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1/9/13 Folha de S.

Paulo - + livros: Imagens ausentes - 12/08/2001

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São Paulo, domingo, 12 de agosto de 2001

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+ livros

"A Lógica do Êxtase" faz uma retrospectiva dos trabalhos


do artista midiático Arthur Omar desde os anos 70 até hoje

Imagens ausentes
Marcelo Guimarães Lima
especial para a Folha

Arthur Omar seria, segundo anúncio da exposição retrospectiva


do artista no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1997,
"talvez o mais provocativo e prolífico artista midiático da
América Latina". "A Lógica do Êxtase - Os Filmes e Vídeos em
1000 Imagens", publicado pelo Centro Cultural Banco do Brasil,
é um catálogo da mostra recente, em maio passado, realizada no
Rio de Janeiro, mostra que o artista qualificou de "retrospectiva
prospectiva" na medida em que apresentava trabalhos desde os
anos 70 até os mais recentes "works in progress".
E também na medida em que tanto a retrospectiva quanto o
catálogo representariam uma releitura ativa de um conjunto de
trabalhos, os quais, pela natureza mesma de seus meios e
processos, existiriam em estado (permanente) de fluxo.
Como escreveu um crítico: "Nada pode refrear o fluxo de
imagens, palavras, sons e idéias num filme de Arthur Omar". Esse
fluxo, podemos dizer, caracterizaria também as relações entre os
diversos trabalhos, entre fases distintas da história do artista e
entre os meios diversos empregados e explorados por Arthur
Omar, do filme ao vídeo, passando pela fotografia e a imagem
digital e culminando, nesse caso, no livro como meio e processo.
"A Lógica do Êxtase" se quer, como afirmou seu autor, "não um
mero leque de imagens já produzidas, mas uma nova iconografia
a partir delas".

Para Arthur Omar, a imagem é "meio, e não fim em si" e, como


tal, ponto de partida que pode ser retomado em meios diversos.
Nesse sentido, podemos dizer que o artista reflete (retoma) o
universo simbólico-material da sociedade presente, na qual a
imagem não é -ou não é mais- experimentada como produto de
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um processo, criação ou invenção de um artífice, mas matéria-


prima, algo "dado", como um ente ou uma "existência" de gênero
próprio.
Diante da imagem como meio dado, da imagem como matéria-
prima, o reprocessamento, reivindicado pelo artista, se torna o
modo mais evidente e natural de manipulação e articulação das
imagens: o reprocessamento das imagens é assim método e
finalidade e, nesse sentido, as imagens tanto persistem idênticas
como se fazem -ou se tornam- sempre inéditas. Nesse último
caso, o modo de ser próprio da imagem seria o seu devir, e a
imaginação, a faculdade de conhecimento do processo como um
todo e mesmo de todo o processo.
Mas o devir paradoxal das imagens na sociedade midiática de
hoje se dá como equivalência universal (valor de troca), como
reiteração/repetição de uma mesma e única substância. Nesse
contexto, a imagem como entidade não devém, podendo apenas
advir, como aparição. É de fato esse potencial "fantasmagórico"
da imagem que pode revelar um outro lado seu, o avesso da
visão, um dos focos centrais dos trabalhos de Arthur Omar, por
exemplo, na sua antropologia imaginária, cujo momento
metodológico, melhor dizendo, metaimagético, seria justamente
"a lógica do êxtase". Nos trabalhos de Arthur Omar podemos
observar que se fundem e se confundem três questões centrais,
questões que se cotejam, por assim dizer, se acotovelam e se
ferem mutuamente, se "conferem". A questão da imagem é, por
um lado, questão dos meios de produção da imagem. Pensar a
questão da produção da imagem hoje é, inevitavelmente, pensar
a tecnologia em mudança e aquilo que faz os gêneros como o
cinema, o vídeo, a fotografia e que também pode (ou não)
desfazê-los. A questão da tecnologia está presente, não poderia
deixar de ser assim, ainda e quando o artista declara buscar "o
primitivo", incluindo o primitivo da técnica.

Estética como êxtase


Pensar a imagem ela mesma, por outro lado, é pensar o que a
imagem faz ou almeja: a questão da imagem como referente-
referência, significante-significado, signo e coisa, no contexto dos
filmes e vídeos e da fotografia de Arthur Omar, indaga
igualmente, com uma retórica própria em formação, a questão da
representação cultural e, nela, ou por meio dela, a questão do

Brasil e de sua arte. Finalmente, no que diz respeito à questão da


natureza dessas obras em imagens, Arthur Omar retoma a noção
da experiência estética como êxtase. Nela a obra de arte é vista,
é vivenciada, "fora de si", como uma espécie de limite da
existência, como a existência em seu limite. A criação artística se
dá como atividade-limite: no limite do sentido, no limite da
linguagem. A noção de experiência é noção central na arte de
Arthur Omar e uma chave possível para alguns de seus aspectos
de fundo. Para a filosofia, a experiência é função dos sentidos e
seus objetos externos, por um lado, e, por outro, do sentimento
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interno dos processos, das afecções e atividades do próprio


sujeito. O êxtase como encontro (no dizer do artista: vibração)
entre sujeito e objeto se dá aqui como o protótipo da
experiência. Esta é o centro do processo artístico e, para
reproduzi-la na matéria inerte da fotografia, do filme, do vídeo, o
artista recria/reinventa os próprios processos técnicos da imagem
na medida de uma experiência anterior à linguagem (incluindo a
própria linguagem artística): o experimental aqui diz respeito ao
sujeito, e não simplesmente ao objeto como objeto da mediação
técnica. Em Arthur Omar, o lógos da técnica é precisamente algo
como um obstáculo a ser ultrapassado, matéria na qual o artista
se apóia para o seu "salto mortal", limite ela mesma na qual ele
exerce o seu esforço "desmesurado" ("ratio" = medida). A
"lógica do êxtase" é uma lógica do excesso. E podemos talvez
adiantar a hipótese que o apelo dionisíaco e carnavalesco em
Arthur Omar remeteria igualmente ao barroco como
ancestralidade e destino da arte brasileira. O barroco visava a
dar forma ao infinito, a representar o irrepresentável: arte abissal
tornada possível por meio do supremo artifício do excesso. "Não
sou um artista multimídia porque não misturo as mídias (...), não
importo nenhuma lógica." Para além da constatação de fato de
seu processo de trabalho, a afirmação de Arthur Omar revela
lucidez maior de princípio, pois talvez a noção dos meios (mídia)
não tenha por si só a funcionalidade, o poder imediato de
elucidação que se lhe atribui o senso comum artístico do nosso
tempo. Para Arthur Omar a fotografia (a obra de arte) é "um elo
transmissor entre dois sujeitos", o experimental é a experiência
do outro, a experiência que o artista suscita no outro e aquela
que experimentamos por intermédio do outro. Nesse sentido, a
experiência do olhar em Arthur Omar está próxima à da pintura
como espaço de encontro, colisão, fusão, conflito e
distanciamento entre o artista e seu outro. A imagem emerge, ela
própria, de uma cisão do real. "Dentre os meus filmes, escreve o
autor, "O Anno de 1798" [realizado em 1975, tendo por tema o
episódio da história do Brasil conhecido como Revolta dos

Alfaiates" é aquele em que fica mais claramente exposta a idéia


de que a história não deixa traço. E que o essencial do tempo é
irrecuperável e incognoscível".

Interior da imagem
Poderíamos talvez afirmar que a obra de Arthur Omar é toda ela
o cinema ausente, o cinema da ausência, cinema que se ausenta:
a busca das imagens que não deixam traços.
"A Lógica do Êxtase", um catálogo, não é, certamente, o livro ao
qual Arthur Omar se referia em uma entrevista como projeto de
um volume híbrido dedicado ao seu processo de criação. Falta
talvez aqui aquilo a que o próprio autor alude como uma leitura
central que nos transporte para o interior mesmo da imagem.
Claro está que essas são imagens de seus filmes e vídeos, mas,
como escreve o próprio autor: "O êxtase é o centro. O cinema
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dos tolos é o que come pelas bordas e tem fé nos cantos". A


concepção gráfica privilegia aqui, "cremos", o quadro ou
"enquadramento", isto é, o retângulo e os limites que este impõe
à imagem, enquanto a imagem em profundidade é, no dizer do
autor, aquela que mostra seu avesso, seu outro lado.

Marcelo Guimarães Lima é diretor do Núcleo de Arte e Cultura do


Centro de Estudos e Pesquisas Armando de Oliveira Souza, em SP, e ex-
professor da Universidade de Illinois e do Instituto de Artes de Chicago
(EUA).

A Lógica do Êxtase
206 págs.
de Arthur Omar. Centro Cultural Banco do Brasil (r. 1º de
Março, 66, CEP 20010-000, RJ, tel. 0/xx/ 21/3808-2020).

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