos
Manuscritos de 1864-65, onde se lê “the Money capitalist” ou “moneyed capitalist” (MARX, 2015, p. 450, 456).
Na versão de Reginaldo Sant’Anna consta “capitalista financeiro”.
252

a forma” (MARX, 2008, p. 464, grifos nossos). Esse processo de exteriorização envolve o
desenvolvimento de uma forma sem conteúdo, como a seguinte passagem parece revelar: “A
mera forma do capital – dinheiro que é desembolsado como uma quantia, Q, e depois restituída
com acréscimo, Q + 1/5 Q, em determinado prazo, sem qualquer outra mediação além desse
espaço de tempo entre o desembolso e o retorno – é apenas a forma irracional do movimento
real do capital” (MARX, 2008, p. 465)193.
A peculiaridade da mercadoria-capital vai além, se comparada com as demais, pois
seu consumo conserva e acresce valor e valor de uso (MARX, 2008, p. 467). As coisas
aparecem ainda mais complicadas quando se constata que “o lucro é esse valor de uso”, ou seja,
o valor de uso é o próprio valor (MARX, 2008, p. 468). Mas tanto a conservação quanto o
acréscimo de valor dependem que a mercadoria-capital se aliene de seu proprietário por um
intervalo de tempo suficiente para a produção do valor, de forma que a restituição do valor ao
capitalista monetário é necessariamente futura e não imediata (MARX, 2008, p. 468-469).
Considerando o imperialismo, esta constatação de Marx pontua diferenças importantes entre
suas formas de manifestação como já apontamos. Na troca desigual, a transferência de valor é
imediata, efetivada no instante em que a transação é realizada. No lucro comercial, a
transferência de valor decorre do intervalo entre o tempo de compra e o tempo de venda, de
maneira que o hiato temporal depende das características do próprio capital comercial
imperialista. No empréstimo a juros, por outro lado, há um intervalo de tempo (cuja magnitude
é externa ao capital) entre a cessão do valor pelo capital imperialista e sua restituição como
valor a mais. A transferência de valor via juros só se realiza transcorrido o prazo determinado
pelo tempo de reprodução do capital industrial operado pelo capitalista-empresário, isto é, fora
do controle direto do capitalista-monetário, o representante do capital imperialista neste caso.
No caso do capital a juros, o tempo está relacionado com a própria determinação
quantitativa da taxa de juros. Uma “determinação imanente ao modo capitalista de produção”
é que a taxa de lucro seja “determinada [...] pelo lucro que o capital industrial proporciona
segundo períodos determinados. Essa regulação superficial se apresenta no capital portador de
juros, pois estes são determinados e pagos ao prestamista em prazos estabelecidos” (MARX,

193 Modificamos vários trechos desta passagem com base em Marx (2015, p. 454): “The mere form of capital –
money that is given out as a sum, A, and returns within a certain period as a sum A + 1/x A, without any other
mediation besides this temporal interval between the giving out and the return payment – is the irrational
[begriffslose] form of the real movement”. O trecho “between the giving out and the return payment” foi excluído
por Engels da redação definitiva do Livro III.
253

2008, p. 473, grifos nossos) 194. Como se nota, a questão temporal é muito importante para
Marx, como enfatizado pelo autor em diversos momentos do Capítulo XXI do Livro III, o que
reforça nossa preocupação em abordar o imperialismo na articulação espaço-tempo195.

4.3.2 Capital-propriedade versus Capital-função: o enquadramento conceitual da


remessa de lucros e pagamento de juros ao exterior

Sendo o juro resultado da distribuição do mais-valor, uma questão crucial é definir


o critério de repartição do lucro médio entre juro e lucro de empresário196. Aqui o caráter de
mercadoria do dinheiro como capital se explicita, já que “a repartição do lucro em juro e lucro
propriamente dito é regulada pela oferta e procura, pela concorrência, portanto, como os preços
de mercado das mercadorias” (MARX, 2008, p. 472). Enquanto na determinação dos preços de
mercado, oferta e procura explicam os desvios destes em relação aos preços de produção; e na
determinação dos salários, oferta e procura explicam os desvios destes em relação ao valor da
força de trabalho; na determinação do juro, a questão é posta de maneira arbitrária pela
concorrência:

[...] a concorrência não determina os desvios da lei, ou melhor, não existe para a
repartição lei alguma além da ditada pela concorrência, pois [...] não existe nenhuma
taxa ‘natural’ de juro. Habitualmente entende-se por taxa natural de juro a fixada pela
livre concorrência. Não há limites ‘naturais’ para a taxa de juros. Se a concorrência
não se limita a determinar os desvios e flutuações, se, portanto, suas forças opostas se
equilibram cessando toda determinação, o que se trata de determinar é em si mesmo
algo arbitrário e sem lei. (MARX, 2008, p. 473).

Sendo assim, a correlação de forças entre capitalistas monetários contra capitalistas


industriais e comerciais é um dos fatores que determinam a taxa de juros (MARX, 2008, p.

194
No lugar de “superficial”, constava “extrínseca” na tradução de Sant’Anna. Optamos por “superficial” seguindo
Barbosa e Kothe e Marx (2015, p. 461). A última frase nos Manuscritos de 1864-1865 está assim: “This too appears
superficially in the case of interest-bearing capital, in such a way that a certain interest appears to have been paid
to the lender for a certain time-interval” (MARX, 2015, p. 461).
195
Desenvolveremos essa questão na subseção 5.1.
196
Lucro de empresário é entendido por Marx (2008, p. 496) como a parte do lucro médio destinado ao capitalista-
empresário: “a parte que lhe cabe do lucro toma necessariamente a forma de lucro industrial ou comercial, ou, para
usar uma expressão que abrange ambos, a forma de lucro de empresário”.
254

493)197, embora, na aparência, sua determinação pertença “ao reino do acaso” (MARX, 2008,
p. 484). Como ela mede o grau em que os primeiros se apropriam de valores produzidos por
trabalhadores contratados pelos segundos, nos parece que o tamanho relativo de cada fração do
capital social determinará os elos fortes e fracos da concorrência.
De todo modo, como o juro é uma dedução do lucro médio, a taxa de juro é
subordinada ontologicamente à taxa geral de lucro. Podemos dizer, ainda, que a taxa de juro
participa tendencialmente da igualação das taxas de rendimento do capital. Do ponto de vista
do nível e não da taxa, o lucro, nos termos de Marx (2008, p. 477, 479), é o “limite máximo do
juro”. A diferença qualitativa entre lucro e juro “deriva da repartição meramente quantitativa
do mesmo montante de mais-valia” (MARX, 2008, p. 484, grifos do autor), ao contrário do que
ocorre com a divisão entre os pares categoriais mais-valor/salário e lucro/renda:

A relação que existe entre a taxa de juro e a taxa de lucro é análoga à que liga o preço
de mercado da mercadoria ao valor dela. A taxa de juro, na medida em que é
determinada pela taxa de lucro, é sempre determinada pela taxa geral de lucro, e não
por taxas específicas predominantes em certos ramos particulares, e menos ainda por
lucro extraordinário que o capitalista isolado obtenha numa atividade especial. Por
isso, a taxa geral de lucro, na realidade, reaparece como fato empírico, dado, na taxa
média de juro, embora esta não seja expressão pura nem fiel daquela. (MARX, 2008,
p. 484-485, grifos nossos).

Na verdade, Marx (2008, p. 485) reconhece que a taxa de juro varia segundo as
garantias oferecidas e segundo a duração do empréstimo, “mas, no momento dado, ela é
uniforme para cada uma dessas classes”. Ou seja, parece que não há uma lei que descreva o
movimento da taxa de juros ao longo do tempo, a não ser enquanto aspecto subordinado à taxa
geral de lucro, cujo movimento já é bem conhecido desde a Seção III do Livro III, e ao próprio
desenvolvimento do sistema de crédito (o qual também contribui para a tendência à redução da
taxa de juros ao longo do tempo).
Uma questão que intriga Marx (2008, p. 495) – e que vai nos ajudar a enquadrar
conceitualmente a remessa de lucros ao exterior – é a seguinte: “como é que se torna qualitativa
essa divisão meramente quantitativa do lucro em lucro líquido e juro?”. O fundamento da
questão é a constatação de que existem casos nos quais o lucro se reparte quantitativamente,
mas, nem por isso, se origina uma diferença qualitativa, como no caso em que “vários

197
Nos termos de Marx (2008, p. 493): “Na realidade, é apenas a separação dos capitalistas em monetários
[financeiros, segundo a tradução de Sant’Anna] e industriais que transforma parte do lucro em juro, cria, enfim, a
categoria do juro; e somente a concorrência entre essas duas espécies de capitalistas gera a taxa de juro”
255

capitalistas industriais, por exemplo, se associam para explorar um negócio e repartir entre si o
lucro dele oriundo de acordo com normas juridicamente estipuladas” (MARX, 2008, p. 495).
A taxa de juro, sendo definida ex-ante à contratação de meios de produção e força
de trabalho pelo capitalista-empresário que utiliza capital de terceiros, delimita a grandeza do
lucro de empresário como resíduo entre o “lucro bruto” e o pagamento dos juros (MARX, 2008,
p. 496). Entretanto, o próprio capitalista-empresário pode aumentar sua taxa de lucro “fora do
processo de produção”, graças à sua “maior ou menor astúcia e diligência”, nas circunstâncias
em que consegue “comprar ou vender acima ou abaixo do preço de produção, de apropriar-se,
dentro do processo de circulação, de parte maior ou menor da mais-valia global” (MARX, 2008,
p. 497). Em síntese sobre a divisão entre juro e lucro de empresário, Marx afirma o seguinte:

[...] a repartição quantitativa do lucro se torna aí qualitativa, e tanto mais quanto a


própria divisão quantitativa depende do que há para repartir, de como o capitalista
ativo administra o capital, e do lucro bruto que retira desse capital operante, em função
de capitalista ativo. Supõe-se então que o capitalista ativo não é proprietário do
capital. Quem representa perante ele a propriedade sobre o capital é o emprestador, o
capitalista monetário [financeiro, segundo a tradução de Sant’Anna]. A este é pago o
juro, que configura assim do lucro bruto a parte que cabe à nua propriedade do capital.
(MARX, 2008, p. 497, itálicos do autor, sublinhados nossos).

A separação qualitativa, portanto, decorre da divisão entre aqueles que representam


a propriedade contra os que assumem a função do capital. O capitalista ativo exerce “funções
específicas” de “empresário industrial ou comercial”, enquanto o juro aparece como “mero
fruto da propriedade do capital, do capital em si” (MARX, 2008, p. 497).
A divisão qualitativa entre juro e lucro de empresário “repousa sobre fato objetivo,
pois o juro flui para o capitalista monetário, o prestamista, mero proprietário do capital,
representa a nua propriedade do capital antes e fora do processo de produção; e o lucro de
empresário flui para o capitalista que funciona sem ser o proprietário do capital” (MARX, 2008,
p. 498). Essa divisão qualitativa apenas revela que as duas partes aparentemente se
autonomizam uma em relação à outra, “como se a origem de uma fosse essencialmente diversa
da origem da outra, e essa circunstância impõe-se então necessariamente à totalidade da classe
capitalista e do capital” (MARX, 2008, p. 498). Isso explica porque mesmo o capitalista que
trabalha com capital próprio divide seu lucro bruto em juro e lucro de empresário: “o juro se
impõe”, diz Marx (2008, p. 499). Assim, o capital “se desdobra em propriedade-capital, capital
fora do processo de produção, que de per si rende juro, e capital dentro do processo de produção,
que operando fornece lucro de empresário” (MARX, 2008, p. 499). A exposição de Marx (2008,
p. 502-507, 519-522) revela, com as implicações da divisão qualitativa entre lucro de
256

empresário e juro, o enorme processo de mistificação da realidade, de consumação da


“concepção fetichista do capital”, posto pela aparente “antinomia” entre “capital enquanto
propriedade” e “capital enquanto função”.
Ao mudarmos o eixo da análise em direção às remessas de lucro ao exterior,
podemos verificar que esta forma de manifestação do imperialismo se fundamenta na disjuntiva
típica do capital a juros entre propriedade-capital e função-capital. Mesmo que em uma relação
matriz-filial quem exerça a função de capital (filial) esteja subordinado ao proprietário do
capital (matriz), essa relação se expressa, ao fim e ao cabo, com a distinção quantitativa entre
lucro reinvestido e lucro repatriado. Assim como a taxa de juro tem uma determinação
pertencente ao “reino do acaso”, não há uma lei (nem jurídica nem teórica/tendencial) que
determine a proporção do lucro que deva ser remetido ao exterior pela filial, que, doravante,
chamaremos de taxa de remessa. De acordo com a conjuntura e as circunstâncias de cada
período, a empresa transnacional, posto que “tem o direito legal aos lucros das filiais” (IETTO-
GILLIES, 2005, p. 26, tradução nossa), escolhe arbitrariamente, embora em alguns casos possa
estar sujeita a limites estabelecidos por legislações locais, se se apropria de mais ou menos lucro
produzido no exterior198. Supondo a inexistência de restrições legais, é apenas possível perceber
os limites máximo e mínimo da taxa de remessa: supondo que a filial produza em condições
médias, o máximo de lucro que poderá ser remetido é o lucro médio, com taxa de remessa de
100%, e o mínimo é zero.
Apesar das estatísticas oficiais sobre investimento estrangeiro direto distinguirem
entre dois tipos de investimentos – fusões/aquisições e investimentos em campos novos
(greenfield) –, ambos implicam a possibilidade de repatriação dos lucros produzidos no exterior.
Ao mesmo tempo, a escolha de qual tipo de investimento depende da estratégia da companhia
e dos motivos implícitos na decisão de fazer o investimento direto199. Qualquer que seja o tipo
ou o motivo do investimento direto, ele põe uma dissociação prática entre capital enquanto
propriedade e capital enquanto função, mesmo que propriedade e função se fundam, como é o
caso em questão.

198
De passagem, podemos notar que a relação entre taxa de remessa e ciclos econômicos assume padrões empíricos
parecidos com o que ocorre entre estes e a taxa de juro. Nos momentos de crise nos países imperialistas as matrizes
repatriam uma proporção maior do lucro produzido pela filial, enquanto nos momentos de prosperidade parece
haver o movimento inverso. Embora possam ser derivados daí padrões interessantes, foge ao escopo de nossa tese
fazer esse tipo de investigação.
199
Smith (2016, p. 70-71) lista quatro tipos de IED de acordo com o motivo do investidor: busca de eficiência
(“forma paradigmática do neoliberalismo”, envolve a fragmentação da produção, sendo que “eficiência significa
corte de custos, em particular custos do trabalho”), busca de mercados (envolve a “replicação do processo de
produção” no país de destino), busca de recursos naturais e busca de tecnologia.
257

Em estudo sobre a divisão qualitativa do lucro médio em lucro de empresário e juro,


Germer (2011) conclui que o capital que recorre a crédito, isto é, a capitais de terceiros, tem
taxa de lucro maior do que aquele que utiliza apenas capital próprio. Ademais, como sugere o
autor a partir de Hilferding, quanto maior o grau de endividamento, maior a taxa de lucro do
empresário. Isso significa que com o desenvolvimento do sistema de crédito, novos
investimentos, independentemente do local a que se destinam, isto é, se no interior do país de
origem ou no exterior, tendem a ser realizados, sempre que possível, quase que exclusivamente
com capitais de terceiros.
A conclusão do parágrafo anterior sugere que o lucro produzido por um
investimento estrangeiro direto pode ser decomposto em três partes: lucro retido, lucro
repatriado e juro200. Do ponto de vista da empresa transnacional, as duas primeiras representam
o que chamávamos de lucro de empresário. Entretanto, se considerarmos que os vários
investimentos da companhia representam capitais diferentes, a situação se altera quando
focamos no ponto de vista da filial. Neste caso, as duas últimas partes do lucro bruto se
manifestam como determinações exteriores, fora de seu comando, se amalgamando, na prática,
como juro a ser pago ao capitalista-proprietário. Sob a ótica da filial, apenas o lucro retido
assume o caráter de lucro de empresário, sendo que até a determinação de ambos como resíduo
os aproxima conceitualmente. Em síntese, embora a repatriação de lucros possa divergir da
forma tradicional de capital a juros, o conteúdo da relação parece ser o mesmo.
A maneira como expomos a divergência entre remessas de lucros e pagamentos de
juros, tratando-a como intrinsecamente formal, se coaduna com a maneira como
tradicionalmente a teoria marxista do imperialismo enxerga a exportação de capitais. Do ponto
de vista do capital imperialista, tanto faz se ele se apropria de valores via repatriação de lucros
ou recebimento de juros. É por isso que Hilferding, como destacamos nas considerações iniciais
desta seção, trata exportação de capitais como “valor destinado a gerar mais-valor no exterior”,
corporificado em “capital produtor de lucros ou de juros”.
Mesmo do ponto de vista da economia dependente, Marini (2012a, p. 25-26) não
põe diferenças substantivas entre as duas formas com as quais o capital estrangeiro se incorpora
ao ciclo do capital. Seja com investimentos diretos ou via empréstimos e financiamentos, que
Marini designa como investimentos indiretos, o que muda é o tipo de remuneração que se

200
A questão se complexifica se considerarmos a situação corriqueira de o investimento corresponder a uma
sociedade por ações. Neste caso, adicionaríamos uma quarta parte ao lucro bruto referente à distribuição de
dividendos. Como não alteraria o conteúdo do argumento em função de que ela também estabelece a separação
entre capital-propriedade e capital-função (MARX, 2008, p. 512), optamos por não a adicionar na exposição.
258

obtém: “à diferença do lucro ou dividendo industrial, o capital estrangeiro, além das taxas de
amortização, cobra taxas de juros que são deduzidas da mais-valia gerada pelo investimento
produtivo para o qual ele contribuiu, sem haver assumido, contudo, os riscos da produção e
realização dessa mais-valia”. Sobre a relação entre entrada de capital estrangeiro e
desenvolvimento da economia dependente, Marini aporta o seguinte:

Sendo evidente que o capital estrangeiro se integra ao e determina o ciclo do capital


da economia dependente e, por conseguinte, seu processo de desenvolvimento
capitalista, não se deve perder de vista que ele representa uma restituição de capital
em relação ao que drenou anteriormente da economia dependente; restituição que é,
além do mais, parcial. (MARINI, 2012a, p. 25, grifos do autor).

O investimento estrangeiro é uma via de mão-dupla: por um lado contribui, direta


ou indiretamente, com a acumulação de capital na economia dependente e, por outro, drena
continuamente parte do mais-valor produzido. Depois de cumprido o ciclo produtivo, o capital
estrangeiro tem direito a uma parte do mais-valor, “sob a forma de lucro ou juros, conforme se
trate de investimento direto ou indireto. Isso dá lugar a transferências de mais-valia ao exterior”
(MARINI, 2012a, p. 26).
O próprio Marx parece reconhecer o que estamos chamando de essência do
imperialismo quando aborda, de passagem, a relação entre o capital inglês e as periferias do
mercado mundial. Ao tratar de investimentos britânicos na Índia, ele não diferencia a forma sob
a qual o capital se exporta:

Antes de mais nada é compreensível que se remetam para a Índia tantos milhões em
metal precioso ou em carris [trilhos] para aí empregar em ferrovias, ambas as coisas
constituem apenas formas diferentes de transferir de um país para outro o mesmo
montante de capital, e uma transferência que não entra no domínio dos negócios
mercantis habituais e pela qual o país exportador nada espera além da futura renda
anual derivada das receitas dessas ferrovías. (MARX, 2008, p. 764, grifos nossos).

Tal é, enfim, a essência do imperialismo: transferência de mais-valor derivada de


transferência de capital sob qualquer forma (capital-dinheiro, capital produtivo ou capital-
mercadoria). Neste caso específico, Marx está considerando a remessa de lucros da Índia para
a China como resultado do investimento inglês em ferrovias na Índia. Em outro lugar, nosso
autor retoma essa questão:

Só a Índia tem de pagar 5 milhões em tributos, por ‘bom governo’, juros e dividendos
de capital britânico etc., não se incluindo aí as somas anualmente enviadas para a
259

metrópole pelos funcionários, poupadas dos respectivos ordenados, ou pelos


comerciantes ingleses, tiradas do lucro, a fim de serem empregadas na Inglaterra.
Pelas mesmas razões saem continuamente de toda colônia britânica grandes remessas.
(MARX, 2008, p. 781, grifos nossos).

Juros e dividendos são tomados, nesse contexto, indistintamente: formas de


transferência de valor decorrentes da exportação de capital inglês. Portanto, não faz
absolutamente diferença teórica, do ponto de vista da relação imperialista, se o valor se transfere
na forma de juros ou de lucros/dividendos. Isso nos capacita a afirmar que a remessa de
lucros/dividendos de uma filial a uma matriz pode ser entendida a partir do capital portador de
juros, da diferença entre juro e lucro do empresário. Faz muita diferença, por outro lado, para a
economia dependente, se a remessa é de juros ou lucros, posto que refletem implicações
diferentes sobre o processo reprodução do capital.
Além da Índia, Marx comenta sobre os direitos do capital inglês ao recebimento de
dividendos por investimentos em bancos na Austrália e no Canadá e juros pela compra de títulos
públicos europeus, norte-americanos e sul-americanos. Após comentar o quanto que a Inglaterra
tem direito a se apropriar de valores produzidos em vários lugares do mundo, Marx (2008, p.
781-782) constata que “são insignificantes, em cotejo, as remessas que a Inglaterra faz para o
exterior”. Nossa interpretação é que Marx percebera que do total dos fluxos internacionais de
valor, grande parte se direciona para o centro imperialista do mercado mundial: a força
centrípeta do valor, isto é, o retorno em direção ao centro do valor que havia se espalhado
mundialmente, é maior do que a força centrífuga. Ou seja, do ponto de vista do capital
imperialista, a apropriação de valor é superior à produção.
A entrada de capital estrangeiro nas economias dependentes, seja direta ou
indiretamente, potencializa a própria dependência à medida que a tecnologia incorporada nos
capitais fixos é monopolizada e, por isso, abre uma nova forma de transferência de valor: o
pagamento de royalties.

Na verdade, a indústria manufatureira dos países dependentes se apoia em boa parte


no setor de bens de capital dos países capitalistas avançados, por meio do mercado
mundial. Por consequência, essa indústria manufatureira é dependente não só em
termos materiais, no que se refere aos equipamentos e maquinaria enquanto meios
materiais de produção, mas também tecnologicamente, ou seja, na medida em que
deve importar também o conhecimento para operar esses meios de produção e,
eventualmente, fabricá-los. Isso incide, por sua vez, na relação financeira com o
exterior, dando lugar aos pagamentos na modalidade de royalties ou assistência
técnica, que constituem outros tantos fatores de transferência de mais-valia, de
descapitalização. (MARINI, 2012a, p. 27-28).
260

Ou seja, quanto mais o imperialismo se expande, mais ele se enraíza. A motivação


original para a exportação de capital conduz ao processo de transferência de valor via lucros
repatriados ou juros. Ao espraiar o consumo de capital fixo produzido sob condições
monopolistas, se constitui a dependência tecnológica que, por sua vez, conduz a nova forma de
transferência de valor.
Ao tratar remessa de lucros e pagamento de juros como duas formas de
transferência de valor dentro do mesmo marco teórico – do capital portador de juros, assim
como o fizeram, em nossa interpretação, Hilferding e Marini, nos anos 1910 e 1970,
respectivamente –, poderíamos nos questionar se o desenvolvimento de formas de capital
fictício na esteira do processo de financeirização do capitalismo mundial resultaria em uma
mudança qualitativa naquele entendimento. Isto é, como o capital fictício é um desdobramento
lógico-teórico do capital a juros, podemos nos indagar o quanto a potencialização do primeiro
a partir dos anos 1970/80 reflete transformações qualitativas no segundo e – o que é
fundamental para nós – se tais transformações negariam o enquadramento teórico defendido
nesta subseção, aquele segundo o qual remessa de lucros e pagamento de juros são tratados nos
marcos do capital a juros.
Como mostraremos na próxima subseção, o desenvolvimento de novas e complexas
formas de capital fictício origina novas formas de transferência de valor as quais se articulam e
pressupõem as formas descritas nesta subseção.

4.4 LUCRO FICTÍCIO: O IMPERIALISMO PARASITÁRIO

A Seção V do Livro III de O Capital “trata da matéria mais complexa do livro”


(ENGELS, 2008, p. 16) e abarca dois grandes temas: o capital portador de juros, entre os
Capítulos XXI e XXIV, e crédito e capital fictício, cujo assunto se encontra a partir do Capítulo
XXV até o XXXIV (MOSELEY, 2016, p. 24-25). Enquanto os capítulos relativos ao primeiro
tema “estavam em substância elaborados”, os seguintes estavam desordenadamente redigidos
e insuficientemente desenvolvidos, como Engels (2008, p. 16-17) alerta no Prefácio ao Livro
III. Dos Manuscritos de 1864-1865 ao Livro III, Engels fez modificações na redação, incluindo
longos trechos por sua própria conta e dividindo o texto em capítulos, dando origem ao que
conhecemos como Capítulos XXV à XXXIV, os quais, nos Manuscritos de Marx, estavam
todos reunidos sob o título “Crédito, capital fictício”. Portanto, o título escolhido por Engels
261

para o Capítulo XXV do Livro III era, na verdade, o título de todo o conjunto de manuscritos
que iam deste capítulo até o XXXIV.
No Capítulo XXV, o termo “capital fictício” quase aparece pela primeira vez na
obra. Em uma nota de rodapé dos Manuscritos de 1864-1865 que Engels traz para o corpo do
texto deste capítulo, Marx cita trechos de um comentário de um banqueiro inglês sobre a
possibilidade de simular a criação de capital através de letras201. No texto original, em inglês, o
banqueiro usa a expressão “fictitious capital”, que Marx traduz para o alemão com o sentido de
capital simulado ou capital fingido, e não capital fictício. Conforme nota dos tradutores Regis
Barbosa e Flávio Kothe, “Marx usa aqui fingiertes Kapital (capital fingido) e não fiktives
Kapital (capital fictício), como seria a tradução literal fictitious capital, provavelmente porque
quis reservar essa expressão para um conceito mais amplo” (MARX, 1985b, p. 302).
Após essa quase aparição, a categoria capital fictício é exposta por Marx apenas no
Capítulo XXIX. Antes disso, porém, ao criticar as ideias de Tooke e Fullarton no Capítulo
XXVIII, Marx (2008, p. 608) comenta que títulos públicos, hipotecas e ações “não são capital
efetivo, não constituem componentes do capital e em si não são valores”. Apesar disso, continua
o autor, a propriedade sobre esses papéis dá direito à apropriação futura de valor, sob diferentes
formas, pois títulos públicos “de per si não são capital, mas dívidas ativas puras”, hipotecas são
“meros papéis que capacitam a obtenção futura de renda fundiária” e ações são “meros títulos
de propriedade que dão direito à percepção futura de mais-valia”.
Marx (2008, p. 615-616) afirma, no Capítulo XXIX, que existem títulos que rendem
juros mesmo sem terem sido resultado de uma operação de crédito para um capitalista-
empresário. A constatação de que qualquer renda possa ser designada como juro decorre da
“forma do capital portador de juros [que] faz [com] que toda renda monetária determinada e
regular apareça como juro de um capital, derive ela ou não de um capital. Primeiro se converte
a renda monetária em juro, e como juro se acha então o capital donde provém”. Para que toda
“receita fixa anual” seja considerada juro de um capital, a fonte dessa receita precisa ser
“diretamente transferível ou assuma forma em que se torne transferível”.
Com o exemplo dos títulos de dívida pública, Marx (2008, p. 616-617) apresenta
pela primeira vez o capital fictício como uma decorrência do capital a juros. Neste caso, “o que
o credor possui é (a) um título de dívida contra o Estado, digamos, de 100 libras esterlinas; (b)

201
A citação do banqueiro é a seguinte: “É impossível determinar quantas delas [referindo-se às letras] provêm de
negócios reais, por exemplo, de compras e vendas efetivas, e quantas são postiças, simples papagaios emitidos
para recolher letras que estão para vencer, com o que se constitui capital simulado [fictitious capital], emitindo-se
valores circulantes imaginários” (MARX, 2008, p. 532).
262

esse título lhe dá direito a participar das receitas anuais do Estado, isto é, do produto anual dos
impostos, em determinada importância, digamos, de 5 libras esterlinas ou 5%; (c) pode vender
esse título de 100 libras a quem quiser”. Se a taxa de juros é de 5%, o proprietário do título
público, A, pode vende-lo a um terceiro, B, por £100, “pois para este tanto faz emprestar
anualmente 100 libras esterlinas a 5% quanto assegurar-se mediante o pagamento de 100 libras
esterlinas um tributo anual pago pelo Estado, no montante de 5 libras esterlinas”. O dinheiro
recebido pelo Estado foi gasto, “não existe mais”, de forma que o capital que dá origem às 5
libras esterlinas anuais “permanece ilusório, fictício” (grifos nossos). Para o credor, entretanto,
a receita anual de £5 que lhe é de direito continua existindo, é real, “representa juros de seu
capital”.

A possibilidade de vender o crédito que tem contra o Estado representa para A o poder
de reembolsar o principal. Quanto a B, do ponto de vista particular dele, empregou
capital como capital portador de juros. Objetivamente, apenas substituiu A, ao
comprar-lhe o crédito contra o Estado. Por mais numerosas que sejam essas
transações, o capital da dívida pública permanece meramente fictício, e a partir do
momento em que os títulos de crédito se tornam invendáveis, desfaz-se essa aparência
de capital. Não obstante, conforme logo veremos, esse capital fictício possui
movimento próprio. (MARX, 2008, p. 617, grifos nossos).

Se revela aqui que o capital fictício é capital apenas na aparência, no nível da


superfície das relações mercantis individuais. Com R. Carcanholo (2013, p. 146), entendemos
que a dialética fictício-real decorre da disjuntiva indivíduo-totalidade: “o capital fictício é real
do ponto de vista dos atos mercantis do dia a dia, do ponto de vista do ato individual e isolado,
mas é fictício do ponto de vista da totalidade da economia. Ele é e não é fictício; ele é e não é
real. Essa é sua dialética”. O ponto do autor – que nos interessará diretamente para a sequência
do argumento – é que para o indivíduo o capital fictício aparece como real, sendo que sua
existência se objetiva nas possibilidades de ganhos ou perdas especulativas decorrentes de
serem percebidos como verdadeiras riquezas mercantis. Entretanto, do ponto de vista da
totalidade, “não há substância real, não há riqueza previamente produzida” que sustente sua
existência (CARCANHOLO, R., 2013, p. 146).
Ao vender os direitos de apropriação de um fluxo de rendimentos, considerando a
existência de uma dada taxa média de juro, cria-se capital fictício. Nos termos de Marx (2008,
p. 618), isso se chama “capitalizar” uma “receita periódica”: “Assim desaparece o último
vestígio de conexão com o processo efetivo de valorização do capital e reforça-se a ideia de ser
o capital autômato que se valoriza por si mesmo” (grifos nossos). Ou seja, o capital fictício
potencializa a mistificação posta pelo capital portador de juros.
263

À medida que os direitos de apropriação se materializam em títulos, papéis de toda


sorte, que se negociam livremente, “convertem-se em mercadorias, com preço que varia e se
fixa segundo leis peculiares” (MARX, 2008, p. 619). Sendo mercadorias, o preço de mercado
“flutua com o nível e a segurança dos rendimentos a que os títulos dão direito”, adquire um
“movimento autônomo” que “reforça a aparência de constituírem capital efetivo ao lado do
capital ou do direito que possam configurar” (MARX, 2008, p. 619). A autonomia do valor de
mercado do capital fictício é em parte especulativa e em parte determinada pela taxa de juros:

O valor de mercado desses títulos é em parte especulativo, pois não é determinado


apenas pelo rendimento efetivo, mas pelo esperado, pelo que previamente se calcula.
Admitido que seja constante a mais-valia produzida pelo capital efetivo ou, não
existindo capital, como no caso da dívida pública, que o rendimento anual seja
legalmente fixado, e que além disso haja segurança bastante, o preço desses títulos
varia na razão inversa da taxa de juro. (MARX, 2008, p. 619).

R. Carcanholo e Sabadini (2009) mostram que os movimentos nos preços do capital


fictício podem originar “lucros fictícios”. Os autores percebem a existência de dois tipos de
capital fictício: de tipo 1, equivalente à “duplicação aparente do valor do capital a juros”
(CARCANHOLO, R.; SABADINI, 2009, p. 45), caso da emissão de ações, por exemplo, na
qual o valor captado pela sociedade anônima na bolsa de valores parece possuir uma dupla
existência, enquanto capital real, ligado às atividades produtivas da empresa, e enquanto capital
fictício, decorrente da possibilidade de negociação das próprias ações no mercado secundário;
e de tipo 2, resultado da valorização ou desvalorização especulativa dos títulos de propriedade,
como as ações. Nos termos dos autores:

[...] uma valorização especulativa das ações constitui um aumento do volume total do
capital fictício existente na economia. Porém, esse incremento possui uma
característica distinta do valor original: não constitui duplicação aparente de um valor
real. Na verdade, por detrás dele não há nenhuma substância real. Por isso, vamos
chamar esse aumento de capital fictício de tipo 2. (CARCANHOLO, R.; SABADINI,
2009, p. 44-5, grifos do autor).

O lucro fictício decorre exatamente da possibilidade de que a valorização


especulativa se mantenha por determinado período e, assim, se diferencia do que Hilferding
(1985, p. 139) chamava de “lucros diferenciais”202. Para este autor, a especulação com ativos
financeiros gerava um jogo de soma zero no qual os ganhos de uns compensavam as perdas de

202
Cf. Sabadini (2013) para um rigoroso exame da obra de Hilferding especialmente focado nos lucros diferenciais
e do fundador.
264

outros. Marx (2008, p. 410) fala em “lucro especulativo”, numa nota de rodapé, ao citar o
trabalho de Corbet que diz que o lucro especulativo “funda-se na alteração do valor do capital
ou na do próprio preço”. R. Carcanholo e Sabadini (2009, p. 50-51), por outro lado, sustentam
que pode haver criação de lucros fictícios – sem que necessariamente outros agentes do mercado
incorram em prejuízos – enquanto o processo de valorização especulativa se sustentar. A lógica
do raciocínio dos autores é que em momentos de valorização especulativa, o detentor de
determinado título pode vendê-lo por preço acima do valor, se apropriar de lucro fictício, sem
que o comprador incorra em prejuízo, posto que pode revender o título por um preço ainda
maior e, com isso, também se apropriar de lucros fictícios203.
Seguindo R. Carcanholo e Sabadini (2009, p. 51), nas circunstâncias em que lucros
fictícios “são ‘produzidos’ pela especulação”, há um aumento no “volume total do capital
fictício existente no conjunto da economia”. Para ser mais preciso, aumenta-se o volume total
de capital fictício de tipo 2. Entretanto, o descolamento aparente entre capital fictício e capital
real não é e não pode ser permanente. O crescimento do volume de capital fictício, conforme
aponta M. D. Carcanholo (2011, p. 75-76, grifos do autor), significa “a expansão de títulos de
apropriação sobre um valor que não é necessariamente produzido na mesma proporção” e,
quando isso ocorre, “prevalece a disfuncionalidade do capital fictício para o modo de produção
capitalista”, ou seja, sobrevém a crise e a desvalorização do capital em funcionamento. Em
outros termos, Sabadini (2013, p. 20) afirma que o “movimento do capital fictício acirra [...] a
contradição entre a produção social e apropriação privada da riqueza coletiva, acentuando o
caráter contraditório da produção e acumulação capitalista ao se basear, ao menos em parte, em
riqueza fictícia que não contém substância valor-trabalho em sua origem”. Voltando a R.
Carcanholo e Sabadini (2009, p. 51), “quando o mercado apresenta uma reversão de sua
trajetória, destrói capital fictício e essa destruição vai aparecer como se fosse uma destruição
de riqueza real, e de fato é, só que exclusivamente do ponto de vista do ato individual e isolado”.
Em síntese, “o lucro fictício existe enquanto se mantenha a valorização especulativa
de um ativo qualquer e desaparece caso, eventualmente, desapareça dita valorização”
(CARCANHOLO, R.; SABADINI, 2009, p. 49-50). Do ponto de vista individual, os lucros
fictícios são “verdadeiros, reais”, embora, do ponto de vista da totalidade, “esses lucros são

203
No Capítulo XXIV do Livro I, Marx comenta, não com esses termos, sobre apropriação de valor através do que
chamamos de lucros fictícios: “A certo Sullivan é atribuído um contrato de fornecimento de ópio, e isso no
momento de sua partida – em missão oficial – para uma região da Índia totalmente afastada dos distritos de ópio.
Sullivan vende seu contrato por £40.000 a certo Binn. Este, por sua vez, vende-o, no mesmo dia, por £60.000, e o
último comprador e executor do contrato declara que, depois disso tudo, ainda obteve um lucro enorme” (MARX,
2013, p. 822-823).
265

pura ‘fumaça’” (CARCANHOLO, R.; SABADINI, 2009, p. 49-50, grifos dos autores), ou seja,
não são reais. Portanto, se do ponto de vista da totalidade não existem lucros fictícios, devemos
considerar que eles representam, de fato, um jogo de soma zero: a negociação especulativa de
títulos de propriedade a preços crescentes significa que, em algum momento, quando os preços
caírem, aqueles que detêm os títulos terão prejuízos fictícios que compensam os lucros fictícios
auferidos nos momentos de crescimento da riqueza fictícia. Essa aproximação com os lucros
diferenciais de Hilferding foi reconhecida por Sabadini (2013, p. 18) quando este autor afirma
o seguinte: “acreditamos que os lucros diferenciais de Hilferding se aproximam, ou se
equivalem, aos lucros fictícios aqui brevemente expostos à medida que dão destaque ao
movimento especulativo dos ativos financeiros num processo de autonomização em relação à
produção de mais-valia”204.
Sendo os lucros especulativos – diferenciais ou fictícios – resultados de venda de
títulos que representam capital fictício por preço acima do preço de compra, são transações
efetuadas exclusivamente na esfera da circulação. Diferentemente do lucro comercial – que
representa transferência de valor diretamente do capital industrial – ou do juro – resultado de
transferência a partir dos capitais industrial ou comercial –, os lucros especulativos decorrem
de transferência de valor entre agentes envolvidos exclusivamente na circulação. Mesmo que
tal transferência se manifeste decisivamente apenas com a eclosão de crises no mundo do capital
fictício, ela vai se acumulando em potência à medida que títulos que dão direito à apropriação
de determinado valor x são negociados por x+y, x+y+z, e assim sucessivamente, desde que y e
z sejam maiores do que zero. Ou seja, supondo que A pagou x+y a B por um título que foi
adquirido por B por x e que dá direito à apropriação de x, esperando revendê-lo a C por x+y+z,
A transfere valor equivalente a y para B. Se o preço do título cair para x antes que A consiga
vende-lo para C, consuma-se a perda de A equivalente ao que B ganhou. Por outro lado, se A
conseguir vender a C por x+y+z e, em sequência, o preço cair a x, C terá um prejuízo de y+z,
sendo y transferido a B e z a A. Evidentemente, esse processo pode durar anos e envolver
inúmeros agentes. Por isso dissemos que enquanto o preço do título se mantiver
especulativamente em alta, as transferências de valor vão se avolumando em potência. Quanto

204
Embora reconheça uma similitude entre a abordagem que vem desenvolvendo e a de Hilferding, Sabadini (2013,
p. 20) demonstra um certo receio em associar as categorias lucro fictício e lucro diferencial pois “não há em
nenhum momento qualquer referência do autor [Hilferding] ao fato de que ao se propor lucros especulativos
descolados da produção de mais-valia ele estaria ‘ferindo’ o método marxista de análise da produção e apropriação
da riqueza capitalista, método este que o próprio autor o define como sustentáculo de sua obra”. Ou seja, Hilferding
não teria demonstrado que a apropriação de lucros diferenciais não contradiz a teoria do valor de Marx, ao passo
que R. Carcanholo e Sabadini (2009) o fizeram.
266

maior a distância entre o preço do título e o valor que ele permite ao seu proprietário se
apropriar, maior a transferência de valor envolvida nesse processo.
Uma leitura desatenta de R. Carcanholo e Sabadini (2009, p. 49), ou mesmo de R.
Carcanholo (2013, p. 154-155), parece sugerir o contrário, já que ambos são enfáticos ao
mencionar que os lucros fictícios não decorrem de transferência de valor, mas de incremento
da riqueza fictícia total. Entretanto, isso só é válido, como os próprios autores parecem indicar,
durante o curto período de tempo no qual os preços dos ativos financeiros são continuamente
alimentados pela própria especulação. Considerando-se um período mais longo, que abarque
todas as fases do ciclo econômico, demonstra-se que a criação de riqueza fictícia, base para os
lucros fictícios, se alterna com sua destruição. A questão temporal envolvida aqui se baseia no
próprio desenvolvimento do sistema de crédito, o qual prolonga os intervalos entre compra e
venda, “servindo por isso de base para a especulação” (MARX, 2008, p. 582).
Quando Marx comenta a relação entre taxa de juro, crise e preço dos títulos, sugere
uma interpretação parecida com a que desenvolvemos anteriormente:

A taxa de juro atinge seu nível mais alto nas crises, quando, para pagar, se tem de
tomar emprestado a qualquer preço. Acarretando a alta do juro queda no preço dos
títulos, tem então as pessoas que dispõem de capital-dinheiro excedente oportunidade
para se apropriarem, a preços ridículos 205, desses papéis rentáveis, que
necessariamente recuperarão pelo menos o preço médio quando a situação se
normalizar e o juro de novo cair. (MARX, 2008, p. 480).

Ao invés de tratar abstratamente os agentes envolvidos na circulação de capital


fictício, como fazíamos ao chama-los apenas de A, B e C, a explicação de Marx incorpora a
concretude das frações de classe: nas crises, a desvalorização dos títulos significa a
transferência de valor dos capitalistas endividados para os capitalistas endinheirados. Esse fato
incorpora um processo de duas dimensões: por um lado os grandes capitalistas monetários
auferem a possibilidade de lucros fictícios durante a crise e, ao mesmo tempo, expropriam os
pequenos capitalistas pagando-lhes preços irrisórios por títulos que normalmente valem mais.
Por esse motivo, em outro lugar, Marx (2008, p. 620) afirma que na crise a desvalorização do
capital fictício “atua poderosamente no sentido de centralizar a riqueza financeira”.
Antes de finalizar, precisamos tecer algumas considerações específicas sobre o
mercado de derivativos, amplamente disseminado com o processo de financeirização da

205
Utilizamos a tradução de Barbosa e Kothe para designar “preços ridículos” (p. 271) no lugar de “preços vis”,
como consta na edição da Civilização Brasileira. Na tradução inglesa dos Manuscritos de 1864-65, lê-se “spot
prices” (p. 464).
267

economia mundial. Na interpretação de R. Carcanholo e Sabadini (2009, p. 56), como


rendimentos de derivativos decorrem efetivamente de perdas de outros agentes envolvidos, tais
rendimentos “não podem ser considerados como fictícios e nem mesmo como lucros. São, na
verdade, puras transferências de valor”. Concordamos apenas parcialmente com essa
interpretação, posto que o rendimento, de fato, é uma “pura transferência de valor”, mas existem
tipos de derivativos que possuem mercado secundário no qual podem ser negociados
livremente, o que possibilita a seus proprietários a apropriação de lucros fictícios206.
A multiplicação de instrumentos financeiros no capitalismo contemporâneo reflete
a diversidade de instituições envolvidas na intermediação desses instrumentos: bancos, brokers,
asset managers, companhias de seguro, fundos de pensão etc. Por efetuarem os “movimentos
puramente técnicos”, típicos do capital de comércio de dinheiro, todos recebem sua comissão
como uma dedução do lucro industrial ou comercial, como vimos na subseção 4.2. O que é
relevante, agora, é constatar que “todas as formas de operação financeira podem potencialmente
contribuir com a transferência de mais-valor de um país para outro e contribuir para aumentar
o poder dos países dominantes” (NORFIELD, 2016, p. 95-97, tradução nossa). Não é por
coincidência, seguindo o argumento de Norfield, que as principais praças financeiras do mundo
se localizem nos principais países imperialistas. Para além da falsa dicotomia entre interesses
financeiros e industriais, Norfield (2016, p. 91) mostra que o capital fictício “não é apenas de
propriedade e controlado por capitalistas do ‘setor financeiro’. Companhias industriais e
comerciais [...] também utilizam títulos para consolidar seu poder de mercado”.
Retomando a metáfora marxiana segundo a qual o capital é como um vampiro, que
“vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga”,
Norfield (2016), cujo interesse maior é desvendar a relação entre a City londrina e o
imperialismo, descreve o imperialismo britânico contemporâneo:

O imperialismo britânico criou uma máquina financeira que funciona como um banco
de sangue do vampiro que suga mais-valor produzido ao redor do mundo, em todos
os países e em todas as moedas. A City bebe um gole de cada valor que flui através
dela nos acordos financeiros nos quais ela participa na condição de centro global. [...]
Esses títulos [negociados pela City e por outras praças financeiras] representam uma
reinvindicação sobre o valor futuro produzido na economia mundial, mas também
revelam a riqueza presente e o poder controlador de seus proprietários capitalistas.
(NORFIELD, 2016, p. 228, tradução nossa).

206
Em Leite (2011), mostramos que os derivativos hipotecários mais comuns, como os mortgage-backed securities
(MBS), são capital fictício.
268

Em síntese, por mais auspiciosas que sejam as formas financeiras de transferência


internacional de valor, elas repousam, necessariamente, sobre a exploração da força de trabalho.
O imperialismo representa, nesse sentido, a distribuição desigual do mais-valor produzido
globalmente. Por maior que seja a mistificação presente em suas formas fenomênicas de
manifestação, ele é definitivamente uma relação social.

4.5 RENDAS DE PROPRIEDADE: IMPERIALISMO, MONOPÓLIOS E MARCAS

4.5.1 A teoria da renda diferencial em O Capital207

Na última subseção da Seção III desta tese, mostramos que determinados capitais
individuais podem se apropriar de superlucros caso mantenham os preços de mercado acima
dos preços de produção. Dessa forma, o superlucro compreende o lucro médio mais o lucro
extra, sendo que este pode provir de duas fontes, dando “duas formas” ao superlucro: (a) do
menor preço de custo dentro do ramo, o que equivale ao mais-valor extra; ou (b) da capacidade
de se apropriar de preço de mercado acima do preço de produção, o que equivale à renda de
propriedade ou de monopólio (MARX, 2008, p. 257). No final do Capítulo X do Livro III de O
Capital, Marx sugere, de passagem, que a explicação para essa possibilidade seria desenvolvida
no estudo da renda fundiária. De fato, é ali, na penúltima seção do Livro III, que encontraremos
as determinações dos superlucros, ou, em outros termos, as determinações da renda de
monopólio. Nesse sentido, Marx (2008, p. 825) assegura que o objetivo desta subseção é
“esclarecer o valor econômico, isto é, a valorização desse monopólio na base da produção
capitalista”.
Marx expõe seu argumento baseando-se no exemplo da propriedade fundiária, ou,
em outros termos, nas implicações para a reprodução do capital social da existência de uma
renda derivada da propriedade. Desde logo, é importante ter claro que a propriedade da terra é
apenas um caso específico de propriedade monopólica em geral. Assim, a renda da terra é, na

207
Trataremos apenas da renda diferencial de tipo I, considerando que “a renda diferencial II é apenas outra
expressão da renda diferencial I, coincidindo com esta em substância” (MARX, 2008, p. 899). A diferença entre
ambas reside, basicamente, no seguinte elemento: a renda diferencial de tipo I é estabelecida quando capitais
aplicados em terras diferentes produzem mercadorias com níveis distintos de produtividade, enquanto que na renda
de tipo II o argumento é desenvolvimento considerando-se capitais diferentes aplicados na mesma terra.
269

realidade, renda derivada da propriedade, como diz Marx (2008, p. 824-825): “para sermos
mais precisos, observaremos que nosso conceito de terra abrange também águas etc. que, como
acessório dela, tenham proprietário”. Ou, em outros termos, “a propriedade fundiária supõe que
certas pessoas tem o monopólio de dispor de determinadas porções do globo terrestre como
esferas privativas de sua vontade particular, com exclusão de todas as demais vontades”
(MARX, 2008, p. 824-825).
Em nota de rodapé, Marx (2008, p. 825) critica a concepção de Hegel sobre a
propriedade privada, entendida por este não como “determinada relação social, mas relação
entre o homem como pessoa e a ‘natureza’, ‘direito absoluto que tem o ser humano de apropriar-
se de todas as coisas’”. A ênfase da crítica de Marx é por Hegel tratar a “livre propriedade
privada da terra” como aistórica, natural, e não como produto histórico, social portanto. Em
vários momentos da exposição, Marx enfatiza que a propriedade fundiária é uma “forma
histórica específica” na qual o trabalhador foi despojado da propriedade da terra para
subordinar-se “a um capitalista que explora a agricultura para conseguir lucro” (MARX, 2008,
p. 823-824). Ou seja, a renda derivada da propriedade, objeto da Seção VI do Livro III, é
entendida a partir do momento em que está subordinada ao uso capitalista da terra; pressupõe,
portanto, as expropriações.
Seguindo esse argumento, o sistema capitalista cria a forma específica de
propriedade fundiária moderna, na qual a terra representa para o proprietário “um tributo em
dinheiro que o monopólio lhe permite arrecadar do capitalista industrial, o arrendatário”
(MARX, 2008, p. 827, grifos nossos). A separação capitalista entre a terra como “condição de
trabalho” e a terra como “propriedade” implica que os proprietários da terra não precisam mais
ter nenhuma relação com a terra em si: “os vínculos se desfazem tanto que donos de terras na
Escócia podem passar toda a vida em Constantinopla” (MARX, 2008, p. 827). Sendo assim, a
propriedade fundiária adquire através da dominação capitalista da agricultura uma “forma
puramente econômica”, sem vestígio, portanto, de tradição, cultura, história etc. A
proeminência da esfera econômica sobre as demais instâncias da vida social deixa em aberto a
possibilidade de que a renda derivada do monopólio seja resultado de transferência de valor a
partir do capital industrial em qualquer lugar do planeta.
O que Marx chama de renda fundiária é precisamente o seguinte:

[O] capitalista arrendatário paga ao proprietário das terras, ao dono do solo que
explora, em prazos fixados, digamos, por ano, quantia contratualmente estipulada
(como o prestatário de capital-dinheiro paga determinado juro) pelo consentimento de
empregar seu capital nesse campo especial de produção. Chama-se essa quantia de
270

renda fundiária, e tanto faz que seja paga por terra lavradia, ou por terreno de
construção, mina, pesca, florestas etc. (MARX, 2008, p. 827).

A analogia da renda com o juro não é trivial. Marx antecipa o fato de que a renda
da terra pode ser capitalizada à taxa média de juro e, assim, servir de base para o preço da terra.
Como a terra não é um produto do trabalho, não possui valor e racionalmente – seguindo a
terminologia de Marx – não deveria possuir preço. Entretanto, a existência da renda permite a
existência do preço da terra, que “é uma categoria que à primeira vista se revela irracional”
(MARX, 2008, p. 832). Para o proprietário da terra, a renda é como se fosse o juro de um
capital, apropriado por ele por deter “o monopólio sobre um pedaço do globo terrestre”
(MARX, 2008, p. 834-835, 845).
Como a renda diferencial vai se efetivar pela circunstância de os preços individuais
de produção se situarem abaixo do preço de produção que regula o preço de mercado, Marx
(2008, p. 847-848) expõe um argumento muito elucidativo sobre as condições em que isso pode
ser realizado. Sustenta o autor que a venda das mercadorias ao preço de produção decorre da
repartição do trabalho social entre os diferentes ramos de produção “na proporção das
necessidades sociais”, já que “o valor de uso continua sendo fundamental”. Isto significa que a
lei do valor se aplica à totalidade da produção social: “Na realidade, é a lei do valor tal como
se impõe não a mercadorias ou a artigos isolados, mas à totalidade [...] dos produtos dos ramos
particulares da produção social, ramos que se tornaram autônomos pela divisão do trabalho”.
Em resumo, se vendem pelos preços de produção as mercadorias produzidas de acordo com a
necessidade social por elas. Nos ramos em que se empregou mais trabalho do que o considerado
socialmente necessário, serão produzidos mais valores do que a sociedade está disposta a
realizar, o que implica que os preços de mercado diminuirão, fazendo com que os capitais
aplicados nestes ramos se apropriem de um quantum de valor menor do que o que eles
produziram. Prejudicada a proporção adequada entre necessidade social e trabalho social
empregado em cada ramo, “não se pode realizar o valor da mercadoria nem a mais-valia,
portanto, que ele encerra”. Além disso, deve-se observar que a autonomia dos ramos, tal como
mencionada por Marx, é sempre relativa, posto que eles precisam se adequar aos ditames da lei
do valor:

[Se houve produção excessiva tecidos em relação à necessidade social por tecidos]
gastou-se nesse ramo particular trabalho social demais, isto é, parte do produto é inútil.
Por isso, a totalidade só se vende como se fosse produzida na proporção necessária.
Esse limite quantitativo das cotas do tempo de trabalho social aplicáveis nas diversas
271

esferas particulares de produção é apenas expressão mais desenvolvida da lei do valor


em geral. (MARX, 2008, p. 847-848).

Em termos mais gerais, se foi despendido trabalho social demais em um ramo,


houve o inverso em outro: no primeiro o preço de mercado reduz-se em relação ao preço de
produção, enquanto, no segundo, o preço de mercado fica acima do preço de produção. Na
totalidade, o quantum de valor produzido iguala-se ao quantum de valor apropriado.
Quanto mais necessária é a utilização das terras sob monopólio privado, maior “a
capacidade da propriedade fundiária de apoderar-se – em virtude do monopólio sobre a terra –
de parte crescente da mais-valia, e de elevar por isso o valor da sua renda” (MARX, 2008, p.
849). A renda da terra, em suma, é pura apropriação de valores produzidos por outrem, pelo
capitalista como “agente automático do desenvolvimento dessa mais-valia”:

A característica peculiar [da renda fundiária] consiste em que, com as condições em


que os produtos agrícolas se desenvolvem como valores (mercadorias) e com as
condições em que se realizam esses valores, desenvolve-se o poder do proprietário
fundiário de apropriar-se de porção crescente desses valores criados sem interferência
dele, e porção crescente da mais-valia se transforma em renda fundiária. (MARX,
2008, p. 851).

Supondo-se que as mercadorias se vendem aos preços de produção, a questão que


Marx (2008, p. 855) vai se preocupar em desenvolver é “como parte do lucro pode transformar-
se em renda fundiária”. No exemplo em que Marx expõe seu argumento no Capítulo XXXVIII,
supõe-se que “a maior parte das fábricas de um país é acionada por máquinas a vapor, e,
minoria, por quedas-d’água naturais”, ou seja, duas técnicas diferentes para produzir a mesma
mercadoria. Supõe-se também preço de produção igual a 115, lucro médio igual a 15 e capital
adiantado igual a 100, todos em unidades monetárias.
Uma primeira categoria importante para o desenvolvimento da análise é a de preço
de produção de mercado, ou preço regulador de mercado:

É na realidade o preço de produção do mercado, a média do preço de mercado,


distinguindo-se das oscilações dele. Em suma, é na figura do preço de mercado e,
mais, é na figura do preço regulador do mercado ou no preço de produção do mercado
que se revela a natureza do valor das mercadorias; este se determina não pelo tempo
de trabalho necessário a um produtor individual, para produzir dada quantidade de
mercadorias ou mercadorias avulsas, mas pelo tempo de trabalho socialmente
necessário; pelo tempo de trabalho exigido para produzir, nas condições sociais
médias de produção, a quantidade global socialmente requerida das espécies de
mercadorias que estão no mercado. (MARX, 2008, p. 855-856).
272

Desde o primeiro capítulo do Livro I, Marx tratava o valor de troca como a forma
de manifestação do valor. Agora, no final do Livro III, em um nível mais concreto de exposição,
mantém a coerência e diz que a média dos preços de mercado (ou preço regulador de mercado,
ou preço de produção de mercado) revela a natureza de valor das mercadorias, ou seja, é a
manifestação dos valores na superfície mercantil.
Nos termos do exemplo de Marx (2008, p. 856), os capitais que produzem em
“condições que estão acima da média das reinantes no ramo” produzem com menor preço de
custo, por exemplo, 90. Como eles vendem pelo preço de produção de mercado, o “preço médio
que regula o preço de mercado”, obterão “lucro extra”208 de 10 que, somados ao lucro médio
de 15, garante um lucro total ou superlucro de 25. O lucro extra “resulta de se vender a
mercadoria ao preço geral de mercado, ao preço em que a concorrência nivela os preços
individuais, e ainda de a maior produtividade individual do trabalho mobilizado redundar em
favor do empregador e não dos trabalhadores, como toda produtividade do trabalho, a qual
aparece como produtividade do capital”. Por outro lado, “se o industrial tiver de vender a
mercadoria ao valor individual dela ou ao preço de produção determinado pelo valor individual,
desaparecerá a diferença” da qual resulta o lucro extra (MARX, 2008, p. 857).
O lucro extra entendido até aqui resulta da diferença entre preços de produção de
mercado e preços de produção individual, os quais decorrem de diferenças nos preços de custo.
Portanto, resulta da concorrência dentro do setor. Não falamos de diferença entre preço de
mercado e preço de produção, a qual poderia gerar um lucro ainda maior. A concorrência tem
um poder nivelador, homogeneizador, das diferentes condições individuais de produção,
conforme Marx (2008, p. 860): “A concorrência entre os capitais tende antes a desfazer mais e
mais essas diferenças; a determinação do valor pelo tempo de trabalho socialmente necessário
impõe-se, barateando as mercadorias e forçando a que sejam produzidas nas mesmas condições
favoráveis”. Em outros termos, a concorrência faz convergir os tempos de trabalho individuais
ao redor do tempo de trabalho socialmente necessário. Ademais, se a determinação do valor
pelo tempo de trabalho socialmente necessário depende da concorrência, esta categoria já está
presente desde o primeiro capítulo do Livro I, reforçando a tese defendida aqui segundo a qual

208
As traduções brasileiras utilizam termos distintos aqui, sendo que optamos pela versão de Barbosa e Kothe.
Sant’Anna, por outro lado, utiliza “lucro suplementar”. Nos Manuscritos de 1864-65, Marx (2015, p. 799) fala em
“surplus profit”.
273

O Capital de Marx não se baseia na dicotomia entre capital em geral (Livros I e II) e vários
capitais (Livro III)209.
A questão é que o monopólio sobre “pedaços do globo terrestre” turva esse poder
nivelador da concorrência. O lucro extra do industrial que opera a queda-d’água não pode ser
reduzido através da concorrência. A produtividade é maior, nesse caso, pois decorre de “força
natural monopolizável”: “só pode ser utilizada por aqueles que dispõem de parcelas especiais
do globo terrestre com seus acessórios” (MARX, 2008, p. 860). Ou seja, “constitui monopólio
do respectivo proprietário dispor dessa força natural, condição de maior produtividade do
capital aplicado, que não pode ser fabricada pelo processo de produção do capital; não se separa
do solo essa força natural que se monopoliza” (MARX, 2008, p. 861).
Se a terra na qual existe a queda-d’água for de propriedade de alguém, “o lucro
extra se converte em renda fundiária, isto é, cabe ao proprietário da queda-d’água. A este paga
o fabricante 10 libras esterlinas anualmente pela queda-d’água, e assim obtém lucro de 15 libras
esterlinas” (MARX, 2008, p. 861). Essa sobra “transforma-se em renda fundiária justamente
por decorrer não do próprio capital, mas da disposição de força natural de volume restrito,
separável do capital e monopolizável” (MARX, 2008, p. 861). Essa renda “é sempre renda
diferencial, pois não constitui fator determinante do preço geral de produção da mercadoria,
antes o supõe” (MARX, 2008, p. 862, grifos nossos). Em outros termos, a renda diferencial não
determina o preço de produção, mas este a determina. Essa renda “provém da circunstância de
certos capitais isolados empregados num ramo de produção terem fecundidade maior em
relação aos investimentos de capital que estão excluídos dessas excepcionais condições
favoráveis, criadas pela natureza” (MARX, 2008, p. 862). Seguindo Marx (2008, p. 862-863),
o direito de propriedade sobre a força natural, isto é, a propriedade fundiária, não cria o lucro
extra, “mas transforma-o em renda fundiária”. A propriedade fundiária simplesmente “capacita
o proprietário para apoderar-se da diferença entre o lucro individual e o lucro médio” (MARX,
2008, p. 862-863); a “renda nada mais é que forma desse lucro extra” (MARX, 2008, p. 896,
grifos do autor210).
O monopólio em si tem relação intrínseca com a concorrência. Se os capitalistas
individuais que não dispõem da força hidráulica desenvolverem novo método de produção
capaz de baixar “o preço de custo das mercadorias produzidas com a máquina a vapor, de 100

209
Vale lembrar que nossa defesa de que o mercado mundial acompanha a exposição de Marx desde o princípio
do Livro I demanda que a concorrência também esteja presente nos níveis mais elevados de abstração de O Capital.
210
Nos Manuscritos de 1864-1865.
274

para 90, desapareceria o lucro extra e, com ele, a renda e, com esta, o preço da queda-d’água”
(MARX, 2008, p. 864). Reforçamos, aqui, aquilo que afirmávamos na crítica à uma
interpretação marxista muito popular sobre os monopólios presente na chamada escola do
capitalismo monopolista, os quais concluem que sob a vigência dos monopólios a lei do valor
não seria mais aplicável211. O erro teórico consiste em não perceber que, qualquer que seja o
monopólio, a busca por progresso técnico é permanente para que as vantagens auferidas pela
posição se mantenham.
A renda diferencial para Marx (2008, p. 878) tem como “condição única de
existência” a “desigualdade dos tipos de solo”, quando o que se está analisando é a renda da
terra. Em outros termos, “no fim das contas, a renda diferencial era objetivamente apenas o
resultado da produtividade diferente de capitais iguais, aplicados em terras” (MARX, 2008, p.
895). Marx desenvolve um modelo para explicar a diferença entre rendas diferenciais
considerando a existência de quatro tipos de terrenos que proporcionam produtividades
diferentes212. Tendo produtividades distintas, as rendas apropriadas por cada um dos quatro
proprietários também serão distintas. Este tipo de renda é chamado diferencial exatamente por
isso: é computada levando-se em consideração as diferenças de produtividades213.
Sendo a renda diferencial resultado do lucro extra, a questão-chave é compreender
como se forma o preço regulador de produção. Para tanto, a relação discutida anteriormente
entre produção social e necessidade social é o caminho argumentativo utilizado por Marx.
Havendo necessidade social pela totalidade das mercadorias produzidas nos quatro tipos de
terrenos, o maior preço individual de produção, isto é, relativo à pior terra, será o preço
regulador de mercado. Neste caso, o pior terreno não gera renda diferencial posto que quando
se vende pelo preço de produção o arrendatário aufere apenas o lucro médio. Na medida em
que a produtividade é crescentemente maior nos outros tipos de terreno, os preços individuais
de produção são menores, aumentando a distância entre eles e o preço regulador de mercado
cristalizada em maior lucro extra e maior renda diferencial quanto mais produtivo é o terreno
(MARX, 2008)214.
Supondo que todos os terrenos disponíveis sejam utilizados, isto é, que o produto é
vendido pelo preço de produção do terreno de pior produtividade, pelo maior preço individual

211
Cf. subseção 2.1.2 desta tese.
212
Esse argumento pode ser ilustrado na Figura 6 da Seção 3 desta tese, considerando que as áreas B1, B2, B3 etc.
representam os terrenos com diferentes produtividades.
213
Na renda diferencial II, considera-se capitais distintos na mesma terra, o que não altera a essência do argumento.
214
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro III. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008. p. 870 et seq.
275

de produção, segue que “o valor de mercado está sempre acima do preço global de produção da
quantidade produzida” (MARX, 2008, p. 879). O argumento é que se o maior preço individual
de produção regula o preço de venda, segue que o somatório destes preços, que Marx está
chamando de “valor de mercado”, é superior ao somatório dos preços de produção da totalidade
das mercadorias produzidas no ramo. No exemplo de Marx (2008, p. 871), a média do preço de
produção por quarter de trigo, o “preço real de produção” (MARX, 2008, p. 879), é de 24
xelins, sendo que são vendidos ao preço de mercado de 60 xelins. Após mencionar a diferença
entre o preço de mercado e o preço real médio, Marx continua seu argumento em uma direção
muito importante:

Esta é a determinação pelo valor de mercado, provocada pela concorrência sobre a


base do modo capitalista de produção; é a concorrência que gera um falso valor
social215. O fenômeno decorre da lei do valor de mercado, à qual estão sujeitos os
produtos do solo. A determinação do valor de mercado dos produtos, inclusive dos
produtos do solo portanto, é um ato social, embora sua realização social não seja
consciente nem intencional e se funda necessariamente sobre o valor-de-troca do
produto, não sobre o solo e sobre as diferenças de sua fertilidade. (MARX, 2008, p.
879-880, grifos do autor).

E o conclui da seguinte forma:

A identidade do preço de mercado de mercadorias da mesma espécie é a maneira


como se impõe o caráter social do valor na base da produção capitalista e, em geral,
da produção fundada na troca de mercadorias entre indivíduos. O que a sociedade, no
papel de consumidora, paga demais pelos produtos agrícolas, o que para ela representa
quantidade negativa na realização de seu tempo de trabalho na produção agrícola,
constitui então o excedente de parte da sociedade: os proprietários das terras. (MARX,
2008, p. 879-880, grifos do autor216).

Ou seja, a renda diferencial da terra é resultado de transferência de valor dos


consumidores de produtos agrícolas, posto que ela coloca preços de mercado acima dos preços
individuais de produção de forma não-casual, não-fortuita. Não é possível dizer que é uma
transferência de valor dentro do ramo, mas entre compradores e vendedores de mercadorias
produzidas sob as melhores condições de monopólio.

215
Preferimos utilizar os Manuscritos de 1864-1865 para essa oração: “This is determination by a market value
brought about by competition on the basis of the capitalist mode of production; it is competition that produces a
false social value” (MARX, 2015, p. 817). Há uma sutil diferença com relação a tradução da Civilização Brasileira:
“É a determinação pelo valor de mercado, tal como se impõe no sistema de produção capitalista por meio da
concorrência, que gera falso valor social.”.
216
Nos Manuscritos de 1864-1865.
276

4.5.2 A teoria da renda absoluta em O Capital

A teoria da renda diferencial de Marx parte da existência de diferentes


produtividades para, então, diferenciar os preços individuais de produção das mercadorias
produzidas nas melhores em relação à pior terra. Em outros termos, o lucro extra e a renda
diferencial são calculados a partir da hipótese segundo a qual o capital aplicado na pior terra
não paga renda ao proprietário.
No Capítulo XLV do Livro III Marx abandona essa hipótese e assume que as
mercadorias produzidas no terreno de pior qualidade, chamado de solo A, pagam uma renda
igual a r217. Isso é um fato da produção capitalista decorrente do “monopólio da propriedade
fundiária” (MARX, 2008, p. 998): do contrário, caso não houvesse pagamento de renda pelo
uso do solo, haveria “de fato, embora não de direito, abolição da propriedade fundiária”
(MARX, 2008, p. 998.).
A primeira implicação é que os preços dos produtos do terreno A não correspondem
mais ao preço de custo mais lucro médio, como ocorria sem o pagamento de renda. “Admitindo-
se”, seguindo Marx (2008, p. 996), que o excedente r não se desconta do salário nem do lucro
médio, “só pode ele [o capitalista arrendatário] pagar esse excedente porque vende o produto
acima do preço de produção”. Isso geraria um novo preço regulador de mercado “da totalidade
do produto de todos os tipos de terra”, P+r, pois “o preço do produto do solo A expressa, em
suma, o limite do preço geral regulador do mercado, do preço ao qual a totalidade do produto
pode ser fornecida, e nesse sentido, regula o preço do produto global” (MARX, 2008, p. 996).
Em outros termos, o preço de A é o preço regulador pois só está produzindo trigo em A enquanto
há uma necessidade social, manifestada no aumento do preço de mercado, que tornou possível
a exploração capitalista no pior terreno, isto é, que levou os produtores a utilizarem o solo A.
As mercadorias, portanto, não podem ser vendidas por um preço menor do que o produzido em
A, sendo ele maior do que o preço individual dos outros lotes. Por isso ele é o preço regulador.
A segunda implicação, decorrente da primeira, é que “não se alteraria por isso a lei da renda
diferencial” (MARX, 2008, p. 997), posto que o aumento do preço regulador de mercado
aumentaria o preço para todos, para P+r.

217
A exposição da renda absoluta após a renda diferencial foi uma intervenção de Engels, contrariando a
estruturação dos capítulos dos Manuscritos de 1864-65, nos quais a teoria da renda absoluta antecedia a renda
diferencial.
277

Se a condição para o cultivo do terreno A é que ele proporcione renda, o preço da


mercadoria teria que aumentar até o ponto em que a renda seja atingida. Ou seja, é a necessidade
da renda que aumenta o preço, e não o contrário (MARX, 2008, p. 1001-1002). A renda “é
fração independente do preço das mercadorias, diversa do salário e do lucro” (MARX, 2008, p.
1003). A “situação normal”, portanto, é não deduzir a renda de diminuição do salário ou do
lucro. Situações como estas são descritas por Marx como arrendamento, diferente da renda:
“onde existem condições correspondentes ao modo capitalista de produção, renda e
arrendamento a pagar devem coincidir. E é justamente essa situação normal que cabe investigar
aqui” (MARX, 2008, p. 1003).
O proprietário só arrendará suas terras “quando um arrendamento lhes possa ser
pago. O preço de mercado, portanto tem de elevar-se acima do preço de produção, a P+r, de
modo que o proprietário da terra possa auferir uma renda” (MARX, 2008, p. 1005). Sendo o
preço do produto agrícola “necessariamente preço de monopólio no sentido corrente” (grifos
nossos), a renda assume “a forma de um imposto” coletado pelos proprietários de terra, sendo
definida pelos seguintes “limites econômicos”:

[...] está limitado pelas aplicações adicionais de capital nos velhos arrendamentos,
pela concorrência dos produtos agrícolas estrangeiros – suposta a importação livre
deles –, pela concorrência entre os proprietários das terras e finalmente pelas
necessidades e pela capacidade de pagar dos consumidores. (MARX, 2008, p. 1005).

O preço de monopólio, que chancela se determinada terra será explorada ou não,


limita-se, portanto, pela concorrência entre proprietários e pela necessidade social.
Para explicar teoricamente a origem da renda absoluta, Marx (2008, p. 1006-1007)
relembra que a relação entre preço de produção e valor é guiada pela composição orgânica do
capital. Sabemos que a composição do capital num ramo determinado expressa a
“produtividade do trabalho social nesse ramo particular”, de forma que “se pode medir o
progresso da produtividade pelo crescimento relativo do capital constante, em confronto com o
variável” (MARX, 2008, p. 1007). Marx sugere que indústria extrativa, por exemplo, tem
composição abaixo da média; ao contrário da indústria de mineração, para a qual o capital
constante “tem considerável importância” (MARX, 2008, p. 1007).
A existência da renda absoluta pressupõe que os capitais aplicados na agricultura
possuam composição inferior à média, de forma que produzam um valor acima do preço de
produção. Como a produção de produtos agrícolas é limitada pela existência da propriedade
fundiária, atuando como um monopólio sobre a terra, as mercadorias agrícolas não são lançadas
278

no mercado ao preço de produção, como ocorre com os setores subordinados diretamente à


concorrência, mas sim aos valores. A única hipótese teoricamente correta para a existência da
renda absoluta, conforme a exposição de Marx (2008, p. 1008), é supor que “o valor dos
produtos agrícolas pode ultrapassar o preço de produção deles”, isto é, que “a composição do
capital agrícola é inferior à do capital social médio”. “Se eliminamos esse pressuposto”,
continua Marx (2008, p. 1008), “desaparece também a forma de renda que lhe corresponde”.
Entretanto, “a simples circunstância de o valor dos produtos agrícolas ultrapassar o
preço de produção não bastaria de per si para explicar [...] a existência de uma renda
conceitualmente distinta da renda diferencial e que por isso chamamos de renda absoluta”
(MARX, 2008, p. 1008, grifos do autor).
Retomando a teoria dos preços de produção, assegura Marx (2008, p. 1009): “É
tendência permanente dos capitais, por meio da concorrência, efetuar esse nivelamento na
repartição da mais-valia produzida pela totalidade do capital e superar todos os obstáculos a
esse nivelamento” através da “liberdade com que se movem pelos diferentes ramos de
produção”. Os capitais “tendem a só tolerar” diferenças nas taxas de lucro dentro do ramo de
produção, isto é, derivadas “da diferença entre o preço geral de produção regulador do mercado
e os preços individuais de produção que dele diferem”. As diferenças de taxas de lucro entre
ramos, resultado “da diferença entre os valores e os preços de produção”, tendem a ser
eliminadas pela concorrência. Neste último caso, “supomos aí que nenhum limite, a não ser de
caráter fortuito e temporário, impede a concorrência dos capitais – por exemplo num ramo de
produção onde o valor das mercadorias ultrapassa o preço de produção, ou onde a mais-valia
produzida excede o lucro médio – de reduzir o valor ao preço de produção e por esse meio
repartir a mais-valia que sobra nesse ramo por todas as esferas exploradas pelo capital”
(MARX, 2008, p. 1009).
Contudo, seguindo o argumento de Marx (2008, p. 1009-1010), nas esferas de
produção em que uma “força estranha”218 impede “total ou parcialmente” o nivelamento da
mais-valia com o lucro médio, surgirá,

[...] em virtude de o valor da mercadoria ultrapassar o preço de produção, um


sobrelucro219 que pode se converter em renda e nessa qualidade possuir autonomia em
relação ao lucro. E como uma força estranha, um obstáculo dessa natureza, a

“Alien power” segundo Marx (2015, p. 749).


218

Optamos pela versão de Barbosa e Kothe ao invés da tradução de Sant’Anna, na qual se lê “lucro suplementar”.
219

Nos Manuscritos de 1864-1865 consta “surplus profit” (MARX, 2015, p. 749).


279

propriedade fundiária se opõe às aplicações do capital na terra, ou o proprietário da


terra faz frente ao capitalista. (MARX, 2008, p. 1009-1010).

A propriedade fundiária estabelece um “limite” ao próprio uso da terra, que só pode


ser usada na circunstância em que o preço de mercado suba “ao ponto em que o solo pague um
excedente sobre o preço de produção, isto é, uma renda” (MARX, 2008, p. 1010). Ou seja,
Marx está dizendo que a renda é o excedente do preço de mercado sobre o preço de produção,
resultado do fato de que o valor, com base no que se supôs anteriormente, é superior ao preço
de produção. Por causa do monopólio sobre a terra, o valor, e não o preço de produção, regula
o preço de mercado. Por isso é que o autor vai se referir ao valor como “valor regulador de
mercado” (MARX, 2008, p. 1011). Com essa formulação, “uma renda absoluta pode existir
sem infringir de modo algum a lei do valor. O aparente dilema que levou Ricardo a negar a
possibilidade da renda absoluta é impecavelmente superado” (HARVEY, 2013, p. 512).
Podemos ilustrar o argumento de Marx efetuando um simples exercício numérico a
partir das tabelas de transformação dos valores em preços de produção220. Supomos a existência
de três capitais (A, B e C), um deles aplicado na agricultura (C), com as seguintes composições
e taxa de mais-valor igual a 100%:

Tabela 9 – Formação da renda absoluta

Capital
Valor de Preço de
adiantado Mais- Taxa média de
mercado produção PP-VM
valor lucro
c v C (VM) (PP)

Capital A 84 16 100 16 116 30 130 +14

Capital B 56 44 100 44 144 30 130 -14


Capital C
50 50 100 50 150 30 130 -20
(agrícola)
Fonte: O autor

A linha pontilhada indica que o capital C não participa da formação da taxa média
de lucro (30%) devido ao caráter monopolista da propriedade da terra, mas se apropriaria do
lucro médio (30) se vendesse a mercadoria pelo preço de produção (130). Entretanto, este não
é o caso real pois a propriedade da terra exige alguma remuneração, que estamos chamando
aqui de renda absoluta. Para que isso seja possível, o capitalista arrendatário vende a mercadoria

220
Cf. item 3.4.2 da Seção III desta tese.
280

pelo valor (150), fazendo com que a diferença entre preço de produção e valor de mercado seja
apropriada pelo proprietário fundiário como renda absoluta (20).
A função prática do monopólio sobre a terra consiste justamente em evitar que os
valores se nivelem aos preços de produção, de forma que o valor passa a incorporar o preço de
custo, lucro médio e renda absoluta, sendo a soma dos últimos dois itens chamados por Marx
(2008, p. 1011) de “mais-valia real”.
Um resultado fundamental da teoria da renda absoluta de Marx é a constatação
segundo a qual se os produtos agrícolas forem vendidos acima do preço de produção (pelo valor,
seguindo nosso exemplo anterior), os produtos não-agrícolas serão vendidos abaixo do
respectivo preço de produção, de forma que na totalidade preços e valores são iguais (MARX,
2008, p. 1012); o que nos levaria a diminuir o preço de produção dos capitais A e B do exemplo
anterior bem como o lucro realizado por eles. Isso significa que a renda absoluta não interfere
na identidade entre produção e apropriação de valores na totalidade, ou, nos termos de Fine e
Saad-Filho (2004, p. 164, tradução nossa): “a renda depende da produção e apropriação do
mais-valor através da intervenção da propriedade fundiária”. Sua existência põe uma nova
modalidade de transferência de valor, dessa vez oriunda do conjunto dos capitais industriais
produtores de mercadorias não sujeitas às barreiras da propriedade fundiária para os
proprietários de terra. Mesmo que a renda absoluta seja apenas parte do mais-valor agrícola, ela
só se materializa como tal em função do preço de venda situar-se acima do preço de produção,
portanto, em função da transferência de valor.
A ideia de que a renda absoluta provém do mais-valor total produzido se evidencia
na seguinte passagem:

Vejamos em que consiste a essência da renda absoluta. Para igual taxa de mais-valia
ou para exploração igual do trabalho, capitais de igual magnitude produzem em
diversos ramos, de acordo com as diferenças na composição média, quantidades
diferentes de mais-valia. Na indústria, essas quantidades diversas de mais-valia se
igualam no nível do lucro médio e se repartem uniformemente pelos capitais
individuais como se fossem partes alíquotas do capital social. A propriedade fundiária
impede que assim se nivelem os capitais empregados na terra e se apodera de parte
da mais-valia que de outro modo entraria nesse nivelamento que dá a taxa geral de
lucro; é o que se dá quando a produção precisa de terra, seja para a agricultura, seja
para a indústria extrativa. A renda representa então parte do valor, mais
particularmente da mais-valia das mercadorias, a qual em vez de caber à classe
capitalista que a tirou dos trabalhadores, pertence aos proprietários que a extraíram
dos capitalistas. (MARX, 2008, p. 1020, grifos nossos).

Ao demonstrar que a renda fundiária se origina do mais-valor, Marx demonstra que


ela é produto de uma relação social, da exploração de força de trabalho humano. Desmonta
281

assim, no Capítulo XLVIII (“A fórmula trinitária”), as interpretações apologéticas da economia


vulgar para a qual essas relações são “tanto mais naturais quanto mais nelas se dissimule o nexo
causal” (2008, p. 1080). Exatamente nesse contexto que se encontra a famosa frase “toda
ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das
coisas” (MARX, 2008, p. 1080)221.

4.5.3 A renda monopolista como outra forma da renda absoluta

Marx deixa a questão das rendas um tanto quanto em aberto ao indicar que podem
existir outros tipos de renda baseadas “no preço de monopólio propriamente dito”, assunto que
“cabe estudar” na “teoria da concorrência. Investiga-se aí o movimento real dos preços de
mercado” (MARX, 2008, p. 1012). De passagem, observemos que Marx ainda planejava expor
uma ‘teoria da concorrência’, dentro da qual se incluiria o estudo mais exaustivo dos preços de
monopólio.
Harvey (2013, p. 510-512) e Caligaris (2014, p. 61) sustentam a existência de um
quarto tipo de renda na teoria de Marx, a renda monopolista, embora explicitamente tenha se
referido a três em O Capital (renda diferencial I e II e renda absoluta). De fato, a diferenciação
entre renda absoluta e renda de monopólio, segundo Caligaris, é recente na história do
pensamento marxista, se originando na década de 1970.
Fine e Saad-Filho (2004, p. 162, tradução nossa), por outro lado, acreditam que a
transformação de renda absoluta em renda de monopólio é inconsistente pois tornaria a
determinação quantitativa da renda “puramente arbitrária”. Ou seja, o pressuposto da renda
absoluta segundo o qual o capital aplicado na terra possui composição orgânica inferior à média
é teoricamente bem fundamentado na medida em que a própria renda funciona como limite à
produção capitalista na terra. Isso justifica, segundo os autores, a hipótese de que o progresso
técnico na agricultura é mais lento do que nos demais ramos. Entretanto, esse pressuposto
levado para outras circunstâncias, como processos de produção monopolizados por patentes,
por exemplo, se torna arbitrário, sem conexão com a realidade.

221
Esse trecho do Capítulo A fórmula trinitária, no qual Marx comenta sobre a incapacidade da economia burguesa
em apreender a essência das relações econômicas, estava no meio dos manuscritos de Marx sobre a renda da terra
(MOSELEY, 2015, p. 50-51).
282

Concordamos com os autores em que pode haver um certo arbítrio em determinar


a renda monopolista, mas acreditamos que de fato existe um motivo convincente para efetuar
essa distinção. Em algumas situações tipicamente vinculadas a monopólios, o preço de mercado
situa-se estruturalmente acima do preço de produção e, com isso, permite a geração de rendas
além do lucro médio. Em outros termos, existem circunstâncias nas quais o preço
(monopolista)222 determina a renda, outras nas quais a renda determina o preço (MARX, 2008,
p. 1027). Esse é o critério com o qual Harvey se baseia para diferenciar a renda monopolista,
resultado da primeira situação, da renda absoluta, derivada da segunda.
Certamente Marx esbarrou com as circunstâncias que geram o que estamos
chamando de renda monopolista, embora as tenha tratado no âmbito da renda absoluta. Quando
afirma que “a renda absoluta explica alguns fenômenos que de imediato criam a aparência de
que a renda deriva de mero preço de monopólio” (MARX, 2008, p. 1016, grifos nossos), o
autor está se referindo ao exemplo da exploração de uma floresta nativa para produção de
madeira. Para tanto, tal empreendimento exige um capital adiantado com alta proporção de
força de trabalho empregado, de forma que o valor da madeira contém “quantidade maior de
trabalho não-pago, ou de mais-valia, que o produto de capitais de composição superior. Por
isso, a madeira pode pagar o lucro médio e proporcionar ainda importante excedente na forma
de renda ao proprietário da floresta” (MARX, 2008, p. 1017). Nesse caso, “a aparência de que
a renda deriva” de preço de monopólio é alimentada pelo fato de que o produtor espera que o
preço de mercado cresça junto com o acréscimo de demanda até o ponto em que “se iguale ao
valor da madeira” (MARX, 2008, p. 1017), podendo, com isso, pagar renda ao proprietário da
floresta. Portanto, o exemplo sugere que o preço de monopólio é uma função da renda, da
propriedade fundiária, e não o contrário.
Em outro momento, Marx explicitamente se refere à situação na qual o preço
determina a renda. Por exemplo, no Capítulo XLVI, ao comentar que o vinho de uma
determinada safra só pode ser produzido em escala reduzida mas possui uma altíssima demanda
por ele, de forma que “proporciona preço de monopólio”. Nesse caso, o “lucro extra223 que
deriva do preço de monopólio converte-se em renda e sob esta forma cabe ao proprietário da
terra [...]. O preço de monopólio gera aí a renda” (MARX, 2008, p. 1027-1028).

222
“Entendemos por preço de monopólio o determinado apenas pelo desejo e pela capacidade de pagamento dos
compradores, sem depender do preço geral de produção ou do valor dos produtos” (MARX, 2008, p. 1027).
223
“Lucro extra” pela tradução de Barbosa e Kothe e “lucro suplementar” pela tradução de Sant’Anna.
283

Mesmo Harvey (2013, p. 511), que é um dos autores a tratar da renda monopolista,
sugere que nos casos que envolvem “comércio de antiguidades e obras de arte”, por exemplo,
existe uma renda monopolista, a qual “é de interesse periférico para qualquer estudo da
produção geral de mercadoria”. Este pode ser, sem dúvida, um motivo plausível pelo qual Marx
não se enveredou por esse caminho.
Entretanto, a exposição das “prototípicas mercadorias globais” feita por Smith
(2016)224 levanta uma indagação que nos obriga a tentar responder: de onde vem o lucro de
empresas que executam outsourcing via arm’s-length como a Apple? O enigma posto pela
relação de tipo arm’s-length é o seguinte:

[...] os investimentos diretos estrangeiros das empresas transnacionais do Norte geram


um imenso fluxo de lucros repatriados do Sul para o Norte, mas, em completo
contraste, entre firmas do Sul e firmas líderes do Norte [formalmente independentes,
relacionadas via arm’s-length] não existe, nos dados sobre fluxos financeiros, nenhum
sinal nem sombra de qualquer fluxo de lucros ou transferência de valor do Sul para o
Norte. (SMITH, 2016, p. 83, tradução nossa).

A questão é se esse fluxo realmente não existe ou se, como sugere Smith (2016),
ele existe e é invisível. Apesar do autor apontar para a direção correta ao indicar a possibilidade
de distinção entre produção e apropriação de valor no mercado mundial (SMITH, 2016, p. 83),
o modo como ele opera essa distinção, baseado apenas na teoria dos preços de produção de
Marx (SMITH, 2016, p. 259-260), não nos parece ser suficiente nem correto para este caso
específico especialmente por desconsiderar (a) a diferença entre preço de produção e preço de
mercado e (b) lucro comercial, o qual já tratamos anteriormente.
A exposição de Smith se baseia numa dicotomia Norte-Sul, na qual, segundo o
autor, as estatísticas oficiais maculam “a própria existência da exploração Norte-Sul” (SMITH,
2016, p. 266, 273). Essa exploração se basearia no fato alegado por Smith segundo o qual “o
valor é ‘criado’ em alguns dos elos da cadeia (isto é, os campos e fábricas do Sul), e ‘distribuído’
para outros (isto é, os gigantes varejistas), as principais ETN sediadas nos países imperialistas”
(SMITH, 2016, p. 269). O autor sustenta que “valores criados em um elo são condensados como
preços recebidos em outro lugar, por outros elos na cadeia, mesmo que estes elos separados

224
SMITH, J. Imperialism in the TWENTy-First Century: the globalization of production, super-exploitation, and
the crisis of capitalism. Nova York: Monthly Review Press, 2016. p. 27 et seq.
284

sejam firmas diferentes operando em diferentes continentes” (SMITH, 2016, p. 269), o que lhe
conduz à seguinte conclusão:

[...] capitalistas e cidadãos nas nações da Tríade são agora vistos como apropriadores
e consumidores de riqueza produzida por trabalhadores e pequenos produtores nas
nações do Sul Global. Uma imagem, em outras palavras, da emergente e totalmente
desenvolvida forma do estágio imperialista do capitalismo. (SMITH, 2016, p. 278).

Nos parece que essa resposta não é suficiente para entender o caso da Apple,
exemplo paradigmático das relações imperialistas contemporâneas. Como tentaremos sustentar
na sequência, se supormos que o valor de um iPhone é produzido no Sul, especialmente na
China, e apropriado no Norte pelos condutos da troca desigual, teremos que explicar a
transferência de valor pelo caminho das diferenças de produtividade e ocultaremos os
elementos distintivos na relação imperialista exemplificada pela cadeia de produção liderada
pela Apple: o monopólio da intermediação comercial e, sobretudo, da marca. É em função de
seu “status único” (SMITH, 2016, p. 29) que a empresa é capaz de vender seu iPhone por preço
acima dos demais smartphones e, com isso, realizar lucros formidáveis. A empresa do Vale do
Silício não participa diretamente do processo de produção, portanto não se apropria de lucros
repatriados nem de lucro de empresário. Ao mesmo tempo, não possui composição orgânica
abaixo da média, o que inviabiliza a possibilidade teórica de receber renda absoluta.
Como constatado em um estudo do Asian Development Bank citado por Smith
(2016, p. 28-29), a Apple usufrui de uma evidente posição monopolista:

Se o mercado fosse altamente competitivo, a margem de lucro esperado seria muito


menor... Vendas afluentes e alta margem de lucro sugerem que a Apple mantém uma
posição de relativo monopólio... É o comportamento de maximização dos lucros da
Apple ao invés da concorrência que empurra a Apple a ter todos os iPhones montados
na República Popular da China. (XING; DETERT225 apud SMITH, 2016, p. 28-29,
tradução nossa).

O que foi levantado nesse estudo nos permite sugerir, de forma evidentemente
exploratória, que o preço de mercado cobrado na venda do iPhone se situa acima do preço de
produção e acima do valor devido ao “status único” oferecido ao consumidor do produto, pois
do ponto de vista técnico/produtivo não existem diferenças substantivas entre um iPhone e um

225
XING, Y.; DETERT, N. How the iPhone wides the United States trade deficit with the People's Republic of
China. Tóquio: Asian Development Bank Institute,2010. (ADBI Working Paper 257). p. 8.
285

concorrente similar. Portanto, o monopólio sobre a marca permite à empresa oferecer as


mercadorias por preço de venda que incorpora a renda monopolista além do lucro médio.
A renda monopolista, portanto, parece desempenhar um papel especial na
reprodução do capitalismo contemporâneo, muito distinto do que ocorria na época de Marx ou
mesmo na época das teorias clássicas do imperialismo ou da dependência. Usamos o caso do
iPhone pelo fato da mercadoria representar de forma bastante pura um processo produtivo
contemporâneo no qual a principal parcela do valor é capturada pela companhia que detém o
monopólio da marca, mesmo que todo – ou quase todo – processo produtivo seja terceirizado.
A característica notável deste exemplo é que as tabelas oficiais de balanço de pagamentos não
captam nem um pedaço da transferência internacional de valor: “Eles não revelam nenhum sinal
de qualquer fluxo de lucros ou transferência de valor entre fronteiras [...]. A única parte do lucro
da Apple que parece se originar na China são aqueles resultantes das vendas do produto na
própria China” (SMITH, 2016, p. 22).
A Foxconn responde a uma pressão constante da Apple por reduzir os custos
(SMITH, 2016, p. 23), processo que se reflete, como já mencionamos, na superexploração da
força de trabalho envolvida no processo de produção, e que sugere que a montadora chinesa
transfere parte do lucro médio para a companhia estadunidense sob a forma de lucro comercial.
Queremos enfatizar, com isso, que tampouco a apropriação de renda monopolista, definida pela
“capacidade de realizar um preço de monopólio para o produto” (HARVEY, 2013, p. 511),
explica, nesse caso, o que Smith (2016, p. 266) chama de “exploração Norte-Sul”. Assim como
no caso da renda absoluta, continuando com Harvey, “a renda monopolista é uma dedução do
valor excedente produzido na sociedade como um todo, uma redistribuição, mediante a troca,
do mais-valor agregado”. Em outros termos, os consumidores do iPhone ao redor do mundo se
envolvem numa troca desigual com a Apple (e não a Foxconn, como sugere Smith). Em síntese,
levantamos a hipótese de que a transferência de valor que caracteriza a relação imperialista
incorporada no outsourcing via arm’s-length decorre do lucro comercial e, quando envolve uma
companhia capaz de realizar preços de mercado acima dos preços de produção, renda
monopolista.
Por outro lado, é preciso ter o cuidado de não autonomizar completamente os preços
de mercado em relação aos ditames da lei do valor, como é típico da chamada teoria do
capitalismo monopolista, da qual Sweezy e Baran são os mais ilustres representantes (SHAIKH,
2016, p. 353-357). Mesmo que a capacidade monopolista da empresa lhe permita se apropriar
de renda monopolista, essa condição não é eterna. A Apple, para manter nosso exemplo, está
286

sempre e inexoravelmente sujeita às pressões da concorrência. Sua capacidade de manter o


“status único” depende tendencialmente de sua capacidade de se manter na fronteira
tecnológica. Ao mesmo tempo, é muito improvável que os consumidores de iPhones pagariam
qualquer que seja o preço estabelecido pela empresa, o que sugere que existe uma margem
razoavelmente estabelecida entre o preço de mercado do iPhone e os concorrentes, os quais
podem reduzir custos e tornar o preço cobrado pela Apple excessivo. Portanto,
independentemente da posição monopolista, a empresa busca constantemente reduzir custos,
refletindo o que sugere a teoria marxiana da concorrência (SHAIKH, 2016, p. 363),
fundamentada, como não poderia deixar de ser, na lei do valor226.
Antes de encerrar esta seção, recapitulemos, rapidamente, qual era nosso propósito
com ele, a quais resultados chegamos e onde estamos em relação ao argumento geral da tese.
Por ter uma aparência de imperialismo mais visível do que o comércio exterior, chamamos as
formas de transferência de valor examinadas nesta seção de imperialismo descoberto. Apesar
de todas elas derivadas diretamente de investimentos, não é possível homogeneizá-las em um
mesmo nível de abstração. Enquanto lucro comercial, lucro de empresário, juro e lucro fictício
são plenamente descobertos, visíveis a olho nu, a apropriação de renda da terra se efetiva no
processo de formação dos preços (especificamente na distinção entre preço de produção
individual e preço de produção de mercado, no caso da renda diferencial, e entre preço de
mercado e preço de produção, nos casos das rendas absoluta e monopolista) situando-se, assim,
em um nível nem tão evidente quanto as anteriores. De todo modo, a renda da terra situa-se no
nível de abstração mais concreto do que o processo de troca desigual tal como o entendemos na
Seção Três pois aqui, na Seção Quatro, inserimos uma determinação concreta adicional que não
figurava na exposição de então: o poder de monopólio.
Visualizamos, com isso, as principais formas de transferência internacional de
mais-valor, reconstruindo teoricamente seus elos com a teoria do valor de Marx. Até aqui a
exposição se deteve nos aspectos principalmente econômicos da transferência de valor,
concentrando-se, por isso, em examinar o valor enquanto uma relação social que encontra
expressão quantitativa através da concorrência entre capitais. Nos interessava, sobretudo,
encontrar os fundamentos teóricos para as circunstâncias nas quais o valor apropriado se

226
Poderíamos ainda listar outras possibilidades de apropriação de renda monopolista no mercado mundial, como
o “lucro do fundador” (SABADINI, 2013, p. 8) ou a senhoriagem internacional pelos países detentores de moedas
de circulação internacional (dólar, euro, iene e libra esterlina) (NORFIELD, 2016, p. 163-166). O poder do dólar,
a propósito, foi responsável por inverter o fluxo de capitais na última década, como apontado por Lapavitsas (2013,
cap. 8), decorrente da enorme acumulação de reservas pelos países periféricos, os quais armazenaram parte
expressiva dessa reserva cambial em dólares ou títulos públicos emitidos pelo Tesouro estadunidense.
287

distinguia do valor produzido por cada capital – por isso a dimensão quantitativa do valor nos
era tão importante. Na próxima e última Seção, iremos adicionar uma determinação concreta
que, na realidade, atravessa transversalmente todas as formas de manifestação do imperialismo
descritas até aqui.
288

5 A LÓGICA IMPERIALISTA DAS EXPROPRIAÇÕES: O LUGAR DA


VIOLÊNCIA EXTRAECONÔMICA

Nossa proposta com esta seção é dar um passo adiante na reconstrução teórica do
imperialismo. Já destacamos a forma como as teorias do imperialismo enquadram as
expropriações em sua caracterização do capitalismo contemporâneo, enfatizando as abordagens
de Harvey (2003) e Fontes (2010)227. O momento agora é de reconstruir, com base na teoria do
valor de Marx, o lugar das expropriações e da violência extraeconômica na lógica imperialista.
Tentaremos mostrar que essa é a forma de manifestação do imperialismo mais concreta, mais
visível, posto que relaciona o econômico e o político no mesmo plano de análise. Constitui,
assim, como argumentaremos, o pressuposto para que as formas de manifestação mais abstratas
do imperialismo se manifestem.

5.1 SOBRE A INCONTROLABILIDADE DO CAPITAL

Nos terceiro e quarto capítulos desta tese direcionamos nossa exposição para a
dimensão quantitativa do valor de modo que fosse possível capturar as várias instâncias do
mercado mundial nas quais o imperialismo se manifestasse. Percebemos que a transferência de
valor se materializa através do comércio e dos investimentos internacionais, sendo que nesta
última esfera a relação imperialista depende de mais determinações concretas para existir, as
quais se cristalizam no tempo. Em outros termos, a transferência de valor se efetiva
instantaneamente através do comércio, diferentemente dos investimentos, nos quais o capital
precisa se imobilizar durante algum intervalo para que aquela transferência se materialize.
A consideração de que o imperialismo é a forma social e histórica do mercado
mundial228, da lei do valor em escala mundial, traz consigo, automaticamente, o fato de que o
último se expande através do primeiro. Ao incorporar a dimensão tempo na reconstrução teórica
do imperialismo apenas em um nível mais concreto da exposição, o que fizemos foi constatar
que a expansão do mercado mundial é imediatamente espacial (ocorre em qualquer nível de
abstração) e mediatamente temporal (se efetiva com a mediação dos investimentos), o que nos

227
Cf. Subseção 2.1.4.
228
Cf. Subseção 1.3.
289

conduz a caracterizar o imperialismo na articulação espaço-tempo da reprodução do capital. O


que queremos enfatizar com isso é que para além do espraiamento espacial das relações sociais
de produção capitalistas, o imperialismo as inocula onde quer que seja.
Ao usar esses termos, é impossível não nos remetermos à afamada “ordenação
espaço-temporal” de Harvey (2003)229, a qual, em sentido metafórico, “significa um tipo
particular de solução de crises capitalistas por meio do adiamento do tempo e da expansão
geográfica” (HARVEY, 2003, p. 99, grifos nossos)230. Nos parece notório que a tendência à
sobreacumulação de capital – o eixo explicativo em torno do qual Harvey desenvolve sua
interpretação – implique, necessariamente, em ajustes na dinâmica da acumulação de tal modo
que envolva “transformações espaço-temporais” (HARVEY, 2003, p. 99).
De passagem, observemos que a interpretação de Harvey que vincula essas
transformações como respostas às crises já estava presente em Grossmann (1979), numa obra
que busca desvendar quais as contratendências do sistema capitalista à sua tendência ao colapso.
Enquanto o “ordenamento espaço-temporal” de Harvey (2003, p. 93-94) envolve a absorção
dos “excedentes” através de “investimentos em projetos de capital de longo prazo ou gastos
sociais (como a educação e a pesquisa)” e/ou “deslocamentos espaciais por meio da abertura de
novos mercados, novas capacidades produtivas e novas possibilidades de recursos, sociais e de
trabalho, em outros lugares”, as contratendências elencadas por Grossmann (1979) referem-se
a “modificações estruturais” na atuação dos Estados (GROSSMANN, 1979)231 e a utilização
das “funções econômicas do imperialismo” para reestabelecer a lucratividade dos capitais
através do mercado mundial (GROSSMANN, 1979)232. Nas duas abordagens, portanto, a
bidimensionalidade da resposta capitalista às suas próprias crises (ou ao colapso) envolve
ajustes espaciais e temporais no processo de reprodução do capital.
Já mostramos, na subseção 2.3 desta tese, que abordagens como as de Harvey ou
Grossmann são necessárias para entendermos a relação dialética entre essência e aparência do
imperialismo. Sinteticamente, argumentamos que a transição entre fases do imperialismo
(entendidas como determinados arranjos históricos nos quais as formas de manifestação se
estruturam de tal maneira que formam conjuntos com particularidades próprias os quais

229
HARVEY, D. O Novo Imperialismo. Tradução de Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola,
2003. p. 98 et seq.
230
Um momento chave na produção teórica de Harvey relativo a construção dessa categoria é a obra Limites do
capital. Cf. Corrêa (2012, p. 192-195) e Harvey (2013, Cap. 12 e 13).
231
GROSSMANN, H. La ley de la acumulación y del derrumbe del sistema capitalista: una teoría de la crisis.
Ciudad de México: Siglo XXI, 1979. p. 195 et seq.
232
Ibid. p. 269 et seq.
290

delimitam uma historicidade dentro objeto) era mediada por crises estruturais nos padrões de
reprodução do capital. Nesse sentido, as crises são capazes de explicar as metamorfoses na
aparência do imperialismo, sendo insuficientes para explicar o elo orgânico entre a teoria do
valor de Marx e a existência do imperialismo em si, enquanto aspecto da realidade constituído
por essência e aparência. Sendo assim, pelos motivos expostos, quando falamos em articulação
espaço-tempo através do imperialismo não estamos nos referindo à “ordenação espaço-
temporal” de Harvey pois esta devém da sobreacumulação, ao contrário do que defendemos
nos dois últimos capítulos, quando caracterizamos o imperialismo a partir da acumulação de
capital.
Se nosso modo de caracterizar teoricamente o imperialismo partiu da concorrência
entre capitais (e não das crises), seu modus operandi só pode ser explicado se recorrermos a
algum impulso expansivo contido no próprio capital em seu decurso normal, cotidiano. Não é
difícil perceber, como já o fizemos na subseção 1.2, que o capital é valor em movimento cujo
circuito D-M-D’-M-D’’-M... “implica crescimento contínuo e direcionalidade” (POSTONE,
2014, p. 307), ou, em outros termos, a produção capitalista “tem uma determinação
absolutamente peculiar: é e sempre tem de ser produção crescente” (DUAYER; MEDEIROS,
2008, p. 154). Tanto Postone (2014) quanto Duayer e Medeiros (2008) enfatizam corretamente
que o valor, a forma social da riqueza na época capitalista, possui uma imanente “dimensão
temporal”, a qual pode se expressar, usando termos de Medeiros (2012, p. 58) inspirado em
Mészaros, no “caráter efetivamente incontrolável” do capital.
A acumulação pela acumulação – característica peculiar do modo capitalista de
produção, manifestação da temporalidade do valor e da incontrolabilidade do capital –
pressupõe, lógica e historicamente, determinadas condições para que se efetive: a mais
fundamental delas é a existência de trabalho assalariado. Nas páginas finais do Capítulo do
dinheiro dos Grundrisse, ao tratar do dinheiro como meio de pagamento, Marx (2011, p. 165-
81) opera uma transição lógica entre o dinheiro e o capital cujo ponto central talvez seja a
proposição de que quando o dinheiro se torna a finalidade da produção, ou seja, quando a
“mania de enriquecimento”233 se torna o móvel das trocas e, consequentemente, da produção,
o trabalho necessariamente tem que ser trabalho assalariado para que o dinheiro não tenha
“efeito dissolvente” sobre a comunidade, mas “produtivo”, posto que, com o assalariamento, a

No Livro I de O Capital, Marx passa a se referir a “impulso de enriquecimento” com esse mesmo sentido nos
233

Capítulos XXII e XXIII. Cf. Marx (2013, p. 669, 690).


291

finalidade da forma de trabalho também passa a ser o dinheiro (MARX, 2011, p. 167)234.
Portanto, apenas sob esta condição, a “mania de enriquecimento” não se contradiz com a forma
do trabalho, mas a complementa:

Quando o trabalho é trabalho assalariado, e sua finalidade é imediatamente dinheiro,


a riqueza universal [i.e., dinheiro] é posta como sua finalidade e seu objeto. [...] O
dinheiro como finalidade devém aqui meio da laboriosidade universal. A riqueza
universal é produzida para se apoderar de seu representante. Assim são abertas as
fontes efetivas da riqueza. Como a finalidade do trabalho não é um produto particular
que está em uma relação particular com as necessidades particulares do indivíduo,
mas dinheiro, a riqueza em sua forma universal, então, em primeiro lugar, a
laboriosidade do indivíduo não tem nenhum limite; é indiferente em relação à sua
particularidade e assume qualquer forma que serve à finalidade; é engenhosa no criar
novos objetos para a necessidade social etc. (MARX, 2011, p. 167, inserção e grifos
nossos).

Ora, mesmo sem a categoria capital explicitamente considerada, a relação dialética


entre dinheiro enquanto meio de pagamento e trabalho assalariado põe, na exposição de Marx,
o caráter ilimitado da produção. Não é por mera coincidência, portanto, que a categoria mercado
mundial já se delineie logo na sequência do argumento:

A caça ao ouro em todos os países conduz ao seu descobrimento; à formação de novos


Estados; antes de tudo, à ampliação das mercadorias ingressando na circulação,
[induzindo] novas necessidades, e atraindo distantes regiões do mundo para o
processo de troca e de metabolismo. Por conseguinte, sob esse aspecto, como
representante universal da riqueza, como valor de troca individualizado, o dinheiro
foi igualmente um duplo meio para ampliar a riqueza à universalidade e para estender
as dimensões da troca a todo o mundo; para criar, pela primeira vez, quanto à matéria
e ao espaço, a efetiva universalidade do valor de troca (MARX, 2011, p. 168, itálicos
nossos e grifos do autor).

A universalidade espacial do valor de troca, a extensão das “dimensões da troca a


todo o mundo”, ou, em outros termos, a conformação do mercado mundial em potência,
pressupõe “a avidez universal pelo dinheiro” (MARX, 2011, p. 168), a qual conduz à
polarização social entre trabalho assalariado e capital, “pressuposto elementar da sociedade
burguesa” (MARX, 2011, p. 169). Numa sociedade conformada nesses moldes, a acumulação
de capital depende da condição segundo a qual “o reingresso do acumulado na própria

234
Como essa transição lógica está muito mais desenvolvida nos Grundrisse do que em O Capital, optamos por
utilizar o argumento do primeiro neste momento. Consideramos que a interpretação de alguns autores, como Bidet
(2007, p. 154-163), está equivocada ao negar a existência dessa transição lógica entre dinheiro e capital,
conferindo-lhe um caráter exclusivamente histórico. Medeiros e Leite (2016) reconstroem o argumento marxiano
rejeitando as teses de Bidet, por exemplo.
292

circulação deveria ser posto como momento e meio do acumular” (MARX, 2011, p. 176). Ou
seja, apenas numa sociedade regida pela contradição entre trabalho assalariado e capital é que
a acumulação pela acumulação encontra uma forma social adequada: o modo capitalista de
produção (do mais-valor).
Vimos que a produção do mais-valor relativo é o momento no qual esse modo de
produção adquire especificidade própria, torna-se sui generis quando o trabalho realmente
subordina-se ao capital235. É nesse momento da exposição de Marx em O Capital que se
ilumina, conforme Postone (2014, p. 326), a “dimensão temporal das categorias”:

[...] somente nesse momento da argumentação de Marx é que o desdobramento lógico


das categorias expressa uma dinâmica histórica da sociedade capitalista e, nesse
sentido, torna-se ‘real’ como lógica histórica. Em outras palavras, na análise de Marx,
o desenvolvimento do mais-valor relativo atribui ao capitalismo uma dinâmica que,
embora constituída pela prática social, tem a forma de uma lógica histórica. Ela é
direcional, desdobra-se de maneira regular, está além do controle de seus agentes
constituintes e exerce sobre eles uma forma abstrata de coação. (POSTONE, 2014,
p. 326-327, grifos nossos).

O caráter dinâmico e incontrolável do capital se expressa historicamente, portanto,


com o desenvolvimento do mais-valor relativo (motivo pelo qual relacionamos a gênese
histórica do imperialismo com o advento da grande indústria236). Seguindo com o argumento
de Postone (2014, 326-327), Marx demonstra no Capítulo XXIV do Livro I, “A assim chamada
acumulação primitiva”, que “o lógico e o histórico não devem ser confundidos, embora venham
a se fundir no capitalismo desenvolvido”. O acento no Capítulo XXIV posto por Postone é para
indicar que os desenvolvimentos históricos expostos ali, relativos à suposta “pré-história da
sociedade capitalista”, não “são apresentados tendo em vista o tipo de lógica dialética intrínseca
que Marx apresenta nas primeiras seções do Livro I” (POSTONE, 2014, p. 327).
Nos parece que Postone está correto quando sugere uma quebra na estrutura
expositiva de O Capital entre o Capítulo XXIV e os demais que o antecedem. Por outro lado,
o tema deste capítulo não está relacionado apenas com a “pré-história da sociedade capitalista”
ou, em outros termos, com “desenvolvimentos históricos que levaram ao capitalismo”
(POSTONE, 2014, p. 327-328). Embora Marx também lide com o tema sob este ponto de vista,
seu argumento é mais amplo, relacionado com a necessidade da violência extraeconômica na
garantia da reprodução do capital. Tentaremos demonstrar o papel da violência dentro da lógica

235
Cf. Subseção 3.1 desta tese.
236
Cf. subseções 1.3 e 2.2 desta tese.
293

do capital (e d’O Capital), o que nos permitirá argumentar que as expropriações integram a
base econômica do modo de produção capitalista, se articulando organicamente, do ponto de
vista do imperialismo, com o comércio exterior e os investimentos estrangeiros.
Nossa mirada deverá ser ampliada para capturar o valor – e, portanto, a
transferência de valor, ou seja, o imperialismo – como motor de uma sociabilidade estranhada,
para além de sua dimensão puramente econômica, quantitativa, necessária certamente, mas
insuficiente para compreender o imperialismo enquanto totalidade complexa que molda o
mercado mundial dominado pelo modo capitalista de produção. Referimo-nos à captura da
dimensão política do imperialismo, das formas extraeconômicas de extração e transferência
internacional de valor. Por pior que seja o termo “extraeconômico” 237, ele é útil no sentido de
demarcar que se trata de uma análise exposta em um nível mais concreto de análise – posto que
incorpora uma dimensão adicional, extra, à esfera da economia propriamente dita. Do ponto de
vista da estrutura expositiva desta tese, encaremos, assim, mais uma transição entre níveis de
abstração.

5.2 “ACUMULAÇÃO PRIMITIVA”, VIOLÊNCIA E ESTADO

O fechamento do Livro I de O Capital, especialmente nos dois últimos capítulos,


põe acentos histórico-concretos ao processo de produção do capital. Defenderemos que o
argumento exposto por Marx nos Capítulos XXIV e XXV serve a dois propósitos mutuamente
relacionados. O primeiro é rejeitar a concepção burguesa da “acumulação primitiva” segundo
a qual o “ponto de partida” do modo de produção capitalista é narrado idilicamente como se
fosse uma trama natural onde “havia, por um lado, uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo
parcimoniosa, e, por outro, uma súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais”
(MARX, 2013, p. 785).
Ao mesmo tempo, considerando que o procedimento crítico de Marx, conforme
Medeiros (2013, p. 77-78), envolve a “simultânea apresentação de uma explicação alternativa
e mais abrangente da causalidade de fenômenos anteriormente significados através das crenças

237
O problema com o termo “extraeconômico” decorre de sua possível interpretação segundo a qual a realidade
social poderia ser cindida entre as esferas econômica e extraeconômica, o que poderia conduzir a análise ao
economicismo, isto é, à tentativa de impor à economia um papel prioritário determinado por “juízos de valor
gnosiológicos, morais, etc” típicos do que Lukács (2012b, p. 307) chama de “hierarquia sistemática idealista ou
materialista vulgar”.
294

ou teorias em questão”238, o autor de O Capital utiliza o Capítulo XXIV para incluir o Estado
na exposição através do recurso à violência como parte constitutiva da base econômica deste
modo de produção. Como veremos adiante, a violência tem papel primordial não só na assim
chamada acumulação primitiva, mas na própria reprodução das condições de existência da
acumulação do capital.
Observando o processo de gênese desse modo de produção, Marx (2013, p. 787)
nota que o processo histórico de formação dos trabalhadores livres – sempre em duplo sentido,
isto é, livres dos meios de produção e livres para venderem sua força de trabalho para outrem –
resultou, por um lado, da libertação das condições de servidão e dos “jugos das corporações” e,
por outro lado,

[...] esses recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de


lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as
garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam. E a
história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de
sangue e fogo. (MARX, 2013, p. 787, grifos nossos).

Como o produtor pré-capitalista subsistia materialmente através do uso produtivo


da terra, a expropriação desta é vista por Marx (2013, p. 787-788) como “a base de todo o
processo”. Como tal, o autor afiança, logo na sequência, que sua exposição não se restringe aos
primórdios da época capitalista: “sua história assume tonalidades distintas nos diversos países
e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na
Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua
forma clássica” (MARX, 2013, p. 787-788, grifos nossos).
Em determinado momento do capítulo, Marx (2013, p. 795) marca o nível de
abstração com o qual a exposição está situada, deixando claro o sentido do Capítulo XXIV:
“Abstraímos aqui as forças motrizes puramente econômicas da revolução agrícola. O que
procuramos são os meios violentos por ela empregados”. O autor distingue, portanto, as forças
“puramente econômicas” dos “meios violentos” ligados a ela, ou seja, considera a existência
dos níveis econômico e extraeconômico da realidade.
Dentre as várias formas de expropriação da terra citadas por Marx, o “roubo de
domínios estatais” ou a apropriação “desse modo fraudulento” do “patrimônio do Estado”,

238
Como já destacamos, subseção 1.1 desta tese, esse procedimento crítico pode ser chamado de “crítica
ontológica”. Cf. Medeiros (2013), Monfardini (2015).
295

guardam estreita conexão com épocas diversas do capitalismo239. O longo processo histórico
de “pilhagens, horrores e opressão que acompanha a expropriação violenta do povo” (MARX,
2013, p. 799), pode ser resumido, usando os termos de Marx, como segue:

O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios estatais, o furto da
propriedade comunal, a transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso
terrorismo, da propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna, foram
outros tantos métodos idílicos da acumulação primitiva. Tais métodos conquistaram
o campo para a agricultura capitalista, incorporaram o solo ao capital e criaram para
a indústria urbana a oferta necessária de um proletariado inteiramente libre. (MARX,
2013, p. 804).

Apesar de condição necessária, a expropriação das terras não era suficiente para
formar um “proletariado inteiramente livre”. Era necessário complementar tal expropriação
com “leis grotescas e terroristas” que forçassem “uma disciplina necessária ao sistema de
trabalho assalariado” (MARX, 2013, p. 808). Marx começa a conectar aqui uma relação de
dominação mediada pelo mercado, portanto determinada pela economia, e outra na qual a
dependência do produtor em relação ao apropriador é determinada pela “violência
extraeconômica”, pela “força do Estado”. A seguinte passagem do Capítulo XXIV é riquíssima,
por isso, mesmo sendo longa, a citamos textualmente:

Não basta que as condições de trabalho apareçam num polo como capital e no outro
como pessoas que não têm nada para vender, a não ser sua força de trabalho.
Tampouco basta obrigá-las a se venderem voluntariamente. No evolver da produção
capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e
hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e
evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção
desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação
relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos
trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda
exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o
trabalhador. A violência extraeconômica, direta, continua, é claro, a ser empregada,
mas apenas excepcionalmente. Para o curso usual das coisas, é possível confiar o
trabalhador às “leis naturais da produção”, isto é, à dependência em que ele mesmo se
encontra em relação ao capital, dependência que tem origem nas próprias condições
de produção e que por elas é garantida e perpetuada. Diferente era a situação durante
a gênese histórica da produção capitalista. A burguesia emergente requer e usa a força
do Estado para “regular” o salário, isto é, para comprimi-lo dentro dos limites
favoráveis à produção de mais-valor, a fim de prolongar a jornada de trabalho e manter

239
Contemporaneamente, por exemplo, a espoliação dos fundos públicos tornou-se uma prática comum dentro dos
chamados ajustes fiscais.
296

o próprio trabalhador num grau normal de dependência. Esse é um momento essencial


da assim chamada acumulação primitiva. (MARX, 2013, p. 808-809).

A clivagem operada por Marx entre dois períodos históricos distintos (a “gênese
histórica da produção capitalista” e o “processo capitalista de produção desenvolvido”) designa
estágios nos quais o trabalho subordina-se formal ou realmente ao capital. No primeiro, onde
“o próprio modo de produção não possuía ainda um caráter especificamente capitalista”
(MARX, 2013, p. 809), a “violência extraeconômica” e a “força do Estado” – “a violenta
criação do proletariado inteiramente livre, a disciplina sanguinária que os transforma em
assalariados, a sórdida ação do Estado, que, por meios policiais, eleva o grau de exploração do
trabalho e, com ele, a acumulação do capital” (MARX, 2013, p. 813) – formam o modus
operandi com o qual a “burguesia emergente” forja a dependência do trabalhador em relação
ao capital. Por outro lado, a partir do advento da grande indústria essa dependência passa a se
reproduzir pela própria lógica impessoal do mercado, através da “coerção muda exercida pelas
relações econômicas” 240.
A expropriação da população rural e a consequente transformação de produtores em
trabalhadores assalariados forja a dependência deles em relação ao mercado e, ao mesmo
tempo, à medida que tais sujeitos expropriados passam a se apropriar de valor equivalente à sua
força de trabalho, esse mecanismo cria mercado interno para a grande indústria (MARX, 2013,
p. 819).
A narrativa sobre a gênese do capitalista industrial põe em primeiro plano a pressão
do mercado mundial. A forma de acumulação de capital pré-capitalista, ou seja, a partir da
exploração do trabalho por pequenos mestres corporativos e pequenos artesãos independentes,
equivalia a uma “marcha de lesma” e, sendo assim, “não correspondia em absoluto às
necessidades comerciais do novo mercado mundial, que fora criado pelas grandes descobertas
do fim do século XV” (MARX, 2013, p. 820, grifos nossos) 241
. Interpretamos daí que o
capitalista industrial, enquanto classe em processo de gênese, se relacionava passivamente com
o mercado mundial embrionário formado com as grandes navegações do século XV. Em outros
termos, essa forma de mercado mundial impunha demandas que a ainda insuficiente capacidade

240
Na subseção 3.1 mostramos que a subordinação real do trabalho ao capital resulta do advento da grande
indústria.
241
Como já defendemos, esse “novo mercado mundial” se distingue do antigo pela extensão com a qual ele
entrelaça os vários continentes. A mudança qualitativa com o advento da grande indústria (e com o desnível
estrutural de produtividade a partir de então) define uma centralidade para o mercado mundial enquanto destino
da produção, por isso chamamos designamos como pré-históricas ou embrionárias as formas anteriores do mercado
mundial.
297

produtiva dos capitais industriais em formação não era capaz de atender. Decorre que o
desenvolvimento dos métodos de produção do mais-valor relativo, culminando com a grande
indústria, colocam o capitalista industrial cada vez mais em relação proativa com o mercado
mundial, isto é, a partir de então o ritmo de expansão do mercado mundial é marcado pela
crescente expansão da produtividade do trabalho empregado sob o jugo da maquinaria. Como
Marx (2013, p. 832) fala mais adiante, “o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado
mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista” caminha pari passu com o
desenvolvimento da “forma cooperativa do processo de trabalho”, da “aplicação técnica
consciente da ciência”, enfim, da grande indústria. Esse é o estado de coisas que o autor parece
sucintamente afirmar quando expressa:

Hoje em dia [i.e., na época histórica da grande indústria], a supremacia industrial traz
consigo a supremacia comercial. No período manufatureiro propriamente dito, ao
contrário, é a supremacia comercial que gera o predomínio industrial. Daí o papel
preponderante que o sistema colonial desempenhava nessa época. Ele era o “deus
estranho” que se colocou sobre o altar, ao lado dos velhos ídolos da Europa, e que,
um belo dia, lançou-os por terra com um só golpe. Tal sistema proclamou a produção
de mais-valor como finalidade última e única da humanidade. (MARX, 2013, p. 824,
inserção nossa).

O papel do sistema colonial, portanto, foi o de garantir as condições para a


reprodução do capital em duas vias: por um lado, “às manufaturas em ascensão, as colônias
garantiam um mercado de escoamento e uma acumulação potenciada pelo monopólio do
mercado”, e, por outro, “os tesouros espoliados fora da Europa diretamente mediante o saqueio,
a escravização e o latrocínio refluíam à metrópole e lá se transformavam em capital” (MARX,
2013, p. 823)242.
As barreiras postas pela “constituição corporativa das cidades” foram sendo
dissolvidas em “portos marítimos exportadores ou em pontos do campo” nos quais a “nova
manufatura” foi se instalando (MARX, 2013, p. 823). De forma geral, o papel do que Marx
chama de “novo mercado mundial” na gênese da acumulação de capital pode ser resumido
como segue:

A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a


escravização e o soterramento da população nativa nas minas, o começo da conquista
e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África numa reserva para a caça
comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses

242
Marini desenvolve esse argumento com mais detalhes na primeira parte de Dialética da dependência. Cf. Marini
(2005, p. 140-144).
298

processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva. A


eles se segue imediatamente a guerra comercial entre as nações europeias, tendo o
globo terrestre como palco. Ela é inaugurada pelo levante dos Países Baixos contra a
dominação espanhola, assume proporções gigantescas na guerra antijacobina inglesa
e prossegue ainda hoje nas guerras do ópio contra a China etc. (MARX, 2013, p. 821).

Ainda sobre a gênese do capitalista industrial, Marx (2013, p. 824-827) indica


outros métodos de acumulação primitiva, como os sistemas da dívida pública, de crédito,
tributário e protecionista. Diferentemente do sistema colonial, datado historicamente, todos
estes formam o arcabouço teórico que nos permite designar à acumulação primitiva um papel
lógico além do histórico, portanto um papel teórico dentro da reprodução do capital, em linha
com o que Fontes (2010) e Harvey (2003) chamam de expropriações ou espoliações
contemporâneas.
Sobre a dívida pública, por exemplo, “ela infunde força criadora no dinheiro
improdutivo e o transforma, assim, em capital, sem que, para isso, tenha necessidade de se
expor aos esforços e riscos inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária” (MARX,
2013, p. 824-825). Na realidade, como vimos243, ela permite que o dinheiro improdutivo seja
canalizado como gastos do Estado – os quais podem se transformar em capital produtivo ou
não – e, ao mesmo tempo, seja transformado em capital fictício.
Quanto ao sistema internacional de crédito, decorrência das negociações
envolvendo dívida pública, ele permite a entrada de dinheiro novo e, portanto, enseja a
acumulação primitiva onde quer que seja. Sobre as relações de crédito entre Inglaterra e Estados
Unidos em sua época, Marx (2013, p. 826) afirma: “Uma grande parte dos capitais que
atualmente ingressam nos Estados Unidos, sem certidão de nascimento, é sangue de crianças
que acabou de ser capitalizado na Inglaterra”. Embora seja resultado de uma capitalização
prévia, portanto já tendo percorrido o ciclo de algum capital industrial, a parte do mais-valor
que é drenada para o sistema de crédito, como se percorresse uma reciclagem, se direciona a
novo investimento, se transforma em capital novo, portanto efetiva uma acumulação primitiva.
Mais do que em qualquer outro lugar, esse argumento nos parece decisivo para confirmar o
papel lógico, além do histórico, na teoria da acumulação primitiva de Marx.
Sobre o papel da tributação, também não restam dúvidas de que se trata de uma
forma contemporânea de expropriações: “O grande papel que a dívida pública e o sistema fiscal
desempenham na capitalização da riqueza e na expropriação das massas levou um bom número
de escritores [...] a procurar erroneamente naquela a causa principal da miséria dos povos

243
Cf. subseção 4.4 desta tese.
299

modernos” (MARX, 2013, p. 826). O mesmo pode ser dito do sistema protecionista, o qual,
através de tarifas de importação e prêmios sobre exportações, permitem aos Estados, “a serviço
dos extratores de mais-valor”, saquear, nos termos de Marx, “seu próprio povo” (MARX, 2013,
p. 827).
O caráter permanente, ou seja, não restrito apenas a uma suposta pré-história ou
infância do modo capitalista de produção, é expresso literalmente por Marx quando afirma que
“sistema colonial, dívidas públicas, impostos escorchantes, protecionismo, guerras comerciais
etc., esses rebentos do período manufatureiro propriamente dito cresceram gigantescamente
durante a infância da grande indústria” (MARX, 2013, p. 827, grifos nossos). Que em
determinados contextos históricos a acumulação primitiva se revele mais ou menos violenta,
isso não apazigua o fato de que as expropriações sempre carregam a violência em sua natureza.

Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se, agora, numa sequência


mais ou menos cronológica, principalmente entre Espanha, Portugal, Holanda, França
e Inglaterra. Na Inglaterra, no fim do século XVII, esses momentos foram combinados
de modo sistêmico, dando origem ao sistema colonial, ao sistema da dívida pública,
ao moderno sistema tributário e ao sistema protecionista. Tais métodos, como, por
exemplo, o sistema colonial, baseiam-se, em parte, na violência mais brutal. Todos
eles, porém, lançaram mão do poder do Estado, da violência concentrada e
organizada da sociedade, para impulsionar artificialmente o processo de
transformação do modo de produção feudal em capitalista e abreviar a transição de
um para o outro. A violência é a parteira de toda sociedade velha que está prenhe de
uma sociedade nova. Ela mesma é uma potência económica. (MARX, 2013, p. 821).

As duas últimas orações dessa passagem são “uma das formulações mais fortes e
esquecidas” de O Capital, segundo Kohan (2003, p. 244, tradução nossa). A assertiva final – a
violência “é uma potência econômica” – tem como “principal consequência”, seguindo com
Kohan, a crítica ao “fetichismo de Estado”, a qual consistiria em “o conceber como uma
instituição separada e cindida das relações sociais de produção, de poder e de forças entre as
classes” (KOHAN, 2003, p. 245)244. O autor corretamente aponta que “para Marx é impossível
cindir e separar arbitrariamente estas duas esferas [i.e., violência e economia] as quais se tornam
um conjunto de relações [de produção, em um sentido, de poder e de forças, em outro]”
(KOHAN, 2003, p. 245, inserção nossa).

244
Kohan refere-se aqui ao estruturalismo althusseriano que influenciou boa parte do debate marxista sobre o
Estado nos anos 1970. O estatismo desses autores se encontra em uma “reificada separación de la economía por
un lado y las instituciones estatales por el otro, de la ‘estructura’ por un lado y la ‘superestructura’ por el otro”
(KOHAN, 2003, p. 247).
300

Kohan coteja o argumento do Capítulo XXIV do Livro I de O Capital com outras


obras de Marx para assegurar a existência de uma imbricada relação entre base econômica e
superestrutura. Por exemplo, diz o autor que, em A guerra civil na França, Marx sustenta sua
visão sobre o poder do Estado como uma forma de domínio impessoal, “como ‘uma máquina
nacional de guerra do capital contra o trabalho’” (KOHAN, 2003, p. 247). O desenvolvimento
do Estado faz com que “o domínio político burguês se torne - segundo Marx -, pela primeira
vez na história ‘comum, anônimo, geral, desenvolvido e impessoal’” (KOHAN, 2003, p. 245).
Mesmo em obras dos anos 1840, Marx já defendia que a democracia capitalista é
“a forma mais completa e desenvolvida de dominação do capital sobre o trabalho”, segundo
Kohan (2003, p. 246), que argumenta que as formas de dominação política “modernas” e “pré-
modernas” se distinguem pelo seu caráter mais ou menos visível. Isto é, nas sociedades “pré-
modernas”, “o domínio político é exercido por uma fração particular da classe dominante,
enquanto que na república parlamentar burguesa é o conjunto da classe ‘em sua média geral’ o
protagonista central”.
Não nos interessa aqui examinar a concepção de Estado em Marx, mas apontar para
a existência de uma conexão real entre economia e violência sob o modo especificamente
capitalista de produção. Vimos que no Capítulo XXIV do Livro I, Marx expõe, muito
claramente, o papel da violência na constituição de trabalhadores livres, naquele duplo sentido,
prontos para a subordinação formal ao capital. Vimos também que o advento do modo
especificamente capitalista de produção envolve a subordinação real do trabalho ao capital, um
processo no qual “a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do
capitalista sobre o trabalhador” e a “violência extraeconômica” passa a ser exercida apenas
“excepcionalmente” (MARX, 2013, p. 808-809). A chave de leitura proposta por Kohan (2003)
nos permite perceber que aquilo que Marx chama de “coerção muda” é, na verdade, também
uma violência, uma relação de poder, de força:

[...] el capital es una relación que se basa en el trabajo forzado (aunque sea
formalmente libre) porque la fuerza de trabajo se vende porque su propietario no tiene
condiciones de existencia propia para reproducirse. Si el proletário tuviera un campito
(el que tenía el campesino propietario, el farmer norteamericano clásico, por ejemplo)
no va a venderse a la fábrica, si viviera en una comunidad campesina con tierras
colectivas no va a venderse a la fábrica. Se va a vender a la fábrica y entabla la
relación de capital con el empresariado porque fue expropiado y es obligado todo el
tiempo a ir. (KOHAN, 2003, p. 249-250, grifos nossos).

Em outros termos:
301

Ser un trabajador no corresponde a una definición humana esencialista, ontológica y


transhistórica. No. Es una creación artificial a partir de relaciones de poder. Y eso
no pasó únicamente al comienzo, en la génesis. Todo el tiempo el capitalismo, a
medida que se va renovando y reproduciendo en escala ampliada, necesita la violencia
(como todo vampiro – trabajo muerto – que necesita sangre fresca – trabajo vivo).
(KOHAN, 2003, p. 250, itálicos nossos, sublinhado do autor).

Seguindo com Kohan (2003, p. 250), a violência na sociedade regida pelo capital –
um processo histórico “permanente, reiterado periodicamente” – se articula em duas operações:
através da “expropriação das classes populares” e da passagem permanente da “subsunção
formal à real”. Assim, conforme o argumento do autor, a efetivação da real subordinação do
trabalho ao capital não é um processo estático, datado historicamente na transição da
manufatura para a grande indústria, mas se trata de um processo dinâmico através da “conquista
de novos territórios sociais” para o capital e da expansão de “novas relações sociais”, as quais
podem resultar da fratura e “ressignificação” de “velhas relações” de forma a permitir a
introjeção da “coerção”, “dominação”, “hegemonia”, “vigilância” e “disciplina”. Nesse sentido,
tanto a passagem da subordinação formal para a real quanto as expropriações são pressupostos
de “cada nova fase da acumulação capitalista” (KOHAN, 2003, p. 250).

Si esto es así, si el capitalismo reproduce permanentemente a escala ampliada la


expropiación violenta de las clases populares y el pasaje (periódicamente renovado y
vuelto a comenzar) de la subsunción formal a la real, obtenemos como consecuencia
que las relaciones de poder son consustanciales a la estructura misma y a la dinámica
del desarrollo histórico de las relaciones sociales de producción. Si, como planteaba
el joven Lenin, el capital es una determinada relación entre los hombres y si el
conjunto de todas esas relaciones de producción constituyen la formación económico-
social históricamente determinada, objeto de estudio de El Capital, y si a su vez ese
conjunto históricamente diferenciado de relaciones entre los hombres está atravesado
por relaciones de poder, debe concluirse que el objeto de estudio de El Capital no
sólo está centrado en las formas económicas del capitalismo sino también en sus
formas del poder. Entendiendo por poder no una cosa cristalizada sino una relación,
no una instancia hipostasiada y omniabarcativa, sin nombre, sin apellido y sin historia,
sino una instancia inscripta en las relaciones sociales de una formación económico
social históricamente determinada. (KOHAN, 2003, p. 250, grifos do autor).

Uma abordagem muito similar à de Kohan é desenvolvida por Wood (2011). A


autora argumenta que a especificidade do capitalismo é a diferenciação do econômico em
relação ao político, o que significa, “acima de tudo”, que “a apropriação do excedente de
trabalho ocorre na esfera ‘econômica’ por meios ‘econômicos’” (WOOD, 2011, p. 34), ou seja,
“a alocação social de recursos e de trabalho [... ocorre] pelos mecanismos do intercâmbio de
mercadorias” (WOOD, 2011, p. 35), “embora a força de coação da esfera política seja
necessária para manter a propriedade privada e o poder da apropriação” (WOOD, 2011, p. 34).
302

A “estrutura de dominação” permanece essencial, o que, conjugada ao fato de que os indivíduos


são formalmente livres, significa que se separam “o ‘momento’ da coerção e o ‘momento’ da
apropriação”, logo, “a propriedade privada absoluta, a relação contratual que prende o produtor
ao apropriador, o processo de troca de mercadorias exige formas legais, aparato de coação e as
funções policiais do Estado” (WOOD, 2011, p. 30). Nesse sentido, continua Wood:

[...] dois momentos de exploração capitalista – apropriação e coerção – são alocados


separadamente à classe apropriadora privada e uma instituição coercitiva pública, o
Estado: de um lado, o Estado ‘relativamente autônomo’ tem o monopólio da força
coercitiva; do outro, essa força sustenta o poder ‘econômico’ privado que investe a
propriedade capitalista da autoridade de organizar a produção – uma autoridade
provavelmente sem precedentes no grau de controle sobre a atividade produtiva e os
seres humanos nela engajados. (WOOD, 2011, p. 30).

Podemos ir além, com Araújo (2016), e indicar que a crítica ontológica da economia
política executada por Marx a partir do período em que rascunha o que veio a ser conhecido
como Grundrisse e que culmina em O Capital o municia de um arsenal categorial que lhe
permite perceber que “a forma de dominação específica instaurada pela lógica do capital, não
é mais a da dominação direta, mas a dominação semimaterial245 das coisas produzidas pelos
homens sobre os próprios homens” (ARAÚJO, 2016, p. 37). Em outras palavras, o próprio ato
de produção numa sociedade regida pela lógica do capital traz consigo um tipo de dominação
impessoal, “da coisa sobre o homem” (ARAÚJO, 2016, p. 52), que Marx (2013) expressa
claramente: “Assim como na religião o homem é dominado pelo produto de sua própria cabeça,
na produção capitalista ele o é pelo produto de suas próprias mãos” (MARX, 2013, p. 697).
Por esse ponto de vista, a subordinação real do trabalho ao capital exige uma
violência que a reproduza no tempo, ou seja, uma violência capaz de inibir os produtores de
efetivarem o potencial emancipatório contido no colossal avanço de sua própria capacidade
produtiva. Nos termos de Lukács (2012b, p. 338), “a tão popular antítese entre violência e
economia é igualmente metafísica, não dialética. A violência pode também ser uma categoria
imanentemente econômica”246.
A assertiva de Lukács citada anteriormente é, na realidade, a conclusão de um
sofisticado argumento do autor sobre a relação entre base e superestrutura. Na relação entre
produção e distribuição (entendendo esta como o mecanismo social da apropriação), diz Lukács

245
Dominação semimaterial é um termo cunhado por Postone (2014).
246
Rejeitamos, assim, interpretações como a de Fiori (2010, p. 132), o qual supõe que, para Marx, “a ‘violência
do poder’ aparece em seu raciocínio como uma condição histórica, e não como uma dimensão teórica relevante da
sua teoria do capital”.
303

(2012b, p. 334-5), “existe uma conexão orgânica e determinada por leis” entre ambos. Nesse
caso há uma interação entre “formas puramente econômicas”, a produção, e o “mundo
histórico-social”, ou o “mundo extraeconômico”, a distribuição. O momento predominante é
dado pelo primeiro pois ele impõe a “direção de desenvolvimento”. Quando Marx imputa ao
modo de produção a “função de momento predominante”, Lukács (2012b, p. 336) ressalta a
importância de se ter cautela “para não entender isso no sentido de um praticismo ou de um
utilitarismo economicistas”:

[...] é evidente que a produção, enquanto momento predominante, é aqui entendida no


sentido mais amplo possível – no sentido ontológico –, como produção e reprodução
da vida humana, que até mesmo em seus estágios extremamente primitivos (o
pastoreio dos mongóis) vai muito além de mera conservação biológica, não podendo,
portanto, deixar de ter um acentuado caráter econômico-social. É essa forma geral da
produção que determina a distribuição no sentido marxiano. [...] Até mesmo o modo
de produção mais bárbaro ou mais estranhado plasma os homens de determinado
modo, um modo que desempenha papel decisivo, em última instância, nas inter-
relações entre grupos humanos – por mais ‘extraeconômicas’ que estas possam
parecer de imediato. (LUKÁCS, 2012b, p. 336).

Mantendo a metáfora base-superestrutura, é importante ficar claro que não existem


duas esferas cindidas da realidade. Seguindo a original contribuição de Wood (2011)247, a base
produtiva só existe enquanto “formas de propriedade e dominação”: formas jurídicas, políticas
e sociais “não são meros reflexos secundários, nem mesmo apoios secundários, mas
constituintes dessas relações de produção” (WOOD, 2011, p. 33); a autora inclusive utiliza o
termo “conexão orgânica” que havia sido posto por Lukács. Wood, assim como Lukács, não
nega a primazia da produção, embora direcione seu argumento para um caminho alternativo ao
traçado pelo filósofo húngaro. Ela converge seu argumento para a imbricação entre econômico
e extraeconômico, o que a permite perceber o modo de produção como “um fenômeno social”
(WOOD, 2011, p. 31, grifos da autora): a autora retoma a assertiva de Marx segundo a qual o
“capital é uma relação social de produção” para mostrar que as “categorias econômicas
expressam certas relações sociais determinadas” (WOOD, 2011, p. 30).
Convergindo o que expusemos com o tema central desta tese, podemos indicar que
na relação dialética entre as categorias produção e apropriação de valores, as condições em que
a última se efetiva pressupõem um modo particular de produção (com níveis de produtividade
distintos, por exemplo), de forma que podemos considerar a produção como o momento

247
WOOD, E. M. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. Tradução de Paulo
Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 28 et seq.
304

predominante dessa interação categorial; não uma produção in abstracto, mas uma produção
constituída em si por relações de poder e dominação, dotada de conteúdo social e político.
Adicionalmente, qualquer transferência internacional de valor oriunda da distinção
entre produção e apropriação no mercado mundial pressupõe determinados condutos mais ou
menos concretos. Em sua forma mais simples (o comércio internacional), tema do Capítulo
Três, a materialização da relação imperialista ocorre com o fluxo oculto de valores, invisível
sob as lentes dos balanços internacionais de pagamentos. Em uma imagem interessante, Smith
(2016, p. 83) faz uma analogia desta transferência com o processo físico da sublimação, no qual
uma substância em estado sólido se transforma em estado gasoso sem passar pelo estado
líquido. O movimento sólido-líquido é conduzido por um vapor invisível, de maneira análoga
ao movimento produção-apropriação de valores pela via do comércio exterior. Uma forma mais
complexa de imperialismo (os investimentos estrangeiros), tema do Capítulo Quatro, envolve
condutos mais concretos, como a repatriação dos lucros, pagamento dos juros de dívida externa,
apropriação de lucros comerciais, de lucros fictícios nas bolsas de valores, etc.
Qualquer que seja o conduto com o qual o imperialismo se manifeste, ele pressupõe
a possibilidade de conversão cambial entre moedas nacionais diferentes. Um sistema de taxas
de câmbio é necessário para que as diversas moedas nacionais possam ser equiparadas entre si
e/ou com o dinheiro mundial. Se isto é verdade, o imperialismo também pressupõe um sistema
de várias moedas e vários Estados, ou seja, para além de garantir as condições para a reprodução
da subordinação real do trabalho ao capital em cada formação social nacional, é necessário –
conforme demonstraremos na subseção seguinte – um sistema interestatal que garanta a fluidez
de valor dentro dos condutos imperialistas.

5.3 IMPERIALISMO E O SISTEMA DE MÚLTIPLOS ESTADOS

Acreditamos que Callinicos (2009) e Wood (2014) são os autores que melhor
demonstraram a necessidade de um sistema de múltiplos Estados para o imperialismo. O
argumento supracitado de Marx (2013, p. 808-809) no qual ele distingue a “coerção muda
exercida pelas relações econômicas” da “violência extraeconômica” é a base a partir da qual
Wood (2014) constrói sua elegante teoria do imperialismo, onde a especificidade do
imperialismo capitalista reside no estabelecimento de uma rede de dependência pelas vias do
mercado e não mais, como era na pré-história do capitalismo, através da coerção
305

extraeconômica. Com base nisso, é possível perceber que o caráter violento, expropriatório, do
imperialismo capitalista é mais um resultado de sua determinação trans-histórica do que um
atributo específico da historicidade capitalista248. Portanto, a compreensão do imperialismo
capitalista deve partir das legalidades típicas desta época da história humana – motivo pelo
qual iniciamos a Parte II desta tese examinando como comércio e investimento constituem
formas de manifestação do imperialismo de nossa época –, o que não quer dizer que as forças
extraeconômicas tenham papel fortuito ou contingente nessa análise.
A própria Wood (2014, p. 25) ressalta que “talvez [...] o capital global seja mais
dependente do Estado territorial do que qualquer outra potência imperial jamais foi no passado”.
Ora, se a dependência do mercado é o aspecto próprio do capitalismo, como a suspeição de
Wood pode ser possível? A resposta, articulada com o argumento de Marx no Capítulo XXIV,
é “que todos os capitalistas dependem, em última análise, da coerção do Estado para manter os
seus poderes econômicos e o domínio da propriedade, para manter a ordem social e as condições
favoráveis à acumulação” (WOOD, 2014, p. 22). O ponto da autora diz respeito ao fato de que
apesar da globalização, as funções essenciais permanecem com o Estado-nação, fazendo com
que a globalização seja um arranjo de múltiplos Estados: “nenhuma organização multinacional
chegou perto de assumir as funções essenciais na manutenção do sistema de propriedade e da
ordem social, muito menos a função de coerção que está na base de todas as outras” (WOOD,
2014, p. 27). Por isso, “o mundo hoje, na verdade, é mais do que nunca um mundo de Estados-
nação” (WOOD, 2014, p. 27).
De fato, não há uma antítese entre domínio econômico e coerção extraeconômica.
Seguindo com Wood (2014, p. 28): “O capitalismo ampliou o alcance da dominação para muito
além da capacidade de controle político direto ou da ocupação colonial, simplesmente impondo
e manipulando as operações de um mercado capitalista”, mas a manutenção da dependência
exige que “as economias subordinadas devem se tornar e ser mantidas vulneráveis à
manipulação econômica pelo capital e pelo mercado capitalista – um processo que pode ser
violento”. Concordamos com o evolver do argumento da autora, embora uma precisão teórica
precise ser feita: a vulnerabilidade das economias dependentes – chamadas por Wood de
“economias subordinadas” – não é resultado da “manipulação econômica pelo capital” (grifos
nossos), mas é a concorrência entre capitais no mercado mundial que põe pressões econômicas
sobre essas economias. O rigor nesse momento da exposição é importante pois, como veremos,

248
Na subseção 2.1.1 mostramos, a partir de Wood (2014), que a transferência de riquezas através das forças
extraeconômicas é o que permite conceituar uma concepção trans-histórica de imperialismo.
306

a ênfase em vários capitais é a chave correta para derivar, seguindo Callinicos (2009, p. 67-93),
a necessidade de um sistema de múltiplos Estados. Antes de chegar a esse ponto, examinemos
com um pouco mais de detalhes o quão violento pode ser o processo de tornar vulneráveis as
economias dependentes.
O papel da força extraeconômica na promoção da vulnerabilidade das economias
dependentes é análogo, seguindo com Wood (2014, p. 26-27), à atuação estatal em “manter a
dependência do trabalho em relação ao capital”. Sob este ponto de vista, podemos notar que
“desde o início a intervenção do Estado foi necessária para criar e manter não somente o sistema
de propriedade, mas também o de não propriedade”. Na perspectiva da relação imperialista, o
Estado-nação opera como veículo de “difusão dos imperativos capitalistas”, atuando nas duas
extremidades, no polo imperial e no polo subordinado, ou, em outros termos, ele é “único meio
pelo qual o capital pode se expandir livremente para além das fronteiras da dominação política
direta” (WOOD, 2014, p. 29).
Baseando no que argumentamos nos capítulos anteriores, podemos dizer que essa
“difusão dos imperativos capitalistas” no mercado mundial equivale à intensificação de
operações de comércio exterior e de investimentos estrangeiros. Mas para que essa difusão se
materialize, e, com ela, se desenvolva a relação imperialista, o Estado-nação precisa atuar. O
comércio ou o investimento não se enraízam no éter, mas num determinado espaço territorial
demarcado por fronteiras políticas, protegido por exércitos e moedas. Segue que o
desenvolvimento da relação imperialista pressupõe a atuação estatal em dois momentos: na
abertura de fronteiras e na garantia de sua reprodução, ou, fazendo uma analogia com o Capítulo
XXIV do Livro I de O Capital, o Estado atua na assim chamada acumulação primitiva e na
manutenção da ordem social propícia à acumulação do capital.
Embora prescinda de um “Estado imperial”, como diz Wood (2014, p. 92), o
imperialismo especificamente capitalista demanda um sistema de múltiplos Estados:

O próprio fato de a ‘globalização’ ter estendido os poderes puramente econômicos


muito além do alcance de qualquer Estado nacional significa que o capital global exige
muitos Estados-nação para executar as funções administrativas e coercivas que
sustentam o sistema de propriedade e oferecem o tipo de regularidade e previsibilidade
diárias, bem como a ordem legal de que o capitalismo necessita mais que qualquer
outra forma social. (WOOD, 2014, p. 107).

Em resumo, o argumento de Wood é que a globalização significa a extensão do


poder econômico do capital global – ou, diríamos, dos vários capitais – muito maior do que os
limites do poder territorial cristalizado em cada Estado-nação. Com poder econômico superior
307

ao territorial, segue que um Estado não é suficiente para administrar essa relação. Portanto, a
globalização implica na indispensabilidade de um sistema de múltiplos Estados, coordenado
por um poder militar disciplinador.
Para a autora (WOOD, 2014, p. 115-116), a “característica essencial do
imperialismo capitalista” e que o “diferencia nitidamente das formas anteriores de
imperialismo” é “o fato de seu alcance econômico exceder em muito seu controle político e
militar direto”. Apesar do domínio do econômico sobre o extraeconômico, o primeiro não
prescinde do segundo: “apesar de os imperativos de mercado poderem chegar além do poder de
qualquer Estado, eles têm de ser impostos pelo poder extraeconômico”. Além disso, a
manutenção da “ordem social diária” também demanda a atuação “dos poderes administrativos
e coercitivos”, isto é, do Estado.
O Estado, resume Wood (2014, p. 106-108), é indispensável e “está no coração do
novo sistema global”, pois “continua a desempenhar seu papel essencial na criação e
manutenção das condições de acumulação de capital”. Esse papel se cristaliza no desempenho
das companhias multinacionais: “qualquer sucesso desfrutado por essas companhias na
economia global dependeu do apoio indispensável do Estado, tanto na localização de sua sede
no próprio país quanto nos outros países de sua rede ‘multinacional’”. Ele “é o criador das
condições que permitem ao capital global sobreviver e navegar o mundo”.
Esta nova configuração imperial, conforme Wood (2014, p. 101), “descobriu várias
maneiras de impor seus imperativos econômicos a Estados claramente independentes”, cujo
“principal instrumento” é a dívida. Na relação com as economias em desenvolvimento, continua
a autora (WOOD, 2014, p. 103, inserção nossa), “o poder imperial exigiu [por meio do FMI e
Banco Mundial no seio do chamado ‘Consenso de Washington’] ‘ajustes estruturais’ e uma
variedade de medidas que teriam o efeito de tornar essas economias ainda mais vulneráveis às
pressões do capital global sob o comando dos Estados Unidos”. Ou seja, a globalização foi
estímulo poderoso à “abertura das economias subordinadas e [para impor] sua vulnerabilidade
ao capital imperial” (WOOD, 2014, p. 103).
Embora Wood defenda que a consolidação do “império do capital”, desse
imperialismo guiado predominantemente por forças econômicas, ocorra a partir do fim da
Segunda Guerra Mundial, suas raízes históricas remontam ao advento da grande indústria.
Afinal, desde ali se instaura uma cisão entre as capacidades produtivas dos trabalhadores
empregados sob sua égide em contraposição aos trabalhadores que executavam processos
produtivos ainda arcaicos, instaurando, portanto, um processo de transferência internacional de
308

valores via comércio exterior. Evidentemente, nos primórdios da grande indústria havia uma
imbricação maior entre expansão econômica e Estado imperial, de forma que podemos
encontrar ali apenas as raízes da formação do imperialismo especificamente capitalista.
Gallagher e Robinson (1953, p. 3, tradução nossa), por exemplo, afirmam que a
supremacia britânica na chamada era do livre-comércio no século XIX foi “constantemente
sustentada” “por meios informais se possível ou por anexações formais quando necessário”.
Em outros termos, “o fato básico é que a industrialização britânica causou um desenvolvimento
intensivo e extensivo de regiões além-mar. Se eles eram formalmente britânicos ou não, era
uma consideração secundária” (GALLAGHER; ROBINSON, 1953, p. 5). Em síntese, nos
parece que na época de advento da grande indústria se abre um período híbrido de coexistência
entre formas de imperialismo capitalista e pré-capitalista e que paulatinamente é substituído por
formas predominantemente capitalistas.
Ao situar a gênese histórica do imperialismo capitalista no contexto imediatamente
posterior à Revolução Industrial (mesmo que ele ainda não assuma uma forma puramente
capitalista), estamos projetando sua atuação sobre uma malha pré-definida de Estados-nações.
Portanto, a lógica econômica de extração de valores se sobrepõe a uma lógica geopolítica pré-
existente. A questão que Callinicos (2009) se põe a resolver é a seguinte: considerando que o
capitalismo – e, dizemos nós, o imperialismo capitalista – herdou um “contexto geopolítico
constituído por esse sistema pré-existente de Estados” (CALLINICOS, 2009, p. 77), a relação
entre o imperialismo e este sistema interestatal é contingente ou necessária? Em outros termos,
o sistema de múltiplos Estados é produto do imperialismo (no sentido de ser reforçado pelo
imperialismo) ou pode ser substituído por “uma forma diferente de soberania política”, como o
“Estado transnacional” (CALLINICOS, 2009, p. 76)? 249
Callinicos se envolve nesse argumento pois entende que a proposição de Wood
acerca do sistema de múltiplos Estados é contingente, isto é, ela não deriva corretamente a
influência do imperialismo sobre tal arranjo político. Tal crítica faz sentido quando
consideramos que ela assume que “o capitalismo global sem um sistema de múltiplos Estados
territoriais é absolutamente inconcebível” (WOOD, 2014, p. 30), sem, entretanto, demonstrar
exatamente o porquê. Ao enfatizar, em passagem citada anteriormente, que “o capital exige
muitos Estados-nação” (WOOD, 2014, p. 107), Wood cairia, na crítica de Chibber (2005, p.
157) citada por Callinicos (2009, p. 79), em um tipo de “funcionalismo leve [soft

249
Callinicos refere-se aqui à controversa tese de Robinson (2007). Cf. Corrêa (2012, p. 172-174) para uma crítica
à essa tese.
309

functionalism]” na medida em que presume que os Estados assumem tal forma por uma
demanda do capital (ou do imperialismo).
Na interpretação crítica de Callinicos, é como se Wood fosse empurrada para esse
funcionalismo pois assume uma concepção de capital na qual pouco enfatiza a concorrência
entre capitalistas. Considerando que o capital só existe como vários capitais, “o ‘capital global’
não pode existir”, nas palavras de Callinicos (2009, p. 79, tradução nossa), “mas apenas uma
pluralidade de atores econômicos em concorrência. Tal pluralismo de capitais pode ser pensado
como um suporte do ‘pluriverso geopolítico’”.
Assim como o capital usurário e o comercial, duas “formas distintas do capital”
legados da Idade Média que “já valiam como capital quand même [em geral]” (MARX, 2013,
p. 820), o Estado antecede o capitalismo e é “incorporado e adaptado” a ele, seguindo os termos
de Callinicos (2009, p. 81). Nesse sentido, a concepção de Wood segundo a qual a concorrência
geopolítica tem caráter pré-capitalista é vista por Callinicos (2009, p. 81) como “arbitrária e
dogmática”, pois o sistema estatal é uma “dimensão do modo capitalista de produção”
(CALLINICOS, 2009, p. 83, grifos do autor).
A ênfase de Callinicos é demonstrar que o imperialismo está na interseção entre “as
formas de concorrência econômica e geopolítica” (CALLINICOS, 2009, p. 72). Numa
abordagem muito semelhante à de Harvey (2003), como o próprio autor faz questão de
reconhecer, a crítica ao chamado “economicismo”, implícita na concepção instrumentalista de
Estado adotada por Lenin e Bukharin (CALLINICOS, 2009, p. 70-71), é o ponto de partida de
Callinicos em sua estratégia de conceber o imperialismo como a interseção entre “duas formas
de concorrência” pois, segundo o próprio autor, essa concepção tem a vantagem de evitar “o
reducionismo econômico” (CALLINICOS, 2009, p. 72).
Para que a “tensão dialética” entre ambas exista, o ponto central do argumento de
Callinicos é que o nível geopolítico – entendido, “muito amplamente”, com referência “a todos
os conflitos entre Estados em relação a segurança, território, recursos e influência”
(CALLINICOS, 2009, p. 74) – precisa ser integrado na análise do desenvolvimento capitalista
ao mesmo tempo em que mantém sua especificidade. O lugar que a geopolítica ocupa dentro
das teorias do imperialismo nos conduz, seguindo Callinicos (2009, p. 74), “ao sistema estatal
[state system]”, o qual é concebido como “possuindo propriedades irredutíveis àquelas de suas
unidades constituintes, os Estados individuais”.
Ao considerar o imperialismo como a interseção entre as duas “formas de
concorrência”, Callinicos confere o mesmo status às esferas da economia e da (geo)política, ou
310

seja, não atribui prioridade explanatória de uma em relação a outra categoria. Como
defenderemos adiante, essa horizontalidade no tratamento das duas esferas é uma fraqueza de
seu argumento que deve ser substituída, acreditamos nós, por uma prioridade explanatória de
caráter ontológico. Antes de chegarmos a isso, é justo nos aprofundarmos no próprio argumento
do autor.
Sua concepção de duas “formas de concorrência” está ancorada em uma tentativa
de ir “para além do Estado como forma reificada de relações sociais capitalistas”
(CALLINICOS, 2009, p. 84)250. Callinicos defende que a maneira adequada de superar essa
concepção fetichista de Estado é perceber – baseando-se em Block (1987) – que capitalistas e
gestores do Estado possuem interesses distintos: para os primeiros, “expandir seu capital” e,
para os segundos, “manter o poder” (CALLINICOS, 2009, p. 84-85). Para Block (1987),
qualquer gestor do Estado precisa de atividade econômica em nível satisfatório, sendo que esta,
por sua vez, depende de decisões privadas de investimento, o que faz com que o “gestor tenha
interesse em usar seu poder para facilitar investimentos”, decorrendo daí que as políticas
públicas acompanham o “interesse geral do capital” (BLOCK, 1987, p. 58-59). Esse argumento
não depende de conspirações etc., para provar que a relação Estado-capital envolve o uso do
primeiro em benefício geral do segundo. Para que o argumento funcione, segundo Callinicos
(2009, p. 86), tudo que é necessário é que “capitais façam suas decisões calculando maximizar
a rentabilidade”, gerando o efeito não-teleológico segundo o qual os Estados funcionam para
os capitalistas. A relação entre ambos (Estados e capitais) pode ser vista, portanto, como de “via
de mão dupla” ou “interdependência estrutural” (CALLINICOS, 2009, p. 86): Estados
dependem dos capitalistas e vice-versa.
Da mesma forma que se opôs ao “capital global” de Wood (2014) por estar sempre
tratado no singular, Callinicos (2009, p. 87-88) também discorda, corretamente em nosso
entendimento, da forma como Block (1987) menciona o “interesse do capital”, pois só podem
existir vários capitais:

A convergência posta por Block na verdade ocorre entre os interesses dos gestores de
um dado Estado e aqueles da constelação específica de capitais individuais

250
Notemos, de passagem, como as teses da assim chamada “economia política internacional” estão amarradas
com concepções reificadas de Estado de tipo weberiana. Fiori (2010, p. 147, grifos nossos), por exemplo, defende
a seguinte “premissa teórica”: “Por definição, todos os países são insatisfeitos e se propõem a aumentar seu poder
e sua riqueza”. Nesta interpretação, a tendência expansiva do sistema decorre da pressão por acumular poder
exercida pelos “estados-economias nacionais”, processo que se materializa nas guerras (FIORI, 2007, p. 24 et
seq.). Vimos que essa perspectiva é completamente alheia à teoria de Marx na medida em que este autor demonstra
a existência de um impulso autoexpansivo contido no próprio capital (e não no Estado).
311

particularmente considerados tendo influência sobre o Estado em questão [...]. O


resultado é a formação de nexos específicos, institucionalizados e [...]
geograficamente demarcados entre Estados particulares e capitais particulares.
(CALLINICOS, 2009, p. 87-88, tradução nossa, grifos do autor).

Segue que a existência de vários capitais é condição para a existência de vários


Estados, ou de um sistema de múltiplos Estados. Ora, se isso é verdade, e acreditamos ser, o
próprio argumento de Callinicos demonstra a vigência de uma “prioridade ontológica”, nos
termos de Lukács (2012b, p. 306-308), dos capitais em relação aos Estados. Portanto, a suposta
horizontalidade entre as duas “formas de concorrência” é falsa: o que há, na realidade, é uma
sobreordenação ontológica que põe a concorrência econômica em primazia sobre a
concorrência geopolítica.
Mesmo quando Callinicos tenta suportar seu argumento com um exemplo concreto,
a suposta autonomia dos gestores do Estado pode ser facilmente problematizada. Por exemplo,
diz o autor que a política externa estadunidense em relação a Europa ocidental após 1945
“envolveu em várias ocasiões restrições aos interesses econômicos estadunidenses para atingir
os objetivos de política externa de reconstruir e integrar o capitalismo europeu”
(CALLINICOS, 2009, p. 87). Ou seja, as “restrições aos interesses econômicos estadunidenses”
seriam a prova de que não haveria uma primazia do econômico sobre o político. Entretanto, o
objetivo de fundo dessas intervenções de política externa não era preservar os interesses do
capital (ou dos capitais)? Em sentido de longo prazo, a finalidade dessas políticas era afastar a
Europa ocidental da União Soviética e, assim, garantir os interesses dos capitalistas. Portanto,
essa “autonomia” entre as duas “formas de concorrência” da qual comenta Callinicos é muito
relativa, podendo ser derrubada se consideramos a prioridade ontológica do econômico em
relação ao político.
Esse ponto fica ainda mais claro quando, seguindo com o argumento de Callinicos
(2009), ele tenta encontrar uma fundação teórica para o sistema de múltiplos Estados através
do desenvolvimento desigual e combinado. Callinicos retoma a famosa crítica de Bukharin
(1988, p. 130-131) ao ultraimperialismo kautskiano baseado no fato de que tal possibilidade
meramente teórica seria impossível de se efetivar na prática em função da existência de
desigualdade “de posições no mercado mundial”, isto é, devido ao desenvolvimento desigual251.
Este, por sua vez, é alimentado pela concorrência entre capitais que buscam, seguindo os termos
de Callinicos (2009, p. 89), “lucros diferenciais” através da “inovação técnica” (ou seja, o

251
Defendemos a posição de Bukharin (1988) e Lenin (2008) contra Kautski (1914, 2002a, 2002b) em Leite
(2014a).
312

desenvolvimento desigual é alimentado pela transferência de valor). Nesse processo, o “capital


inovador” pode usar sua “renda tecnológica” para fazer mais investimentos de forma a gerar
mais lucros diferenciais, cujo “resultado pode ser um processo de retroalimentação que origina
concentrações252 privilegiadas de capitais de alta-produtividade” (CALLINICOS, 2009, p. 89).
Esse argumento “tem importantes implicações espaciais”, o que sugere que “o desenvolvimento
capitalista é inerentemente concentrado espacialmente” (CALLINICOS, 2009, p. 89).

A tendência do desenvolvimento capitalista em gerar complexos econômicos


espacialmente concentrados cria uma força centrífuga muito poderosa que operaria
fortemente para sustentar as demarcações políticas do mundo em Estados territoriais.
Os capitalistas em tais complexos teriam interesse em preservar os Estados existentes
nos quais eles tem acesso privilegiado: igualmente, gestores do Estado seriam
relutantes em entregar o controle que eles atualmente exercem sobre os recursos desse
complexo. É importante enfatizar que esta dinâmica centrífuga representa apenas uma
tendência: em outras palavras, é possível especificar condições sob as quais ela
poderia ser contrariada, permitindo ao menos a transcendência local e parcial das
soberanias territoriais existentes. (CALLINICOS, 2009, p. 91, tradução nossa, grifos
do autor).

Aqui, mais uma vez, o próprio argumento de Callinicos conduz à sobreordenação


categorial de caráter ontológico: é a existência da concorrência entre capitais que garante a
existência das “demarcações políticas do mundo em Estados territoriais”.
Em resumo, Callinicos (2009) fundamenta mais rigorosamente do que Wood (2014)
a existência do sistema de múltiplos Estados. Por outro lado, sua própria argumentação mostra
a fragilidade de sua concepção de imperialismo como a interseção entre as duas “formas de
concorrência” no mesmo nível explanatório porque, como defendemos, a lógica geopolítica
existe como decorrência ontológica da lógica econômica. Isso posto, podemos passar à quarta
e última subseção desta seção, na qual examinaremos a relação entre essas duas lógicas
tomando por base o que defendemos ao longo dos capítulos anteriores.

5.4 EXPROPRIAÇÕES: O LADO PRIMITIVO DO IMPERIALISMO

Retomaremos agora os momentos em O Capital nos quais Marx relaciona as


expropriações, violência estatal e o mercado mundial. Nosso propósito é encerrar a Seção 5

252
O termo mais correto, seguindo Marx (2013), seria “centralizações” ao invés de “concentrações”.
313

desta tese com uma exposição acerca do papel necessário do sistema de múltiplos Estados e da
violência implícita na função estatal na produção e reprodução da relação imperialista.

5.4.1 Expropriações e a produção da relação imperialista

Cotejando as interpretações de Wood (2014) e Callinicos (2009) com o que estamos


defendendo nesta tese, podemos argumentar que a violência extraeconômica tem dois papéis
distintos e intrinsecamente relacionados: produzir uma relação de dependência entre dois polos
do mercado mundial e, ao mesmo tempo, reproduzir essa relação ao longo do tempo. Sobre o
primeiro aspecto, o sistema colonial teve papel primordial na medida em que a relação
metrópoles-colônias criou rígidos laços políticos e econômicos entre povos de duas regiões do
mundo através de uma brutal relação de força. O caráter trans-histórico das expropriações é
levantado por Marx no Livro III de O Capital:

O capital mercantil, quando domina, estabelece por toda parte um sistema de


pilhagem, e seu desenvolvimento entre os povos comerciais, dos tempos antigos e dos
modernos, está diretamente ligado à rapina, à pirataria, ao rapto de escravos, à
subjugação de colônias; assim foi em Cartago, Roma e, mais tarde, com os
venezianos, portugueses, holandeses etc. (MARX, 2008, p. 442).

Nesse trecho, Marx abre uma nota de rodapé citando um autor do século XVI que,
dentre outras coisas, sugeria o papel do capital mercantil na violenta expropriação dos
produtores: “os príncipes devem com energia adequada punir e evitar que os súditos sejam tão
vergonhosamente esfolados pelos comerciantes” (MARX, 2008, p. 442).
Os processos de descolonização, entretanto, superam esta forma de subordinação e
põem um novo tipo de relação de dependência, determinada, cada vez mais, utilizando os
termos de Wood (2014)253, por “imperativos econômicos”. Independentemente da
especificidade local de cada processo, a substituição da dependência centralmente política,
típica da relação colonial, pela dependência centralmente econômica, típica da relação
imperialista, é comum a todos os processos de descolonização, tanto no continente americano

253
WOOD, E. M. O império do capital. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 17,
22, 74, et seq.
314

nos séculos XVIII e XIX quanto no que se desenrolou na África e na Ásia nos séculos XIX e
XX.
Essa é a constatação de Marini (2005, p. 140-141) ao observar o caso latino
americano. Assegura o autor que com a Revolução Industrial e a independência política das
colônias, “os novos países se articularam diretamente com a metrópole inglesa e, em função
dos requerimentos desta, começaram a produzir e a exportar bens primários, em troca de
manufaturas de consumo e – quando a exportação supera as importações – de dívidas” (grifos
nossos nas palavras em que alteramos o tempo verbal). Contraposta à situação colonial, há uma
mudança qualitativa no tipo de subordinação ao qual as assim chamadas economias
dependentes se inserem. A originalidade do novo momento reside no estabelecimento de formas
de transferência de valor – formas de imperialismo – pela via mercantil, ao contrário do período
anterior, no qual as transferências de valor se materializavam pela expropriação direta, portanto
conduzidas pela violência extraeconômica. Em síntese, a mudança qualitativa posta pelo
estabelecimento de relações imperialistas especificamente capitalistas resulta da utilização cada
vez maior de condutos econômicos ao invés de políticos para a apropriação de mais-valor pelos
centros imperialistas. Na abordagem de Marini, essa nova forma de dependência das economias
da América Latina se efetiva apenas a partir de 1840, quando o continente se articula
plenamente com a economia mundial, pois “é com o surgimento da grande indústria que se
estabelece com bases sólidas a divisão internacional do trabalho”254 (MARINI, 2005, p. 142).
As expropriações, então, funcionam para a relação imperialista de maneira análoga
à que ocorre na constituição da relação de dependência entre trabalhadores e capitalistas. Elas
forjam violentamente através da força estatal um intrincado processo que subjuga o polo
dependente na dinâmica da acumulação do polo imperialista. Vale destacar que a relação
imperialista é construída simultaneamente pelas frações nacionais da burguesia residentes nos
dois polos do mercado mundial, isto é, embora existam pressões externas, é a dinâmica interna
de classes em cada região que forja aquela relação: a economia brasileira, por exemplo, se
enlaça de forma subordinada na divisão internacional do trabalho pois as produções de açúcar,
café, borracha, etc., eram as mais rentáveis para aqueles que se apropriavam de mais-trabalho.
Portanto, foram ações individuais que geraram o efeito social não-teleológico de desenvolver
uma relação imperialista dentro do sistema de múltiplos Estados. O pressuposto para este
desenvolvimento, contudo, foi a violência extraeconômica como momento genético do

254
Engels, em nota de rodapé no Livro III de O Capital, também situa a década de 1840 como ponto de transição
entre a “fase infantil do mercado internacional” e uma fase madura (MARX, 2008, p. 646).
315

“entrelaçamento”, usando termos de Marx (2013, p. 832) já citados, “de todos os povos na rede
do mercado mundial”.

5.4.2 Expropriações e a reprodução da relação imperialista

Mesmo com o desenvolvimento de uma relação imperialista tipicamente capitalista,


na qual a subordinação é predominantemente operada por condutos econômicos, a violência
extraeconômica tem um papel importante na reprodução dessa relação. Historicamente, aponta
Wood (2014, p. 116), a primazia das forças econômicas caminhou lado a lado com a
proliferação dos Estados-nação os quais passaram a agir como “condutos para os imperativos
capitalistas”, o que leva a autora a concluir, como vimos na subseção anterior, que “o mundo
‘globalizado’ é, mais do que nunca, um mundo de Estados-nação” (WOOD, 2014, p. 116), pois
apenas estes podem “fornecer a ordem jurídica e administrativa necessária ao dia a dia”
(WOOD, 2014, p. 138). A existência desse sistema de múltiplos Estados exige o que a autora
(WOOD, 2014, p. 116-117) designa por “imperialismo excedente”, ou “a concentração
desproporcional de força militar”, pois o Estado local é vulnerável a pressões internas que
podem se opor aos interesses do capital imperial. Em resumo, o sistema global de Estados
defronta-se com perigos e ameaças diversas, resultantes das lutas entre classes e dos conflitos
entre frações da classe capitalista, motivo pelo qual a reprodução do imperialismo tipicamente
capitalista não prescinde da violência extraeconômica.
Tomemos, de passagem, o exemplo dos golpes civis-militares dos anos 1960-1970
na América Latina. Como já sugerimos com outras palavras255, a extrema violência
extraeconômica desse período foi uma resposta estatal às chamadas “ameaças comunistas” que
supostamente se instalavam no continente impulsionadas pela Revolução Cubana de 1959. No
fundo, portanto, as justificativas golpistas se enraizavam na alegada defesa do regime de
produção capitalista. No caso brasileiro, o golpe de 1964 resulta, conforme a correta descrição
de Marini (2012b, p. 100-105), de crescente “intensificação da luta de classes” e da consequente
“radicalização política” observada no período de governo de João Goulart. Esse roteiro fica
ainda mais explícito no caso chileno com a deposição de Salvador Allende em 1973, mas
também ocorre no Uruguai em 1973, na Argentina em 1976 e outros países latino americanos.

255
Cf. subseção 2.2.
316

Sendo assim, nos parece inequívoco associar essas violentas intervenções estatais, as quais
contaram com forte apoio estadunidense, com a necessidade (pelo menos retórica) de sustentar
a apropriação de mais-valor e, assim, reproduzir a relação imperialista.
Além de evitar a interrupção da relação imperialista, como nos casos listados
anteriormente, a violência extraeconômica também pode exercer uma função direta como
conduto para a transferência internacional de valor. Marx elenca várias formas de expropriação
ao longo de O Capital, notadamente nos Livros I e III, que se coadunam com a interpretação
que estamos sugerindo. Por exemplo, ao comentar a atuação da Companhia Inglesa das Índias
Orientais, Marx (2013, p. 822, grifos nossos) comenta, no Capítulo XXIV do Livro I, que a
navegação costeira bem como o comércio interno na Índia “tornaram-se monopólio dos altos
funcionários da Companhia. Os monopólios de sal, ópio, bétel e outras mercadorias eram minas
inesgotáveis de riqueza. Os próprios funcionários fixavam os preços e espoliavam à vontade o
infeliz indiano”. A espoliação, neste caso, cruza transversalmente temas que tratamos nos
Capítulos Três e Quatro desta tese: a troca desigual e a renda de monopólio. Aqui, a espoliação
ou a expropriação decorre diretamente do preço de monopólio, gerando lucros para os
monopolistas, como se estes fossem “mais astutos que os alquimistas, criavam ouro do nada”
(MARX, 2013, p. 822).
Em outro exemplo de preço de monopólio espoliante, o qual também induz uma
transferência de valor dos indianos para os ingleses, Marx (2013, p. 823) comenta que “entre
1769 e 1770, os ingleses provocaram um surto de fome por meio da compra de todo arroz e
pela recusa de revendê-lo, a não ser por preços fabulosos”. Nesse sentido, para retomar um
exemplo da seção anterior256, a Apple também espolia, assim como todos aqueles, cometendo
um truísmo, que fixam preços monopolistas espoliantes. Ou seja, o comércio também envolve
espoliação, expropriação.
Além da expropriação do produtor direto ou da população em geral, a expropriação
de capitalistas por capitalistas é uma decorrência lógica do desenvolvimento do sistema de
crédito. Marx expõe esse argumento pela primeira vez em O Capital no Capítulo XXIII do
Livro I e o desenvolve nos capítulos finais da Seção V do Livro III, na qual o objeto de estudo
passa a ser o sistema de crédito. No Capítulo XXIII do Livro I, a questão posta pelo autor é
desvendar as implicações da acumulação de capital e do consequente aumento de sua
composição orgânica “sobre o destino da classe trabalhadora” (2013, p. 689). Nesse percurso,

256
Cf. subseção 4.5.3 desta tese.
317

Marx (2013, p. 702) nota que o “barateamento das mercadorias” é o meio através do qual “a
luta concorrencial é travada”. Como o crescimento da produtividade “depende da escala da
produção”, segue que, enquanto tendência, “os capitais maiores derrotam [...] os menores”
(MARX, 2012, p. 702). Como resultado geral, a concorrência

[...] termina sempre com a ruína de muitos capitalistas menores, cujos capitais em
parte passam às mãos do vencedor, em parte se perdem. Abstraindo desse fato,
podemos dizer que, com a produção capitalista, constitui-se uma potência
inteiramente nova: o sistema de crédito, que em seus primórdios insinua-se
sorrateiramente como modesto auxílio da acumulação e, por meio de fios invisíveis,
conduz às mãos de capitalistas individuais e associados recursos monetários que se
encontram dispersos pela superfície da sociedade em massas maiores ou menores, mas
logo se converte numa arma nova e temível na luta concorrencial e, por fim, num
gigantesco mecanismo social para a centralização dos capitais. (MARX, 2013, p.
702).

Alimentada pelas “duas alavancas mais poderosas da centralização” (MARX, 2013,


p. 702) – concorrência e crédito –, a dinâmica da acumulação do capital leva à “supressão
[Aufhebung] de sua independência individual, expropriação de capitalista por capitalista,
conversão de muitos capitais menores em poucos capitais maiores” (MARX, 2013, p. 701).
A análise da centralização dos capitais teve papel decisivo na forma como o
marxismo do começo do século XX interpretou o imperialismo, cuja imprecisão mais evidente
é a confusão entre concorrência e monopólio posta por Lenin em O imperialismo257. A seguinte
passagem do Capítulo XXIII do Livro I de O Capital parece ter alimentado o debate dentro da
teoria clássica do imperialismo a respeito da transição entre capitalismo concorrencial e
capitalismo monopolista:

A centralização é possível por meio da mera alteração na distribuição de capitais já


existentes, da simples modificação do agrupamento quantitativo dos componentes do
capital social. Se aqui o capital pode crescer nas mãos de um homem até formar
massas grandiosas é porque acolá ele é retirado das mãos de muitos outros homens.
Num dado ramo de negócios, a centralização teria alcançado seu limite último
quando todos os capitais aí aplicados fossem fundidos num único capital individual.
Numa dada sociedade, esse limite seria alcançado no instante em que o capital social
total estivesse reunido nas mãos, seja de um único capitalista, seja de uma única
sociedade de capitalistas. (MARX, 2013, p. 702-703, grifos nossos).

Duas observações parecem ser suficientes para sugerir a influência dessa passagem
em especial com as formulações marxistas clássicas sobre o imperialismo: (a) Engels interpõe

257
Desenvolvemos essa crítica à teoria de Lenin na subseção 2.1.2 desta tese.
318

uma nota de rodapé à quarta edição de O Capital, exatamente nesse trecho (após “... num único
capital individual”), afirmando que “Os mais recentes “trusts” ingleses e americanos já
apontam para esse objetivo [i.e., da centralização em um único capital individual], procurando
unificar numa grande sociedade por ações, dotada de um monopólio efetivo, ao menos todas
as grandes empresas ativas num ramo de negócios” (MARX, 2013, p. 702-703, grifos e
inserção nossos), ou seja, sugerindo que aquele “limite último” da centralização apontado por
Marx já estaria sendo materializado em trusts, num argumento e numa linguagem muito
parecidos com os levantados por Lenin. (b) Ao mesmo tempo, a expressão “limite último” usada
por Marx é evidentemente parecida com “último estágio”, ou “estágio superior”, usado por
Lenin em O imperialismo. Considerando-se ainda que o critério usado por Lenin para periodizar
o capitalismo em dois estágios distintos é o grau de monopolização (capitalismo monopolista
versus capitalismo concorrencial) e que o contexto dessa expressão de Marx refere-se
exatamente à dinâmica de “energia do movimento centralizador” posta pela acumulação, nos
parece muito plausível sugerir que a concepção equivocada de Lenin sobre a concorrência possa
ter sido influenciada por essa passagem combinada de Marx e Engels.
É importante ressaltar que Marx não está sugerindo uma periodização do
capitalismo com base no grau de monopolização. Apenas constata, na passagem citada
anteriormente, que o “limite último” da centralização é a reunião de todo o capital social nas
mãos um capitalista ou uma sociedade de capitalistas. O único tipo de periodização ao qual
Marx se refere é a distinção histórica entre “indústria moderna”, ou seja, grande indústria, e
“infância da produção capitalista” (2013, p. 708). Nesse ínterim, o autor faz uma observação
(apenas na edição francesa de O Capital258) sobre as transformações qualitativas na composição
do capital, indicando que a peculiaridade da “indústria moderna” – a “indústria mecanizada” –
coincide com a consolidação do “mercado universal”, decorrente da incorporação sucessiva “de
vastos territórios no Novo Mundo, na Ásia e na Austrália” (MARX, 2013, p. 709).
Como se retomando essas indicações de Marx, Engels adiciona uma nota de rodapé
no Capítulo XXX do Livro III onde menciona sobre a “fase infantil do mercado internacional”
e aponta, com acentos mais concretos, para a relação entre produtividade e mercado mundial:
“Na realidade, foi a expansão colossal dos meios de transporte e comunicações – navio a vapor,
ferrovias, telégrafo elétrico, canal de Suez – que estruturou o mercado mundial” (MARX, 2008,

258
Cf. Nota dos Editores Alemães da Marx-Engels-Werke disponível em Marx (2013, p. 709).
319

p. 646). Nesse mesmo capítulo, no contexto do desenvolvimento do crédito comercial, Marx


menciona:

Mas está claro que, com o desenvolvimento da produtividade do trabalho e, portanto,


da produção em grande escala, (1) os mercados se expandem e se distanciam do local
de produção, (2) por isso, os créditos devem prolongar-se e, portanto, (3) o fator
especulação deve dominar cada vez mais as transações. A produção em grande escala
e para mercados distantes lança o produto global nas mãos do comercio. (MARX,
2008, p. 636-637).

É curioso perceber que quando o Livro III entra na exposição sobre o sistema de
crédito, Engels interfere novamente na exposição. Desta vez, ele adiciona um parágrafo dentro
do Capítulo XXVII relacionando monopólio e concorrência e que é, uma vez mais,
impressionantemente parecido com a argumentação de Lenin em O imperialismo. No contexto
em que Marx (2008, p. 584-585) comenta sobre sociedades anônimas, o parágrafo introduzido
por Engels sugere que “novas formas de empresas industriais” surgiram desde a época em que
Marx redigiu seu texto, configurando-se em um desenvolvimento “à segunda ou à terceira
potência” das sociedades por ações cujo resultado foi a ampliação da produção tornando-a
descolada das necessidades de consumo. “E acresce”, continua Engels, “que cada país
industrial, com a política de proteção aduaneira, se isola dos demais e notadamente da
Inglaterra, ainda aumentando de modo artificial a capacidade interna de produção” (MARX,
2008, p. 584-585). Nos corolários desse argumento fica evidente a sugestão de Engels de que o
monopólio pode substituir a concorrência (e não a potencializar): “a liberdade de concorrência,
essa veneranda celebridade, já esgotou seus recursos, cabendo a ela mesma anunciar sua
manifesta e escandalosa falência. É o que evidencia o fato de se associarem, em cada país, os
grandes industriais de determinado ramo para construir cartel, destinado a regular a produção”,
formando-se, inclusive, cartéis internacionais. Engels exemplifica com um ramo de produção
química no qual a produção foi centralizada259 “em uma grande sociedade por ações com
direção única” (grifos do autor). Tomando esse caso como “a base de toda a indústria química”,
Engels conclui: “o monopólio na Inglaterra substitui a concorrência e prepara de maneira
alentadora a futura expropriação pela sociedade toda, pela nação” (MARX, 2008, p. 584-585,
grifos nossos).

259
No texto, Engels fala em “concentrada” ao invés de “centralizada”, mas optamos pela última expressão por
entendermos que ela é mais fiel com o que o autor está sugerindo.
320

A conclusão final da interpolação de Engels parece ser um extrato de O


imperialismo de Lenin, tamanha a fidelidade entre o que se expõe nos dois lugares: o monopólio
substitui a concorrência, trata-se do máximo desenvolvimento do capitalismo e antecedente da
revolução. De passagem, notemos que o sistema de crédito tem um papel amplo na teoria de
Marx (2008, p. 588), concatenando o desenvolvimento da produtividade com a formação do
mercado mundial, pois “rompe de maneira incessante” o “limite imanente” ao crescimento da
produção.

Assim, este [i.e., o sistema de crédito] acelera o desenvolvimento material das forças
produtivas e a formação do mercado mundial, e levar até certo nível esses fatores,
bases materiais da nova forma de produção, é a tarefa histórica do modo capitalista de
produção. Ao mesmo tempo, o crédito acelera as erupções violentas dessa
contradição, as crises, e, em consequência, os elementos dissolventes do antigo modo
de produção. (MARX, 2008, p. 588, inserção nossa).

O sistema de crédito, portanto, tem dois papéis claros: por um lado, desenvolver
forças produtivas e formar o mercado mundial; por outro potencializar as crises. É interessante
perceber como a transição para novo modo de produção, tema destas páginas de O Capital, está
associada, em Marx, ao mercado mundial e às crises: estas alimentam uma possível dissolução
do modo de produção capitalista, que pode ser superado negativamente com a base mundial da
produção já instituída, indicando a natureza necessariamente mundial da revolução para Marx.
Cumpre notar que um pouco antes do aditivo de Engels ao Capítulo XXVII do Livro
III, Marx fala que o monopólio “reproduz nova aristocracia financeira [por receberem rendas],
nova espécie de parasitas” (2008, p. 585, grifos e inserção nossos), termos também muito
utilizados por Lenin. Adiante, no Capítulo XXXIII do mesmo livro, Marx (2008, p. 720) chama
os banqueiros de “classe de parasitas”.
Retomando o argumento central que estávamos desenvolvendo, da relação entre o
sistema de crédito e as expropriações, o papel do crédito é exposto de forma muito clara por
Marx da seguinte forma: “o crédito oferece ao capitalista particular, ou ao que passa por tal,
disposição livre, dentro de certos limites, de capital alheio e de propriedade alheia e, em
consequência, de trabalho alheio” (MARX, 2008, p. 585), o que potencializa a acumulação e
conduz “à centralização dos capitais e, em consequência, à expropriação na mais alta escala. A
expropriação agora vai além dos produtores diretos, estendendo-se aos próprios capitalistas
pequenos e médios” (MARX, 2008, p. 586).
Como o sistema de crédito é a base sobre a qual se desenvolve o capital fictício, o
desenvolvimento deste equivale à multiplicação de “riqueza imaginária” (MARX, 2008, p. 633)
321

e a expansão, então, da possibilidade de lucros fictícios, especulativos. “Ganhar e perder por


meio das oscilações desses títulos, [...] são cada vez mais o resultado da especulação, do jogo.
Este, e não o trabalho, aparece na condição de modo original de adquirir capital, substituindo
também a violência direta” (MARX, 2008, p. 633). Sistema de crédito, capital fictício e
acumulação primitiva se entrecruzam. A referência à “violência direta” põe a especulação como
uma forma aparente de acumulação primitiva, diferente da acumulação primitiva tradicional,
baseada na força. Ambas podem ser vistas como formas de expropriação, quer seja na base da
violência extraeconômica, quer seja na base do jogo especulativo. Demonstramos assim,
observando um tipo específico, que as expropriações atravessam transversalmente os
investimentos: pois não é possível concebê-los sem levar em consideração o caráter espoliativo
envolvido em algumas dessas operações.
Entender a imbricação das expropriações com o comércio e o investimento é
necessário para não regredir a posições “pré-marxianas”, utilizando termos de Callinicos (2014,
p. 199-200), que colocariam as expropriações, a pilhagem, o roubo, etc. como o cerne da
reprodução do capitalismo nos dias de hoje. Tentamos defender que a forma mais coerente de
se caracterizar teoricamente as expropriações, em última instância a violência extraeconômica
através da força estatal, é percebê-las como aspectos constitutivos da sociabilidade capitalista
ontologicamente subordinados à forma como as relações sociais são intermediadas no
capitalismo, isto é, à lei do valor, especificamente, do valor que se valoriza. Em outros termos,
a reprodução do capital se concretiza através do comércio e do investimento e pressupõe as
expropriações. Quando Marx (2013)260 critica a “teoria moderna da colonização” no Capítulo
XXV do Livro I, ele diz exatamente isso: nesse contexto, a expansão capitalista para “terras
virgens” pressupõe a criação de uma relação de dependência do produtor para o apropriador,
ou, nos termos do autor, a “fabricação de trabalhadores assalariados” (MARX, 2013, p. 836):

O sr. Peel, lastima ele, levou consigo, da Inglaterra para o rio Swan, na Nova Holanda,
meios de subsistência e de produção num total de £50 mil. Ele foi tão cauteloso que
também levou consigo 3 mil pessoas da classe trabalhadora: homens, mulheres e
crianças. Quando chegaram ao lugar de destino, ‘o sr. Peel ficou sem nenhum criado
para fazer sua cama ou buscar-lhe água do rio’. Desditoso sr. Peel, que previu tudo,
menos a exportação das relações inglesas de produção para o rio Swan! (MARX,
2013, p. 836).

260
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I. Tradução de Rubens Enderle. Rio de Janeiro:
Boitempo, 2013. p. 835 et seq.
322

Para além dessa imbricação, as expropriações representam formas diretas de


transferência de valor no mercado mundial. Por essa dimensão, o imperialismo capitalista perde
sua especificidade em relação às formas históricas pretéritas de imperialismo. Como vimos, o
sentido trans-histórico do imperialismo é a transferência de riquezas, sendo que a distinção
específica do capitalismo é o modo predominantemente econômico de efetivar essa
transferência261. Portanto, sob o predomínio do modo capitalista de produção e apropriação,
qualquer transferência internacional de valor operada por condutos extraeconômicos constitui
resquício de formas pré-capitalistas de imperialismo, é seu lado primitivo, o que nos leva a
concluir que o desenvolvimento do imperialismo, ou o recuo de suas “barreiras naturais”,
usando termos de Lukács (2012b, p. 289, 319-320), equivale à explicitação das formas de
manifestação econômicas. Isto não significa que as expropriações passariam a ser relegadas,
pois, como vimos, elas estão imbricadas com as dimensões econômicas do objeto. Os
mecanismos expropriatórios tendem a ser mais virulentos quanto mais rígidos são os muros que
separam o rio Swan do sr. Peel.

261
Cf. subseção 2.1.1
323

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A reinterpretação do imperialismo sugerida neste trabalho se baseou em dois


suportes fundamentais: as próprias teorias marxistas sobre o objeto e a teoria do valor de Marx.
Não é por outro motivo que escolhemos um título que carrega um duplo sentido, afinal, a
sentença “O capital no mundo e o mundo do capital” pode se referir ao capital enquanto “sujeito
automático” de nossa forma de sociedade ou a O Capital enquanto projeto de espelhamento da
realidade social na consciência. Por outro lado, sendo uma obra do século XIX e o imperialismo
um objeto tão fluido, dotado de dinâmica constituída por profundas metamorfoses, não
estaríamos sendo anacrônicos ao fundamentar nossa pesquisa em O Capital?
Indo direto ao ponto, respondemos essa pergunta com a ajuda de Callinicos (2014,
p. 25): “O capital e o capitalismo estão interligados, antagonistas em combate de longa duração
[“in perennial combat”]. Enquanto o sistema cuja lógica foi exposta por Marx sobreviver, seu
grande trabalho continuará cobrando seu estudo”. As leis que governam o capitalismo, isto é,
que determinam tendencialmente sua direção, seu movimento, foram sistematizadas por Marx
e, por isso, sua obra não se tornará anacrônica enquanto a humanidade não se emancipar do
capital. Em outro sentido, o projeto teórico de Marx de executar a crítica dessa forma de
sociedade é necessariamente ilimitado, por isso inacabado, motivo pelo qual o marxismo
também nunca se tornará anacrônico dentro do atual período histórico.
Temos que perceber as teorias marxistas do imperialismo e da dependência
enquanto tentativas de levar adiante o projeto marxiano de crítica do capitalismo. Ademais,
devemos tratar os textos que surgem dessas tentativas como produtos de determinados
contextos históricos nos quais os autores evidentemente esperavam intervir. A vinculação entre
teoria e prática talvez seja mais evidente no que chamamos de primeira onda de teorizações
sobre o imperialismo, dentro da qual a figura de Lenin é a mais representativa dessa práxis
revolucionária. Sua teoria do imperialismo está inscrita, usando termos de Vedda (2015, p. 14),
em sua aversão “a aplicar prescrições” e em sua preocupação “em examinar minuciosamente
as circunstâncias históricas com as quais se faz urgente enfrentar”.
Devemos destacar que não fizemos uma análise exegética da teoria de Lenin nem
de seus contemporâneos. O objetivo de nossa intervenção foi extrair dali, usando as teorias
como meios de perceber conscientemente o real, determinações ontológicas do imperialismo.
Através dessa mediação, sugerimos que um traço constitutivo do imperialismo naquele período
histórico eram as exportações de capital produtivo e capital-dinheiro, ou, em outros termos, os
324

investimentos no exterior. Ademais, apontamos que o argumento dos autores para justificar
teoricamente a necessidade das exportações de capitais carregava duas imprecisões de caráter
mais teórico e uma de caráter mais empírico, sendo que esta equivalia à generalização
equivocada de certas características geograficamente particulares, como a categoria capital
financeiro de Hilferding.
Ao mesmo tempo, no que fica mais claro na abordagem de Lenin, eles assumiam
que a centralização dos capitais havia atingido determinado nível de tal maneira que havia
provocado um salto de qualidade no modo de produção em direção ao que ficou conhecido
como capitalismo monopolista, o qual implicava a autonomia dos preços em relação aos
valores, provocando a decomposição do capitalismo (por isso seria o “último estágio”) à medida
que “desaparecem até certo ponto as causas estimulantes do progresso técnico e, por
conseguinte, de todo o progresso” (LENIN, 2008, p. 101, grifos nossos). Usando termos de
Shaikh (1990, p. 166), é como se a lei do valor “se desvanecesse na história”. Mostramos que
essa perspectiva é estranha a Marx pois em sua teoria do valor o monopólio não anula a
concorrência nem o desenvolvimento das forças produtivas como seu efeito social não-
teleológico, pelo contrário, a potencializa. Entretanto, em determinados momentos de O
Capital, especialmente no Livro III, os quais listamos na Seção V, Engels interpõe notas
explicativas ou comentários que, de fato, sugerem uma relação antinômica entre monopólio e
concorrência e parecem alimentar a equivocada interpretação dessa questão.
Uma terceira imprecisão, também de caráter teórico, diz respeito à confusão sobre
o lugar no qual as leis de tendência desenvolvidas em O Capital são válidas. Como vimos, parte
do marxismo atribui o caráter inacabado do projeto de Marx ao fato dele não ter escrito os
últimos livros do famoso plano presente na Introdução aos Grundrisse, dentre os quais o que
versaria sobre o mercado mundial. Tal constatação levou essa parcela do marxismo a atribuir
um caráter “nacional” à lei do valor, como se ela fosse válida apenas em um sistema fechado,
o que, junto ao crescente protecionismo comercial da época, ajuda a entender por que o
comércio internacional não está presente nessa primeira fase das teorias sobre o imperialismo.
Pelo menos até a publicação de La ley de la acumulación y del derrumbe del sistema capitalista
de H. Grossmann em 1929, não temos conhecimento de teorias que associem diretamente o
comércio exterior ao imperialismo. Ou seja, parece que a leitura “nacional” de O Capital
conduziu aqueles que refletiam sobre as relações internacionais a aceitarem, implicitamente, a
teoria ricardiana do comércio; como se a teoria dos preços de Marx fosse incapaz de explicar a
dinâmica contida na circulação de mercadorias no mercado mundial.
325

A transformação no padrão de reprodução do capital após a grande depressão dos


anos 1930 e a Segunda Guerra Mundial vai deslocar o foco das teorias sobre o imperialismo.
Nessa segunda onda, estimulada pelos processos de descolonização, de “universalização dos
imperativos capitalistas” (WOOD, 2014, p. 147), de uma aparente saída kautskiana da crise do
imperialismo do período anterior, a centralidade das reflexões recai sobre o comércio
internacional. Correndo o risco de omitir intérpretes fundamentais desse período, nos parece
razoavelmente seguro apontar que as publicações de The imperialism of free trade de Gallagher
e Robinson em 1953, Échange inégal de Emmanuel em 1962 e A dialética da dependência de
Marini em 1973 são responsáveis por assentar um novo papel ao comércio exterior dentro das
teorias sobre o imperialismo (e, agora, sobre a dependência).
Apesar de divergências teóricas e metodológicas entre esses autores, a ênfase
direcionada à circulação de mercadorias nos permite sugerir pontos em comum que fortalecem
a caracterização do comércio como aspecto principal na onda do pós-Segunda Guerra Mundial.
O primeiro deles é a percepção de Gallagher e Robinson (1953) – que seria desenvolvida por
Callinicos (2009) – acerca do imperialismo como um objeto multifacetado, o que pode ser
comprovado quando vemos que a ênfase dos autores é provar que a “história imperial” britânica
no século XIX envolve aspectos formais e informais, relativos ao uso simultâneo da força
extraeconômica direta, como na relação com a Índia, e do livre-comércio, no caso da relação
com a América Latina (cuja relação foi fomentada por investimentos britânicos diretos desde
1810 principalmente, especialmente no Brasil e na Argentina, contradizendo a hipótese
predominante na teoria clássica que assegurava um papel relevante para as exportações de
capital apenas a partir do final do século XIX). Ou seja, “o tipo de garantia política entre a
economia em expansão e as economias formal ou informalmente dependentes, como pode ser
esperado, tem sido flexível” (GALLAGHER; ROBINSON, 1953, p. 7). Os autores, portanto,
sustentam um ponto que seria retomado por Marini (2005, p. 150) quando este diz que a
“violência política e militar” se torna “supérflua” com o desenvolvimento do mercado mundial
e, consequentemente, do comércio internacional. Emmanuel (1990, p. 31), por outro caminho,
vai convergir com esse ponto quando sustenta que a descolonização da Índia em 1947 não
empobrece a Inglaterra pois “certas estruturas que perpetuam a exploração direta” permanecem,
como o comércio internacional.
Em síntese, uma leitura combinada dessas teses nos permite sugerir que as formas
de manifestação do imperialismo através do comércio e do investimento não representam fases
cronológicas: elas atravessam simultaneamente o mercado mundial desde o momento em que
326

ele rompe com suas formas embrionárias e assume a forma tipicamente capitalista. Neste
momento já é possível antever um ponto que destacamos nesta tese: as fases históricas do
imperialismo se distinguem como particulares conjuntos de formas de manifestação, e não
como a própria sucessão dessas formas singularmente observadas.
Isso se evidencia, por exemplo, no tema das expropriações. Reparemos que Marini,
por exemplo, não assegura que a “violência política e militar” desaparece, mas se torna
“supérflua” relativamente à intensificação de formas econômicas de manifestação do
imperialismo, as quais adquirem primazia com o desenvolvimento do mercado mundial.
Quando Rosa Luxemburgo em A acumulação do capital incluiu a interação entre formas sociais
capitalistas e não-capitalistas em sua teoria da reprodução do capital social, precisou pôr em
primeiro plano a necessidade das expropriações. Portanto, não é um atributo das teorias
contemporâneas a constatação do caráter imperialista das expropriações ou da violência
extraeconômica, embora, apenas na fase contemporânea, esse tema se desloque para o centro
das investigações; nos referimos aqui ao Novo-imperialismo de Harvey, ou, com influência mais
local, à tese do capital-imperialismo de Fontes. Se percebe que a ocupação militar para controle
das fontes de matéria-prima, de energia, etc., bem como as privatizações e espoliações do fundo
público através do que Arrizabalo Montoro (2014) chama de “universalização do ajuste
fundomonetarista” (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 543, tradução nossa), constituem
aspectos organicamente vinculados à reprodução do capital.
O motivo principal de termos percorrido as três ondas de teorizações sobre o
imperialismo foi tentar capturar o que há de comum entre elas. Abstraindo as diferenças, vimos
que o que se mantém é a transferência de valor. Recapitulemos rapidamente: o motivo dos
investimentos no exterior é, basicamente, como vimos na Seção IV, a apropriação de lucros
(comercial, de empresário e fictício), juros ou rendas de monopólio; o motivo do comércio
internacional é a realização do valor incorporado no capital-mercadoria, mas, como vimos na
Seção III, se estabelece através da troca um processo de apropriação de lucros extras e
superlucros; o motivo das expropriações, tema da Seção V, é, por um lado, manter em
funcionamento os condutos que garantem as transferências de valor pelos motivos listados
anteriormente e, por outro lado, efetivar concretamente a apropriação de valor baseada na força
extraeconômica. Portanto, no subterrâneo de todas as formas de manifestação do imperialismo
reside uma determinação oculta, invisível, essencial: a transferência internacional de valor.
Após a constatação do que é o imperialismo, a questão que se abriu para nós foi: o
que garante sua existência? Se, em essência, ele é transferência internacional de valor, qual é
327

sua gênese lógica e histórica? Recorrendo à teoria do valor de Marx, vimos que a condição de
existência mais geral para a transferência de valor é a existência de vários capitais com distintos
níveis de produtividade, os quais, quando se defrontam na concorrência através da circulação
dos capitais-mercadorias, ensejam a distinção entre produção e apropriação de valor. Valendo-
se da hipótese desenvolvida na Seção 1 segundo a qual as leis de tendência expostas em O
Capital estão erigidas sobre o mercado mundial, pudemos constatar que a instauração de um
desnível estrutural (não fortuito nem casual) de produtividade provoca necessariamente
transferência internacional de mais-valor quando o comércio envolve capitais cujos ciclos
produtivos transcorram em territórios nacionais distintos.
O argumento do parágrafo anterior é suficiente para explicar por que a troca
desigual através do comércio exterior é a forma de manifestação menos concreta de
imperialismo. São necessárias apenas duas determinações para existir: (a) capitais industriais
(b) com processos de trabalho executados sob bases técnicas distintas. Não nos parece
coincidência, portanto, que a primeira forma de imperialismo tipicamente capitalista a se
manifestar historicamente seja a troca desigual, o “imperialismo do livre-comércio”. As gêneses
lógica e histórica são, na verdade, a mesma coisa: o desnível estrutural de produtividade se
instaura com o advento da grande indústria e a constituição do mercado mundial enquanto tal;
a partir de então, o mercado mundial assume a forma histórica e social de imperialismo.
Se as expropriações, outra forma de manifestação do nosso objeto, também estão
presentes desde a gênese (lógica e histórica) do imperialismo capitalista, por que defendemos
que o advento da grande indústria (que garante a troca desigual) marca a data de nascimento do
imperialismo? Ora, as expropriações constituem seus traços trans-históricos, representam suas
formas pretéritas e contemporâneas, constituem, assim, o que há de natural no imperialismo, e,
por isso mesmo, tendem a ser subalternizadas à medida que o imperialismo se desenvolve.
Portanto, mesmo que as expropriações sejam formas de manifestação inclusive do imperialismo
capitalista, elas não nos auxiliam para delimitar a historicidade do objeto posto que são trans-
históricas.
O que deve ser notado é que as três formas de manifestação são imbricadas entre
si. Para que o comércio gere transferência de valor pressupõe-se concorrência, vários capitais,
portanto migração (exportação) de capitais. A distinção entre produção e apropriação decorre
basicamente da circunstância que a taxa média de lucro é real, é um fato incorporado
objetivamente por cada capitalista individual na sua prática cotidiana. Portanto, a troca desigual
via exportação e importação de mercadorias pressupõe a exportação de capitais. Ora,
328

exportação de mercadoria é exportação de capital-mercadoria; “exportação de capitais” é


exportação de capital produtivo ou capital-dinheiro. Logo, troca desigual é exportação de
capitais e exportação de capitais é troca desigual. O que distingue uma forma de manifestação
da outra não é o valor de uso envolvido em cada operação, mas sim a forma através da qual a
apropriação de valor é materializada, ou, em outros termos, o conduto pelo qual o valor é
transferido de um lugar a outro. Como apuramos, a distinção se cristaliza no tempo: a
apropriação de valor via comércio é imediata, instantânea, enquanto via investimentos ela
precisa de mais mediações, por isso exige que se transcorra algum intervalo temporal. É por
esse motivo que defendemos que a chamada “exportação de capitais” é uma forma de
manifestação mais concreta de imperialismo do que a troca desigual.
A imbricação histórica entre uma e outra se revela, por exemplo, no fato de que o
chamado “imperialismo do livre-comércio” no século XIX se estruturou a partir dos
investimentos estrangeiros diretos britânicos na América Latina (GALLAGHER; ROBINSON,
1953, p. 9-10); ou na circunstância segundo a qual a abertura para o comércio exterior das
economias latino-americanas no capitalismo contemporâneo foi instigada pela crise da dívida
externa dos anos 1980 (ARRIZABALO MONTORO, 2014, p. 548-566); ou mesmo pela
evidência, discutida na Seção 4, de que grandes empresas monopolistas de hoje que
terceirizaram a produção industrial para países periféricos se envolvem numa relação
imperialista caracterizada pelo lucro comercial e pela renda de monopólio. Isso evidencia, por
outro lado, que nossa maneira de apreender o imperialismo não prescinde do aparato estatal
especificamente sob a forma do sistema de múltiplos Estados; o imperialismo, para usar termos
de Wood (2011, p. 29), não é “despolitizado e esvaziado de conteúdo social”. As formas
políticas, jurídicas e sociais (formas de propriedade e dominação) existem e moldam a base do
imperialismo, são seus atributos orgânicos, como argumentamos na Seção 5. Mesmo formas
culturais, linguísticas etc. de imperialismo – uma espécie de superestrutura imperialista –
auxiliam na manutenção dos condutos com os quais a base econômica cobra vida.
Se as formas econômicas de manifestação do imperialismo não se sucedem
cronologicamente, mas, pelo contrário, estão entrelaçadas, isso nos leva a outro problema: se
houver uma historicidade dentro do imperialismo, como periodizá-lo? Não tivemos a pretensão
de responder a essa questão, mas acreditamos que a maneira como o apreendemos nos permite
apontar algum caminho. Notemos que praticamente cada autor contemporâneo que se propõe a
sistematizar as fases do imperialismo apresenta uma periodização diferente (CORRÊA, 2012,
p. 211). Nos parece que parte do alvoroço em torno dessa questão decorre do próprio objeto:
329

ele é multifacetado e multidimensional, portanto projeta várias imagens de si ao mesmo tempo.


Os marxistas ainda não chegaram a um mínimo consenso sobre isso pois, suspeitamos, as
formas de manifestação são imbricadas, formam determinados conjuntos ao longo do tempo os
quais comportam determinações em níveis de abstração distintos, o que torna humanamente
impossível estabelecer qualquer tipo de comparação empírica entre eles.
Nossa estratégia para lidar com esse quiproquó foi partir da seguinte hipótese (que
mencionamos em outros lugares desta tese): a teoria é um “espelhamento da realidade material
que existe independentemente da consciência” (LUKÁCS, 2012b, p. 300). Se isso for verdade,
e acreditamos ser, as transformações reais, ontológicas, geram transformações nas
representações do real, ou seja, transformações teóricas. No caso do imperialismo, percebemos
que as teorias sobre ele se organizam em fases muito bem delimitadas, por isso chamamos de
ondas teóricas, as quais enfatizam aspectos particulares do objeto. Portanto, o que sugerimos,
com a devida precaução, é que as fases da teoria refletem as fases do próprio imperialismo, as
quais são delimitadas pelas crises estruturais do modo capitalista de produção.
Para finalizar, iremos tecer brevíssimos comentários sobre o que chamamos de
concepção vulgar de imperialismo. A explicitação da transferência de valor como a essência do
imperialismo nos permite percebê-lo como uma relação de dominação entre classes e não entre
Estados; todos estes são subsumidos à lógica imperialista. O imperialismo é uma rede de
dominação hierárquica, de forma que nossos inimigos não são os Estados Unidos de hoje nem
a Inglaterra de ontem, mas os capitais, onde quer que estejam. Ao comentar o acirramento
contemporâneo de uma “competição interestatal multipolar”, Callinicos põe a questão de uma
forma complementar ao que estamos sugerindo:

Compreender essa complexidade não é apenas um exercício acadêmico. Se nós


atribuímos um papel ‘progressista’ aos rivais norte-americanos, nós perdemos o fio
da meada da luta de classes. O antagonismo principal no mundo torna-se aquele entre
Estados e não o entre classes. Mas, por detrás de seus conflitos de interesse reais,
todos os Estados capitalistas de ponta estão unidos por sua dependência comum da
exploração do trabalho assalariado. Como Lenin e Luxemburgo haviam entendido tão
bem em 1914, a crítica do sistema imperialista é uma ferramenta política essencial
para unir os trabalhadores contra o capital. (CALLINICOS, 2015, p. 34).

É a interação entre vários capitais no mercado mundial que produz desenvolvimento


desigual, polarização global entre riqueza e pauperismo e a necessidade do sistema de múltiplos
Estados. Portanto, a alternativa emancipatória não reside na defesa de uma suposta “economia
nacional”. Esperamos ter defendido que a reinterpretação do imperialismo sugerida aqui
equivale à constatação de que as classes sociais no capitalismo só podem ser mundiais e, da
330

mesma forma, por mais relevantes que sejam as disputas internas entre frações nacionais das
classes, é no terreno global que a decisiva luta de classes é travada.
331

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APÊNDICE A – Mercado mundial, renda da terra e a tentativa de rejeitar a teoria


marxista da dependência

O sentido do argumento que defendemos se coaduna, nos parece, com o que


pressupõe a teoria marxista da dependência em sua versão formulada por Ruy Mauro Marini.
Enquanto esta teoria se baseia no pressuposto de que existem transferências de valor entre as
economias dependentes e as economias imperialistas, nós tentamos mostrar que o mercado
mundial envolve, necessariamente, processos de transferências de valor que se realizam em
múltiplos – e, em alguns casos, contraditórios – caminhos.
Entretanto, especialmente no período recente, a teoria marxista da dependência vem
sendo objeto de incisivas críticas – como em Carrera (2013) e Kornblihtt (2015) – as quais se
utilizam da teoria marxiana da renda da terra para supostamente destruir o pressuposto e, com
isso, os corolários da teoria de Marini. Por um lado, o próprio Marini parece alimentar essa
polêmica na medida em que, conforme Santana Borges (2016, p. 10), não trata a renda da terra
em seus escritos sobre a dependência. Isso se evidencia ainda mais quando consideramos que a
noção de transferência de valor para o autor foi expandida entre a Dialética da dependência, de
1973, e o Ciclo do capital na economia dependente, de 1979, e, mesmo nessa expansão, a renda
da terra não foi incluída como manifestação possível da transferência de valor, motivo pelo qual
nos parece especialmente importante realizar a crítica da crítica. De qualquer maneira,
concordamos com Santana Borges (2016, p. 10) quando o autor sugere que esse tema é uma
lacuna que merece ser superada no âmbito da teoria marxista da dependência 262. Antes de
examinar a fundo a crítica de Carrera (2013) e Kornblihtt (2015), vejamos como e se Marx
expõe sua teoria da renda no âmbito do mercado mundial.
A primeira vez em que Marx compara capitais aplicados em países diferentes no
contexto da renda da terra é para mostrar que a definição de qual tipo de produção regula o
preço de mercado não é ad-hoc. Se, por exemplo, o melhor solo produz mercadorias em
quantidade muito superior à necessidade social por elas, o preço de mercado se reduz, de forma
que pode tornar inviável a produção nos solos menos produtivos. Neste caso, pode ser que o
melhor terreno regule o preço de mercado. É a situação da produção de trigo na época de Marx,

262
Parte desta lacuna foi preenchida por R. Carcanholo (1981), onde o autor examina a relação entre transferência
de valor e desenvolvimento do capitalismo no caso concreto da Costa Rica. Tendo em vista a estrutura produtiva
da economia costarriquenha, com forte peso do setor agrícola, a renda diferencial tem um papel especial em sua
análise, a qual, cumpre destacar, tem valiosos aportes metodológicos para a teoria marxista da dependência.
348

afirmado pelo próprio quando diz que “o preço dos cereais americanos regula o preço dos
ingleses” (MARX, 2008, p. 877)263. Em passagens como esta, se explicita aquilo que estamos
defendendo desde o começo: o argumento de O Capital se expõe no nível da totalidade, isto é,
do mercado mundial. Essa assertiva, em especial, sugere que a distribuição de valor através da
renda da terra é um processo de âmbito mundial: neste exemplo, proprietários de terras nos
Estados Unidos se apropriam de renda diferencial.
Em outro exemplo, em trecho do Capítulo XXXXIII não redigido por Marx, Engels
sugere que a “vitalidade dos grandes proprietários de terras se esgota pouco a pouco” (MARX,
2008, p. 965) graças à integração sob o mercado mundial:

[...] os navios transoceânicos e as ferrovias norte e sul-americanas e indianas


permitiram que regiões estranhas concorressem nos mercados europeus de trigo.
Havia as pradarias americanas, os pampas argentinos, as planícies, por natureza
prontos para serem arados, terra virgem que proporciona rendimentos abundantes
anos a fio mesmo com método primitivo de cultura e sem adubos. Havia ainda as
terras das comunidades camponesas russas e indianas, forçadas a vender parte cada
vez maior do respectivo produto, a fim de obter dinheiro para os produtos que o
despotismo cruel do Estado lhes extorquia, frequentes vezes empregando tortura. O
camponês vendia esses produtos sem considerar o custo de produção, pelo preço que
lhe oferecia o comerciante, pois tinha necessidade absoluta de dinheiro para pagar os
impostos no prazo. Em face dessa concorrência, a da terra virgem das planícies ou a
do camponês russo e indiano comprimido por impostos, não poderiam medrar, na base
das rendas antigas, o arrendatário e o camponês europeus. Parte das terras da Europa
foi definitivamente expelida da concorrência relativa à plantação do trigo, as rendas
caíram por toda parte. (MARX, 2008, p. 965-966, grifos nossos).

Nessa passagem, fica bastante claro como o desenvolvimento da produtividade nas


indústrias de transportes e comunicações potencializou a integração do mercado mundial e a
consolidação de uma divisão internacional do trabalho entre os países centrais daquela época –
a Europa ocidental – e regiões então periféricas. Fica explícito também como a expansão da
produção para o mercado mundial equivale ao acirramento da concorrência entre capitais e
produtores independentes espalhados ao redor do mundo. Enquanto a concorrência reduzia os
preços de mercado e, com isso, lucros extras e rendas nos países de capitalismo mais
desenvolvido, ela, ao mesmo tempo, destinava, sob a forma de renda da terra, frações maiores
do mais-valor produzido globalmente às regiões que se integravam no mercado mundial.
Tomada isoladamente, a renda da terra obtida no mercado mundial pode significar
um fluxo de valores em direção ao que estamos chamando de economias dependentes. Este é o

263
Esta passagem, incorporada por Engels no corpo do texto, estava em nota de rodapé dos Manuscritos de 1864-
65. Cf. Marx (2015, p. 814).
349

cerne da crítica de Carrera (2013) e Kornblihtt (2015) à teoria marxista da dependência: à


medida que a apropriação de renda da terra pode ruir com o pressuposto de transferência de
valor para fora, aspecto-chave sobre o qual as demais determinações do chamado capitalismo
dependente se desdobrariam logicamente, os autores questionam a aderência à realidade dos
postulados da teoria da dependência.
Carrera (2013, p. 169-170) apresenta pontos que, segundo ele, são suficientes para
desacreditar na hipótese de que as economias latino-americanas transferem valor para fora
através da distinção entre preço de produção e valor. Constatando que as mercadorias
exportadas pela América Latina são principalmente agrícolas, segue que os capitais aplicados
na produção dessas mercadorias possuem “uma velocidade de rotação relativamente baixa, a
qual compensa a menor composição orgânica no processo de formação dos preços de
produção”. Além disso, as mercadorias são portadoras de renda da terra absoluta, que faz com
que o preço de mercado se situe acima do preço de produção, e diferencial, “de modo que a
venda das mercadorias primárias no mercado mundial implica o fluxo de mais-valor do país
importador em direção ao exportador”.
Na realidade, a venda das mercadorias agrícolas pelo preço de mercado reforça, e
não nega, o caráter dependente das economias latino-americanas. Em função da lógica do
capital fictício, esses preços são determinados especulativamente na bolsa de futuros de
Chicago, o que só confirma a dependência da economia dependente frente à acumulação
mundial.
Kornblihtt (2015) se baseia explicitamente na interpretação de Carrera e faz uma
abordagem empírica atestando a importância da renda da terra para a economia venezuelana264.
O autor mostra que a taxa de lucro do setor petrolífero na Venezuela abarca o “ingresso
extraordinário” de renda da terra. Diz o autor (KORNBLIHTT, 2015, p. 13-14) que “la renta de
la tierra portada en el petróleo es pagada por los capitales que compran dicha mercancía a un
precio mayor que si se rigiese como el resto de las mercancías por una tasa de ganancia normal”.
Como principal destino do petróleo venezuelano é o mercado estadunidense, a renda diferencial

264 Apesar de um dos propósitos do argumento de Kornblihtt ser criticar o pressuposto (e, portanto, os corolários)
da teoria marxista da dependência, especialmente materializada em Marini (2005), ele se confunde ao explicar o
sentido da troca desigual para Marini. Kornblihtt (2015, p. 5) fala da existência de diferentes variantes da tese da
transferência de valor e as resume da seguinte forma: “En general, esta posición se sostiene en que los países
periféricos exportan mercancías con bajos salarios e importan mercancías producidas con salarios normales o altos
(EMMANUEL, 1972) combinada con el intercambio de mercancías agrarias (con poco valor) por mercancías
industriales (supuestamente con mayor valor) (MARINI, 1973 [2005])”. O desconhecimento da obra de Marini
está em alegar que, para este, existiria troca desigual entre mercadorias agrárias e industriais, sendo que, na
verdade, a interpretação de Marini não está baseada no valor de uso, mas sim na composição orgânica do capital.
350

“se trata de ganancias que ceden los capitales estadounidenses a los capitales radicados en
Venezuela”. Ou seja, a renda petrolífera apropriada pelo Estado venezuelano é resultado de
transferência de valor desde os Estados Unidos.
Ademais, o que parece ser o aspecto decisivo da crítica de Carrera e Kornblihtt é o
entendimento segundo o qual os capitais industriais individuais em concorrência no mercado
mundial não se diferenciam qualitativamente, mas apenas do ponto de vista quantitativo, da
magnitude de capital adiantado por cada um, de forma que “a formação da taxa geral de lucro
realiza plenamente” a igualdade entre eles do ponto de vista da “capacidade de acumulação”:

Los capitales de los países que el propio capital social ha formado como proveedores
de materias primas pueden acumularse a la misma velocidad que el de los países
productores de mercancías en general. Aun en el supuesto de que hubiera una
diferencia sistemática en contra entre el valor y los precios de producción de las
mercancías exportadas desde un país, esa diferencia implicaría simplemente que la
clase obrera del mismo gasta una masa de trabajo social mayor a la materializada en
las mercancías importadas de igual precio de producción. Pero, a la acumulación de
capital, este mayor gasto le es por completo indiferente. (CARRERA, 2013, p. 170).

De fato, a venda pelo preço de produção capacita todos os capitais a se apropriarem


do lucro médio. Entretanto, Carrera parece não perceber que a transferência dessa “massa de
trabalho social” embutida na venda pelo preço de produção significa, como já observamos, uma
transferência de valores, ou, o que dá no mesmo, uma transferência invisível de riqueza
materializada em mercadorias produzidas com custos individuais de produção diferentes. A
exploração de força de trabalho relativamente mais produtiva nos países imperialistas lhes
chancela um lucro extra, decorrente da maior produtividade, que pode ser utilizado pela classe
capitalista desses países como bem entenderem. O sentido prático dessa transferência é
precisamente a alimentação de um desenvolvimento desigual e, por este motivo, combinado.
Não negamos aqui que a renda da terra pode significar um fluxo de valores em
direção aos capitais que exploram a produção em ramos agrícolas ou de mineração. Isto é um
fato. Contudo, esse fato só pode ser compreendido multilateralmente, isto é, se cotejado com as
demais formas de transferência de valor que operam no mercado mundial, as quais nos
debruçamos em entende-las ao longo desta tese. A renda da terra é uma forma de transferência
de valor assim como o é a troca desigual, a repatriação de lucros, pagamento de juros,
apropriação de lucros fictícios, etc. Nesse sentido, a renda da terra só inviabiliza a teoria
marxista da dependência se, e somente se, ela sobrepujar as demais formas de imperialismo.
Kornblihtt (2015, p. 6) parece não se importar com isso quando afirma que “el planteo
dependentista invierte la situación y coloca lo que es un ingreso extraordinario [renda] para los
351

capitales que acumulan en determinado espacio nacional, resultado de una mayor tasa de
explotación, como una sangría a favor de los capitales imperialistas”.
Não é nosso propósito aqui fazer essa comparação empírica, até porque nos parece
bastante complicado efetuar essa mensuração considerando-se que as formas de transferência
de valor possuem distintos níveis de abstração. Mesmo que não seja possível medir diretamente
a transferência de valor em seus diversos níveis, é possível perceber sua influência e seus efeitos
sobre a estrutura social à qual ela interfere. Caligaris (2014, p. 67), por exemplo, compara as
perspectivas que enfatizam transferência de valor de fora para dentro das economias
dependentes via renda da terra com aquelas que destacam a transferência de valor de dentro
para fora via troca desigual:

Ocurre, en primer lugar, que esta posición [sobre a renda da terra] contradice
abiertamente a todas las explicaciones fundadas en cualquiera de teorías del
‘intercambio desigual’ entre los países, que precisamente ven en el intercambio
comercial entre los países un flujo de plusvalor en sentido inverso. Pero, además, esta
posición parece contradecir todas las apariencias que presentan países como la
Argentina. En efecto, lo que debería esperarse de un país hacia donde fluye
permanentemente desde el exterior una masa de riqueza social no producida por sus
propios trabajadores es que tenga potenciada su economía nacional. Y, a la inversa, lo
que presentan países como la Argentina es una situación de crisis recurrentes, una
permanente menor productividad del trabajo del capital industrial, bajos salarios, una
masa de población superflua numerosa e históricamente creciente, etc.; en suma,
presentan un proceso nacional de acumulación de capital impotente para estar a la
vanguardia del desarrollo de las fuerzas productivas del trabajo social. (CALIGARIS,
2014, p. 67).

Caligaris faz uma consistente crítica às posições que sustentam que a renda da terra
é resultado do mais-valor produzido pelos trabalhadores empregados nos próprios ramos
agrícolas, o que o leva a concluir que o único caminho “consistente com os fundamentos da
crítica da economia política” (CALIGARIS, 2014, p. 78) é aquele segundo o qual a renda da
terra é oriunda dos consumidores dos produtos agrícolas. Portanto, ela é uma transferência de
valor de fora para dentro. Apesar de constatar a contradição entre essa “massa de mais-valor
produzido no exterior e uma economia manifestamente limitada” (CALIGARIS, 2014, p. 78),
o autor não se pergunta se a existência de outras formas de transferência de valor em direção
contrária pode ajudar a dirimir tal contradição.
Por esse caminho, constatada a multilateralidade dos fluxos de valor, nos parece
que a realidade dos países dependentes em geral e latino-americana em particular, marcada pelo
pauperismo generalizado da força de trabalho, desigualdade social, etc. parece indicar a
352

relevância das categorias da teoria marxista da dependência derivadas do pressuposto da


transferência líquida de valor para fora.

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