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Daian Dr.

Isidor Grunfeld

O QUE É
RESPEITAR O SHABAT?
Um guia para seu cumprimento e compreensão
O QUE É RESPEITAR O SHABAT?
Copyright © 2008 by Editora e Livraria Sêfer Ltda.

Direitos reservados à
EdIToRa E LIvRaRIa SêFER LTda.
Alameda Barros, 735 CEP 01232-001 São Paulo SP Brasil
tel.: (11) 3826-1366 fax: (11) 3826-4508 sefer@sefer.com.br
Livraria virtual: www.sefer.com.br

Edição Final Jairo Fridlin


Revisão Técnica Rabino Chaim Vital Passy
Revisão Ricardo Paulo Novais
Projeto gráfico e editoração eletrônica Dagui Design
Ilustrações Ivo Minkovicius

agradecimentos
Rabino Yaacov Feldheim
Rabino Yehuda Levi

Esta versão em português de “O que é respeitar o Shabat?” baseia-se no livro


“The Sabbath - a Guide to Its Understanding and observances”
(Fifth Edition, Revised and Expanded)
Copyright © 2003 by Judith Grunfeld
Publicado pela Feldheim Publishers, a quem agradecemos pela cessão preciosa
dos direitos autorais para esta edição em português.

A ilustrações das “melachót” foram inspiradas no livro


“The 39 avot Melachot of Shabat”
do Rabino Baruch Chait, a quem muito agradecemos.

Nota: A transformação das medidas haláchicas em polegadas ou centímetros está baseada na opinião
do mundialmente renomado Rabino Moshe Feinstein Z”L, que determinou ser a amá (um cúbito)
equivalente a 21 ¼ polegadas ou 54 centímetros.

Nota: Nas palavras transliteradas, adotou-se o “ch” para o som de “rr”, como carro em português.

Permitida a reprodução parcial desta obra mediante consulta e autorização


expressa da Editora e Livraria Sêfer Ltda.
2008
ISBN 978-85-85583-80-4
Printed in Brazil
“Tenho um presente precioso guardado
entre Meus tesouros” – disse o Eterno a Moisés.
– “Seu nome é Shabat.
Vá e informe a Israel que desejo
presenteá-lo com o Shabat.”

Talmud, Tratado de Shabat 10b


ÍNDICE

Introdução à 5ª Edição em Inglês 9


In Memoriam ao autor 10
In Memoriam ao editor 12

Prefácio do Autor 13

Capítulo 1 – O ESPÍRITO DO SHABAT


O significado do Shabat 17
O Shabat e a vida 19

Capítulo 2 – O CONCEITO DE MELACHÁ


O que é melachá? 25
A ideia contida no conceito de melachá 27
Classificação por objetivos 30
Significado especial de “transportar” 32

Capítulo 3 – OBSERVÂNCIA DO SHABAT NA PRÁTICA


Salvaguardas do Shabat 39
Visão prática das categorias de melachá 43
Trabalho executado por um não-judeu 66
Doenças no Shabat 67
Descanso dos animais 68

Capítulo 4 – A CELEBRAÇÃO DO SHABAT


1. O espírito de Menuchá 73
2. Recebendo o Shabat 73
3. As velas do Shabat 74
4. O início do Shabat 78
5. A santificação (Kidush) 78
6. Os dois pães do Shabat 78
7. A alegria do Shabat 79
8. A despedida do Shabat (Havdalá) 82
9. Atividades no Shabat e nos dias de semana 83
10. Viagens durante o Shabat 87
11. As crianças e o Shabat 88

Capítulo 5 – O SHABAT E O MUNDO MODERNO


1. Os aspectos econômicos da observância do Shabat 91
2. O Shabat e o Estado de Israel 96

Posfácio à Edição Brasileira 99


O QUE É RESPEITAR O SHABAT? 9

INTRODUÇÃO À 5ª EDIÇÃO

Este livro foi escrito inicialmente há cerca de 50 anos. A presente edição


foi revista e ampliada para atender ao estilo e às normas do século 21. Nele,
foram incluídas histórias da nossa literatura, para mostrar como os princípios
apresentados aqui afetaram a vida dos judeus em todas as eras.
Algumas seções são inteiramente novas, como “O Eruv da cidade”, “As velas
do Shabat” e “Os dois pães do Shabat”. As seções sobre halachá foram revistas
para se adaptarem às determinações das autoridades rabínicas mais recentes.
Esses acréscimos foram preparados por meu filho, o Rabino Avraham Chayim,
shelita, mediante consulta, quando necessário, às autoridades haláchicas.
É meu ardente desejo e minha prece ao Eterno que esta nova apresentação
do trabalho do Daian Grunfeld seja recebida com o mesmo entusiasmo e com a
mesma apreciação das edições anteriores.
Vivemos numa época em que a ameaça de guerras biológica e nuclear
transparecem no horizonte. Quando os sábios do Talmud perscrutaram o futuro
distante e anteviram esse período conturbado, que anuncia “os passos da vinda
do Messias”, eles declararam: “Não temos ninguém em quem confiar, a não ser
no nosso Pai do Céu.”
Agora, mais do que nunca, precisamos da mensagem segura e confortadora do
Shabat. A longo prazo, todos os recursos e tecnologias do universo serão dádivas
dos Céus a serem utilizadas pela humanidade para seu aprimoramento moral e
espiritual.

Rabino Aryeh Carmell


Jerusalém
Iyar 5763/2003
IN MEMORIAM AO AUTOR

Logo após a publicação da terceira edição deste livro, o Daian Grunfeld Z”L
partiu para receber sua recompensa eterna e, certamente, é mais do que apropriado
que sejam aqui apresentadas algumas palavras sobre sua vida e seu trabalho.
O Daian (juiz rabínico) Isidor (Ishai) Grunfeld (1900-1975), que atuava
no tribunal do Rabinato-Chefe da Grã-Bretanha, era advogado, um líder
comunitário, educador e escritor prolífico, além de, acima de tudo, um ardente
seguidor do Rabino Samson Raphael Hirsch (1808-1888). Ele dedicou toda a
sua vida à interpretação das ideias e dos trabalhos de seu mestre, tornando-os
acessíveis à nossa geração.
Foi um advogado eloquente da aplicação dos pontos de vista Hirschianos aos
problemas correntes do século 20. Herdou do Rabino Hirsch a amplitude de visão
que o imortalizou. Ele tinha amplo conhecimento das correntes do pensamento
secular e considerava bem-vinda cada oportunidade que se lhe deparava para
demonstrar a relevância da Torá na solução dos problemas mais complexos da
humanidade.
Ele lutou conta a mentalidade estreita do shtiebel (pequenas casas de oração
características das cidadezinhas da Europa) que consideravam que a posse
e o interesse da Torá eram apanágio apenas de uma pequena porção do povo.
Entretanto, manteve-se sempre em bons termos com os participantes desses
círculos, conquistando sua admiração, afeto e respeito.
Este singelo livro, no qual tive o privilegio de colaborar, foi seu bicurim
(“primícias”) e a estreia em sua extensa atividade literária. Ele foi considerado
“a melhor exposição disponível em inglês sobre o Shabat”, sendo traduzido para
vários idiomas, inclusive para o hebraico sob o título de Mataná Guenuzá, que
agora é publicado também em português.
A particularidade deste livro sobre todos os outros que dissertam sobre o
Shabat é que ele destaca seu significado haláchico, demonstrando que a abstenção
de melachá (“atividade”) em qualquer de suas ramificações é o coração pulsante
e o núcleo de sua observância.
Esse é um aspecto do Shabat judaico classificado frequentemente pelos
ignorantes como “uma ênfase sem sentido sobre detalhes triviais”.
Com muita profundidade, o Rabino Hirsch apresentou um conceito majestoso
sobre issur melachá, a proibição de executar determinadas atividades. Ele a explica
como sendo a abstenção de toda atividade criativa por um dia em cada sete, o
que, por meio dessa atitude, presta um testemunho eloquente da necessidade

10 O QUE É RESPEITAR O SHABAT?


O QUE É RESPEITAR O SHABAT? 11

de vivermos no mundo do Criador como uma de suas criaturas e de usar toda a


potencialidade humana a Seu serviço.
Esse conceito, tão bem apresentado neste livro, deve pôr um fim a esse tipo de
incompreensão de uma vez por todas.
Seguramente, alguém que tenha lido esta obra não poderá, honestamente,
voltar a argumentar que, por exemplo, a lei do Shabat contra acender fogo
aplicava-se apenas na época em que isso envolvia o árduo trabalho de atritar
pesadas pedras...
O quarto de século decorrido desde o lançamento deste livro, durante o qual
houve uma crescente desumanização e despersonalização do ser humano, assim
como uma grave erosão dos padrões morais, serviu apenas para reforçar a mensagem
com a qual o Daian Grunfeld estava tão apaixonadamente comprometido – a
eterna relevância das leis da Torá, especialmente aquelas referentes ao Shabat, e a
regeneração espiritual do povo judeu e de toda a humanidade.

A. Carmel
Jerusalém
Kislev 5741/1981
IN MEMORIAM AO EDITOR

O Rabino Aryeh Carmell nasceu em Londres, na Inglaterra, no ano de 1917.


Estudou a Torá com professores particulares do mais alto gabarito, entre os quais
o famoso Rabino Eliyáhu E. Dessler. Em sua juventude, foi influenciado pelos
ensinamentos de outro grande mestre do judaísmo, o Rabino Samson Raphael
Hirsch.
Ele veio a se tornar um dos mais importantes discípulos do Rabino Dessler e,
após o falecimento de seu mestre, em 1953, editou em hebraico cinco volumes
com o riquíssimo material que este havia escrito sobre a filosofia judaica e suas
perspectivas. Esses livros se tornaram clássicos no campo do ensino da Torá sob o
título de Michtav Meeliyáhu. Mais tarde, trechos desses volumes foram traduzidos
por ele para o inglês e publicados sob o título de Strive for Truth, que também se
tornaram um grande sucesso editorial.
Por toda a sua vida, manteve participação ativa no ensino da Torá. Em suas
últimas décadas de vida, tornou-se professor na Yeshivá Devar Yerushaláyim, em
Jerusalém.
Dedicou-se também ao estudo da interação entre Torá e Ciência e editou uma
série de ensaios sobre esse tema com a colaboração do Professor Cecil Domb,
intitulados “Challenge: Torah Views on Science and its Problems”.
Com sua personalidade cálida e carismática, sua acurada clareza de pensamento
e sua dinâmica apresentação de qualquer assunto foram peças fundamentais no
estabelecimento de uma ponte de união entre os intelectuais dedicados à pesquisa
científica e ao mundo da Torá.
Sabiamente, utilizou o legado dos Rabinos Hirsch e Dessler para explicar
profundos conceitos da Torá de uma forma que encontrasse eco na mente da
juventude moderna.
Junto com o Rabino e Professor Iehuda Levi, escreveu um comentário em
hebraico sobre vários tratados do Talmud de Jerusalém, referentes às leis agrícolas
aplicadas em Israel. Publicou também um opúsculo intitulado Aiding Talmud
Study, um pequeno dicionário de termos básicos, que se tornou muito popular
entre os iniciantes do estudo do Talmud.
Seu livro “Masterplan” foi traduzido para o hebraico sob o título de “Iahadut
Lishnot Haalpaiym”. “Judaism for the 21th century” foi traduzido para o francês,
português (Judaísmo para o século 21, Editora Sêfer) e russo.
O Rabino Aryeh Carmell veio a falecer em 28 de Elul de 5766 (2006) em
Jerusalém. Que sua alma seja abençoada!

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O QUE É RESPEITAR O SHABAT? 13

PREFÁCIO DO AUTOR

Este pequeno volume tem um propósito bastante prático: servir de guia para a
compreensão adequada da observância do Shabat como fundamento da nossa fé.
Embora não seja extenso, muito tempo, trabalho e reflexão foram despendidos
nele.
Inicialmente, gostaria de expressar minha profunda gratidão ao Rabino
Aryeh Carmell, que me ajudou durante a preparação e publicação deste livro,
contribuindo em várias seções dele.
Qualquer texto que apresente o Shabat como a instituição fundamental do
judaísmo deve, necessariamente, ser dividido em duas partes: uma agádica,
expondo as ideias fundamentais do Shabat, e outra haláchica, explicando as leis
de sua observância prática. Tentei mesclar as duas.
As bases para a primeira foram principalmente a agadá contida no Tratado de
Shabat, do Talmud Babilônico, na literatura midráshica e, entre as obras modernas,
nos escritos do Rabino Samson Raphael Hirsch, um dos mais destacados
pensadores judeus do século passado.
Na parte de halachá, além dos códigos e trabalhos mais conhecidos sobre Lei
Judaica, usei o livro Sabbath-Vorschriften, do Rabino E. Biberfeld, publicado na
Alemanha há cerca de 50 anos, o qual se tornou muito popular. Expresso meus
agradecimentos à sra. Fanny Kahn, que pôs à minha disposição a tradução desse
pequeno livro.
Devo esclarecer que as regras haláchicas seguem a prática ashkenazi.
Sou grato também ao Daian A. Rapoport e ao Rabino Dr. S. Mannes, por sua
assistência em relação a essa parte.
Agradecimentos são devidos também a Norman Solomons M.A., por suas
muitas sugestões.
Arrisco dizer que este livro aprofundará a compreensão sobre nosso
sagrado Shabat, servirá como uma introdução ao conhecimento de suas leis
e, eventualmente, conduzirá o leitor a estudar as fontes haláchicas e agádicas.
Acredito também que servirá de ajuda aos educadores judeus.
Finalmente, rogo ao Eterno que, com Sua ajuda, possa este livro oferecer
assistência àqueles que, infelizmente, perderam o Shabat, para que possam
reencontrar a paz e as bênçãos que provêm de sua observância.

Isidor Grunfeld
Londres
5714/1954
O QUE É RESPEITAR O SHABAT? 15

“O trem prosseguia com sua carga humana. Nos vagões totalmente


lotados, espremidos uns contra os outros, numa atmosfera sufocante,
seus infelizes ocupantes mal conseguiam se mexer.
Isso aconteceu numa sexta-feira à tarde; os judeus, homens e
mulheres, que se espremiam naquele transporte nazista, afundavam-se
mais e mais em sua miséria e desespero.
Subitamente, uma senhora idosa conseguiu, com grande esforço,
fazer os movimentos necessários para abrir sua trouxa e dela retirar dois
castiçais e duas chalot (pães trançados). Ela as tinha recém-preparado
para seu Shabat, quando foi arrancada de seu lar, naquela manhã. Junto
com os castiçais e as velas, elas foram as únicas coisas que conseguira
trazer.
Logo a chama da velas iluminou as faces dos torturados judeus e se
fez ouvir a melodia de Lechá Dodi (canção com que se saúda o Shabat
que vai começar), o que transformou totalmente a cena.
Apesar de tudo, o Shabat, com sua atmosfera de paz, tinha chegado
ali.”
Essa passagem, relatada ao autor por uma testemunha ocular que
sobreviveu, não se constitui em fato isolado em nossa história. Episódios
sem conta, similares a este, poderiam ser citados por judeus que se
apegaram ao Shabat, mesmo em face da morte ou de sua ameaça.
Qual o segredo do apego do coração judeu ao Shabat?
Meros sentimentos não explicariam isso.
Talvez, consciente ou inconscientemente, seja a realização da antiga
afirmação, relatada no versículo 17 do capítulo 31 do Livro do Êxodo:
“Este é um sinal eterno entre Mim e os filhos de Israel...”
Pois o Shabat expressa todas as ânsias da alma judaica e cada uma
de suas facetas reflete algo da Presença Divina.
CAPÍTULO
1

O ESPÍRITO
DO SHABAT

16 O QUE É RESPEITAR O SHABAT?


O QUE É RESPEITAR O SHABAT? 17

1. O significado do Shabat

Nossos sábios chamam o Shabat de iessod haemuná, o verdadeiro


“fundamento da nossa fé”.
Isso não é exagero, pois os mais elevados pensamentos, por meio dos quais
o judaísmo enobreceu a mente humana, e os mais sublimes ideais pelos quais
nosso povo luta por anos sem conta à custa de inúmeras vidas, estão centrados
no Shabat.

a dignidade do trabalho
“Por seis dias trabalhareis e neles realizareis todas as vossas tarefas...”
A base para o Shabat é, portanto, o trabalho, dignificado por se constituir
numa ordem Divina. O trabalho não é uma degradação, mas, sim, um sagrado
direito de nascença de cada ser humano.
Quantos séculos, milênios talvez, foram necessários para que o mundo
percebesse essa verdade fundamental!
Foi realmente um longo caminho, desde as concepções gregas e romanas de
que o trabalho era algo degradante, resultando daí a absoluta falta de direitos
para os que o realizavam, até atingirmos o status atual do trabalhador.
Quantos distúrbios sociais, quanta miséria, quantas guerras e revoluções e
quanto derramamento de sangue poderiam ter sido evitados se o ideal bíblico da
dignidade do trabalho fosse, desde o início, a base da ordem social.
A tradição judaica nos relata que Adão se reconciliou com seu destino somente
quando lhe foi dito que deveria trabalhar.
O trabalho é realmente a prerrogativa do homem criativo que nasce gozando
de liberdade.
“Grandioso é o trabalho”, dizem os nossos sábios, “porque enobrece a quem
o faz.” (Tratado de Nedarim 49b)

Liberdade espiritual
Entretanto, o trabalho não é tudo. Ele pode tornar o homem um ser livre, mas
o próprio homem pode se tornar escravo de seu trabalho.
O Talmud relata que, quando Deus criou os céus e a terra, eles começaram
a se expandir de forma incessante, até que Ele lhes ordenou: “Basta!” (Tratado
de Chaguigá 12a)
A ação criativa do Eterno foi seguida pelo Shabat, quando, deliberadamente,
Ele cessou Sua atividade criativa. Isso, mais do que qualquer outra coisa, mostra-
nos Deus como o Criador e o Soberano do mundo, que o controla com total
liberdade e estabelece limites para a Criação que Ele materializou de acordo
unicamente com Sua vontade – um Criador com Seu próprio propósito.
Portanto, não foi a “atividade”, mas a “cessação de atividade”, o que Ele
escolheu como o sinal de Sua absoluta liberdade na Criação do mundo.
É pela cessação de atividade a cada Shabat, de acordo à forma prescrita pela
Torá, que o judeu presta testemunho do poder criativo do Eterno.
É assim, também, que cada judeu revela a verdadeira grandeza do ser humano.
As estrelas e os planetas, tendo iniciado seu eterno movimento pelo Universo,
continuam fazendo-o cegamente, conduzidos pela lei de causa e efeito. Já o
homem, por um ato de fé, pode impor um limite a seu labor, de modo que não
se degenere para uma labuta sem qualquer propósito.
Ao guardar o Shabat, o judeu se torna, como dizem os nossos sábios, domê
le-Iotsrô – “semelhante ao seu Criador”. Como o Eterno, ele é senhor de sua
obra, não seu escravo.
O homem é, de fato, superior a outras criaturas; entretanto, ele o é somente
se, conscientemente, coopera com o plano do Eterno para o Universo, fazendo
uso de sua liberdade para servir a Deus e a seus semelhantes. Então, ele se torna,
como dizem os nossos sábios, “sócio do Eterno, na obra da Criação” (Tratado
de Shabat 10a).
Ao mesmo tempo, porém, a própria liberdade do ser humano pode conduzi-
lo à sua queda. Seu domínio sobre a natureza, que o capacita a controlá-la
e dirigi-la, a domar sua energia, moldá-la e adaptá-la a seus desejos – esses
mesmos poderes podem, de uma maneira fatal, fazer com que ele se considere
um criador que não tem de prestar contas a ninguém mais elevado que ele.
Em nossa época, temos visto o que acontece ao mundo e à humanidade
quando essa ideia prevalece.
Eis, porém, que nesse ponto vem o Shabat para resgatar o ser humano.
Como veremos com mais detalhes mais adiante, talvez nisso esteja o aspecto
mais relevante da observância do Shabat.
Podemos nos aperceber e reconhecer na harmonia do Universo a verdade
básica de sua criação Divina. Entretanto, para a maioria dos seres humanos, o
que isso significa? Na verdade, muito pouco. Mas aqui, como sempre em relação
à Torá, não bastam meras teorias; é necessária a prática das ações, ou seja, a

18 O QUE É RESPEITAR O SHABAT?


O QUE É RESPEITAR O SHABAT? 19

consequência prática desse reconhecimento. Só dessa forma a doutrina torna-


se algo significativo. “Para viver no mundo por Ele criado como Suas criaturas,
devemos usar todas as capacidades humanas a Seu serviço.” Só assim será
justificada nossa existência e, ao mesmo tempo, estará assegurado nosso próprio
bem-estar e o de toda a raça humana.
As leis do Shabat nos provêm as considerações práticas necessárias para
manter esse princípio destacado em nossas mentes. Nesse dia nos abstemos
do exercício de nossos poderes humanos característicos, de produzir e criar no
mundo material. Com essa inatividade, depomos esses poderes aos pés do Eterno
como uma homenagem Àquele que a nós os concedeu.
Essa ideia básica sobre o Shabat será desenvolvida de forma mais ampla nos
próximos capítulos. Entretanto, se apurarmos nossos ouvidos, poderemos mesmo
agora perceber o que o Shabat está tentando nos dizer. De fato, ele proclama a
cada semana a mesma coisa que O Eterno disse ao primeiro ser humano:

“Fui Eu que te coloquei nesse mundo, que é Meu; para ti criei tudo isso.
Que tua mente atente para isso, para que não venhas corromper
e destruir Meu universo.”
Midrash Rabá, Eclesiastes 7:9

Eis aqui a pura essência do Shabat. O mesmo ato que proclama a liberdade do
homem declara também sua submissão ao Eterno. Usar todos os nossos poderes
a serviço de Deus – eis a maior de todas as demonstrações de liberdade.

2. O Shabat e a vida

Outra bênção flui do Shabat – a bênção da menuchá (repouso). Mas menuchá


é muito mais do que apenas repouso físico. É uma atitude da mente, um estado
de espírito, induzido pela experiência em que se constitui o Shabat, com todos
os seus componentes. Um deles é a alegria de se sentir libertado das pressões
provocadas pelas demandas do dia a dia, pois, além da escravização ao trabalho,
nossa civilização nos prende aos automóveis, ônibus, telefones, televisões,
cinemas, computadores – enfim, a toda a indústria mecânica de entretenimento.
Se não pararmos para refletir sobre isso, quase todos nós não perceberemos
a perda de energia vital que a carga de todas essas coisas provoca. Não
perceberemos a dimensão de nossa escravização.
Basta um exemplo: quantos de nós conseguiriam ficar num ambiente com um
telefone tocando sem o atender? O apelo é irresistível; sabemos que, mais cedo
ou mais tarde, “deveremos” responder ao chamado. No Shabat, essa obrigação
não existe.
O relaxamento, o alívio de espírito que um verdadeiro Shabat judaico traz,
precisa ser experimentado para que se possa compreender sua verdadeira
dimensão.
O espírito de menuchá tem sua mais positiva expressão nas refeições
do Shabat, na quais a felicidade de estar junto com a família e os amigos, a
satisfação com os alimentos especialmente preparados, a alegria das canções em
louvor do Eterno e do Shabat combinam-se para proporcionar uma experiência
única. Nessa atmosfera de Shabat, torna-se fácil sentir a proximidade do Eterno
e encarar a vida sem preocupações nem mágoas, ante a certeza de que estamos
todos sob Seus cuidados.
Com o corpo refrescado e a tensão nervosa relaxada, a mente é estimulada, por
sua vez, a buscar um contato mais próximo com o Eterno por meio do estudo da
Torá – não como um passatempo intelectual, mas como o pleno reconhecimento
de que esta é a única fonte da verdade e do sentido da vida para um judeu.
Se fizermos dessa atividade espiritual o conteúdo positivo das horas de lazer
do Shabat, nós nos sentiremos em seu término, sob todos os aspectos, melhor
preparados para as tarefas da semana que vai começar, ou seja, estaremos
efetivamente melhor preparados para a tarefa de viver.
As bênçãos do Shabat não se limitam ao que trazem a cada um individualmente.
Depois de ajudar o judeu a se encontrar, o Shabat o ajuda a encontrar o seu
próximo. Um dos motivos básicos apresentados na Torá para o mandamento
referente ao Shabat é:

“... que também teu servo e tua serva


possam repousar tão bem como tu mesmo.”

Deuteronômio 5:14

O patrão como o empregado; o servo como o senhor!


Pode alguém, nos dias de hoje, perceber o que essa equalização deve ter
significado numa época em que o servo nada mais era do que uma ferramenta
animada, que podia ser quebrada ou destruída conforme o desejo de seu senhor?
No Shabat, os dois se encontravam como iguais, como seres humanos livres.
O Shabat restituía ao servo sua dignidade humana.

20 O QUE É RESPEITAR O SHABAT?


O QUE É RESPEITAR O SHABAT? 21

E a liberdade e o descanso do Shabat deviam ser aplicados também ao


“estrangeiro que está dentro de teus portões”. Dessa forma foi estabelecida a
fundação para a fraternidade humana.
Na realidade, como veremos, até o gado não era excluído das bênçãos Divinas
do descanso sabático. Nem mesmo ao animal poderia ser negada a dignidade
devida a uma criatura do Eterno.

“Tu... e teu boi, teu asno e todos os teus animais.”

Deuteronômio 5:14

O Shabat é, portanto, um protesto Divino, repetido a cada semana, contra a


escravidão e a opressão.
Ao erguer seu cálice de vinho no Kidush, nas noites de sexta-feira, o judeu
une a Criação do mundo à liberdade do ser humano, declarando que escravidão
e opressão são pecados mortais contra as próprias fundações do Universo.
Poderia alguém se sentir surpreso ao saber que os tiranos de todas as épocas
não permitiam que Israel celebrasse o Shabat?

aspirações espirituais
Vimos que o Shabat é a raiz de todo progresso espiritual e social e que está
conectado com os mais elevados pensamentos e aspirações do homem: Deus, a
dignidade da alma humana, a liberdade, a igualdade entre todos os homens e a
supremacia do espírito sobre a matéria.
Não nos admira, portanto, que os profetas de Israel considerassem o Shabat
como o símbolo do que é moralmente bom e nobre.

“Feliz é o homem que faz isto, e o filho do homem que a isto se apega:
guarda o Shabat e se abstém de profaná-lo –
e guarda sua mão de praticar qualquer mal.”

Isaías 56:2
A mesma ideia de identificar o Shabat com as mais altas aspirações na terra
é expressa por Neemias (9:13):

“Desceste sobre o monte Sinai e com eles falaste dos céus, concedendo-lhes
julgamentos corretos, leis verdadeiras, bons estatutos e mandamentos –
e deste-lhes a conhecer Teu sagrado Shabat.”

Nossos sábios, com seu dom de compor frases de efeito, deram expressão ao
fato de o Shabat conter a soma e a substância da vida judaica por meio de uma
frase: “Se o Eterno não nos tivesse trazido ao monte Sinai e nos tivesse dado
somente o Shabat, isso já teria sido o bastante” (Hagadá de Pêssach). Realmente,
isso teria sido suficiente porque o Shabat sintetiza a totalidade do judaísmo.

22 O QUE É RESPEITAR O SHABAT?


O QUE É RESPEITAR O SHABAT? 23

O Shabat no Egito

“Moisés se regozijará com a dádiva de sua porção.”


Trecho da prece matinal do Shabat

“Moisés cresceu e foi a seus irmãos e viu seu trabalho pesado.” (Êxodo
2:11) O Midrash relata que Moisés (que fora salvo do Nilo pela filha do Faraó
e educado em seu palácio) viu como seus irmãos trabalhavam sete dias por
semana, sem qualquer descanso.
Então ele trouxe ao Faraó o seguinte argumento: “A força de trabalho
judaica é muito importante e benéfica para o reino. Se continuares a fazê-
los trabalhar sem a possibilidade de um descanso, eles enfraquecerão e
morrerão.”
“O que então sugeres que eu faça?” – perguntou o Faraó.
“Conceda-lhes um dia por semana para que repousem de seu trabalho”
– replicou Moisés – “e assim eles recobrarão sua energia para outra semana
de trabalho produtivo.”
A ideia agradou ao Faraó, que mandou Moisés escolher o dia que
considerasse mais adequado para isso. E aconteceu que Moisés escolheu
o sétimo dia para o descanso. A partir de então, os oprimidos judeus se
juntariam a cada sétimo dia, e seus anciãos leriam para todos velhos
manuscritos herdados da casa de seu antepassado Jacob. Contar-lhes-iam
sobre o início do povo judeu e sobre as vidas e aspirações de seus grandes
ancestrais, Abrahão, Isaac e Jacob, e sobre a promessa que o Eterno havia
feito a Abrahão de que, um dia, haveria de redimir Seus filhos da escravidão.
Quando, algumas décadas mais tarde, o povo judeu deixou o Egito e foi
receber o mandamento de observar o Shabat, Moisés ficou deliciado por ver
que o dia que ele havia escolhido para descanso coincidia com o da escolha
Divina – o dia que o Eterno designara como o ponto focal da semana, quando
o povo judeu se conecta com o Senhor do Universo num convênio de fé.
(Baseado no Midrash Rabá, Êxodo 1:28; 5:18; Orach Chayim capítulo 281.)

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