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Thomas Hardy
Copyright © 2016 by Pedrazul Editora Ltda.
PEDRAZUL EDITORA
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Tradução: Ellen Bussaglia
Não previ que este emprego da palavra num uso moderno se estenderia
para fora dos capítulos dos meus próprios romances. Mas o nome logo foi
elevado como uma designação local por toda parte. O primeiro a fazer tal
coisa foi o agora extinto Examiner, o qual, na publicação de 15 de julho de
1876, intitulou um de seus arquivos como: “O Trabalhador de Wessex”, que
não se tornou nenhuma dissertação sobre agricultura durante a Heptarquia,
mas sobre o camponês moderno dos condados do sudoeste e a apresentação
dele nestas histórias.
Seu nome de batismo era Gabriel, e nos dias de trabalho ele era um jovem
íntegro, de movimentos calmos, vestimentas apropriadas e bom caráter. Aos
domingos, era um homem de aspecto vago, dado a procrastinar, atrapalhado
por suas melhores roupas e seu guarda-chuva: no geral, sentia que deveria
ocupar moralmente o vasto espaço de neutralidade laudiceia que ficava entre
as pessoas da comunhão da paróquia e da seção dos bêbados, ou seja, ele ia à
igreja, mas bocejava discretamente quando a congregação chegava à parte do
credo niceno e pensava no que havia para o jantar quando devia estar ouvindo
o sermão. Ou, para afirmar seu caráter para a opinião pública, quando seus
amigos e críticos estavam furiosos, ele se considerava um homem mau;
quando estavam alegres, ele era bom; quando não estavam nem uma coisa
nem outra, ele era aquele homem, cuja cor de sua moral era como a de uma
mistura de sal e pimenta.
Exceto nos domingos no qual ele não trabalhava, Oak tinha seis dias de
trabalho, portanto, sua aparência em suas roupas velhas era mais
peculiarmente a dele próprio, e seus vizinhos se acostumaram a vê-lo sempre
vestido daquele jeito. Usava uma meia cartola de feltro enterrada em sua
cabeça, por segurança contra os ventos fortes, e um casaco parecido com o do
escritor Dr. Johnson. Suas pernas ficavam encaixadas em calças de couro
comuns, e botas enfaticamente grandes, dando aos pés espaço suficiente para
que quem as usasse pudesse ficar um dia inteiro num rio e nem perceber a
umidade. Quem as fizera fora um homem consciente, que se empenhava para
compensar qualquer fragilidade no seu corte com dimensões e solidez
abundantes.
“Eu ouvi cair”, comentou a moça, numa voz suave, mas não
particularmente baixa. “Ouvi um barulho que não pude identificar quando
estávamos subindo o morro.”
“Voltarei correndo.”
“Muito bem! Então a sobrinha da sua patroa não pode passar”, disse o
guarda da entrada fechando o portão.
Oak olhou para os dois que discutiam e sentiu-se num sonho. Dois
centavos eram realmente insignificantes. Três centavos era um valor maior,
uma violação considerável nos valores atuais e, como tal, uma questão de
pechinchar.
“É verdade, fazendeiro.”
“Ah, não.”
“O que é, então?”
“Vaidade.”
CAPÍTULO II
A NOITE—O REBANHO—UM INTERIOR—
OUTRO INTERIOR
Era quase meia-noite da véspera do dia de São Tomaz, o dia mais curto do
ano. Um vento desolador cortava do norte por cima do morro de onde Oak
havia visto a carroça amarela e sua ocupante sob a luz do sol alguns dias
antes.
Para as pessoas que ficam sozinhas num morro numa noite clara como
esta, a rotação do planeta é quase um movimento palpável. A sensação pode
ser causada pelo voo panorâmico das estrelas sobre os objetos terrenos, o
qual é perceptível em alguns minutos de imobilidade, ou pela perspectiva
melhorada do espaço que o morro proporciona, pelo vento ou pela solidão.
Mas qualquer que seja a sua origem, a impressão do movimento é vívida e
duradoura. A poesia do movimento é uma expressão muito usada, e para
apreciar a forma épica de tal gratificação é necessário passar algum tempo
num morro à noite e, depois de expandir-se com um senso de diferença da
massa da humanidade civilizada, que está presa em sonhos e indiferente a tais
métodos nesta hora, observar demorada e silenciosamente seu progresso
grandioso através das estrelas. Após tal exploração noturna, é difícil voltar a
terra e acreditar que a consciência de tanta velocidade majestosa é derivada
de uma estrutura humana minúscula.
De repente, uma inesperada série de sons foi ouvida neste lugar alto
contra o céu. Eram de uma clareza que não podia ser encontrada em parte
alguma do vento, e uma sequência que não podia ser encontrada em parte
alguma da natureza. Eram as notas da flauta do fazendeiro Oak.
A imagem num todo era de uma pequena arca de Noé sobre um pequeno
monte Ararat, permitindo que os contornos tradicionais e a forma da arca,
que são seguidos por fabricantes de brinquedos, cujos significados são
definidos na imaginação dos homens, para passar como um modelo
aproximado. A cabana ficava sobre pequenas rodas, as quais se erguiam do
piso cerca de um pé do chão. Tais cabanas de pastores são arrastadas pelos
campos quando chega a época do nascimento das ovelhas, para abrigar os
pastores na assistência noturna forçada.
Este risco, sem auxílio e solitário, nos caminhos agrários como mestre e
não como homem, com um adiantamento de ovelhas que ainda não fora pago,
era um momento crítico para Gabriel Oak e ele reconhecia claramente sua
situação. O primeiro movimento em seu novo progresso era a cria de suas
ovelhas, e como era sua especialidade desde a juventude, ele sabiamente
evitou confiar a tarefa de cuidar delas nesta temporada a um interesseiro ou a
um aprendiz.
Duas mulheres e duas vacas estavam no local. Ao lado das vacas havia
um balde com farelo ensopado quente. Uma das mulheres tinha idade
avançada. Sua companheira era aparentemente jovem e graciosa. Ele não
podia ter certeza da aparência dela, pois estava quase debaixo do olho dele,
tendo assim uma visão parcial dela, como quando o Satanás de Milton viu o
Paraíso em O Paraíso Perdido. Ela não usava nenhum tipo de chapéu, mas
estava enrolada numa capa grande, que cobria descuidadamente sua cabeça.
“Bem, agora vamos para casa”, disse a mais velha delas, passando os
dedos sobre os lábios e olhando para todas as coisas que fizeram. “Espero
que Daisy melhore. Nunca estive com tanto medo na vida, mas não me
incomodo de interromper o meu descanso para que ela se recupere.”
“Gostaria que fôssemos ricas o bastante para pagar um homem para fazer
estas coisas”, declarou ela.
“Como não somos, temos que fazê-las nós mesmas”, comentou a outra;
“por isso você deve me ajudar.”
“Bem, já perdi meu chapéu”, continuou a mais nova. “Acho que voou
pela cerca. Um vento deve tê-lo levado.”
A vaca que estava em pé era da raça Devon e estava com uma rica
proteção vermelha indiana que a aquecia, absolutamente uniforme da cabeça
à cauda, como se o animal fosse tingido, e seu longo dorso foi
matematicamente nivelado. A outra era malhada de cinza e branco. Oak
notou ao lado dela um pequeno bezerro de cerca de um dia, parecendo
perdido entre as duas mulheres, mostrando que não estava acostumado ao
fenômeno que via, olhando o tempo todo para a lanterna, que aparentemente
confundia com a lua, um instinto herdado que ainda tinha pouco tempo para
corrigi-lo com a experiência. Entre as ovelhas e as vacas, Lucina, a deusa dos
partos, estivera ocupada em Norcombe Hill ultimamente.
Ela se chegou mais perto e olhou ao redor, depois para o outro lado da
cerca. Gabriel estava para ir até ela e devolver o item perdido quando um
movimento inesperado o levou a suspender sua ação. O caminho dividia-se
em dois depois do estábulo. Não era uma estrada para cavalgar, era uma
simples trilha e os galhos espalhavam-se horizontalmente não muito mais alto
do que sete pés do chão, o que impossibilitava cavalgar ereto por baixo deles.
A moça, que não usava trajes de montaria, olhou ao seu redor por um
instante, como que para certificar-se de que toda a humanidade não estava à
vista, e então deitou-se de costas com destreza sobre o pônei, com a cabeça
sobre a cauda, os pés sobre os ombros e os olhos voltados para o céu. A
rapidez de seu deslizar naquela posição era como a de um martim-pescador e
o silêncio de uma águia. Os olhos de Gabriel quase não conseguiram
acompanhá-la. O pônei alto e delgado parecia acostumado a tais atos e
continuou despreocupado a passos lentos. Assim, ela passou por debaixo dos
galhos.
Ela veio, com o balde numa mão e batendo em seu joelho. O braço
esquerdo estava estendido dando equilíbrio, com uma parte à mostra, o que
fez Oak desejar que aquilo estivesse se passando no verão, quando tudo
poderia ser revelado. Havia um ar e modos iluminados sobre ela agora, pelos
quais ela parecia insinuar que a conveniência de sua existência não devia ser
questionada. E esta dedução muito maliciosa não falhava em ser ofensiva
porque o espectador achou que fosse, num todo, verdadeira. Como uma
ênfase excepcional no tom de um gênio, o qual fazer a mediocridade ser
ridícula era uma adição para o poder reconhecido. Foi com surpresa que ela
viu o rosto de Gabriel surgindo como a lua por detrás da cerca.
“É meu”, disse ela, e, num senso de proporção, deu um leve sorriso uma
inclinação de uma risada clara: “ele saiu voando na noite passada.”
“Eu procurei meu chapéu esta manhã”, continuou ela. “Tinha que
cavalgar até Tewnell Mill.”
“Como sabe?”
“Eu a vi.”
A percepção fez com que ele desviasse seus olhos dos dela tão
repentinamente como se houvesse sido pego cometendo um furto. A
lembrança de como ficara intrigado ao vê-la passar pelas árvores teve êxito
na moça por uma exasperação e um rosto corado. Era o momento de ver
ruborizar uma mulher que não costumava ficar assim; a ordenhadora estava
da cor mais profunda de uma rosa. Da cor mais encarnada, passando por
todas as variedades da provençal até a toscana carmesim, assim mudava
rapidamente o rosto da conhecida de Oak. Ele, em consideração, virou a
cabeça.
O homem solidário ainda olhava para outro lado e imaginava quando ela
recobraria a calma o bastante que o fizesse encará-la novamente. Ele ouviu o
que parecia ser o movimento leve da brisa numa folha seca e olhou. Ela havia
ido embora.
Com um ar entre a tragédia e a comédia, Gabriel voltou para seu trabalho.
Gabriel sempre soube que quando o fogo era aceso e a porta estava
fechada, um dos buracos deveria ficar aberto, o escolhido era sempre do lado
oposto ao do vento. Fechando a janela do lado do vento, abria-se a outra.
Ponderando, o fazendeiro considerou que primeiro sentar-se-ia deixando
ambas fechadas por alguns minutos até que a temperatura da cabana subisse
um pouco. Sentou-se.
“Agora nada”, respondeu ela, “uma vez que não está morto. Admira-me
como não sufocou nesta sua cabana.”
“Não foi exatamente culpa da cabana”, observou ela num tom de voz que
revelava aquela novidade entre as mulheres, alguém que terminava um
pensamento antes de iniciar a sentença que lhe dava sentido. “Você deveria,
creio eu, ter pensado melhor e não ter deixado as janelas fechadas.”
“Acho que sim”, disse Oak distraidamente. Ele estava se esforçando para
apreciar a sensação de estar daquele jeito com ela, com a cabeça sobre seu
vestido, antes do evento ocorrido entre as coisas que se passaram. Desejou
que ela soubesse de suas impressões. Mas logo pensou que poderia exalar
algum odor ao tentar explicar as intangibilidades do que sentia nas teias de
sua linguagem rudimentar. Assim, permaneceu em silêncio.
“Como posso lhe agradecer?”, perguntou por fim com gratidão, com o
rosto um pouco corado, pois a cor natural voltava ao seu rosto.
“Como me encontrou?”
“Ouvi seu cão uivando e arranhando a porta da cabana quando vim para a
ordenha (por muita sorte, a ordenha de Daisy está quase acabando para esta
época e não devo vir aqui depois desta semana ou na próxima). O cão me viu
e pulou em mim puxando a minha saia. Eu vim, olhei em volta da casa e a
primeira coisa que vi foi as janelas fechadas. Meu tio tinha uma cabana como
esta e eu o ouvi dizer a seu pastor para não dormir sem deixar uma janela
aberta. Abri a porta e você parecia estar morto. Joguei o leite em você, pois
não tinha água, esquecendo de que estava quente e não adiantaria nada.”
“Creio que salvou a minha vida, Miss... não sei o seu nome. Sei o de sua
tia, mas não o seu.”
“Eu não lhe diria tão rapidamente, não tanto. Não há motivo ou por que
eu deveria, pois você provavelmente nunca terá muito contato comigo.”
“E o meu não é... Parece que gosta do seu ao dizê-lo tão decisivamente,
Gabriel Oak.”
“Bem, senhorita, me perdoe pelo que falo, pensei que gostaria delas. Mas
não consigo medir forças com você, sabe, em acompanhar meus pensamentos
com a minha fala. Nunca fui muito esperto. Mas muito obrigado. Vamos,
ajude-me.”
“Por quê?”
“Calma, é muito tempo”, disse ela, porém não a puxou. “Mas suponho
que esteja pensando que gostaria de beijá-la. Você pode, se quiser.”
“Eu não estava pensando em tal coisa”, disse Gabriel, “mas vou beijá-la.”
Uma voz veio de trás de alguns loureiros para onde o gato havia corrido:
“Perdoe-me”, disse Oak para a voz, “mas George vinha andando atrás de
mim com um ânimo mais leve que uma pena.”
“Poderia dizer à Miss Everdene que alguém deseja falar com ela?”, disse
Mr. Oak. (Chamar a si próprio simplesmente de alguém, sem mencionar o
nome, não deve ser tomado como exemplo de falta de educação no mundo
rural. Vem de uma modéstia refinada, da qual as pessoas da cidade, com seus
cartões e proclamações, não têm a menor noção).
“Ia mesmo?”
“Sim. Porque se ela gostaria, eu ficaria muito feliz em me casar com ela.
Sabe se há algum outro rapaz interessado nela?”
Quando Gabriel tinha andando cerca de duas jardas, ouviu um “ei!” vindo
de trás dele, num tom musical da qualidade mais aguda do que a exclamação
geralmente vem quando gritada pelo campo. Olhou em volta e viu uma moça
correndo atrás dele, acenando com um lenço.
“Acabei de vir para vê-la”, informou Gabriel, aguardando o que mais ela
diria.
“Sim, eu sei”, disse ela ofegante como um melro, com o rosto molhado
por seus esforços, como uma pétala de peônia antes que o sol secasse o
orvalho. “Não sabia que viria para me ver, ou teria entrado do jardim
imediatamente. Corri atrás de você para dizer... que minha tia cometeu um
erro em desencorajá-lo a me cortejar...”
Gabriel se endireitou.
“Sinto muito por tê-la feito correr tanto, minha querida”, declarou ele,
com uma enorme sensação de coisas boas que viriam. “Espere um pouco até
recobrar o fôlego.”
“Sim, tem.”
“Um homem me adiantou o dinheiro para começar, mas logo será pago, e
embora eu seja só um homem comum, economizo um pouco desde que era
pequeno.” Gabriel pronunciou “um pouco” num tom para mostrar a ela que
aquela era a forma complacente de “uma boa quantia”. Continuou: “Quando
nos casarmos, tenho certeza que posso trabalhar duas vezes mais do que
agora.”
“O que eu queria dizer-lhe era isto”, disse ela ansiosamente, ainda não
muito consciente da posição absurda em que se colocara, “que ninguém
chegou a mim como um admirador, como aquela dúzia que minha tia disse
que eu tinha. Odeio que pensem que pertenço a algum homem daquela
maneira, embora isso algum dia aconteça. Porque se eu o quisesse, não
correria atrás de você deste jeito. Seria muito atrevimento! Mas não há
problema em correr para corrigir uma falsa informação que lhe contaram.”
“Oh, não... problema algum.” Mas havia algo em querer ser tão generosa
para expressar um julgamento impulsivamente e Oak completou com um
senso mais agradecido das circunstâncias. “Bem, não estou muito certo de
que não há nenhum mal.”
“Na verdade, não tive tempo para pensar se quero me casar com você ou
não, pois você já estava subido o morro.”
“Posso fazê-la feliz”, disse ele, atrás da cabeça dela, de frente para o
arbusto. “Você poderá ter um piano dentro de uns dois anos, as esposas dos
fazendeiros agora têm pianos, e eu praticarei a flauta para tocar com você à
noite.”
“Eu adoraria.”
“Sim.”
“Tente.”
“Bem!”
“Ora, ele sempre estaria lá, como você disse. Toda vez que eu o
procurasse, lá estaria ele.”
Com esta crítica sobre sua afirmação, Bathsheba fez um adendo à sua
dignidade afastando-se ligeiramente dele.
“Por tudo o que é mais sagrado, não sei o que uma mulher solteira pode
dizer que seja mais estúpido do que isso”, disse Oak. “Mas querida”,
continuou ele numa voz paliativa, “não seja assim!”
Ela continuou em silêncio, pensativa.
“Sim, mas...”
“Nunca”, disse Mr. Oak, tão sinceramente que parecia estar sendo levado
pela força de suas palavras através do arbusto direto para os braços dela.
“Farei uma única coisa nesta vida, uma coisa certa, que é amá-la e esperá-la,
e continuar a desejá-la até morrer.” A voz dele tinha uma compaixão genuína
agora e suas grandes mãos tremiam perceptivelmente.
“Mr. Oak”, disse ela com distinção cintilante e senso comum, “você está
numa situação melhor do que eu. Estou morando com minha tia pelo meu
simples sustento. Embora tenha estudo, mal tenho um centavo nesse mundo,
e não o amo nem um pouco. Este é o meu lado no caso. Agora o seu: é um
fazendeiro que está apenas começando, e deve por prudência comum chegar a
se casar (o que certamente não deveria pensar no momento), mas case com
uma mulher que tenha dinheiro, que lhe dê uma fazenda maior do que a que
tem agora.”
“Certo?”
“Não, sábio.”
“Acabou de admitir algo, Mr. Oak”, exclamou ela, ainda com mais
arrogância e balançando a cabeça com desdém. “Depois disso, acha que eu
poderia me casar com você? Não se sei disso.”
“Não, não, não posso. Não me pressione mais, não. Não o amo, e seria
ridículo”, disse ela rindo.
“Muito bem”, disse Oak firmemente, como quem entregaria seus dias e
suas noites ao Eclesiastes[4] para sempre. “Então não lhe perguntarei mais.”
CAPÍTULO V
A PARTIDA DE BATHSHEBA—UMA
TRAGÉDIA PASTORIL
A notícia que certo dia chegou a Gabriel, que Bathsheba Everdene havia
deixado a vizinhança, teve tal influência sobre ele que surpreenderia qualquer
um que nunca tivesse suspeitado que quanto mais enfática a renúncia, menos
absoluto é seu caráter.
Sua amizade insipiente com a tia dela esfriou com o fracasso de seu
pedido de casamento, e tudo o que Oak sabia dos passos de Bathsheba era
feito de forma indireta. Parecia que ela havia ido para um lugar chamado
Weatherbury, a mais de vinte milhas dali, mas em qual qualidade, como
visitante ou permanentemente, ele não pôde descobrir.
Gabriel tinha dois cães. George, o mais velho, exibia um nariz com a
ponta preta, cercado por uma margem estreita de carne vermelha, um pelo
marcado por manchas aleatórias de branco e cinza ardósia, mas o cinza, após
anos no sol e na chuva, foi queimado e desbotado nos caracóis mais
proeminentes, tornando-os castanho-avermelhados, como se o componente
azul do cinza tivesse descolorido tal qual o índigo do mesmo tom da cor nos
quadros de Turner. A textura era originalmente de pelo, mas o longo contato
com ovelhas parecia tê-lo deixado como lã de qualidade e fibra ruins.
Chega de falar dos cães. No lado mais distante de Norcombe Hill ficava
uma mina calcária, de onde todo o calcário era retirado há gerações e
distribuído pelas fazendas adjacentes. Duas cercas-vivas convergiam nela
num formato em V, mas sem se encontrarem exatamente. A passagem
estreita que ficava, a qual era imediatamente acima do cume da mina, era
protegida por uma grade rústica.
Uma noite, quando o fazendeiro Oak retornou para casa, acreditando não
ter mais necessidade de seu trabalho lá embaixo, chamou os cães como de
costume, prendendo-os previamente no alpendre até a manhã seguinte.
Somente um deles, o velho George, o atendeu. O outro não foi encontrado
nem dentro da casa, nem na estrada ou no jardim. Gabriel então se lembrou
de que havia deixado os dois cães na colina comendo um carneiro morto (um
tipo de carne que ele geralmente não deixava para eles, exceto quando havia
escassez de outro tipo de comida), e concluindo que o mais novo não
terminara sua refeição, entrou para o prazer de sua cama, que ultimamente só
aproveitava aos domingos.
Era uma noite calma e úmida. Pouco antes de amanhecer, foi acordado
pela reverberação anormal de uma música familiar. Para o pastor, o som da
sineta de uma ovelha, como o tic-tac do relógio para outras pessoas, é um
som crônico que só é notado por parar ou alterar de alguma forma, o que o
conhecido tilintar preguiçoso significa ao ouvido acostumado, embora
distante, que está tudo bem no curral. Gabriel ouviu aquele som na calma
solene do despertar da manhã, batendo com violência e rapidez incomuns.
Este toque excepcional pode ser causado de duas maneiras: pelas ovelhas que
o carregam alimentando-se rapidamente ou pela partida delas em disparada,
quando o som tem uma palpitação regular. O ouvido experiente de Oak
conhecia o som que ouvia agora como sendo da fuga do bando em alta
velocidade.
Nem sequer um balido. Ele foi até a cerca. Uma falha havia sido aberta e
ali havia pegadas das ovelhas. Muito surpreso ao descobrir que elas
atravessaram a cerca naquela época do ano, ainda recusando prontamente a
preferencia delas por hera no inverno que crescia na lavoura, ele seguiu pela
cerca. Elas não estavam na lavoura. Chamou outra vez: os vales e as colinas
mais distantes ressonaram como quando os marinheiros invocavam o Hila
perdido na costa da Misia, mas nenhuma ovelha apareceu. Passou pelas
árvores e ao longo do espinhaço da colina. No ponto mais extremo, onde as
pontas de duas cercas convergentes, das quais falamos que se aproximavam
ao chegar no cume da mina de calcário, ele viu o cão mais novo parado
contra o céu, escuro e imóvel como Napoleão em Santa Helena.
“Graças a Deus que não sou casado: o que ela teria feito na pobreza que
agora me atinge?”
Tinha-se a impressão que o pobre cão mais novo, ainda sob a impressão
que uma vez fora poupado por correr atrás das ovelhas, quanto mais ele
corresse atrás delas, melhor, pois podia comer uma ovelha morta, o que podia
dar-lhe energia e ânimo adicionais. Dessa forma, recolheu todos os carneiros
num canto, guiando as tímidas criaturas pela cerca, atravessando o campo de
cima e por força maior de preocupação que lhe dera impulso, o bastante para
quebrar uma parte da grade apodrecida, e então lançá-las pelo abismo.
O filho de George fez seu trabalho com tanto afinco que fora considerado
um trabalhador bom demais para continuar vivo e, de fato, levou um tiro às
doze horas do mesmo dia. Um exemplo do destino adverso que tão
frequentemente atinge os cães e outros filósofos, que seguem uma linha de
raciocínio para esta conclusão lógica, e atende perfeitamente a conduta
consistente num mundo grande demais para permitir concessões.
Gabriel estava mais pálido agora. Seus olhos estavam mais meditativos e
sua expressão era mais triste. Passara por uma provação de infelicidade que
mais lhe acrescentara do que retirara. Caíra de sua modesta elevação de rei do
pastoril nas profundas covas lamacentas do vale de Sidim.[5] Todavia tornara
um homem de uma calma digna que nunca antes conhecera e aquela
indiferença com o destino que, embora geralmente transforme o homem em
vilão, é a base de sua sublimidade quando não faz. E assim a humilhação fora
exaltada e a perda, ganha.
“Vinte minutos.”
“Quanto custa?”
“Dois xelins.”
Ele se sentou num banco, o cajado foi feito e uma haste lhe foi entregue
pela barganha.
Entrou então numa loja que vendia roupas prontas, com cujo dono ele
tinha uma grande ligação rural. Como o cajado levou muito do dinheiro de
Gabriel, ele tentou e conseguiu uma troca de seu sobretudo por um avental de
pastor.
Com esta transação finalizada, de novo ele correu para o centro da cidade
e parou no meio-fio, como um pastor com o cajado na mão.
Agora que Oak tinha se transformado num pastor, parecia que a procura
era por administradores. No entanto, dois ou três fazendeiros notaram-no e se
aproximaram. Seguiram-se alguns diálogos, mais ou menos na forma
acrescentada:
“De onde você é?”
“Norcombe.”
“É bem longe.”
“Quinze milhas.”
“Minha.”
Weatherbury! Era para onde Bathsheba havia ido dois meses atrás. Era
uma informação que caíra como a noite ao meio-dia.
Ao chegar mais perto, descobriu que não havia cavalos presos nela e o
local estava aparentemente deserto. A carroça, por sua posição, parecia ter
sido deixada ali para passar a noite, e que além de cerca de meio fardo de
feno guardado no fundo, estava vazia. Gabriel sentou-se nas barras do veículo
e considerou sua posição. Calculou que já havia caminhado uma porção
muito satisfatória de sua jornada, e estando de pé desde o amanhecer, sentiu-
se tentado a deitar-se sobre o feno na carroça em vez de continuar até a vila
de Weatherbury e ter que pagar por um alojamento.
Duas silhuetas eram fracamente visíveis na frente, uma das quais estava
dirigindo, sentadas com as pernas para fora da carroça. Gabriel logo
descobriu que era o condutor e parecia que vinham para a feira de
Casterbridge, assim como ele.
“Seja como for, ela tem um corpo bonito no que se refere à sua aparência.
Mas é só a pele de uma mulher, e a vaca é tão boa como orgulhosa, como se
tivesse o diabo por dentro.”
“É, é o que parece, Billy Smallbury, é o que parece.” Esta declaração era
muito duvidosa por natureza, e ainda mais pela circunstância, os solavancos
da carroça interferindo na laringe daquele que estava falando. Vinha do
homem que segurava as rédeas.
“Ela é uma mulher muito convencida, como se fala por toda parte.”
“Ora. Se for assim, não vou poder olhar na cara dela. Meu Deus, não! Eu
não! Sou muito acanhado!”
“É, ela é muito convencida. Dizem que toda noite quando ela vai dormir
se olha no espelho para colocar sua touca direito.”
“Ela também toca piano, como falam. Consegue tocar tão bem que faz
um salmo parecer a canção mais alegre que se possa imaginar.”
“Foi o que lhe falei! É a hora da nossa alegria, e me sinto como um novo
homem! E quanto ela paga?”
Gabriel pulou o portão e, pisando do outro lado sobre o que ele descobriu
ser um campo arado, atravessou-o na direção exata do fogo. Com a sua
proximidade as labaredas pareciam ter dobrado de tamanho, mas tiveram seu
próprio aumento, de fato, como ficou claro quando chegou mais perto dos
contornos dos montes de feno ao lado dela, iluminados em grande precisão.
A fonte do fogo era um campo de feno. Seu rosto cansado agora começava a
colorir-se de um brilho alaranjado intenso e toda a frente de seu avental e das
polainas estava coberta com uma sombra dançante dos espinheiros. A luz o
alcançava por uma cerca-viva sem folhas, e o gancho metálico de seu cajado
irradiava um brilho prateado da mesma intensidade. Foi até a cerca e parou
para recobrar a respiração. Era como se o lugar estivesse desocupado de uma
viva alma.
O que estava diante dos olhos de Gabriel era um monte de palha num
feixe solto e as chamas lançavam-se dele com a velocidade de um raio.
Reluzia na direção do vento, aumentando e diminuindo em intensidade como
a brasa de um charuto. Então um feixe sobreposto rolou com um barulho
repentino; as labaredas prolongaram-se e dobraram-se num rugido silencioso
e por detrás delas, piras queimavam escondidas, iluminando uma cortina de
fumaça semitransparente numa uniformidade amarela brilhante. Palhas
perdidas pelo chão eram consumidas num movimento crepitante de calor
rubro, como se fossem nós de minhocas vermelhas, e acima brilhavam rostos
flamejantes imaginários, línguas que saíam de lábios, olhos brilhantes e
outras formas terríveis, das quais de tempos em tempos fagulhas voavam em
bandos como aves de um ninho.
Gabriel pulou a cerca e viu que não estava só. O primeiro homem que
encontrou estava correndo com muita pressa, como se seus pensamentos
estivessem a muitas jardas à frente de seu corpo, o qual eles nunca arrastaram
tão depressa.
Uma lona para cobrir fardos foi trazida e eles a penduraram como uma
cortina através da valeta. As chamas pararam imediatamente de passar por
debaixo da pilha de milho e subiram verticalmente.
“Acha que o celeiro está a salvo, Jan Coggan?”, repetiu a segunda mulher
ao homem mais próximo naquela direção.
“Seguro agora, pelo menos, eu acho. Se este fardo se fosse o celeiro seria
atingido. Aquele pastor esperto fez o melhor, sentado em cima do fardo,
batendo rapidamente seus braços compridos como um moinho.”
“Maryann”, disse a garota a cavalo, “vá até ele enquanto está descendo e
diga que a fazendeira quer agradecê-lo pelo grande serviço que ele prestou.”
“Uma fazendeira?”
“É, e acho que ela é rica também!”, disse um dos espectadores. “Faz
pouco tempo que veio de longe pra cá. Ganhou a fazenda do tio dela, que
morreu de repente. Media o dinheiro dele em canecas de meio-litro. Dizem
que agora ela tem negócios em cada banco de Casterbridge e nem pensa mais
em jogar cara e coroa com uma moeda de vinte xelins como nós jogamos
com meio pence por nada nesse mundo, pastor.”
“Ali está ela, no seu cavalo”, informou Maryann. “Com a cara coberta
com pano preto com buracos.”
Bathsheba sumiu nas sombras. Mal sabia se estava mais surpresa pela
singularidade do encontro ou preocupada com a estranheza dele. Havia
espaço para um pouco de pena, também para pouquíssima exultação: a
primeira coisa por sua posição, a segunda por ela mesma. Embaraçada ela
não estava, e lembrou-se da declaração de amor de Gabriel em Norcombe
apenas por pensar que quase se esquecera dela.
“Isso eu já não posso”, disse ele, passando por Oak como um cristão
passa pela bandeja do ofertório quando não tem intenção de doar nada. “Se
você seguir pela estrada até chegar ao Warren’s Malthouse, onde todos já se
foram para foram comer, acredito que alguém possa lhe oferecer um lugar.
Tenha uma boa-noite, pastor.”
“Não sei onde fica o Buck’s Head ou coisa assim. Está pensado em ir
para lá esta noite?”
“Você não vai dizer nada na paróquia que me viu aqui, vai? Pelo menos
por um ou dois dias?”
“Muito obrigada”, retorquiu ela. “Sou bem pobre e não quero que as
pessoas saibam nada sobre mim.” Ela então ficou em silêncio e estremeceu.
“Você precisa de um casaco para uma noite tão fria”, observou Gabriel.
“Eu a aconselharia a entrar.”
“Qual é o problema?”
“Nada.”
“Boa noite.”
O Warren’s Malthouse[6] era fechado por um muro antigo coberto por hera
e, embora muito do interior não fosse visível naquele horário, as
características e os propósitos do prédio eram claramente mostrados pelos
contornos no céu. Das paredes subiam ao centro de um telhado de palha, de
onde surgia uma pequena lanterna de madeira, com aberturas nos quatro
lados, e por elas uma névoa era vagamente percebida escapando no ar
noturno. Não havia janelas frontais, mas um buraco quadrado era fechado por
um único vidro por onde raios vermelhos e confortantes estendiam-se agora
pelo muro com heras da frente. Ouviam-se vozes no interior.
Este homem de idade agora estava sentado de frente para o fogo. Seus
cabelos eram brancos como a neve, a barba crescia por seu rosto enrugado
como musgo e líquen sobre uma macieira sem folhas. Usava calças até a
altura dos joelhos e botas até os tornozelos. Tinha os olhos fixos no fogo.
O nariz de Gabriel fora agraciado por uma atmosfera carregada pelo doce
aroma de malte novo. A conversa, a qual parecia ser a respeito da origem do
fogo, parou abruptamente quando ele entrou. Cada um criticou-o com o olhar
num grau expresso pelo franzir de suas testas e o observou com olhos
serrados como se ele fosse uma luz muito forte para a visão deles. Muitos
exclamaram meditativamente, depois que a operação estava terminada:
“Do mesmo jeito que conheci seu pai quando era criança. Ora, meu Jacob
aqui e seu pai eram feito irmãos, não era mesmo, Jacob?”
“Ah, ele é neto legítimo de seu avô! Seu avô era um homem tão bom e
desprendido!”, bradou o cervejeiro.
Mr. Jan Coggan, o qual passara a caneca para Henery, era um homem
muito vermelho com um semblante amplo e um vislumbre particular no
olhar, cujo nome aparecera no registro de casamento das paróquias de
Weatherbury e da redondeza como padrinho e testemunha em incontáveis
uniões nos vinte anos anteriores. Também ocupou frequentemente o posto de
padrinho em batizados do tipo delicadamente jovial.
“Ah, então eu vou, meu doutor”, concordou Mr. Clark, o qual, vinte anos
mais jovem do que Jan Coggan, revolvia na mesma órbita. Ele escondia a
alegria em todas as ocasiões para uma descarga especial em festas populares.
“Um homem tão modesto como ele!”, admirou-se Jacob Smallbury. “Ora,
você raramente teve coragem o bastante para encarar a nossa patroa, como
fiquei sabendo, Joseph?”
“Ah, desde menino. É... minha mãe morria de preocupação com isso. Mas
não era nada.”
“Não, não, não; nada disso!”, censurou o homem modesto, forçando uma
risada para encobrir sua preocupação.
“É o homem mais quieto do grupo, não é, Joseph? Sim, outra vez você se
perdeu pelo Lambing-Down Gate, não foi, Joseph?”
“Sim, e também foi no meio da noite. O portão não abria, ele bem que
tentou, e sabendo que tinha o dedo do demônio naquilo, se ajoelhou.”
“Que tipo de lugar é este para se viver e que tipo de patroa ela é para se
trabalhar?” O peito de Gabriel vibrou levemente enquanto escondia do grupo
o assunto mais íntimo de seu coração.
“Não sabemos quase nada dela. Ela apareceu só uma vez alguns dias
atrás. Seu tio ficou muito mal, o doutor foi chamado com todo o seu
conhecimento, mas não conseguiu salvar o homem. Pelo que sei, ela vai ficar
com a fazenda.”
“É mais ou menos isso”, disse Jan Coggan. “É, a família é muito boa.
Logo vou trabalhar para eles. O tio dela era um homem muito justo. Você o
conheceu, pastor, o homem solteiro?”
“Não.”
“Eu costumava ir a casa dele para fazer a corte para a minha mulher,
Charlotte, que trabalhava na leiteria. Era um homem de coração muito bom, o
Fazendeiro Everdene, e como eu sempre fui um rapaz muito respeitável tive
permissão para visitá-la, vê-la e beber quanta cerveja eu quisesse, mas não
podia levar nada, quer dizer, que desse para ver, claro.”
“Então veja, a cerveja era da boa e eu queria dar valor à bondade dele o
mais que pudesse e não ser mal-educado para beber só um golinho, o que
seria um insulto à generosidade de um homem...”
“Se foi. Mas para uma comemoração da classe mais alta, aquilo te deixou
mais perto do dono da casa do que quando você começou, não tinha ninguém
como aqueles na cozinha do Fazendeiro Everdene. Nenhum deles podia; não,
nenhum dos pobres-coitados, até mesmo no momento mais alegre quando
todos não enxergavam mais, embora a boa palavra do pecado jogada aqui e
ali em tais momentos é um grande alívio para uma alma alegre.”
“Bem”, disse o cervejeiro, “ele não era muito bonito, mas ela era uma
mulher adorável. Ele gostava muito dela como companheira.”
“Fiquei sabendo que ele tinha muito orgulho dela também quando eram
casados”, disse o cervejeiro. “Ah”, disse Coggan. “Ele a admirava tanto que
acendia uma vela três vezes por noite para olhá-la.”
“Ah, é tudo verdade. Conhecia bem tanto o homem quanto a mulher. Levi
Everdene, esse era o nome do homem, com certeza. ‘Homem’, dizia eu na
minha inquietação, mas ele era de um círculo mais alto do que aquele. Era um
cavalheiro e um alfaiate rico. Faliu umas duas ou três vezes.”
“Bem, agora, vocês não vão acreditar, mas o homem, o pai da nossa Miss
Everdene, era um dos maridos mais volúveis vivos, depois de algum tempo.
Entendem? Não que quisesse ser volúvel, mas não conseguia evitar. O
coitado do homem era fiel e sincero o bastante com ela como desejava, mas o
coração dele vagava e ele o seguia. Conversou comigo muito perturbado com
isso uma vez. ‘Coggan’, disse ele, ‘nunca desejei uma mulher mais linda do
que a que eu tenho, e ela foi designada como minha esposa legítima, mas não
consigo evitar que meu coração malvado vagueie e faça o que quer.’ Mas no
fim acredito que ele se curou. Ele pedia que ela tirasse o anel de casamento
deles e chamava-a pelo nome de solteira quando se sentavam juntos depois
que a loja estava fechada. Então ele imaginava que ela não fosse sua mulher,
nem fosse casada com ele. E assim pensando ele não estava fazendo algo
errado e ferindo o sétimo mandamento, pois gostava mais dela do que nunca
e viviam na perfeita imagem de amor mútuo.”
“Ele melhorou tanto que depois se tornou quase um santo, não foi, Jan?”,
comentou Joseph Poorgrass. “Se reafirmou tantas vezes de um jeito mais
sério e vivia dizendo ‘Amém’ quase tão alto quanto o sacristão e gostava de
copiar versos consoladores das lápides. Ele também costumava levar o prato
da coleta no cântico Let Your Light so Shine[9], de ser o padrinho de crianças
pobres nascidas fora do casamento e guardava uma caixa de esmolas debaixo
de sua mesa para dar a pessoas desprevenidas quando fizessem uma visita.
Sim, ele pegava os meninos carentes pelas orelhas se rissem na igreja até que
eles mal pudessem se aguentar de pé e fazer outras ações de piedade natural
para a santidade pretendida.”
“É, naquele tempo ele não pensava em mais nada do que nas coisas do
céu”, continuou Billy Smallbury. “Um dia, Parson Thirdly encontrou-o e
disse: ‘Bom dia, Mr. Everdene. Que dia agradável!’ ‘Amém’ disse Everdene,
bem distante, pensando apenas na religião quando via um vigário. Sim, ele
era muito cristão.”
“A filha dele não era uma criança nem um pouco bonita na época”, disse
Henery Fray. “Nunca pensaria que viraria uma beldade como ela é.”
“Espera-se que seu temperamento seja tão bom quanto o rosto dela.”
“Bem, sim, mas a lindeza não combina muito com o negócio e conosco.
Ah!”, Henery olhou para o buraco das cinzas e sorriu com muito
conhecimento irônico.
“Ele era”, disse Henery, indicando que a ironia devia acabar a certo
ponto. “Entre nós dois, homens, acredito que o homem logo contaria uma
mentira que domingos eram dias de trabalho, é o que acho.”
“Você deve ser um homem de muita idade, cervejeiro, para ter filhos
crescidos e adultos”, observou ele.
“Meu pai é tão velho que nem sei a idade dele, não é, pai?”, interrompeu
Jacob. “E ele também ficou terrivelmente corcunda de uns tempos para cá”,
continuou Jacob, observando a imagem do pai, que era um pouco mais
curvado do que ele mesmo. “Dá até para dizer que o pai é retorcido.”
“O pastor gostaria de ouvir sobre a história da sua vida, pai, não gostaria,
pastor?”
“Bem, não me importo com o ano em que nasci, mas talvez possa me
lembrar dos lugares que morei. Morei lá em Upper Longpuddle”, acenando
com a cabeça para o norte, “até os onze anos. Morei sete em Kingsbere”,
acenando com a cabeça para o leste, “onde aprendi a trabalhar com o malte.
Dali eu fui para Norcombe e trabalhei com malte lá por vinte e dois anos, e
por vinte e dois anos fiquei lá plantando e colhendo nabos. Ah, eu conheci
aquele velho lugar, Norcombe, anos antes de você existir, Seu Oak”, Oak
sorriu com confiança sincera. “Então trabalhei quatro anos com malte em
Durnover e quatro anos plantando nabos e fiquei quatorze vezes, onze meses
em Millpond St. Jude's”, acenando do nordeste para norte com a cabeça. “Old
Twills não me contrataria para mais onze meses de cada vez para me manter
oneroso para a paróquia se eu fosse incapaz. Fiquei três anos em Mellstock e
estou aqui há trinta e um anos, aqui em Candlemas. Isso dá quanto?”
“Ah, não, pai!”, disse Jacob. “Você plantou nabos no verão e trabalhou
com o malte no inverno dos mesmos anos e não devemos contar as duas
partes, pai.”
“Não se preocupe, amigo!”, disse Mark Clark. “Deve encarar isso com
menos preocupação, pastor, e sua hora chegará. Mas nós ficaríamos gratos se
você tocasse alguma coisa, se não estiver muito cansado.”
“Sim, então vou tocar”, disse Gabriel, puxando sua flauta e preparando-a.
“Não é um instrumento muito bom, vizinhos, mas do jeito que sei fazer,
vocês gostarão.”
Oak então começou “Jockey to the Fair” e tocou aquela melodia alegre
três vezes seguidas, acentuando as notas na terceira vez da forma mais
artística e animada, inclinando o corpo em pequenos tremores e batendo o pé
de acordo com o ritmo.
“Ele toca flauta muito bem, muito bem mesmo!”, disse um rapaz casado,
que não tinha nenhuma individualidade ao mencionar que era conhecido
como “o marido de Susan Tall.” Ele continuou: “Adoraria saber tocar flauta
tão bem assim.”
“Ah, posso imaginar a sua cara agora, pastor”, disse Henery Fray,
criticando Gabriel com olhos enevoados assim que ele entrou na segunda
música. “Sim, agora que o vejo tocando flauta sei que ele é o mesmo homem
que vi em Casterbridge, porque a boca dele estava estreita e os olhos fixos
como os de um estrangulado, bem como estão agora.”
“O que seria se não tivesse mudado, cervejeiro”, comentou uma voz com
o vigor natural da declaração de uma verdade notavelmente evidente. Veio de
um senhor que estava atrás, de quem o jeito ofensivo e rancoroso era menos
perceptíveis pela risada ocasional que ele incluiu às gargalhadas
generalizadas.
“Não toque mais, pastor”, pediu o marido de Susan Tall, o rapaz casado
que falou uma vez anteriormente. “Preciso ir embora e se tem música parece
que fico preso num arame. Se eu imaginar que depois que fui embora a
música continuou tocando, ficaria muito melancólico.”
“Novos senhores, novas regras, como diz o ditado, creio eu”, observou
Coggan.
“É, eu acredito... sim, sim!”, disse o marido de Susan Tall, com uma voz
que parecia mostrar como costumava receber as piadas sem se importar nem
um pouco com elas. O jovem então desejou lhes boa noite e saiu.
“Ela o enxotou e, para encurtar a história, ele teve que carregar de volta
cinco sacos juntos, com a promessa de que ela não o processaria. Bem, agora
que ele foi embora de vez, minha pergunta é, quem vai ser o administrador?”
A pergunta era tão profunda que Henery fora obrigado a beber da caneca
enorme até que seu fundo fosse distintamente visível. Antes que a colocasse
sobre a mesa, entrou o rapaz, o marido de Susan Tall, mais rapidamente
ainda.
“É além disso?”
“Não, nadinha!”, responderam eles, olhando bem para Laban Tall como
se quisessem encontrar as palavras antes que elas saíssem de sua garganta.
“Que noite de horrores!”, murmurou Joseph Poorgrass, agitando as mãos
espasmodicamente. “Ouvi o zunido das más notícias no meu ouvido
esquerdo!”
“Bem, Miss Everdene quer falar com cada um de nós antes de irmos
dormir. Com esse problema com o administrador e agora com a moça, a
patroa está quase louca.”
Todos eles correram estrada acima até a casa da fazenda, com exceção do
velho cervejeiro, a quem nem as notícias, nem o fogo, nem chuva nem
trovões o tirariam de sua cova. Assim, enquanto os passos dos outros
desapareciam, ele se sentou e continuou observando como sempre a fornalha
com olhos vermelhos e turvos.
“Amanhã de manhã, desejo que dois ou três de vocês busquem nas vilas
da redondeza se viram alguém como Fanny Robin. Façam isso discretamente,
ainda não há motivo para alarmar-se. Ela deve ter ido embora enquanto todos
estávamos no incêndio.”
“E quer dizer, Madame, me perdoe pelo que vou dizer, que uma moça
não iria se encontrar com um rapaz sem se arrumar”, disse Jacob, lembrando-
se de imagens de experiências do passado. “É verdade, ela não iria,
Madame.”
“Acho que ela tinha um pacote, mas não pude ver direito”, disse uma voz
feminina de outra janela, que parecia com a de Maryann. “Mas não tinha
nenhum rapaz perto. Ele mora em Casterbridge e acredito que seja um
soldado.”
“Muito bem; se ela não voltar amanhã, você poderia ir até lá para tentar
descobrir quem é esse homem e vê-lo. Sinto-me mais responsável do que
deveria se ela tivesse amigos ou parentes vivos. Espero que ela não esteja em
perigo com um homem desse tipo... e depois este caso desastroso do
administrador... mas não posso falar dele agora.”
Ele também pensou nos planos de buscar seus objetos, muitos deles
tirados dos livros de Norcombe. Sua biblioteca era composta por A Melhor
Companhia de um Jovem, O Manual do Ferrador, O Médico Veterinário,
Paraíso Perdido, O Peregrino, Robinson Crusoé, o Dicionário Ash e a
Aritmética de Walkingame[12] e com uma série limitada, era de onde ele
adquiriu mais informações seguras pela leitura cuidadosa e dedicada do que
muitos homens com oportunidades tiveram de suas vastas prateleiras
abarrotadas.
CAPÍTULO IX
A PROPRIEDADE—UM VISITANTE—
DESCONFIANÇA
“Por que Mrs. Coggan não vai até a porta?”, continuou Bathsheba.
“Ora... Mrs. Coggan está indo!”, disse Bathsheba, exalando seu alívio na
forma de um longo suspiro que ela soltou de seu peito por um minuto ou
mais.
“Vou ver, senhor”, disse Mrs. Coggan, e num minuto apareceu na sala.
“Meu Deus, que mundo perverso é este!”, continuou Mrs. Coggan (uma
mulher de olhar benevolente que tinha uma voz para cada tipo de observação
de acordo com a emoção envolvida; que podia virar uma panqueca ou torcer
um esfregão com precisão matemática pura e que, neste momento, mostrava
as mãos cobertas de fragmentos de massa e braços encrustados de farinha).
“Nunca me sujo até os cotovelos, Miss, para fazer um pudim, mas uma ou
duas coisas acontecem, ou é o meu nariz que começa a coçar e eu não
consigo ficar sem coçá-lo, ou alguém bate à porta. Mr. Boldwood quer vê-la,
Miss Everdene.”
Dizer que alguém não estava em casa dificilmente era natural nas
fazendas de Weatherbury, então Liddy sugeriu:
“Diga que está apavorada com a sujeira e que não pode descer.”
“Oh, muito bem”, disse a voz profunda com indiferença. “Tudo que eu
queria perguntar era se souberam alguma coisa de Fanny Robin.”
“Nada, senhor, mas devemos saber hoje à noite. William Smallbury foi
para Casterbridge, onde seu jovem admirador mora, como se imagina, e os
outros homens estão procurando por toda parte.”
“Casado?”
“Não, Miss.”
“Oh, porque, como ela não tinha amigos na infância, ele a levou para a
escola e para morar com seu tio. Ele é mesmo um homem muito bom, mas
oh, Senhor!”
“O que foi?”
“Ele disse: ‘aonde vai, rapazinho?’ e eu falei: ‘ver o que Miss Everdene
quer”, e ele perguntou: ‘Ela é uma mulher velha, não é, meu rapaz?”, e eu
respondi: ‘É.’”
“Ah, patroa, devia mesmo! Mas como não quero nenhum pobre e os ricos
não me querem, fico como um pelicano na natureza!”
“Um homem quis uma vez”, disse ela, como se tivesse muita experiência,
e a imagem de Gabriel Oak como fazendeiro apareceu diante dela.
“Parece tão bom!”, disse Liddy, com fortes traços de estar fantasiando. “E
você não o quis?”
“E ainda gosta?”
“Claro que não. Que passos são estes que estou escutando?”
Liddy chegou a uma janela traseira e olhou para o quintal. Estava ficando
escuro e as primeiras sombras noturnas apareciam, dando ao local um aspecto
lúgubre. Um grupo de pessoas se aproximava da porta dos fundos. O bando
inteiro avançava decididamente, como as criaturas impressionantes
conhecidas como cardume de salpas, que, distintamente organizadas em
outras circunstâncias, tinha um desejo comum para toda a família. Alguns
estavam, como de costume, com aventais de algodão grosso, brancos como a
neve, e outros trajavam guarda-pós de um linho marrom desbotado, marcados
nos pulsos, peito, costas e mangas com bordados casa-de-abelha. Duas ou
três mulheres com botas vinham atrás.
Meia hora mais tarde, Bathsheba, arrumada e seguida por Liddy, entrou pela
parte superior do antigo salão para descobrir que seus homens haviam todos
se juntado num banco na extremidade inferior. Ela se sentou à mesa e abriu o
livro de ponto, com uma caneta na mão e um saco de dinheiro de lona ao seu
lado. Dele, derramou uma pequena montanha de moedas. Liddy apoiou-se no
cotovelo e começou a costurar, pausando por vezes e olhando ao redor ou,
com ar de alguém privilegiado, pegava uma moeda de meio xelim que estava
à sua frente e observava-a meramente como uma obra de arte, enquanto
controlava energicamente seu semblante para não expressar nenhum desejo
de possuí-la.
“Nada, Madame.”
“Sim, Madame, mas ainda não voltou. Prometeu que estaria de volta às
seis.”
“Sim, senhor, quer dizer, senhora”, disse a pessoa citada. “Sou o próprio
Poorgrass.”
“Nada a meu ver. Para as outras pessoas... bem, não sei o que eles
pensam.”
“Noventa e nove centavos, e meio centavo quando fica ruim, senhor, quer
dizer, Madame.”
“Correto. Aqui estão dez xelins a mais como um presentinho, já que sou
novata.”
“Você disse Matthew Mark? Fale alto, não vou machucá-lo”, perguntou a
jovem fazendeira com bondade.
“Aqui está, e dez xelins. Agora o próximo. Andrew Randle, soube que
você é novo. Por que saiu da última fazenda?”
“Ele é gago, dona”, disse Henery Fray em voz baixa, “e foi mandado
embora porque a única vez que conseguiu falar direito disse que era dono de
si e outras maldades para o fazendeiro. Ele pragueja, dona, tão bem quanto
qualquer um de nós, mas não consegue falar normalmente para salvar a
própria pele.”
“O que fazem?”
“Sente-se.”
“Quem, dona?”
“Sente-se.”
“Sim, ele ficará, Madame!”, falou outra vez a língua afiada da mulher de
Laban.
“Bem, suponho que ele mesmo possa responder.”
“Ah, meu Deus, não pode, Madame! Ele é como uma ferramenta. É bom,
nada mais do que um pobre desengonçado”, respondeu a mulher.
“Acho que já terminei com vocês”, disse Bathsheba fechando seu livro e
jogando para trás uma mecha de cabelo. “William Smallbury voltou?”
“Não, Madame.”
“O novo pastor vai precisar de alguém com ele”, sugeriu Henery Fray,
tentando tornar-se importante outra vez aproximando-se da cadeira dela.
“É muito triste.”
“Muito bem, então Cainy Ball ajudará o pastor. E você sabe bem de seus
deveres? Refiro-me a você, Gabriel Oak.
“Eu devia ter vindo mais cedo, Miss”, disse ele, “se não fosse pelo
tempo.” Ele então caminhou severamente e olhando para baixo, percebia-se
que suas botas estavam cobertas de neve.
“Não, Madame, mas foram para lugares que eles possam ter ligações.
Então falei para mim mesmo, o rapaz da Fanny era do regimento e ela foi
atrás dele. Assim, Madame, está tudo esclarecido.”
“Não, ninguém sabia. Acho que era de um nível mais alto do que um
soldado raso.”
“Bem, parece que não saberemos de mais nada esta noite de maneira
nenhuma”, concluiu Bathsheba. “Mas é melhor que um de vocês corra até o
fazendeiro Boldwood e o informe disso.”
Era uma noite quando o sofrimento se tornava mais claro sem causar
nenhuma sensação de contrassenso. Quando, com pessoas impressionáveis, o
amor torna-se solícito, a esperança afunda em receio e a fé em esperança.
Quando o exercício da memória não levanta sentimentos de arrependimento
de oportunidades para uma ambição que já passou, e a antecipação não incita
a ousadia.
A paisagem era uma rua ladeada à esquerda por um rio, atrás do qual
erguia-se um muro alto. À direita ficava uma extensão de terra, parcialmente
um prado e parcialmente um pântano, alcançando, nesta margem remota um
planalto ondular.
Por volta deste momento, a neve diminuiu. Havia dez flocos onde caíram
vinte. Não muito depois, uma forma moveu-se na beira do rio.
Pelo contorno sob o fundo sem cores, um observador atento veria que era
pequeno. Era tudo que possivelmente seria descoberto, embora parecesse
humano.
A silhueta caminhou vagarosamente, mas sem muito esforço pela neve,
porém subitamente não tinha mais do que duas polegadas de profundidade.
Naquele momento, algumas palavras foram ditas em voz alta:
Entre cada fala, a pequena figura avançava seis jardas. Era evidente agora
que as janelas no alto do muro estavam sendo contadas. A palavra “cinco”
representava a quinta janela da ponta do muro.
A pessoa parou ali e ficou ainda menor. Então uma porção de neve voou
sobre o rio na direção da quinta janela. Chocou-se contra o muro a muitas
jardas de seu alvo. O ataque foi ideia de um homem e a execução, de uma
mulher. Nenhum homem que tivesse visto um pássaro, um coelho ou um
esquilo na infância poderia possivelmente ter jogado com tanta imbecilidade
como foi mostrado aqui.
Outra tentativa, depois outra, até que uma extensão do muro ficara
coberto de bolas de neve. Finalmente, um fragmento acertou a quinta janela.
A voz era masculina e não tinha tom de surpresa. Por ser o muro alto de
um quartel, e casamentos eram vistos com desaprovação pelo exército,
encontros amorosos e comunicações eram provavelmente feitos à noite perto
do rio.
Esta pessoa parecia muito com uma mera sombra no chão e o outro
falante era como uma parte do prédio, como que se o muro estivesse
conversando com a neve.
Havia algo na voz da mulher que não era o de uma esposa, e um modo no
homem que raramente é de um marido. O diálogo continuou:
“Eu não a esperava hoje à noite. De fato, não imaginava que viesse. Foi
por um milagre que me encontrou aqui. Estou no turno de amanhã.”
“Então não poderei vê-lo até lá!”, as palavras vinham num tom hesitante
de decepção.
“Estou surpreso.”
“O quê?”
“Claro que se lembra! Não fale assim. Isso me incomoda. Faz-me dizer o
que devia ser dito primeiro por você.”
“Minha residência pertence a St. Mary, mas a sua, não. Então deve ser
publicado nas duas.”
“Esta é a lei?”
“Sim. Oh Frank, tenho medo que você me esqueceu. Não, querido Frank,
prometa, eu o amo tanto. E você disse tantas vezes que se casaria comigo e...
e... eu... eu... eu...”
“Não chore! Foi uma bobagem. Se eu disse isso, é claro que vou.”
“Sim.”
“Amanhã?”
“Oh, como assim? Você disse que quase tinha quando deixou
Casterbridge.”
O salão baixo, porém amplo, sustentado por vigas e pilares e, mas tarde
dignamente chamado de Bolsa do Milho, possuía um amontoado de homens
exaltados, que conversavam entre si em duplas ou trios, com o interlocutor da
vez olhando de lado para o rosto do seu ouvinte, concentrado em seu
argumento com a contração de uma pálpebra durante o retorno. Um grupo
maior carregava galhos de freixo, usando-os como bengalas e também para
cutucar os porcos, ovelhas, vizinhos que estivessem de costas e coisas
paradas em geral, que pareciam precisar de tal tratamento no curso de suas
peregrinações. Durante as conversas, davam a suas bengalas uma grande
variedade de usos: pendurada nas costas, num arco entre as duas mãos,
apoiando-se contra o chão até que formassem um semicírculo, ou ainda eram
rapidamente guardadas debaixo de seus braços enquanto um saco de amostra
era aberto e um punhado de milho era despejado na palma da mão, o qual,
após a avaliação, era jogado no chão, uma série de eventos conhecida
perfeitamente por meia dúzia de aves da cidade espertas que, como sempre,
entravam furtivamente no prédio e esperavam a realização de suas
expectativas com o pescoço esticado e olhar enviesado.
Aqueles fazendeiros com quem ela não negociou (a maior parte deles)
não paravam de se perguntar: “Quem é ela?”, e a resposta era:
“Sim, é uma pena que seja tão teimosa”, disse o primeiro. “Mas devemos
nos orgulhar de tê-la aqui. Ela ilumina o velho lugar. É uma dama tão
formosa, e, no entanto, logo encontrará alguém.”
Pode-se dizer que homens casados de quarenta anos são geralmente ágeis
e generosos o bastante para lançar olhares para qualquer exemplar de beleza
moderada que conseguirem discernir. É como quem joga uíste por amor, a
consciência de certa imunidade, sob quaisquer circunstâncias, é a de ter que
pagar, portanto, torna-os excessivamente especulativos. Bathsheba estava
convencida que aquele homem impassível não era casado.
Quando havia terminado as negociações, ela foi até Liddy, que estava
esperando por ela do lado da carruagem amarela na qual vieram para a
cidade. O cavalo foi atrelado e elas partiram. Os pacotes de açúcar, de chá e
os tecidos de Bathsheba estavam guardados na parte de trás e, de uma
maneira indescritível expressavam, por suas cores, formatos e características,
que eram da jovem fazendeira e não mais dos donos da mercearia e da loja de
tecidos.
“Consegui, Liddy, e acabou. Não devo mais me importar, pois eles vão se
acostumar a me verem lá. Mas esta manhã foi pior do que me casar. Todos
me olhavam!”
“Eu sabia que ia ser assim”, disse Liddy. “Os homens são uma classe
terrível da sociedade ao olharem para alguém.”
“Mas havia um homem que tinha mais senso para desperdiçar seu tempo
comigo.” A informação foi colocada daquele jeito para que Liddy não
suspeitasse nem por um momento que sua patroa estava completamente
ofendida. “Um homem muito atraente”, continuou ela, “correto, acho que
tinha uns quarenta anos. Imagina quem possa ser?”
“Não faço ideia; além do mais, não faz diferença, uma vez que não tomou
o mínimo conhecimento de você mais do que do resto. Agora, se tivesse
reparado mais, teria muito mais importância.”
Liddy olhou.
“Dizem, mas não tenho certeza, que teve uma amarga decepção quando
era jovem e alegre. Dizem que uma mulher rompeu um compromisso com
ele.”
“As pessoas sempre dizem isso. Sabemos muito bem que raramente as
mulheres rompem compromissos com os homens. Eles é que nos desprezam.
Espero que ser tão reservado seja simplesmente da natureza dele.”
“Ainda assim, é mais romântico pensar que ele foi tratado com crueldade,
pobrezinho! Talvez, no final das contas, tenha sido mesmo!”
“Espero que sim. Oh, sim, Miss, foi! Sinto que foi.”
“Oh, meu Deus, não, Miss! Não posso pensar em algo entre os dois!”
“É o mais provável.”
“Bem, sim, então está bem. Estou convencida de que é o mais provável.
Eu juro, Miss, que este é o problema com ele.”
CAPÍTULO XIII
SORTES SANCTORUM[14]—O PRETENDENTE
“Já tentou descobrir, Miss, com quem se casar por meio da Bíblia e da
chave?”
“Bobagem, menina.”
“E faz o seu coração bater com medo. Alguns acreditam, outros não. Eu
acredito.”
“Muito bem, vamos tentar”, disse Bathsheba, saindo de seu lugar com
aquela total falta de consideração da consistência da qual pode ser tolerada
para com o dependente, e entrando no espírito de adivinhação de uma vez.
“Vá e pegue a chave da porta da frente.”
Liddy pegou-a.
“Gostaria que não fosse domingo”, disse ela ao retornar. “Talvez seja
errado.”
“O que é certo nos dias de semana é certo aos domingos”, replicou sua
patroa num tom que era a prova em si.
O versículo foi repetido; o livro foi virado; Bathsheba corou com culpa.
“Não virou a cabeça nenhuma vez para olhá-la durante todo o culto.”
“Oh não! Mas todo mundo estava reparando em você e era esquisito que
ele não. É o jeito dele. Rico e refinado, com que ele se importa?”
Era o único nome entre todos os possíveis errados que, naquele momento,
parecia para Bathsheba mais pertinente do que correto.
“Bem, não. É só o pequeno Teddy Coggan. Prometi algo a ele, e esta será
uma ótima surpresa. Liddy, pode me trazer? Está em minha escrivaninha, e
eu o enviarei de uma vez.”
‘A rosa é vermelha,
A violeta é azul,
O cravo é doce,
“Sim, será isso. Serve perfeitamente para uma criança de rosto gorducho
como ele”, disse Bathsheba. Ela escreveu as palavras com letra pequena,
porém legível, colocou num envelope e molhou sua caneta para escrever o
endereço.
“Que engraçado seria se isso fosse enviado para o tolo e velho Boldwood!
Como ele ficaria curioso!”, disse a irreprimível Liddy, levantando as
sobrancelhas e caindo numa terrível alegria à beira do temor ao pensar na
magnitude moral e social do homem contemplado.
“Agora acenda uma vela, Liddy. Qual selo devemos usar? Temos uma
cabeça de unicórnio, não é interessante. O que é este? Dois pombos? Não.
Deve ser algo extraordinário, não deve, Liddy? Eis aqui um com um lema.
Lembro-me que era engraçado, mas não consigo ler. Vamos experimentar
este. E se não der certo, veremos outro.”
“Case-se comigo.”
A lua brilhava naquela noite, e sua luz não era do tipo costumeiro. A
janela dele recebia apenas um reflexo pálido de seus raios naquela direção
invertida que a neve proporciona, vindo de cima e iluminando o teto dele de
um jeito nada natural, espalhando sombras em lugares estranhos e iluminando
onde costumava ficar escuro.
Então chegou o amanhecer. Todo o poder do céu claro não era igual ao de
um céu nublado do meio-dia, quando Boldwood levantou e se vestiu. Desceu
as escadas e foi em direção ao portão de um campo a leste, debruçando-se
sobre ele, onde parou e olhou ao redor.
“Acho que não é para você, senhor”, disse o homem ao ver a atitude de
Boldwood. “Embora não tenha um nome, acho que é para o seu pastor.”
Weatherbury Farm,
Próximo a Casterbridge.
“Ah, que engano! Não é para mim. Nem para meu pastor. É para o pastor
de Miss Everdene. É melhor levá-la para ele, Gabriel Oak, e diga-lhe que abri
por engano.”
Para Boldwood, agora não era mais simplesmente uma carta para outro
homem. Era uma oportunidade. Exibindo o rosto cheio de intenção, ele
entrou no campo nevado.
No buraco das cinzas havia uma pilha de batatas assando e uma pequena
panela de barro com pão tostado, chamado de “café” para o benefício de
quem quer que pudesse chegar, já que o Warren’s era um tipo de clube usado
como uma alternativa à hospedaria.
“Eu sempre falo, começamos bem o dia, daí vem um cão bravo à noite,”
era uma observação agora ao ouvir de repente se espalhando por dentro da
cervejaria pela porta, que acabara de ser aberta. A imagem de Henery Fray
avançou até a lareira, batendo a neve de suas botas quase na metade do
caminho. A fala e a entrada não pareceram nem um pouco um início abrupto
para o produtor, pois as apresentações eram frequentemente omitidas
naquelas redondezas, tanto das palavras como das ações, e tendo o produtor
permitido a mesma liberdade, não se apressou em responder. Picou um
pedaço de queijo com sua faca como um açougueiro faz com espetos.
“Ela vai se arrepender, com toda certeza, com toda certeza!”, disse ele.
“Benjy Pennyways não era um homem sincero ou um administrador honesto,
um grande traidor como o próprio Judas Iscariotes. Mas achar que consegue
continuar sozinha!”, balançou a cabeça três ou quatro vezes em silêncio. “De
jeito nenhum, nunca!”
“É verdade, Henery, tem razão, eu sei”, disse Joseph Poorgrass numa voz
de quem concorda plenamente e com um fino sorriso de pesar.
“Não faria mal a nenhum mortal ter o que ela tem debaixo de seu
chapéu”, disse Billy Smallburry, que acabara de entrar, mostrando seu único
dente na boca. “Ela fala direito e tenho certeza que ela tem um pouco de juízo
em algum lugar. Entendem o que eu quero dizer?”
“Não, não, não concordo com você”, disse Mark Clark. “Deus é perfeito
com respeito a isso.”
“Tem. Parece que as velharias do tio dela não eram suficientes. Ela
comprou tudo novo. Tem cadeiras pesadas para os mais fortes e leves e finas
para os mais magros. Relógios grandes como os de parede para ficar sobre o
aparador da lareira.”
A porta foi puxada de volta até que atingiu a parede e estremeceu de cima
a baixo com a batida. Mr. Oak apareceu na entrada com o rosto suado, tiras
de feno enroladas em volta de seus tornozelos para se proteger da neve, uma
tira de couro amarrada na cintura por fora de seu avental e com a aparência
da personificação universal de saúde e vigor. Quatro cordeiros pendurados
em seus ombros em atitudes embaraçosas. O cão George, o qual Gabriel
trouxera de Norcombe, solenemente o acompanhava.
“Muito difícil”, respondeu Oak. “Molhei-me duas vezes por dia, na chuva
ou na neve, nos últimos quinze dias. Cainy e eu não pregamos o olho esta
noite.”
“São sim. Os carneiros estão muito estranhos este ano. Não devemos
terminar até o Dia da Anunciação.”
“Oh, nem doente nem triste, pastor; mas também não estou mais jovem.”
“Sim, entendo.”
“É mesmo?”
“Se lembra do velho poço que ficava no meio da praça? Virou uma
bomba sólida de ferro com uma tina de pedra enorme, tudo terminado.”
“Meu Deus, meu Deus, como mudam os rostos das nações e o que
vivemos para ver hoje! Sim, está tudo igual por aqui. Estavam comentando
agora mesmo sobre as coisas esquisitas que a patroa tem feito.”
“O que estão falando sobre ela?”, perguntou Oak, virando-se rapidamente
e com interesse.
“Mark”, disse Gabriel seriamente, “preste atenção numa coisa! Pare com
essa brincadeira de beijos e abraços sobre Miss Everdene. Não permito que
faça isso. Entendeu?”
“Creio que andaram falando mal dela”, disse Oak, virando-se para Joseph
Poorgrass com um olhar muito severo.
“Não, não, nenhuma palavra, eu... é muito bom que ela não seja pior, foi
isso que eu disse...”
“Eu? Como? Você sabe que eu não faria mal nem a uma minhoca, não, a
nenhuma minhoca debaixo da terra”, respondeu Matthew Moon, parecendo
muito desconfortável.
O cão George olhou para cima logo depois da ameaça do pastor e mesmo
sem entender perfeitamente a linguagem, começou a uivar.
“Vamos, não leve isso tão a sério e sente-se, pastor!”, disse Henery, com
um calmo protesto da bondade cristã.
“Sim, claro que sim”, concordou Matthew Moon, com uma risada ansiosa
para Oak, mostrando como era simpático.
“E que sabe fazer relógios de sol e gravar nomes dos donos nas carroças
quase como numa placa de cobre, com lindos enfeites e traços longos. É
excelente ser tão inteligente, pastor. Joseph Poorgrass costumava gravar as
carroças do fazendeiro James Everdene antes que você chegasse, e nunca
entendi para que lado virar o J e o E, você conseguia, Joseph?”, Joseph
balançou a cabeça para dizer que absolutamente não conseguia. “Então ele os
escrevia do jeito errado, desse jeito, não era, Joseph?”, Matthew escreveu no
chão empoeirado com o cabo de seu chicote
“Sim, era mesmo”, disse Joseph humildemente. “Mas veja, não tive tanta
culpa assim, porque o J e o E são danados de lembrar qual lado é para trás e
para frente, e eu também sempre tive a memória fraca.”
“Bem, é, mas uma Providência feliz fez com que as coisas não piorassem
e fico grato. Para o pastor, tenho certeza que a patroa deve promovê-lo a
administrador por ser muito apropriado para isso.”
“Ouvi dizer que ela nem mesmo deixa que você fique com as peles dos
carneiros mortos”, recomeçou Joseph Poorgrass, com os olhos nas operações
de Oak com a melancolia necessária.
“Ah! Oak, achei que estaria aqui”, disse ele. “Encontrei a carroça do
correio há dez minutos e uma carta me foi entregue, a qual eu abri sem ler o
endereço. Creio que seja sua. Por favor, me desculpe pelo incidente.”
“Oh, sim, não tem a menor importância, Mr. Boldwood, nenhuma”, disse
Gabriel prontamente. Ele não tinha ninguém com quem se corresponder no
mundo, nem uma possível carta chegando para ele cujo conteúdo toda a
paróquia não pudesse folhear.
CARO AMIGO,
Não sei o seu nome, mas acho que estas poucas linhas chegarão até você,
pois escrevi para agradecê-lo pela sua bondade para comigo na noite em
que deixei Weatherbury de uma maneira precipitada. Eu também devolvo o
dinheiro que lhe devo, que espero que me desculpe por não guardá-lo como
presente. Tudo terminou bem. Estou feliz em saber que me casarei com o
rapaz que me corteja há algum tempo. Ele é o sargento Troy, dos Dragões da
Décima Primeira Cavalaria, e está agora aquartelado nesta cidade. Sei que
ele desaprovaria que eu recebesse alguma coisa que não fosse um
empréstimo, por ser um homem de muito respeito e alta honra — realmente,
de sangue nobre. Seria muito grata se mantivesse o conteúdo desta carta em
segredo por enquanto, caro amigo. Queremos surpreender Weatherbury ao
chegarmos como marido e mulher, embora eu core ao afirmar isso a alguém
que é quase um estranho. O sargento foi criado em Weatherbury. Mais uma
vez, obrigada por sua bondade.
Fanny Robin.
“Você a leu, Mr. Boldwood?”, perguntou Gabriel; “se não, é melhor que
leia. Sei que está interessado em Fanny Robin.”
“Fanny, pobre Fanny! O fim a que ela está tão confiante ainda não
aconteceu, ela deve se lembrar, e talvez nunca aconteça. Vejo que ela não deu
nenhum endereço.”
“Hum, temo que não seja do tipo para se esperar muito num caso como
este”, murmurou o fazendeiro, “apesar de que é um homem inteligente e
capaz de qualquer coisa. Ele também é fruto de um romance breve. A mãe
dele era uma governanta francesa e parece que existe uma ligação secreta
entre ela e o falecido Lord Severn. Era casada com um pobre médico e logo
em seguida seu filho nasceu. Enquanto o dinheiro vinha, tudo estava bem.
Infelizmente para o menino, seus melhores amigos morreram e ele então
encontrou um lugar como segundo ajudante de um advogado em
Casterbridge. Ficou algum tempo lá e deve ter se esforçado para conseguir
uma posição digna de algum tipo se não tivesse se alistado no exército numa
loucura. Duvido muito que a pequena Fanny nos surpreenda da forma como
diz, duvido muito. Que menina tola, muito tola!”
“Cain Ball”, disse Oak severamente, “por que corre assim e perde o
fôlego? Estou sempre lhe dizendo isso.”
“Oh, eu... preciso de ar... peguei... o caminho errado, por favor, Mr. Oak,
que me fez tossir... cof cof!”
“Corri para lhe contar”, disse o aprendiz de pastor, apoiando sua estrutura
jovem e exausta contra o batente, “que você deve vir logo. Mais duas ovelhas
tiveram gêmeos, este é o problema, pastor Oak.”
“Gostaria de lhe perguntar, Oak”, disse ele com descuido forçado, “se
sabe de quem é esta letra.”
“É de Miss Everdene.”
O sacerdote, que ainda não havia tirado sua sobrepeliz, percebeu o recém-
chegado e seguiu-o até o local da comunhão. Sussurrou com o soldado e
depois acenou para o sacristão, que por sua vez sussurrou com uma senhora,
aparentemente a esposa dele, e também subiram os degraus da capela.
O jovem sargento ficou parado com a rigidez anormal dos velhos pilares
à sua volta. Olhava para sudoeste e estava em silêncio.
“Gostaria de saber onde está a mulher!”, sussurrou uma voz outra vez.
Então teve início uma leve movimentação de pés e uma tosse forçada, o
que trai a espera nervosa. Por fim, houve uma risada abafada. Mas o soldado
nem se mexeu. Ali ele ficou, olhando para sudoeste, ereto como uma coluna,
com o quepe na mão.
“Bem?”, disse ele, num nervoso dominado, olhando fixamente para ela.
“Oh, Frank, cometi um erro! Achei que a igreja com a torre fosse a de
Todos os Santos e fiquei na porta até as onze e meia, como você disse.
Esperei até quinze para o meio-dia e descobri então que estava na de Todas as
Almas. Mas não estou muito assustada, porque pensei que poderia ser
amanhã também.”
“Sua tola, você me fez de bobo! Mas não diga mais nada.”
“Amanhã!”, e ele deu uma gargalhada rouca. “Garanto que não passarei
por isso de novo por algum tempo!”
“Mas no fim das contas”, ela censurou com voz trêmula, “nem foi um
erro tão terrível! Então, Frank querido, quando será?”
“Ah, quando? Só Deus sabe!”, disse ele com discreta ironia e afastou-se
dela rapidamente.
CAPÍTULO XVII
NO MERCADO
Ela era realmente linda? Ele não tinha certeza de que sua opinião era
verdadeira. Disse furtivamente a um vizinho:
“Oh, sim. Todos ficaram impressionados quando ela veio aqui pela
primeira vez, se não se lembra. Uma moça realmente muito bela.”
Por ser uma mulher com um pouco de bom senso para raciocinar sobre
assuntos nos quais seu coração não estava envolvido, Bathsheba se
arrependia verdadeiramente que uma loucura, que cabia tanto a Liddy quanto
a ela mesma, mas que nunca deveria ter sido feita, pois havia perturbando a
paz de um homem que ela tanto respeitava para brincar deliberadamente.
Sua casa ficava afastada da estrada e os estábulos, que são para uma
fazenda o que uma lareira é para uma sala, ficavam na parte de trás
escondidos entre arbustos de louro. Para dentro da porta azul entreaberta,
podia-se ver naquele momento as costas e caudas de meia dúzia de cavalos
aquecidos e satisfeitos em suas baias. Como se podia ver, apresentavam
alterações de ruões[16] e baios como um arco mourisco, com as caudas
formando uma linha vertical no centro de cada um. Acima deles e invisíveis
para quem visse pela luz do lado de fora, suas bocas podiam ser ouvidas
mantendo o calor e a robustez com bocados de aveia e feno. A imagem
inquieta e obscura de um potro vagava por uma baia ao fundo, enquanto a
mastigação constante daqueles que estavam comendo era ocasionalmente
modificada pelo barulho de uma corda ou pela batida de um casco.
Finalmente, Boldwood visitou-a. Ela não estava em casa. “Claro que não,”
murmurou ele. Ao contemplar Bathsheba como mulher, esqueceu-se dos
incidentes da posição dela como agricultora — por ser uma fazendeira de
certa importância, como ele próprio, os locais prováveis onde ela poderia
estar, nesta época do ano, eram ao ar livre. Este e outros enganos cometidos
por Boldwood eram naturais de seu estado de espírito e ainda mais naturais
dadas às circunstâncias. A grande ajuda da idealização do amor estava ali
presente: observá-la ocasionalmente à distância e a falta de interação social
com ela, a familiaridade visual e a estranheza verbal. Os menores elementos
humanos eram mantidos fora da visão. As trivialidades que entram tão
amplamente em todas as vidas e atos terrenos eram disfarçadas pelo acidente
do amante e da amada que não se encontravam, e havia um pensamento
dificilmente levantado por Boldwood que ela tivesse tristes realidades
domésticas, ou que, como todas as outras, tivesse momentos banais, os quais,
sendo menos vista seria mais lindamente lembrada. Assim, um leve tipo de
apoteose ocupou seus pensamentos enquanto ela ainda vivia e respirava no
mesmo horizonte que ele, uma criatura problemática.
Era fim de maio quando o fazendeiro determinou que não seria mais
rejeitado por banalidades ou distraído pelo suspense. Àquela altura ele já
havia se acostumado a estar apaixonado. A paixão agora o surpreendia menos
até mesmo quando o torturava mais e sentia-se adequado à situação. Ao
perguntar por ela na casa dela, disseram-lhe que ela estava dando banho nos
carneiros, e ele foi vê-la.
“Bom dia.”
“Minha vida é um fardo sem você”, exclamou ele em voz baixa. “Eu a
quero, quero que me deixe dizer que a amo muitas vezes.”
“Acho e espero que goste de mim o bastante para ouvir o que tenho a
dizer.”
“O cartão do Dia dos Namorados de novo! Ai, aquele cartão!”, disse ela a
si mesma, mas nenhuma palavra a ele.
“Se pode me amar, diga-me, Miss Everdene. Se não, não diga que não!”
“Mr. Boldwood, é doloroso ter que lhe dizer que estou surpresa e que
assim não sei como responder com propriedade e respeito. Posso apenas
expressar o meu sentimento, a minha intenção, quero dizer, que acredito que
não posso me casar com você por respeitá-lo muito. Não estou à altura da sua
dignidade, senhor.”
“Mas, Miss Everdene!”
“Eu... não... sei que nunca devia ter sonhado em enviar-lhe aquele cartão.
Perdoe-me, senhor, foi uma brincadeira maldosa que nenhuma mulher que se
respeite pelo menos um pouco deveria ter feito. Se ao menos puder perdoar
minha falta de consideração, prometo que nunca...”
“Não, não, não. Não diga que foi falta de consideração! Faz-me pensar
que foi algo mais, um tipo de instinto profético, o início de um sentimento de
que gostava de mim. Você me tortura ao me dizer que foi feito sem
consideração. Nunca pensei que fosse isso e não posso aguentar. Ah! Queria
saber como conquistá-la, mas não consigo, apenas posso perguntar se me
admira. Se não, e não é verdade que me procurou sem pensar em mim como
penso em você, não posso dizer mais nada.”
“Não estou apaixonada por você, Mr. Boldwood, posso certamente lhe
dizer.” Deixou que um leve sorriso aparecesse pela primeira vez em seu rosto
sério ao dizer isso e uma fileira branca de dentes superiores e lábios bem
desenhados, já percebidos, sugeriam uma ideia de crueldade, a qual foi
imediatamente contradita por olhos amáveis.
“Não diga isso! Não! Não aguento pensar que se sente assim e eu não
sinto nada. E tenho medo que nos vejam, Mr. Boldwood. Vamos deixar este
assunto de lado por enquanto? Não consigo pensar calmamente. Não sabia
que me diria isso. Oh, fui má ao fazê-lo sofrer tanto!” Ela estava assustada e
também inquieta com a veemência dele.
“Diga então que não recusa totalmente. Não recusa por completo, não é?”
“Sim.”
“E esperar conquistá-la?”
E então ela se virou. Boldwood olhou para o chão e ficou parado como
quem não sabia onde estava. A realidade então retornou a ele como a dor de
uma ferida num momento de euforia que a encobre, e ele também se foi.
CAPÍTULO XX
PERPLEXIDADE — O AMOLAR DAS
TOSQUIADEIRAS — UMA DISPUTA
Ele é tão abnegado e bom para me oferecer tudo que sempre sonhei”,
refletiu Bathsheba.
Bathsheba, por não estar nem um pouco apaixonada por ele, podia assim
analisar friamente a proposta dele. Era daquelas que muitas mulheres na
vizinhança em condições como a dela aceitariam com entusiasmo e
divulgariam com orgulho. De todos os pontos de vista, do político ao
passional, era desejável que ela, uma moça solitária, devesse se casar, e se
casar com este homem sério, rico e respeitado. Morava perto dela, sua
situação era suficiente, suas qualidades eram mais do que as desejáveis. Se
ela tivesse sentido, e não sentiu, qualquer desejo pelo fato de estar casada
abstratamente, não poderia tê-lo rejeitado com sensatez por ser uma mulher
que costumava apelar para sua compreensão para fugir de seus caprichos.
Boldwood não tinha defeitos para o matrimônio: ela o estimava e gostava
dele, mas ainda assim, não o queria. Parecia que os homens comuns arranjam
esposas porque a possessão não é possível fora do casamento, e que as
mulheres comuns aceitam os maridos porque o matrimônio não é possível
sem possessão. Com objetivos totalmente diferentes, o método é o mesmo em
ambos os lados. Além do mais, a posição de Bathsheba como senhora
absoluta de uma fazenda e de uma casa era nova, e a novidade ainda não
havia começado a desgastar-se.
Mas uma inquietação tomou conta dela que, de alguma forma era a seu
favor, mas esta atingia a poucas pessoas. Além dos motivos mencionados
com os quais ela combateu suas objeções, tinha a forte sensação que, sendo
ela quem começou o jogo, devia aceitar as consequências com honestidade.
Ainda assim restava a relutância. Ao mesmo tempo em que pensava que não
casar-se com Baldwood seria falta de generosidade, não podia fazer aquilo
para salvar sua vida.
“Já está bom”, exclamou Bathsheba. “Solte minhas mãos. Não as quero
presas! Vou girar a manivela.”
“O que disseram?”
“Foi o que achei pelo olhar deles! Ora, não foi nada demais. A maior
bobagem que podia ser dita, e quero que você desminta! Foi para isso que
vim aqui.”
“Eu disse que queria que você apenas mencionasse que não é verdade que
me casarei com ele”, murmurou ela com leve declínio em sua segurança.
“Posso dizer isso a eles se desejar, Miss Everdene. Assim como poderia
dar uma opinião sobre o que você fez.”
Com Bathsheba, um ato apressado era um ato imprudente, mas como nem
sempre acontecia, tempo ganho era prudência garantida. Devia-se
acrescentar, no entanto, que o tempo era raramente ganho. Neste ponto, a
simples opinião da paróquia sobre ela e sobre o que ela fazia, tinham a
mesma importância, pois era a dela mesma e a de Gabriel Oak. E a
honestidade declarada do caráter dele era tanta sobre qualquer assunto,
mesmo que sobre ela amar ou se casar com outro homem, o mesmo
desinteresse de opinião podia ser calculado e perguntado. Totalmente
convencido da impossibilidade de ser o escolhido, tomou a firme decisão de
não prejudicar mais ninguém. Esta é a virtude mais estoica de quem ama,
assim como a falta dela é o seu pecado mais perdoável. Sabendo que ele
responderia sinceramente, ela perguntou, conhecendo como aquele assunto
seria doloroso. Assim é o egoísmo de algumas lindas mulheres. Talvez fosse
alguma desculpa para a honestidade torturante dela em vantagem própria por
não ter absolutamente nenhum outro julgamento ao alcance.
“Talvez não goste da rispidez de como a repreendo, pois sei que sou
ríspido, mas achei que lhe faria bem.”
“Que bom que não se importou com isso, pois disse honestamente e com
um significado muito sério.”
“Devo lhe perguntar, creio eu, onde em especial sou inadequada. Talvez
por não me casar com você!”
“Ou de desejar isso, imagino”, continuou ela e era claro que esperava
uma negação hesitante daquela suposição.
Seja o que for que Gabriel sentiu, apenas repetiu friamente as palavras
dela:
Uma mulher pode ser tratada com a amargura que lhe é doce e com a
rispidez que não lhe é ofensiva. Bathsheba teria se submetido a qualquer
castigo por seu desprezo se Gabriel tivesse protestado que a amava ao mesmo
tempo. A impetuosidade da paixão não correspondida é tolerável, mesmo se
ela fere e amaldiçoa — existe um triunfo na humilhação e um carinho no
conflito. Era o que ela estava esperando e não encontrou. Receber uma lição,
pois quem ensina a viu na luz fria da manhã de uma desilusão aberta era
irritante. Ele também não havia terminado. Continuou com voz mais severa:
Pode ter sido uma peculiaridade, de forma alguma aquilo era um fato.
Quando Bathsheba era influenciada por uma emoção de natureza terrena, seu
lábio inferior tremia, mas quando era uma emoção refinada, era o superior
que tremia. Naquele momento, foi o inferior que tremeu.
“Vá imediatamente, então, pelo amor de Deus!”, bradou ela, com os olhos
buscando pelos dele, mas sem encontrá-los. “Não me deixe ver seu rosto
nunca mais.”
“Já chega, já chega! Ah, seus tolos!”, gritou ela, atirando a sombrinha e o
livro de orações no passeio e correndo pela direção que ele levava. “Vieram
até mim e não foram tirá-las de lá de uma vez! Oh, seus imbecis inúteis!”
“Não, Madame. Nem nós, nem a senhora. Tem que ser feito no ponto
certo. Se pegar uma polegada à direita ou à esquerda, pode esfaquear a ovelha
e matá-la. Nem mesmo um pastor consegue fazer isso, como é a regra.”
“Como ousam falar desse homem na minha presença?”, disse ela, irritada.
“Já lhes disse para nunca o mencionarem se quiserem ficar comigo. Ah!”,
continuou ela, animando-se: “O fazendeiro Boldwood sabe?”
“Ah, não, Madame”, falou Matthew. “Dois dos cordeiros dele comeram
ervilhacas outro dia e estavam como estes aqui. Ele mandou um homem a
cavalo para buscar Gabriel e ele os salvou. O fazendeiro Boldwood tem a
ferramenta para fazer isso. É um tubo oco com uma ponta afiada dentro. Não
é mesmo, Joseph?”
“É, claro, é essa máquina”, concordou Henery Fray, pensativo, com uma
indiferença oriental de seu voo no tempo.
“Bem”, explodiu Bathsheba, “não fiquem aí com seus ‘és’ e ‘claros’ para
mim! Vão buscar alguém para curar as ovelhas imediatamente!”
Ela seguiu seus empregados pelo portão e levantou a mão para um deles.
Laban respondeu ao sinal dela.
Bathsheba assistia, assim como os outros. Tall ia a trotes largos pela trilha
para cavaleiros por Sixteen Acres, Sheeplands, Middle Field, The Flats,
Cappel’s Piece, quase sumindo, atravessou a ponte e subiu pelo vale por
Springmead e Whitepits no outro lado. A cabana para a qual Gabriel havia
ido antes de sua partida final da localidade era visível como um ponto branco
no morro oposto, de costas para pinheiros azuis. Bathsheba andava para cima
e para baixo. Os homens entraram no campo e empenharam-se em amenizar a
agonia das tolas criaturas esfregando as mãos nelas. Nada ajudava.
“Muito bem?”, falou Bathsheba, que não queria acreditar que seu
mandato de busca verbal poderia ter sido mal utilizado.
“Ele disse que para a fome não existe pão duro”, respondeu Laban.
“Ele disse que não pode vir a não ser que você peça educadamente e do
jeito certo, como toda mulher implorando um favor.”
“Oh, oh, essa é a resposta dele! Onde ele arranjou essa atitude? Quem sou
eu então para ser tratada assim? Devo implorar para um homem que me
implorou algo?
“Ah, é muita crueldade minha, sim, sim!”, murmurou ela. “E ele me leva
a fazer o que não quero! Tall, entre.”
Ela saiu quando ouviu o cavalo e olhou para cima. Uma figura montada
passou entre ela e o céu e foi em direção do campo das ovelhas e o cavaleiro
virou seu rosto ao recuar. Gabriel olhou para ela. Foi um momento em que os
olhos e a língua de uma mulher contam histórias distintas. Bathsheba parecia
cheia de gratidão e disse:
Uma reprovação tão carinhosa pelo atraso dele, mas a mensagem que ela
enviara podia perdoá-la por não elogiar sua prontidão naquele momento.
Quando o homem que fora motivado pelo amor havia terminado seu
trabalho, Bathsheba aproximou-se e olhou para seu rosto.
Podia-se dizer que o celeiro, que não se sabia se era de uma igreja ou de
um castelo, semelhante em idade e estilo, que o propósito que havia dedicado
sua construção original era o mesmo com o qual era ainda usado. Diferente e
superior dos típicos vestígios do medievalismo, o velho celeiro agregava
práticas que não sofriam mutilações nas mãos do tempo. Ali, pelo menos o
espírito dos antigos construtores era igual ao do espectador moderno. Diante
da edificação desgastada, observava-se seu uso atual, a mente lutava com sua
história, com uma sensação satisfeita de continuidade funcional completa, um
sentimento quase que de gratidão e de muito orgulho com a permanência da
ideia que o ergueu. O fato de que quatro séculos não haviam nem provado um
erro, inspirado qualquer aversão ao seu propósito ou levantado nenhuma
reação que o derrubasse, conferia a este simples esforço de pensamentos
antigos uma tranquilidade, se não grandeza, à qual uma reflexão curiosa
poderia perturbar sua equivalência eclesiástica e militar. De um modo, o
medievalismo e o modernismo tinham pontos em comum. As janelas em
formato de lança, os fechos das abóbadas e as chanfraduras das colunas
corroídas pelo tempo, o posicionamento dos eixos, o entalhe indistinto e
castanho das vigas, que não se referiam a nenhuma arte distinta de
fortificação ou credo religioso desgastado. A defesa e a salvação do corpo
pelo pão diário ainda é um estudo, uma religião e um desejo.
“Ela cora com o insulto”, murmurou Bathsheba, vendo a onda rosa que
subiu e se espalhou pelo pescoço da ovelha, onde foi deixado nua pelas
tesouras barulhentas, uma onda que era invejável por sua delicadeza por
muitas rainhas da sociedade, e seriam respeitadas por sua rapidez por
qualquer mulher no mundo.
A criatura limpa e lisa levantou-se de sua lã, perfeita como deve ter sido
Afrodite levantando-se da espuma. Parecia assustada e tímida com a perda de
suas vestes, que estavam no chão como uma nuvem macia, nunca antes
exposta, era branca como a neve e sem o mínimo defeito ou imperfeição.
“Cain Ball!”
Cainy agora corria com o pote de alcatrão. As iniciais “B.E” logo foram
estampadas na pele tosquiada e, com saltos simples, gemendo, juntou-se ao
rebanho despido do lado de fora. Então vinha Maryann, pegava as mechas
soltas de lã, enrolava e carregava para o fundo. Ela levaria, por três libras e
meia, o calor natural para o prazer de inverno de pessoas desconhecidas e
distantes, que, no entanto, nunca experimentariam o conforto superlativo que
vinha da lã como ela ali estava, nova e pura, antes da untuosidade de sua
natureza: seca, esticada e lavada, num estado vivo, sendo superior a qualquer
coisa de lã como o creme é superior ao leite misturado a água.
Ele passou por Bathsheba, que virou-se para cumprimentá-lo com perfeita
calma. Conversou com ela em tom baixo, que instintivamente baixou o seu e
sua voz até pegou a inflexão da dele. Estava longe de desejar parecer
misteriosamente conectada a ele, mas as mulheres de idade impressionável se
elevam na presença de alguém importante não apenas na escolha de suas
palavras, o que é aparente na rotina, mas mesmo em sombras de tom e
humor, quando há grande influência.
“Oh, Gabriel!”, exclamou ela com repreensão severa: “é tão rígido com
os outros, veja só o que você mesmo fez!”
Para alguém de fora, não havia muito que reclamar daquele comentário;
mas para Oak, que sabia que Bathsheba tinha plena consciência que ela
mesma fora a causa do ferimento na pobre ovelha, pois ferira o tosquiador
numa parte ainda mais vital, com um ferrão que o senso de tolerância da
inferioridade dele tanto para com ela quanto para com Boldwood não era
passível de ser curado. Entretanto, uma decisão masculina de admitir
corajosamente que não tinha mais nenhum interesse amoroso nela
ocasionalmente o ajudava a esconder um sentimento.
“Não sei por que uma mulher deve arranjar um marido quando é corajosa
o bastante para travar suas próprias batalhas e não querer um lar, deixando
outra mulher de fora. Mas deixe estar, porque é uma pena que tanto ele
quanto ela tenham problemas em duas casas.”
“Falei de minhas ideias para ela uma vez, assim como um pobre se atreve
a fazer a um rico. Vocês sabem como eu sou, vizinhos, e que não meço
minhas palavras quando meu orgulho ferve com o desdém.”
“É bastante aceitável.”
“Percebe a astúcia? Ora, era sobre ser o administrador; mas não expliquei
direito e ela não me entendeu, então deixei como estava... foi o que recebi!
Mas deixe ela se casar. Talvez já não seja sem tempo. Acho que o fazendeiro
Boldwood deve tê-la beijado atrás dos carriços outro dia, enquanto estávamos
banhando as ovelhas.”
“Porque ela me contou tudo que se passou”, informou Oak, com uma
sensação de hipocrisia de não ser como os outros tosadores naquela questão.
“É, e quando eu era moço, que tinha mais atenção, também era admirado
por quem me conhecia”, continuou o cervejeiro.
Para a ceia do dia da tosquia, uma grande mesa foi posta sobre o gramado ao
lado da casa, sendo que uma ponta dela fora apoiada no peitoril da ampla
janela do salão, com um ou dois pés de comprimento para dentro. Miss
Everdene sentou-se do lado de dentro, à cabeceira da mesa. Assim, não se
misturava com os homens.
“Gabriel”, disse ela, “pode mudar-se outra vez, por favor, e deixar que
Mr. Boldwood fique aí?”
O gentil fazendeiro estava vestido com estilo alegre, com um casaco novo
e colete branco, contrastando com seus costumeiros trajes cinza sóbrios. Em
seu íntimo, também, estava jovial e consequentemente falante de um jeito
extraordinário. Assim como ficou Bathsheba com a chegada dele, embora a
presença de Pennyways, o administrador demitido por roubo e que não fora
convidado, incomodasse um pouco sua tranquilidade.
Terminada a ceia, Coggan entoou por conta própria, sem aviso aos
ouvintes:
“É verdade, está mesmo; então devo encarar!... Olhem para minha cara e
vejam se o sangue está subindo, vizinhos!”
“Sempre tento não ficar vermelho quando os olhos de uma bela moça
estão em mim”, disse timidamente Joseph; “mas se é assim não tem como
evitar.”
“Agora a sua canção, Joseph, por favor”, pediu Bathsheba pela janela.
Espalhei...
Espalhei...
Todas na primavera,
“Ah, e teve aquela parte bonita das ‘sementes do amor’ que foi bem
pensada. Apesar de que ‘amor’ é uma nota muito alta quando é a voz de um
homem que a está quebrando. Próximo verso, mestre Poorgrass.”
Mas o cantor não pôde continuar. Bob Coggan foi mandado para casa por
sua falta de modos e a calma foi reestabelecida por Jacob Smallbury, que se
ofereceu para cantar uma canção tão grande e interminável como a que o
velho e respeitável bêbado Sileno apresentou numa ocasião parecida a
Cromis e Mnaliso e a outros companheiros de seu tempo.
“Sim, Miss.”
Não é necessário dizer que Gabriel não podia deixar de notar a atitude do
fazendeiro para com a anfitriã. Ainda assim, não havia nada de excepcional
nas ações dele além do que se referia ao momento em que se apresentara. Foi
quando todos estavam reparando como Boldwood a observava; quando eles a
olhavam, ele se virava; quando agradeciam ou a elogiavam, ele ficava em
silêncio; quando não prestavam atenção, ele murmurava um agradecimento.
O significado estava na diferença entre as ações, nenhuma com um sentido
próprio, e a necessidade de sentir ciúmes, o que incomoda os amantes, não
fez com que Oak subestimasse estes sinais.
“Estou certo de que não mereço nem metade dos elogios que me fazem”,
disse com raiva o virtuoso ladrão.
“Tentarei amá-lo”, ela estava dizendo, com voz trêmula muito diferente
de sua segurança costumeira. “E se eu tiver certeza que poderei ser uma boa
esposa, aí sim me casarei com você. Mas, Mr. Boldwood, hesitar é uma
questão importante para qualquer mulher honrável e não quero lhe prometer
nada solenemente esta noite. Prefiro pedir-lhe que espere algumas semanas
até que possa entender melhor a minha situação.”
“Mas você tem todos os motivos para que acreditar que depois...”
“Já basta. Não perguntarei mais. Não posso esperar pelas suas palavras
adoradas. Agora, Miss Everdene, boa noite!”
Bathsheba conhecia-o melhor agora. Ele havia aberto todo seu coração
para ela, a ponto de quase deixar em seus olhos a aparência triste de uma ave
imponente, sem as penas, que a tornavam grandes. Ela estava impressionada
pelos medos dele terem passado, ao passo em que ela lutava para amá-lo
como ele merecia e tentava não pensar se estava pecando em sua atitude em
postergar um fim que era eminente. Ouvir aquilo tudo foi terrível, pois,
afinal, não era uma situação alegre. A facilidade com a qual até mesmo as
mulheres mais tímidas, às vezes, desenvolvem um gosto especial pelo que é
temeroso quando combinado a um pequeno triunfo é maravilhoso.
CAPÍTULO XXIV
NA MESMA NOITE — NO TERRENO DE
ABETOS
Sua volta para casa era por um caminho entre o terreno de abetos
afilados, que foram plantados alguns anos antes para abrigar a propriedade do
vento norte. Por causa da densidade da folhagem interligada na parte de cima,
era um local escuro ao meio-dia, sombrio ao entardecer, escuro como a meia-
noite ao escurecer e negro como a nona praga do Egito à meia-noite.
Descrever o local era chamá-lo de um corredor vasto e formado naturalmente,
cujo teto, que era sustentado por pilares finos de madeira viva, parecia feito
de plumas. O solo era coberto por um carpete macio e castanho de folhas
mortas, em formato de agulhas, e pinhas emboloradas com moitas de grama
aqui e ali.
Essa parte do caminho era a mais delicada da ronda noturna, porém, antes
de começar, a sensação de perigo não estava vívida o bastante de modo que a
levasse a pedir a alguém para acompanhá-la. Passando tão
imperceptivelmente quanto o tempo, Bathsheba imaginou ter ouvido passos
vindos pelo lado oposto do caminho. Sem dúvida, era o som de passos.
Naquele instante, seus próprios passos pareciam macios como flocos de neve.
Ela se assegurou novamente relembrando que era um caminho público e, que
quem estivesse passando por lá, seria um morador de volta para casa. Apenas
lamentava que o encontro ocorresse no ponto mais escuro, embora estivesse
na porta da própria casa.
“Sim.”
“É uma mulher?”
“Sim.”
“Sou um homem.”
“Ah.”
“Isso que você traz é uma lanterna? Parece que sim”, perguntou o
homem.
“Sim.”
O homem com quem estava presa brilhava com bronze e escarlate. Era
um soldado. Sua súbita aparição fora para escuridão o que o som da trombeta
é para o silêncio. À penumbra, o genius loci[21] sempre presente, naquele
momento havia sido finalmente derrotado, não tanto pela luz da lanterna, mas
pelo que ela iluminou. O contraste desta revelação com as expectativas dela
de encontrar uma figura sinistra numa roupa escura era tão intenso que teve o
efeito de uma transformação mágica.
Ele também parou, e a lanterna, que estava no chão entre eles, por sua
porta aberta como um vaga-lume gigante, iluminava as agulhas dos pinheiros
e as longas folhas de grama molhadas. Os feixes de luz iluminaram-lhes os
rostos, lançando na plantação sombras gigantes do homem e da mulher,
distorcendo as formas escuras e misturando-as aos troncos das árvores até se
dissiparem.
Ele a olhou nos olhos quando ela os ergueu por um momento. Bathesheba
baixou-os outra vez porque aquele olhar era muito intenso para ser recebido
tão diretamente. No entanto, tinha notado que ele era jovem e magro, e usava
três divisas em sua manga.
“Obrigado pela visão de um rosto tão lindo!”, disse o jovem sargento sem
cerimônia.
“Não foi mostrado por querer”, retrucou ela duramente e com muita
dignidade, que era pouca, como se pudesse evitar a situação de prisioneira.
“Eu deveria ter apreciado, pelo menos gostaria, que nunca o tivesse
encontrado invadindo este lugar!” Ela puxou outra vez e as pregas de seu
vestido começaram a ceder numa luta minúscula.
“Mereço o castigo severo de suas palavras. Mas por que uma garota tão
bela e respeitosa tem tanta aversão ao sexo de seu pai?”
“Como, Bela, e arrastá-la comigo? Olhe para isto! Nunca vi uma coisa tão
emaranhada!”
“Tudo a seu tempo. Creio que logo estará terminado”, disse seu calmo
amigo.
“... me insultam!”
“Tudo para que eu possa ter o prazer de me desculpar com uma mulher
tão encantadora, o que faço imediatamente, Madame”, disse ele, curvando-se
numa reverência.
“Quem é você, então, que pode permitir que sua opinião seja
desprezada?”
“Não, Miss... não que eu saiba, mas o Sargento Troy pode estar mesmo
de licença em casa, embora não o tenha visto. Ele esteve aqui uma vez
quando o regimento esteve em Casterbridge.”
“Tinha sim.”
“Ah, Miss, tenho vergonha de falar... um homem alegre! Mas sei que ele
é muito esperto e tem boa posição, que tem muito dinheiro como um
proprietário de terras. Que jovem mais inteligente e elegante ele é! Tem o
sobrenome de um médico, o que já é muito bom, mas é filho de um conde!”
Afinal, como poderia uma moça de boa índole permanecer ofendida com
um homem assim? Há ocasiões em que jovens como Bathsheba são capazes
de aceitar um comportamento não-convencional. Quando querem receber
elogios, o que é frequente; quando querem ser dominadas, o que às vezes
acontece; e quando não querem o absurdo, o que é raro. Naquele instante, o
primeiro sentimento aflorou em Bathsheba com uma pitada do segundo.
Além disso, por acaso ou por um feitiço, quem os ministrou tornou-se
interessante de antemão por ser um estranho atraente que certamente já tivera
melhores momentos.
Ela não conseguia decidir com clareza se considerava que ele a tinha
insultado ou não.
“Foi a coisa mais esquisita que já aconteceu!”, ela por fim exclamou
consigo mesma em seu quarto. “E foi a coisa mais malvada que já fiz —
escapar daquele jeito de um homem tão educado e bondoso!”
Obviamente que ela não achava mais que o elogio audacioso que ele lhe
fez era um insulto. Foi uma omissão fatal que Boldwood nunca tivesse dito
que ela era linda.
CAPÍTULO XXV
A DESCRIÇÃO DO NOVO CONHECIDO
Nunca cruzou a linha que separa os vícios refinados dos vulgares que,
embora sua moral raramente fosse aplaudida, a censura de seus costumes era
normalmente atenuada com um sorriso. Este tratamento levou-o a tornar-se
uma espécie de quem reproduzia os galanteios de outros homens, mais para
seu próprio engrandecimento como um Corínto que pela vantagem moral de
seus ouvintes.
Troy fazia inúmeras atividades, mas por natureza ele era de menos
locomoção, mas vegetativa. Suas escolhas, por princípio ou direção, eram
exercidas em qualquer objeto que o acaso colocasse em seu caminho. Assim,
embora às vezes fosse um orador brilhante por sua espontaneidade, era bem
abaixo da média em suas ações por sua incapacidade para orientar o esforço
incipiente. Sua compreensão era rápida e sua força de caráter era notável,
mas, por incapacidade de reunir as duas qualidades, a compreensão se
comprometia nas trivialidades, enquanto aguardava pelo que a guiaria, e a
força se desperdiçava inutilmente pela compreensção despreocupada.
Troy viu Bathsheba assim que ela chegou ao campo e, fincando seu
rastelo no chão e colhendo sua safra, aproximou-se dela. Bathsheba corou um
pouco irritada e constrangida, e focou seus olhos bem como seus passos na
direção de seu caminho.
CAPÍTULO XXVI
CENA À BEIRA DO CAMPO DE FENO
Ah, Miss Everdene!”, disse o sargento, tocando seu chapéu diminuto. Como
eu ia saber que era com você que eu estava falando na outra noite! Mas se
tivesse pensado, a ‘Rainha da Bolsa de Milho’ (verdade seja dita, ontem ouvi
que era assim que é conhecida em Casterbridge), a ‘Rainha da Bolsa de
Milho’. Não poderia ser outra. Agora quero pedir perdão mil vezes por ter
deixado meus sentimentos me levarem a expressar-me de forma tão
exagerada com uma estranha. Saiba que não sou um estranho aqui. Sou o
Sargento Troy, como lhe disse, e ajudei seu tio nestes campos em inúmeras
ocasiões quando era pequeno. Hoje estou fazendo o mesmo por você.”
“Creio que devo agradecer-lhe por isso, Sargento Troy”, disse a Rainha
da Bolsa de Milho, num tom agradecido, mas indiferente.
“Na verdade, não, Miss Everdene”, observou ele. “Por que acharia que tal
coisa seria necessária?”
“Receio que machuquei minha língua de uma maneira que meu coração
jamais curará. Ah, estes tempos intolerantes! Que o azar siga um homem por
dizer honestamente a uma mulher que ela é bonita! Foi só o que eu disse,
deve reconhecer, e o mínimo que posso dizer é que reconheço.”
“E eu preferiria suas pragas aos beijos de qualquer outra mulher, por isso
ficarei aqui.”
“Realmente não há tal questão entre nós”, disse ela, virando-se. “Não
permito que estranhos sejam ousados e imprudentes, mesmo que seja para me
elogiar.”
“Há quanto tempo está aflito com este forte sentimento, então?”
“Espero que este senso de diferença que fala não pare nos rostos, mas se
estenda à moral também.”
“Dificilmente.”
“Por quê?”
“Disse que era bonita, e continuo dizendo, por D... é, sim! Se não for a
mais linda que já vi, que eu caia morto neste instante! Oh, meu...”
“Não, não! Não vou ouvi-lo, é tão profano!”, declarou ela, de um jeito tão
impaciente entre o incômodo de escutá-lo e o querer ouvir mais.
“Digo novamente que é uma mulher das mais fascinantes. Não existe
nada de extraordinário no que digo, existe? Tenho certeza que é evidente.
Miss Everdene, minha opinião pode ser muito exagerada para agradá-la e, de
fato, muito insignificante para convencê-la, mas é certamente honesta, então
por que não pode ser perdoada?”
“Porque... não é correta”, murmurou femininamente.
“Ah, que vergonha, que vergonha! Sou ainda pior por ter violado o
terceiro dos Dez Mandamentos do que você por violar o nono?”
“Não para você. Então digo com todo respeito que, se é, é devido à sua
modéstia, Miss Everdene. Mas é certo que todos já devem ter lhe dito o que
todos percebem? E deve acreditar no que dizem.”
“Bem, estou falando do meu rosto, como você faz”, continuou ela,
permitindo-se cair numa conversa que a intenção fora rigorosamente
proibida.
“Não, isto é, claro que já ouvi Liddy dizer que falam, mas...”, pausou ela.
“Estudou Francês?”
“Não, tentei, mas quando cheguei nos verbos, meu pai morreu”, ela disse
simplesmente.
“Eu estudo, quando tenho uma oportunidade, que ultimamente não tem
sido frequente. Minha mãe era parisiense, e eles têm um provérbio: Qui aime
bien, châtie bien, que significa: Quem ama também castiga. Entendeu?”
“Ah!”, rebateu Bathsheba, com um leve tremor em sua voz normalmente
fria. “Se lutar tão triunfantemente como fala, pode fazer um ferimento de
baioneta se tornar um prazer!” Foi então que a pobre Bathsheba percebeu o
erro que havia cometido e, se apressando para desfazer o erro, foi de mal a
pior. “Mas não pense por isso que eu admirei o que me disse.”
“Eu sei... sei perfeitamente”, disse Troy, com a firme convição em seu
rosto, ficando mal-humorado. “Quando uma dúzia de homens está disposta a
falar com você com ternura, e professam a admiração que merece sem incluir
o aviso que precisa, é claro que a minha pobre e mal-feita mistura de louvor e
censura não pode proporcionar muito prazer. Embora seja bobo, não sou tão
vaidoso a ponto de supor alguma coisa!”
“Bem, não pense mais nisso. Talvez você não tivesse a intenção de ser
rude ao me dizer o que pensava. Na verdade, acredito que não teve”, disse
gravemente àquela mulher perspicaz, com a inocência dolorida. “E agradeço
a sua ajuda no campo. Mas... mas não fale comigo daquele jeito de novo, ou
de qualquer outro modo, a menos que eu me dirija a você.”
“Nunca vai falar comigo porque não ficarei muito tempo aqui. Logo terei
que voltar para a miserável monotonia do quartel, e é possível que o nosso
regimento não demore muito para partir. E ainda por cima, você me priva do
único prazer que tenho nesta vida tão triste. Bem, talvez a generosidade não
possa ser a característica mais proeminente das mulheres.”
“Dentro de um mês.”
“Se você se preocupa tanto com uma coisa tão insignificante, não me
importo em fazê-lo”, respondeu ela em dúvida. “Mas não se preocupa em
falar comigo? Foi só o que disse... acho que foi só isso.”
“Isso é injusto... mas não vou repetir o comentário. Fico muito grato por
essa demonstração de amizade a qualquer custo para reparar o tom. É muito
importante para mim, Miss Everdene. Pode pensar que um homem é tolo de
se contentar com uma simples palavra... com um simples ‘bom dia’. Talvez
ele esteja certo... Eu não sei. Mas você nunca foi um homem que admira uma
mulher, e essa mulher é você.”
“Bem.”
“Então não sabe nada de como esta experiência é, e Deus queira que
nunca saiba!”
“Parece mesmo.”
“E sou.”
Bathsheba o observou com curiosidade dos pés à cabeça, até onde sua
visão alcançava, que não passava muito dos olhos dele.
“O que vê?”
“Um penacho e uma inscrição.”
“Uma coroa de cinco pontas e abaixo: Cedit amor rebus —‘O amor se
rende às circunstâncias’. É o lema dos Condes de Severn. Este relógio
pertencia ao falecido lorde, e foi dado ao marido da minha mãe, que era
médico, para que o usasse até que eu fosse maior de idade, quando me foi
dado. É a única herança que recebi. Este relógio já marcou momentos de
interesses do Império: cerimônias magestosas, encontros amorosos, viagens
explêndidas e sonos aristocráticos. Agora é seu.”
“Mas Sargento Troy, não posso aceitá-lo... não posso!”, esclamava ela,
com os olhos arregalados de admiração. “Um relógio de ouro! O que está
fazendo? Não seja tão dissimulado!”
“Fique com ele, por favor, Miss Everdene, fique com ele!”, disse o jovem
de instinto brejeiro. “O fato de possuí-lo terá muito mais valor do que
comigo. Um modelo mais plebeu atenderá minhas necessidades do mesmo
jeito e o prazer de saber para o coração de quem o meu velho bate, bem... não
vou falar disso. Está em mãos muito mais valiosas do que já esteve antes.”
“Mas eu realmente não posso ficar com ele!”, insistiu ela, a ponto de
explodir de tanta irritação. “Oh, como pode fazer tal coisa se tudo que disse
for verdade! Dar-me o relógio tão valioso de seu falecido pai! Não deveria
ser tão indiferente, Sargento Troy!”
“Eu amava muito o meu pai, mas a amo ainda mais. É por isso que posso
fazê-lo”, disse o sargento, com um tom de fidelidade tão delicado que não
havia nenhum fingimento. A beleza dela, que esteve imóvel enquanto ele a
elogiava com gracejos, naquele momento tornou-o honesto com suas fases
animadas; e mesmo que a seriedade dele fosse menor do que ela tinha
imaginado, era provavelmente maior do que ele próprio havia pensado.
Bathsheba não cabia em si com tanto espanto e disse, com certo tom
suspeito e sentimental:
“Como pode ser? Como pode ser que realmente se interessou por mim,
tão repentinamente? Viu-me tão pouco, posso não ser tão... tão bonita quanto
lhe pareço. Por favor, pegue-o. Por favor! Não posso e não ficarei com ele.
Acredite, sua generosidade é grande demais. Nunca lhe fiz nenhuma
delicadeza, por que tem que ser tão bom comigo?”
Ele tinha uma resposta artificial nos lábios, mas a dominou outra vez e
olhou para ela apreensivamente. A verdade era, como ela estava — nervosa,
irritada e sincera como o dia — que a beleza encantadora dela merecia os
epítetos que lhe tinham dado e ele agora estava muito surpreendido por sua
ousadia que outrora formulara de um jeito falso. Apenas disse
mecanicamente:
“Não, não! Não diga isso! Tenho motivos para reservas que não posso
explicar.”
“Claro que sim. Bem, não sei se vou! Oh, por que você apareceu para me
perturbar tanto?”
“Adeus.”
O sargento levou sua mão ao chapéu que lhe caía de lado na cabeça,
saudou-a e voltou para o grupo distante de trabalhadores.
Homens e mulheres ainda estavam ocupados com o feno. Até Liddy havia
saído de casa para ajudar, e Bathsheba decidiu reunir as abelhas sozinha, se
possível. Cobriu a caixa com ervas e mel, pegou uma escada, uma vassoura e
um cajado e armou-se com luvas de couro, um chapéu de palha e um longo
véu de gaze, outrora verde e agora desbotado com uma cor indefinida, e subiu
doze degraus. De repente, a menos de dez jardas, ouviu uma voz que
começava a ter o estranho poder de perturbá-la.
“Miss Everdene, deixe-me ajudá-la. Não deveria tentar fazer tal coisa
sozinha.”
“O quê? E vai colocá-las na caixa para mim?”, perguntou ela, que sempre
era desafiadora, de um jeito inseguro; embora, para uma moça tímida, aquilo
parecesse muito corajoso.
“Sim!”, respondeu Troy. “Claro que sim. Como está radiante hoje!” Troy
soltou rapidamente seu bastão e começou a subir a escada.
“Ah, sim. Devo colocar o véu e as luvas. Poderia, por favor, me mostrar
como ajustá-las apropriadamente?”
“E também deve usar o chapéu de aba larga, pois seu quepe não tem aba
para prender o véu, e elas chegarão ao seu rosto.”
A aparência dele era tão extraordinária que, mesmo nervosa, ela não
poderia deixar de rir. Era a remoção de mais uma estaca da fria barreira que o
mantinha afastado.
“Dou minha palavra”, disse Troy através do véu, “que segurar esta caixa
deixa o braço mais dolorido que uma semana de exercícios com a espada.”
Concluída a manobra, aproximou-se dela. “Teria a bondade de me soltar e me
tirar daqui? Eu estou sufocando nessa jaula de seda.”
“O quê?”
“Deixe-me pensar.”
“Não com uma bengala. Não quero ver com isso. Deve ser com uma
espada verdadeira.”
“Sim, eu sei, mas não tenho uma agora. Acho que posso conseguir uma à
noite.
“Bem, irei e não levarei Liddy. Mas ficarei por pouco tempo”, continuou
ela, “pouquíssimo tempo.”
“Ouvi pelo farfalhar das samambaias que era você antes que a visse”,
comentou ele, aproximando-se e dando-lhe a mão para ajudá-la ladeira
abaixo.
A cova tinha uma forma côncava e era natural, com cerca de trinta pés de
diâmetro na superfície e rasa o bastante de modo que permitia que o sol
tocasse sobre as cabeças de ambos. No seu centro, o céu nas alturas fundia-se
num horizonte circular de samambaias que quase atingiam o fundo da
depressão e então era interrompido abruptamente. O centro desta faixa verde
era coberto de uma camada de musgo grosso e esponjoso intercalado com
grama, tão macio que os pés quase afundavam nele.
"Eles são muito mortais. Agora serei mais interessante, e a deixarei ver
uma partida livre, dando todos os golpes e pontos, da infantaria e da
cavalaria, mais rápido que um relâmpago, e tão promiscuamente... com a
regra apenas o suficiente para regular o instinto e ainda assim não travá-lo.
Você é minha antagonista, com a diferença de guerra real, que vou sentir sua
falta por um fio de cabelo ou talvez dois. Não se hesite, seja o que fizermos."
“Oh!”, gritou ela aterrorizada, pressionando a mão sobre seu lado. “Você
me atravessou? Não, não o fez! O que quer que tenha feito!”
“Eu nem a toquei”, disse Troy calmamente. “Foi mero truque das mãos.
A espada passou por trás de você. Agora não está com medo, está? Porque se
estiver, não posso atuar. Dou minha palavra de que não só não a machucarei,
mas também nem a tocarei.”
“Não acho que estou com medo. Tem mesmo certeza que não me
machucará?”
“Plena certeza.”
Por trás dos feixes luminosos desta aurora militaris, ela podia ver a cor
do braço de Troy espalhada numa névoa escarlate sobre o espaço coberto por
seus movimentos, como o som metálico da corda de uma harpa, e por trás do
próprio Troy, de frente para ela quase o tempo todo. Às vezes, para mostrar
os golpes traseiros, virou-se parcialmente; seu olhar, no entanto, sempre
medindo profundamente sua amplitude e contornos e seus lábios bem
fechados sustentando o esforço. Em seguida, seus movimentos tornaram-se
mais lentos e ela podia vê-los individualmente. O assobio da espada havia
cessado e ele parou completamente.
“Esse cacho solto de cabelo precisa ser arrumado”, disse ele, antes que ela
se mexesse ou falasse. “Espere, vou fazer isso para você.”
“Nem tocarei em você, nem mesmo no seu cabelo. Vou apenas matar
aquela lagarta que está em você. Quieta!”
“Aqui está, veja”, disse o sargento, segurando a espada diante dos olhos
dela.
“Mas como pôde cortar um cacho do meu cabelo com uma espada que
não tem fio?”
“Não tem fio? Esta espada corta com uma navalha. Olhe.”
“Mas você disse antes de começar que não tinha corte e que não poderia
me cortar!”
Ela estremeceu.
“No entanto, você está perfeitamente sã. Minha espada nunca falha.” E
Troy guardou a arma na bainha.
“Preciso ir.”
Chegou ainda mais perto. Um minuto depois e ela viu sua forma escarlate
desaparecer em meio às samambaias quase que num piscar de olhos, como
uma espada rapidamente agitada.
Aquele intervalo de minuto trouxe o sangue para seu rosto, deixou-a num
ardor como se seus pés estivessem em chamas e aumentou a emoção num
compasso que inundou completamente seus pensamentos. O resultado sobre
ela foi impactante, assim como a Moisés num riacho no Monte Horebe; aqui,
um riacho de lágrimas. Sentia-se como quem cometeu um grande pecado.
A circunstância havia sido o mergulho suave da boca de Troy na dela. Ele
a tinha beijado.
CAPÍTULO XXIX
DETALHES DE UM PASSEIO AO
ESCURECER
É um amor nobre, embora talvez não promissor, que nem mesmo o medo
da aversão no peito da pessoa amada pode impedir a luta contra os seus erros.
Oak estava determinado a falar com sua patroa. Seu recurso se basearia no
que ele considerava o tratamento injusto com o fazendeiro Boldwood, agora
ausente de casa.
Houve uma oportunidade numa noite, quando ela havia saído para uma
curta caminhada por uma estrada entre os campos de milho vizinhos. Já
estava anoitecendo quando Oak, que não passou muito tempo no campo
naquele dia, tomou o mesmo caminho e a encontrou retornando muito
pensativa, como ele imaginava.
O trigo agora estava alto e a estrada era estreita; assim, o caminho era um
sulco entre as moitas curvadas nos dois lados. Duas pessoas não podiam
caminhar lado a lado sem danificar a safra e Oak ficou de lado para deixá-la
passar.
“Oh, é você, Gabriel?”, disse ela. “Também saiu para caminhar? Boa
noite.”
“Nunca os encontrei.”
“Ah, sim.”
Ela andava sem virar a cabeça, e por muitos passos nada mais foi ouvido
dela além do farfalhar de seu vestido contra as pesadas espigas de milho. Em
seguida, ela recomeçou rudemente:
“Não entendi muito bem o que quis dizer sobre Mr. Boldwood vir
naturalmente me encontrar.”
“Foi por causa do casamento que dizem que é provável que ocorra entre
você e ele, Miss. Perdoe a minha fala tão franca.”
“O que dizem não é verdade”, respondeu ela rapidamente. “Não existe
nenhum casamento provável entre nós.”
“Já que este assunto foi mencionado”, disse ela enfaticamente, “fico
contente com a oportunidade de esclarecer um erro que é muito comum e
muito estimulante. Definitivamente não prometi nada a Mr. Boldwood.
Nunca senti nada por ele. Eu o respeito, ele me pediu em casamento, mas não
lhe dei resposta alguma. Assim que ele retornar, vou fazê-lo, e a resposta será
que eu não consigo pensar em me casar com ele.”
“Muitos.”
“Outro dia, disseram que estava brincando com ele, e você quase provou
que não estava. Depois disseram que não, e você imediatamente começou a
mostrar que...”
“Estão, mas se enganam. Não brinco com ele, assim, não tenho nada com
ele.”
“Não, ninguém.”
“Então parece que o Sargento Troy não nos diz respeito aqui”, disparou
ela, obstinadamente. “Mas devo lhe dizer que o Sargento Troy é um homem
educado e respeitável para qualquer mulher. É de boa família.”
“Ter educação e uma família melhores do que tantos outros soldados não
prova que ele seja respeitável. Mostra que pode ser inferior.”
“Não consigo entender o que isso tem a ver com nossa conversa. Mr.
Troy não é inferior em absolutamente nada e a superioridade dele é uma
prova de respeito!”
“Acredito que ele não tenha consciência disso. E insisto, Miss, que não
tem nada a ver com ele. Ouça-me uma vez — somente desta vez! Não estou
dizendo que ele seja um homem tão mau como imaginei — rogo a Deus que
não seja. Mas desde que não sabemos exatamente o que ele é, por que não
considerar que ele possa ser mau, simplesmente para sua própria segurança?
Não confie nele, patroa; peço-lhe para não confiar tanto nele.”
“Gosto de soldados, mas não gosto dele”, disse ele, resistente. “Sua
competência pode tentá-lo a se perder e o que é alegria para os vizinhos é a
ruína para uma mulher. Quando ele tentar falar com você outra vez, por que
não se afastar com um curto ‘bom dia’; e quando o vir vindo por um
caminho, pegue outro. Quando ele disser algo engraçado, faça que não
entendeu e não sorria e não fale dele para aqueles que relatarão sua conversa
como ‘esse homem fantástico’ ou ‘aquele sargento... Qual é o nome dele?’
‘Aquele homem de uma família que se misturou com seus vizinhos.’ Não seja
grosseira com ele, mas seca, e assim se livre desse homem.”
“Digo e repito que não deve falar dele. Falar dele é muita ousadia!”,
exclamou ela desesperadamente. “Sei disso, que... ele é um homem
completamente consciencioso, às vezes um pouco rude, mas que sempre fala
o que pensa abertamente!”
“Oh!”
“Receio que ninguém o tenha visto por lá. Eu mesmo nunca vi.”
“O motivo”, esbravejou ela, “é que ele vai secretamente pela velha porta
da torre, logo que a missa começa, e se senta no fundo da galeria. Ele mesmo
me contou.”
“Você é tudo que há de mais importante para mim, até mais que a minha
vida!”, continuou ele. “Vamos, ouça-me! Sou seis anos mais velho do que
você e Mr. Boldwood é dez anos mais velho do que eu, então considere... Eu
imploro que considere antes que seja tarde demais, o quanto estaria segura
nas mãos dele!”
A alusão de Oak a seu próprio amor por ela diminuiu, em certa medida, a
raiva dela com a interferência dele, mas ela realmente não poderia perdoá-lo
por ter deixado que seu desejo de casar-se com ela ser encoberto pelo desejo
de fazer-lhe o bem mais do que pelo menosprezo dele por Troy.
“Quero que vá para qualquer outro lugar”, ordenou ela, com a palidez do
rosto invisível ao olhar sugerida pelas palavras trêmulas. “Não fique mais
nesta fazenda. Não o quero aqui. Peço-lhe, vá embora!”
“Fingir! Vá embora, senhor. Não vou ouvir seus sermões! Sou a dona
aqui.”
“Ir embora. Que outra loucura dirá a seguir? Trata-me como Dick, Tom e
Harry quando sabe que há pouco tempo a minha posição era tão boa quanta a
sua! Pela minha vida, Bathsheba, é muita audácia. Sabe também que não
posso ir sem deixar as coisas em risco. A menos que, na verdade, prometa ter
um administrador, um capataz ou coisa assim. Irei imediatamente se prometer
que o fará.”
“Vai me deixar em paz agora? Não peço como sua patroa. Peço como
uma mulher e espero que não seja tão descortês para recusar.”
Gabriel foi para casa pelo pátio da igreja. Ao passar pela torre, pensou no
que ela havia dito sobre o hábito virtuoso do sargento de entrar na igreja
despercebido no início da missa. Acreditando que a pequena porta da galeria
mencionada estivesse em desuso, subiu pela escadaria externa até o topo e
examinou-a. O brilho pálido ainda presente no céu a noroeste foi o suficiente
para mostrar que um ramo de hera havia subido pela parede do outro lado da
porta por mais de um pé de comprimento, delicadamente amarrando o painel
à ombreira de pedra. Era uma prova conclusiva de que a porta não era aberta
pelo menos desde que Troy voltara a Weatherbury.
CAPÍTULO XXX
ROSTO QUENTE E OLHOS ENCHARCADOS
Meia hora depois, Bathsheba entrou em sua própria casa. Seu rosto queimou
ao encontrar a luz das velas, o rubor e a excitação eram pouco menos que
crônicos para ela agora. As palavras de despedida de Troy, que a
acompanhara até a porta, ainda permaneciam em seus ouvidos. Despediu-se
dela por dois dias, que seriam, conforme afirmou, passados em Bath em visita
a alguns amigos. Ele também a beijou uma segunda vez.
É justo com Bathsheba expôr aqui um pouco de verdade, que não veio à
luz até muito tempo depois: a apresentação de Troy na estrada naquela noite
não foi combinada. Ele havia sugerido, ela proibira, e foi apenas pela
possibilidade de sua volta que dispensara Oak, temendo um encontro entre
eles naquele momento.
Ela agora afundou numa cadeira, furiosa e perturbada com todas estas
sequências novas e febris. Então levantou-se decidida e puxou sua
escrivaninha de uma mesa de canto.
Era impossível enviar a carta até o dia seguinte. Para acabar com sua
inquietação para tirá-la de suas mãos e, por assim dizer, definir o ato em
andamento ao mesmo tempo, levantou-se para levá-la para qualquer uma das
mulheres que estivessem na cozinha.
“Se ele se casar com ela, ela não vai mais cuidar da fazenda.”
“Será uma vida nobre, mas poderá trazer alguns problemas entre as
alegrias, é o que eu acho.”
Bathsheba era muito esperta para levar a sério o que seus servos diziam
sobre ela, mas havia muita redundância feminina do discurso para não se
interessar pelo que foi dito até que morresse naturalmente. Explodiu com
elas:
Houve uma pausa antes que alguém respondesse. Por fim, Liddy disse
francamente:
“Sabemos que sim, Miss”, concordou Liddy, “assim como todas nós.”
“Sim, Miss, mas você também. Ele é um patife e você está certa em odiá-
lo.”
“Ele não é um patife! Como você se atreve a dizer isso na minha frente!
Não tenho o direito de odiá-lo, nem você, nem ninguém. Mas eu sou uma
tola! O que me importa o que ele é? Você sabe que não é nada. Não gosto
dele. Não digo isso para defender o seu bom nome. Lembrem-se, se alguma
de vocês disser uma palavra contra ele será demitida imediatamente!”
Ela atirou a carta e subiu de volta para a sala de estar, com o coração
apertado e lágrimas nos olhos, seguida por Liddy.
“Oh, Miss!”, disse calmamente Liddy, olhando com tristeza para o rosto
de Bathsheba. “Lamento que a deixamos confusa! Reamente pensei que
gostasse dele, mas agora vejo que não.”
“As pessoas sempre dizem tais tolices, Miss. De agora em diante, vou
reponder: ‘Claro que uma dama como Miss Everdene não pode amá-lo’, vou
dizer isso assim, preto no branco.”
Bathsheba explodiu:
“Oh, Liddy, você é tão simplória! Não consegue entender enigmas? Não
pode ver? Você mesma é uma mulher?”
“Sim, você deve ser cega, Liddy!”, disse ela, com abandono imprudente e
tristeza. “Oh, eu o amo com muita loucura, sofrimento e agonia! Não tenha
medo de mim, embora talvez eu assuste o bastante qualquer mulher inocente.
Aproxime-se... mais perto”. Colocou os braços em volta do pescoço de
Liddy. “Preciso desabafar com alguém. Isso está me desgastando. Ainda não
me conhece o suficiente para ver através dessa minha triste negação? Oh,
Deus, que grande mentira foi isso! Meu Senhor e meu Deus, me perdoe. E
você não sabe que uma mulher que ama não pensa nada de falso testemunho
quando é equilibrada contra o seu amor? Por favor, saia da sala. Quero muito
ficar sozinha.”
“Liddy, venha cá. Jure solenemente que ele não é um homem leviano, que
tudo que dizem sobre ele é mentira!”
“Sua menina malvada! Como pode ter um coração tão cruel para repetir o
que dizem? Que insensível que você é... Mas verei se você ou qualquer outra
pessoa na vila ou na cidade se atreve a fazer uma coisa dessas!” Ela começou
a andar da lareira para porta e de volta.
“Não, Miss. Eu não... sei que não é verdade!”, disse Liddy, assustada com
veemência rara de Bathsheba .
“Suponho que você só concorda comigo desse jeito para me agradar. Mas
Liddy, ele não pode ser ruim como dizem. Você ouviu?”
“Não sei o que dizer, Miss”, disse Liddy começando a chorar. “Se eu
disser que não, você não acreditará em mim e se eu disser que sim, ficará
com raiva de mim!”
“Eu não acredito que ele seja tão mau como imaginam.”
“Ele não é mau, de forma alguma... Minha pobre vida e coração, como
sou fraca!”, gemeu ela, de uma forma descontraída, apática e indiferente da
presença de Liddy. “Oh, como eu gostaria de nunca tê-lo visto! Amar é
sempre um sofriemento para as mulheres. Nunca perdoarei a Deus por me
fazer mulher, e estou começando a pagar a honra de possuir um rosto bonito.”
Ela se restaurou e virou-se para Liddy de repente. “Lembre-se, Lydia
Smallbury, se repetir em qualquer lugar uma única palavra do que lhe disse
dentro desta porta fechada, nunca mais vou confiar ou gostar de você, ou tê-la
comigo por mais um momento – nem um momento!”
“Não quero repetir nada”, disse Liddy, com a dignidade feminina de uma
ordem diminuta; “mas não quero ficar com você. E, se me permitir, vou
embora no final da colheita, ou esta semana, ou hoje... Não mereço ser usada
e atacada por nada!”, concluiu grandemente aquela pequena mulher.
“Eu não costumo chorar, não é, Lidd? Mas você trouxe lágrimas aos
meus olhos”, disse ela, com um sorriso brilhante e molhado. “Tentará pensar
nele como um homem bom, não tentará, Liddy querida?”
"Ele é um tipo de homem que tem uma forma selvagem, sabe. Isso é
melhor do que ser como alguns são, selvagens de uma forma constante.
Tenho medo que eu seja assim. E prometa-me que guardará o meu segredo,
Liddy! Não deixe que saibam que eu tenho chorado por ele porque será
terrível para mim e não é bom para ele, coitado!”
“E, querida Miss, não me atormente e me agrida, sim? Porque fica tão alta
como um leão e isso me assusta! Sabe, imagino que será um desafio para
qualquer homem quando usar seus encantos.”
“Oh não, não masculina! Mas tão femininamente poderosa que, às vezes,
pode atrapalhar. Ah, Miss”, disse ela, depois de inspirar o ar e soltá-lo com
muita tristeza, “gostaria de cometer metade das suas falhas. É uma grande
proteção para uma pobre empregada nestes dias de tanta falsidade!”
CAPÍTULO XXXI
CULPA — FÚRIA
Deixando suas instruções com Gabriel e Maryann, que deviam ter tudo
cuidadosamente trancado à noite, ela saiu de casa assim que uma chuva com
trovoadas muito oportuna parou, refinando o ar e banhando delicadamente a
superfície da terra, embora tudo debaixo dela estivesse seco como sempre.
Nos contornos do rio e do vale, o frescor exalava uma essência como se da
terra soprasse a respiração das donzelas. As aves alegres entoavam hinos à
cena. Diante dela, entre as nuvens, havia um contraste, e uma forma de tocas
de luz feroz, que aparecia nos arredores de um sol escondido, demorando-se
no canto noroeste mais distante dos céus que a temporada do meio do verão
permitia.
Ela havia percorrido quase duas milhas de sua jornada, observando como
o dia recuava e pensando em como o tempo das ações fundia-se,
discretamente, ao tempo do pensamento, para dar lugar ao tempo de oração e
de dormir, quando viu avançando sobre a colina de Yalbury exatamente o
homem de quem tão ansiosamente procurava fugir. Boldwood não caminhava
num ritmo tranquilo de força reservada como era seu costume, o qual parecia
estar sempre equilibrando dois pensamentos. Estava atordoado e lento
naquele momento.
Ele vinha olhando para o chão e não viu Bathsheba até que estavam a
menos de um arremesso de uma pedra de distância. Levantou o olhar para o
som de seus passos e sua aparência mudou o bastante para mostrar a ela a
profundidade e a força dos sentimentos paralisados por sua carta.
“Parece que está”, respondeu ele. “E o que é mais estranho, por causa do
contraste do que sinto por você.”
“Gostaria que não sentisse algo tão forte por mim”, murmurou ela. “É
muito generoso da sua parte, mais do que mereço, mas não posso ouvi-lo
agora.”
“Ouvir? O que acha que tenho para dizer então? Não vou me casar com
você e já basta? Sua carta foi perfeitamente clara. Não quero que ouça nada.”
“Sim, está.”
Bathsheba controlou-se bem, mas dificilmente teria uma voz clara para o
que veio instintivamente aos lábios:
“Há pouca honra na mulher a quem fala”. Foi um sussurro para algo tão
indescritivelmente triste e angustiante neste espetáculo de um homem
mostrando-se tão inteiramente movido pela paixão, enfraquecendo o instinto
feminino para a formalidade.
“Estou fora de mim e estou louco”, declarou ele. “Não sou nem um pouco
estóico para estar aqui suplicando, mas lhe suplico. Gostaria que soubesse
sobre a minha devoção a você, mas é impossível. Pela sua misericórdia
humana com um homem solitário, não me despreze agora!”
“Não a acuso disso. Eu lamento. Levei a sério o que você insiste que era
brincadeira, e agora aquilo que insisto para ser uma piada, você diz que é
terrívelmente sério. Nossos ânimos encontraram-se em lugares errados.
Queria que seus sentimentos fossem mais como os meus, ou os meus fosse
mais como os seus! Ah, se eu pudesse ter previsto a tortura que uma
brincadeira insignificante me levaria, como eu a teria amaldiçoado; mas
como apenas fui capaz de enxergar isso agora, não posso fazer isso porque a
amo demais! Mas é inútil continuar assim... Bathsheba, você é a primeira
mulher de qualquer sombra ou natureza que amei e cheguei mais perto de ser
aceito como marido, o que faz esta negação tão difícil de suportar. Você
quase me prometeu! Mas eu não falo agora para mudar seu coração e fazê-la
sofrer por causa da minha dor, não adiantaria. Devo suportá-la. Minha dor
não seria menor se você sofresse também.”
“Não faça isso, não faça isso. Seu precioso amor, Bathsheba, é muito
maior que sua piedade. A sua pena não amenizaria a perda dele. Oh, doçura,
como falou comigo com carinho atrás dos carriços e no celeiro de tosquia, e
ainda mais naquela última noite em sua casa! Para onde foram todas as suas
palavras agradáveis, sua sincera esperança de ser capaz de me amar? Onde
está a sua firme convicção de que gostaria de mim? Foram realmente
esquecidas?”
Ela controlou sua emoção, olhou com calma e claramente para o rosto
dele e disse em voz baixa e firme:
“Mr. Boldwood, não lhe prometi nada. Vê-me como uma mulher de
barro, por favor. Quando me fez aquele maior elogio que um homem pode
fazer a uma mulher, dizendo que me amava, me vi obrigada a mostrar algum
sentimento ou eu seria uma megera sem graça. No entanto, cada um daqueles
prazeres foram apenas momentâneos. Como eu saberia que o que é um
passatempo para todos os outros homens seria a morte para você? Raciocine,
haja e pense com mais bondade para comigo!”
“Bem, é inútil discutir, inútil. Uma coisa é certa: poderia ter sido minha e
agora você está longe de ser. Tudo mudou, e somente por sua causa, lembre-
se disso. Você não era nada para mim e eu estava bem. Agora não é nada
para mim outra vez, e como este segundo nada é diferente do primeiro.
Quisera Deus que você nunca tivesse se aproximado de mim, uma vez que
era apenas para me decepcionar!”
“Pode ser verdade, mas, ah, Miss Everdene, não serve como justificativa!
Você não é a mulher fria que me fez acreditar que era. Não, não! Não é
porque não tem sentimentos por mim que não ama. Faria-me achar isso,
naturalmente; esconderia-me que tem um coração ardente como o meu. Mas
sente amor o suficiente, porém, direcionado a um novo canal. Eu sei para
onde.”
“Por que Troy não deixou o meu tesouro em paz?”, perguntou ele,
ferozmente. “Quando eu não tinha ideia de feri-lo, por que se jogou para ser
notado por você? Antes de ele incomodá-la, sua intenção era comigo, quando
eu a procurasse, a sua resposta teria sido sim. Pode negar? Eu lhe pergunto,
pode negar?”
Ela demorou para responder, mas foi honesta demais para negar.
“Sim você pode. Não tenho nenhum direito sobre você. Quanto a mim, é
melhor eu ir a algum lugar sozinho e me esconder... e orar. Amei uma mulher
uma vez. Agora estou envergonhado. Quando eu morrer eles dirão: ‘que
homem doente de amor e infeliz que era’. Meu Deus, meu Deus, se tivesse
sido rejeitado secretamente, a desonra não fosse conhecida e minha posição
estivesse mantida! Mas não importa, ela se foi e não ganhei a mulher. Que
vergonha... que vergonha!”
“Você soube o tempo todo, sabia muito bem, que sua nova loucura seria o
meu desespero. Deslumbrada pelo bronze e o escarlate... Oh , Bathsheba!
Isso é de fato loucura das mulheres!”
“Está preocupado apenas com você mesmo!”, disse ela com veemência.
“Todos me atacam, todos. Atacar uma mulher é típico dos homens! Não
tenho ninguém no mundo para lutar minhas batalhas por mim, mas nenhuma
misericórdia é mostrada. No entanto, se mil de vocês zombam e dizem coisas
contra mim, não serão menosprezados!”
“Sem dúvida que falará com ele sobre mim. Diga-lhe: ‘Boldwood
morreria por mim’. Sim, e deu-lhe espaço sabendo que ele não era o homem
certo para você. Ele a beijou, a reivindicou como sua. Está ouvindo? Ele a
beijou. Negue isso!”
“Deixe-me, senhor, vá embora! Não sou nada para você. Deixe-me ir!”
“Não devo.”
“Não, não, oh, não deseje o mal para ele!”, implorou ela num pranto
desesperado. “Qualquer coisa, qualquer coisa, mas... Oh, seja piedoso com
ele, senhor, pois eu o amo verdade!”
“Eu o punirei, pela minha alma que o farei! Vou encontrá-lo, soldado ou
não, e chicotearei este jovem inconsequente pela imprudência de ter roubado
a minha felicidade. Se fosse uma centena de homens, eu o chicotearia...”
Baixou a voz de repente e sem naturalidade. “Bathsheba, doce, coquete
perdida, perdoe-me! Eu a culpo e a ameaço, comportando-me como um
ignorante, quando ele é o maior pecador. Roubou o seu coração querido com
suas mentiras insondáveis! A sorte dele foi ter voltado ao seu regimento, que
está longe daqui! Espero que não volte tão cedo. Peço a Deus que não
coloque meus olhos nele, para que não sofra tentações. Oh, Bathsheba,
mantenha-o longe... sim, mantenha-o longe de mim!”
Bathsheba, que estava de pé, imóvel como uma estátua todo este tempo,
levou às mãos ao rosto e descontroladamente tentou refletir sobre a situação
que acabara de acontecer. As origens impressionantes da sensação febril de
um homem sereno como Mr. Boldwood eram incompreensíveis e terríveis.
Em vez de ser um homem preparado para conter-se ele foi... aquilo que viu.
“Claro, mas não sei como”, disse Coggan. “Todos os nossos cavalos são
pesados demais para esse truque, exceto pela pequena Poppet, mas nós somos
dois. Se ao menos pudessemos pegar aquele par do outro lado da cerca,
poderiamos fazer alguma coisa.”
“Que par?”
“Então espere aqui até que eu volte”, disse Gabriel, que desceu a colina
em direção à fazenda de Boldwood.
“O fazendeiro Boldwood não está em casa”, informou Maryann.
“Em frente, tão certo como Deus fez poucas maçãs”, opinou Jan.
“Temos que tentar encontrá-los já que não podemos ouvi-los”, disse Jan
mexendo nos bolsos. Acendeu uma lanterna e segurou o fósforo no chão. A
chuva fora mais pesada ali, e todas as trilhas a pé e a cavalo, feitas anterior à
tempestade, haviam sido abrandadas e apagadas pelas gotas, e eram agora
pequenas conchas de água que refletiam a chama do fósforo como olhos. Um
conjunto de rastros estava fresco e não havia água neles. Um par de sulcos
também estava vazio e sem pequenos canais como os outros. As pegadas que
formavam essa impressão recente continham informações quanto ao ritmo.
Estavam em pares equidistantes, separados a três ou quatro pés, o pé direito e
esquerdo de cada par exatamente opostos um ao outro.
“O resto dos ciganos deve ter partido mais cedo ou de alguma outra
forma”, disse Oak. “Viu se não havia outros rastros?”
“Sim.”
“Ah! Um momento”, disse Jan. “Vamos ver como ela foi conduzida até
esta colina. Isso vai nos ajudar.” Uma luz foi prontamente acesa acima de
suas polainas como antes, e o exame feito.
Cavalgaram por três e escutaram. Nenhum som podia ser ouvido, salvo
por um moinho rouco através de um portal, e sugerindo possibilidades
sombrias de afogamento se mergulhassem no lago. Gabriel desmontou
quando chegaram numa curva. Os rastros eram o único guia quanto à direção
que tinham ali, e era necessário grande cautela para evitar confundi-los com
alguns outros que apareceram recentemente.
“O que significa isso? Acho que sei”, disse Gabriel, olhando para Coggan
enquanto movia o fósforo sobre o solo na curva. Coggan, que não estava
menos ofegante que os cavalos, já mostrava sinais de cansaço, escrutinou
mais uma vez os sinais místicos. Desta vez, apenas três eram da forma de
ferradura regular. O quarto era um ponto.
Embora a estrada ao longo de sua maior parte fosse tão boa quanto
qualquer rodovia expressa no país, era nominalmente apenas uma via
secundária. A última curva os havia introduzido na via principal que levava a
Bath. Coggan recobrou-se.
“Onde?”
Avançavam então com extrema cautela. Nada foi dito até que, contra um
fundo escurecido por folhagens, cinco barras brancas eram visíveis, cruzando
rota deles um pouco à frente.
“Ei! O portão!”
Parecia ter havido uma visita anterior que não fora notada, pois ao se
aproximarem, a porta da casa de pedágio abriu e o guarda saiu parcialmente
vestido, com uma vela na mão. Os raios iluminavam todo o grupo.
Ao ouvir sua voz, ela virou o rosto para longe da luz. No entanto, Coggan
a viu.
Era Bathsheba, certamente, e tinha por esta altura feito o truque que
poderia fazer tão bem em crises não amorosas, ou seja, uma máscara de
surpresa com modos frios.
“Bem, Gabriel”, perguntou ela em voz baixa, “onde você está indo?”
“Estou indo para Bath”, disse ela, tomando para seu próprio uso a
segurança que faltava em Gabriel. “Um assunto importante fez que eu
desistisse da minha visita a Liddy e fosse para lá imediatamente. Mas, então,
estavam me seguindo?”
“Ora, mas que coisa! Quanta tolice da parte de vocês não saberem que
peguei o carro e o cavalo. Eu não pude nem acordar Maryann nem entrar na
casa, embora esmurrasse o peitoril da janela dela por dez minutos.
Felizmente, eu pude pegar a chave da cocheira, então não incomodei
ninguém. Não acharam que poderia ser eu?”
“Mas como poderíamos saber se não deu nenhuma conta das suas
ações?”, objetou Coggan, “e as damas não conduzem suas caruagens a estas
horas, Miss, como regra geral da sociedade.”
“Dei conta sim, e você teria visto pela manhã. Escrevi em giz nas portas
da cocheira que tinha voltado para pegar o cavalo e a carroça e depois
partido, que não queria acordar a ninguém e que deveria voltar em breve.”
“Mas pense, minha senhora, que não poderíamos ver até que o dia
amanhecesse.”
“Foi só uma pedra em sua ferradura. Desci e arranquei-a umas cem jardas
atrás. Posso me arranjar muito bem, obrigada. Estarei em Bath ao amanhecer.
Agora podem voltar, por favor?”
Ela virou a cabeça. A vela do guarda cintilava sobre os seus olhos vivos e
claros. Passou pelo portão e logo estava envolta nas sombras coberta de
sombras misteriosas de ramos de verão. Coggan e Gabriel montaram seus
cavalos e dispararam pelo ar aveludado daquela noite de julho, refazendo o
caminho por onde tinham vindo.
Mas como? Ela poderia desistir desse novo amor, induzi-lo a renunciar a
ela dizendo que não gostava dele, que não podia mais falar com ele e pedir-
lhe, para o bem dela, que, acabando sua licença em Bath, não a visse mais em
Weatherbury?
Era uma imagem cheia de tristeza, mas por um tempo ela contemplou-a
com firmeza, permitindo-se, no entanto, como as meninas, a demorar-se
sobre a vida feliz que teria se Troy fosse Boldwood e o caminho do amor
fosse o caminho do dever. Entretanto, nesse ensaio, infligiu sobre si torturas
gratuitas, imaginando-o amando outra mulher, depois de esquecê-la, pois ela
tinha penetrado tanto na natureza de Troy para estimar suas inclinações com
enorme precisão, mas infelizmente não o amava menos para pensar que ele
poderia em breve deixar de amá-la — de fato, amava-o muito mais.
Ficou de pé. Ela o veria imediatamente. Sim, iria implorar pela palavra
dele para ajudá-la naquele dilema. Uma carta para mantê-lo afastado poderia
não alcançá-lo a tempo, mesmo se estivesse disposto a ouvi-la.
Bathsheba estava totalmente cega para o fato óbvio de que o apoio dos
braços de um amante não é o melhor para ajudar na decisão de renunciar a
ele? Ou ela era sofisticadamente sensível, com um arrepio de prazer, que, ao
adotar este recurso para se livrar dele garantiria um encontro com ele, de
qualquer forma, mais uma vez?
Mas ela podia ir até Liddy e deixar as coisas seguirem o seu curso? Não,
não, nada disso. Bathsheba estava cheia de uma turbulência estimulante, ao
lado da qual a cautela implora em vão para ser ouvida. Ela voltou para a
aldeia.
Seu andar era lento, pois não queria chegar em Weatherbury até que os
habitantes estavessem na cama e, particularmente, até que Boldwood
estivesse seguro. Seu plano era agora ir a Bath durante a noite, ver o Sargento
Troy na manhã antes que ele partisse para encontrá-la, dizer-lhe adeus e
deixá-lo. Em seguida, para descansar o cavalo completamente (e também
para chorar, pensou), começaria cedo na manhã seguinte sua viagem de volta.
Com este acerto, podia cavalgar com Dainty calmamente durante todo o dia,
chegar a Liddy em Yalbury à noite e voltar para casa em Weatherbury com
ela quando quisessem, de modo que ninguém saberia que tinha ido a Bath.
Assim era o esquema de Bathsheba. Mas, em sua ignorância topográfica
como quem chegou a pouco ao local, calculou mal a distância de sua jornada
como não muito mais do que a metade do que realmente era.
Esta foi ideia que ela levou a cabo com o sucesso inicial que já vimos.
CAPÍTULO XXXIII
SOB O SOL — UMA PREMONIÇÃO
“Espero que não seja nada de errado com a patroa”, falou Maryann, que
com algumas outras mulheres estava amarrando os feixes (a aveia sempre era
amarrada em feixes nesta fazenda), “mas vi um símbolo de azar dentro de
casa esta manhã. Fui destrancar a porta e deixei cair a chave, e ela caiu sobre
o chão de pedra e se quebrou em duas partes. Quebrar uma chave é um
presságio terrível. Queria que a patroa estivesse em casa.”
Ajudar no campo de milho não fazia parte do trabalho de Oak, mas o mês
da colheita é um momento de ansiedade para um fazendeiro e era o milho de
Bathsheba, então ele foi ajudar.
“É, e meu pai deslocou o braço para ter tempo para cortejar”, disse Jan
Coggan num tom abafado, enxugando o rosto com a manga da camisa e
empurrando o chapéu para trás sobre a nuca.
“Pare com isso, rapaz!”, disse Gabriel. “Tem sempre algo indo à direção
errada pela sua garganta abaixo, de modo que não pode contar o que precisa
ser contado.”
“Cof! Ora! Por favor, Mr. Oak, um mosquito acabou de voar no meu
estômago e trouxe a tosse de novo!”
“Sim, é isso mesmo. Sua boca está sempre aberta, seu patife!”
“Aqui tem um pouco de sidra para ele. Vai melhorar sua garganta”, disse
Jan Coggan, levantando um garrafão de cidra, puxando a rolha e despejando
diretamente na boca de Cainy. Entretanto, Joseph Poorgrass, começando a
pensar apreensivamente nas graves consequências que se seguiriam: se Cainy
Ball se afogasse com sua tosse e a história de suas aventuras em Bath
morressem com ele.
“Para o meu bem, sempre digo ‘por favor, Senhor’, antes de fazer
qualquer coisa”, disse Joseph, com uma voz humilde. “Você deveria também,
Cain Ball. É uma grande salvaguarda e, talvez, o salvasse de ser estrangulado
até a morte um dia.”
“Que espirro mais desajeitado! Por que não tem modos melhores, seu
cachorro!”, disse Coggan retirando o garrafão.
“A sidra desceu pelo meu nariz!”, gritou Cainy assim que conseguiu
falar; “pelo meu pescoço e no meu machucado, e sobre os meus botões
brilhantes e todas as minhas melhores roupas!”
“Eu sou assim mesmo”, lamentou Cain . “Minha mãe diz que eu sempre
ficava muito empolgado quando estava nervoso!”
“Sim.”
“Certo, e o que mais?”
“As grandes vitrines das lojas, nuvens enormes no céu, cheias de chuva, e
árvores velhas nas matas.”
“Eles não bebem nada lá”, disse Cain, “e parecem se divertir vendo como
bebem.”
“Bem, parece uma prática bárbara o suficiente para nós, mas ouso dizer
que os nativos não pensam assim”, disse Matthew.
“Não, só tinha água em Bath, um aguaceiro. Deus não lhes deu alimentos
bem como a bebida, e foi um inconveniente que não consegui superar.”
“Sim, e ela usava um belo vestido de seda dourado com renda preta, que
ficaria de pé sozinho sem precisar de pernas. Era uma visão muito
encantadora. E seu cabelo foi escovado esplendidamente. E quando o sol
iluminou o vestido brilhante e seu casaco vermelho... Meu Deus! Como
ficaram lindos. Dava para vê-los pela rua toda.”
“Então que entrei em Griffin’s para consertar minhas botas e depois fui à
confeitaria Riggs e pedi um dos pedaços velhos, mais baratos e mais bonitos,
que estava só um pouco embolorado, não completamente. Enquanto eu estava
comendo, andei e vi um relógio imenso...”
“Já chegarei lá, se me deixar, Mr. Oak!”, protestou Cainy. “Se me deixar
nervoso, talvez minha tosse volte e não serei capaz de dizer mais nada.”
“Nosso pobre Pároco Thirdly não tem dinheiro para comprar tais anéis”,
disse Matthew Moon, pensativo. “Um homem tão bom. Não acredito que o
pobre Thirdly tenha um sequer, mesmo de simples lata ou cobre. Um
ornamento tão importante numa tarde monótona, quando ele está no púlpito
iluminado pelas velas de cera! Mas é impossível, pobre homem. Ah, como as
coisas são desiguais.”
“Talvez ele não goste de usá-los”, disse Gabriel severamente. “Bem, isso
é o bastante. Continue, Cainy — rápido.”
“E por que não nos disse isso antes?”, esbravejou Oak, muito
decepcionado.
“Ah”, disse Matthew Moon, “ela vai se arrepender se for tão íntima desse
homem.”
“Ela deve saber”, disse Coggan. “Nossa patroa tem muita esperteza
debaixo dos cabelos pretos para fazer uma loucura tão grande.”
“Veja bem, ele não é um homem grosseiro e ignorante porque foi bem
educado”, disse Matthew, duvidosamente. “A única loucura que fez foi ser
soldado, e as donzelas preferem os pecadores.”
“Agora, Cain Ball”, disse Gabriel, impaciente, “pode jurar na forma mais
terrível que a mulher que viu era Miss Everdene?”
“Cain Ball, você não é mais um bebê”, disse Joseph no tom sepulcral que
as circunstâncias exigiam, “e sabe o que é fazer um juramento. Pense que é
uma declaração importante. O que disser será selado com sangue e pedra, e o
profeta Mateus nos diz que aquele sobre quem ela cair será reduzido a pó.
Agora, diante de todos nós aqui reunidos, você jura com suas palavras como
o pastor lhe pede?”
“Por favor, não, Mr. Oak!”, suplicou Cainy, olhando de um para outro
com grande inquietação diante da magnitude espiritual da posição. “Não me
importo de dizer que é verdade, mas não gosto de dizer que é uma verdade
maldita, se é isso que acha.”
“Não sou, não! É você que quer desperdiçar a alma de um pobre menino,
Joseph Poorgrass!”, disse Cain, começando a chorar. “Tudo o que eu quis
dizer é que, na verdade comum, eram Miss Everdene e o Sargento Troy, mas
se a verdade que querem é a pior, talvez fossem outras pessoas!”
“Cain Ball, você não vale um pedaço de pão!”, gemeu Joseph Poorgrass.
“Pare de se preocupar com ela, Gabriel. Que diferença faz quem a ama, já
que não pode ser sua?”
Demorou-se ali até que não houve diferença entre as extensões orientais e
ocidentais do céu e as lebres tímidas começaram a saltar corajosamente em
volta das colinas enevoadas. Gabriel poderia ter ficado ali por mais meia hora
quando uma forma escura caminhou lentamente em sua direção.
Era Boldwood.
Boldwood não passava de seu quintal desde seu encontro com Bathsheba
na estrada para Yalbury. Em silêncio e sozinho, permaneceu em meditação
deprimida sobre os modos daquela mulher, considerando como essenciais do
sexo feminino tais ações que, infelizmente, ele contemplara de perto. Pouco a
pouco, um temperamento mais caridoso o havia tomado, e esta foi a razão
pela qual saiu naquela noite. Fora se desculpar e implorar o perdão de
Bathsheba com algo parecido com um sentimento de vergonha por sua
violência, pois acabara de saber que ela havia retornado — apenas de uma
visita a Liddy, como ele imaginava, mas desconhecia totalmente a fuga para
Bath.
Boldwood não se apressou para chegar em casa. Era perto de dez horas
quando, caminhando deliberadamente pela parte baixa de Weatherbury,
ouviu a charrete do carregador entrar na vila. O veículo ia e vinha de uma
cidade do norte, pertencia a um homem de Weatherbury que também o
conduzia e parou na porta de sua casa naquele momento. A lâmpada
penduarada no capô iluminou uma silhueta escarlate e dourada, que foi a
primeira a descer.
“Sargento Troy?”
“Sim.”
O tom em que esta palavra foi dita era tudo o que Boldwood queria para
chegar ao assunto.
“Sobre o quê?”
“Sobre ela, que mora um pouco à frente; e sobre uma mulher a quem
ofenderam.”
“Quero saber o porquê de sua impertinência”, disse Troy, seguindo em
frente.
“Muito bem, ouvirei com prazer”, disse Troy, colocando sua bolsa no
chão, “apenas fale baixo, pois podem nos ouvir na casa da fazenda.”
“Muito bem, sei a respeito de seu compromisso com Fanny Robin. Posso
dizer também que acredito que sou a única pessoa na vila que sabe, com
exceção de Gabriel Oak. Deveria se casar com ela.”
“Por quê?”
“Sou muito pobre.” Sua voz mudou. Antes, tinha um tom despreocupado.
Agora era a voz de um trapaceiro.
“Posso também falar claramente. Entenda, não quero entrar nas questões
do que é certo ou errado, na honra e na vergonha de uma mulher ou expressar
qualquer opinião sobre a sua conduta. Pretendo fazer um acordo com você.”
O tronco de uma árvore velha estava sob a cerca do lado oposto, e ali se
sentaram.
“Eu estava prestes a me casar com Miss Everdene”, declarou Boldwood,
“mas você chegou e...”
“Se eu não tivesse aparecido, ela poderia ter se tornado sua noiva.”
“Ela seria!”
“Certo, então.”
“Pagarei-lhe bem. Estipularei um valor sobre ela e garantirei que não será
pobre no futuro. Explicarei claramente: Bathsheba está apenas brincando com
você: é pobre demais para ela, como já disse, por isso desista de desperdiçar
seu tempo num grande jogo que nunca o servirá no futuro. Pegue sua mala,
dê meia-volta, deixe Weatherbury agora, esta noite, e leve cinquenta libras
com você. Fanny também receberá cinquenta para permitir-lhe preparar para
o casamento quando me disser onde ela mora e ela terá mais quinhentas a
serem pagas no dia do seu casamento.”
“Gosto mais de Fanny”, disse Troy, “e se, como diz, Miss Everdene está
fora do meu alcance, só tenho a ganhar aceitando seu dinheiro e me casando
com Fan. Mas ela é apenas uma criada.”
“Sim.”
“Ah!”, exclamou Boldwood, com uma voz mais flexível. “Oh, Troy, se
gosta mais dela, por que então fica aqui e fere a minha felicidade?”
“Por que acabaria tão cedo? E por que então você voltou?”
“Está tudo pronto. Parece que previu que eu aceitaria”, disse o sargento
ao pegar o pacote.
“Havia pensado nisso e considerado que, se não posso apelar para a sua
honra, posso confiar na sua... bem, vamos chamar de astúcia... para não
perder quinhentas libras adiantadas e também fazer um inimigo amargo de
um homem que está disposto a ser um amigo extremamente útil.”
“Pare, escute!”, sussurrou Troy.
“Ela... quem?”
“Bathsheba.”
“Estava me esperando esta noite e agora devo falar com ela e dizer-lhe
adeus, de acordo com seu desejo.”
“Não haverá mal algum, e ela ficará procurando por mim se eu não for.
Você ouvirá tudo o que eu disser a ela. Isso o ajudará na sua corte quando eu
me for.”
“Limitará suas palavras a este único ponto? Posso ouvir cada palavra que
disser?”
“Prometo novamente.”
“Está tão atrasado”, continuou ela com ternura. “Veio com o carregador?
Ouvi as rodas entrando na vila, mas já faz algum tempo e quase desisti,
Frank.”
“É claro que eu viria”, disse Frank. “Sabia que eu viria, não sabia?”
“Bem, pensei que sim”, brincou ela. “Frank, é tanta sorte! Não há
ninguém na minha casa além de mim nesta noite. Pedi que todos saíssem de
modo que ninguém no mundo saberá da sua visita aos aposentos de sua
dama. Liddy queria ir contar ao avô dela sobre sua folga e eu disse que ela
poderia ficar com eles até amanhã, quando você terá partido novamente.”
“Excelente”, disse Troy. “Mas, meu Deus, é melhor eu voltar para pegar a
minha bagagem, porque os meus chinelos, escova e pente estão em nela.
Corra para casa enquanto vou buscá-la, e prometo estar em seu quarto em dez
minutos.”
Durante esse diálogo houve uma contração nervosa dos lábios bem
fechados de Boldwood e seu rosto ficou banhado de suor. Ele então começou
a avançar no sentido de Troy. Troy virou-se para ele e pegou sua mala.
“Devo dizer a ela que vim para deixá-la e que não poderei me casar com
ela?”, ironizou o soldado.
“E arruiná-la?”
“Salve-a.”
“Oh, como ela pode ser salva agora, a menos que eu me case com ela?”
Troy saltou como uma bola e estava prestes a golpear o fazendeiro, mas
se conteve, dizendo calmamente:
“Não vale a pena medir minhas forças com você. Na verdade, é uma
forma bárbara de resolver uma briga. Vou logo deixar o exército por causa da
mesma convicção. Agora, depois da revelação de como Bathsheba ficaria, me
matar seria um erro, não seria?”
“Matá-lo seria um erro”, repetiu Boldwood mecanicamente, com a cabeça
baixa.
“É melhor se matar.”
“Muito melhor.”
“Faça-a sua esposa, Troy, e não haja de acordo com o que acabamos de
combinar. A alternativa é terrível, mas fique com Bathsheba. Eu desisto dela!
Ela deve amá-lo de fato para vender-lhe completamente o corpo e a alma
como tem feito! Que mulher miserável, que mulher iludida que é Bathsheba!”
“Mas ela tem uma vontade forte, para não dizer um temperamento, e serei
um mero escravo dela. Faria qualquer coisa pela pobre Fanny Robin.”
“Como?”
“Sim, se quiser. Mas não tenho muito dinheiro extra comigo. Não
esperava por isso. Mas tudo o que tenho é seu.”
“Tenho somente vinte e uma libras comigo”, disse ele. “Duas notas e uma
moeda de ouro. Mas antes de deixá-lo, deve assinar um documento.”
“Mas, por quê? Venha comigo esta noite e amanhã iremos ao juiz.”
“Oh, não, é apenas o meu capricho para garantir as coisas. Pode ler isto
um instante? Vou segurar a luz.”
CASAMENTOS
“Isso pode ser chamado de um encontro do forte com o fraco, não pode,
Boldwood?”, perguntou Troy. Uma baixa gargalhada irônica se seguiu às
palavras.
“Cinquenta libras para me casar com Fanny. Bom. Vinte e uma libras
para não me casar com Fanny, mas sim com Bathsheba. Bom. Final: já sou o
marido de Bathsheba. Agora, Boldwood, que destino ridículo que sempre
interfere entre um homem e sua esposa. E outra coisa. Posso ser mau, mas
não um vilão para fazer do casamento ou da tristeza de qualquer mulher uma
questão de negócios. Fanny há muito tempo me deixou. Não sei onde ela
está. Já procurei por toda parte. Outra coisa. Diz que ama Bathsheba, mas na
mera aparente evidência da desonra dela imediatamente cai fora. Esse amor
não vale nada! Agora que lhe ensinei uma lição, tome o seu dinheiro de
volta.”
“Seu trapaceiro diabólico! Cão dos infernos! Mas ainda vou puni-lo,
acredite, ainda vou puni-lo!”
Durante toda aquela noite escura, Boldwood poderia ter sido visto
caminhando pelas colinas de Weatherbury como um vulto infeliz nos
Campos Elíseos às margens do Aqueronte.
CAPÍTULO XXXV
NUMA JANELA NO ANDAR DE CIMA
“Bom dia, camaradas!”, gritou ele com uma voz alegre quando chegaram.
“Não vai responder para o homem?”, ele então disse a Gabriel. “Eu diria
‘bom dia’, que não precisa de significado alegre, e ainda assim ser educado
com o homem.”
Gabriel logo decidiu também que, uma vez que a coisa estava feita, fingir
alegria com o assunto seria a maior gentileza para com aquela a quem ele
amava.
“Bom dia, Sargento Troy”, respondeu ele com uma voz medonha.
“Ora, eles podem não estar casados!”, sugeriu Coggan. “Talvez ela não
esteja lá.”
“Sim, acho que sim, mas me sinto como um vinho novo numa garrafa
velha aqui. Acho que caixilhos de janelas devem ser colocados por toda parte
e estas paredes velhas, se forem revestidas de madeira, ficariam um pouco
mais alegres; ou o carvalho removido e as paredes forradas com papel.”
“Ei, Coggan”, disse Troy, como se inspirado por uma lembrança, “sabe se
a insanidade já apareceu na família de Mr. Boldwood?”
Troy jogou a moeda com destreza no chão à frente e por cima da cerca
em direção a Gabriel, que evitou a sua queda, com seu rosto corando de
irritação. Coggan mudou o olhar, seguiu em frente e pegou o dinheiro em seu
ricochete na estrada.
“Bem, talvez o melhor seja ficar em silêncio, mas não consigo passar
disso. Não consigo bajular, e se o meu lugar aqui só puder ser mantido com
adulações, ele será perdido.”
“Lá está Mr. Boldwood”, falou Oak. Estou imaginado o que Troy quis
dizer com a pergunta.
“Diga a ele, então”, pediu Gabriel, “que só entrei para avisar que uma
chuva pesada certamente cairá em breve e que algo deve ser feito para
proteger os fardos.”
“Mr. Troy diz que não vai chover”, respondeu o mensageiro, “e ele não
pode parar para conversar com você sobre essas inquietações.”
Bathsheba pôs a mão sobre o seu braço e, com o rosto pálido virado para
cima, implorou:
“Não, não dê isso a eles, por favor, não, Frank! Só vai fazer-lhes mal.
Tiveram o suficiente de tudo.”
Quando acendeu uma luz dentro de casa, apareceu sobre a mesa um traço
fino e brilhante, como se uma pincelada de verniz houvesse sido levemente
aplicada ao longo dela. Os olhos de Oak seguiram o brilho de serpentina até o
outro lado, que levou a uma enorme lesma de jardim marrom, que veio para
dentro de casa naquela noite por razões próprias. Era a segunda forma da
Natureza de insinuar-lhe que estava preparando-se para o mau tempo.
Oak sentou-se a meditar por quase uma hora. Durante esse tempo, duas
aranhas pretas, do tipo comum em casas de palha, que passeavam no teto
caíram no chão. Aquilo lembrou-lhe que, se houvesse um tipo de
manifestação sobre este assunto que ele compreendia completamente era o
instinto das ovelhas. Saiu da sala, correu por dois ou três campos até o
rebanho, ficou em cima de uma sebe e olhou para elas.
Por ser uma complicação incomum de climas, era ainda mais temida. Oak
retornou para as pilhas de feno. Tudo estava silencioso ali e as pontas cônicas
dos fardos projetavam-se escuras no céu. Havia cinco fardos de trigo e três
pilhas de cevada naquela área. O trigo quando debulhado renderia em média
cerca de trinta quartos para cada pilha; a cevada, pelo menos quarenta. Como
a preocupação era com Bathsheba, e de fato com mais ninguém, Oak
mentalmente estimou pelo seguinte cálculo simples:
Tal foi o argumento que Oak definiu a si mesmo. Mas o homem, até para
si mesmo, é um palimpsesto,[23] tendo uma escrita ostensiva e outra nas
entrelinhas. É possível que houvesse essa lenda dourada sobre a útil:
“Ajudarei a mulher que tanto amo até meu último esforço.”
Voltou para o celeiro para procurar ajuda para a cobertura dos fardos
naquela mesma noite. Tudo estava silencioso lá dentro e ele teria se deixado
levar pela crença de que a festa havia terminado por não ter nem uma luz
fraca, amarela como o açafrão em contraste com a brancura esverdeada do
exterior, que passava através do buraco de uma fechadura nas portas
dobráveis.
Gabriel olhou para dentro. Uma imagem incomum atingiu seu olho.
Gabriel soltou sua cabeça, que caiu no chão como uma tigela. Foi então
até o marido de Susan Tall.
Honestamente, os homens não eram tão culpados por aquele fim de noite
doloroso e desmoralizante. O Sargento Troy insistira com tanta energia, com
o copo na mão, que a bebida devia ser o vínculo da sua união, que aqueles
que desejassem recusar seriam grosseiros demais sob as circunstâncias. Por
não serem acostumados desde a juventude com quaisquer bebidas mais fortes
do que a cidra, ou a cerveja leve, não era de admirar que tivessem sucumbido,
todos eles, com uniformidade extraordinária, após o decurso de cerca de uma
hora.
Gabriel estava muito deprimido. Aquela orgia era de mau agouro com sua
patroa inteligente e fascinante, a quem aquele homem fiel mesmo agora
sentia dentro dele como a personificação de tudo o que era doce, brilhante e
sem esperança.
Apagou as velas que expiravam para que o celeiro não fosse exposto ao
perigo, fechou a porta com os homens em seu sono profundo e esquecido, e
saiu outra vez na noite solitária. Uma brisa quente, como se vinda dos lábios
entreabertos de algum dragão a ponto de engolir o mundo, soprava do sul,
enquanto do norte subia um corpo disforme e sombrio de uma nuvem nos
próprios dentes do vento. Então, ela estranhamente se levantou como se
pudesse ser erguida por máquinas. Enquanto isso, as pequenas nuvens tênues
tinham voado de volta para o lado sudeste do céu como se temessem a grande
nuvem tal qual uma jovem ninhada olhava para um monstro.
Ao ir para a vila, Oak atirou uma pequena pedra contra a janela do quarto
de Laban Tall, esperando que Susan a abrisse, mas ninguém se mexeu. Deu a
volta para a porta de trás, que havia sido deixada destrancada para que Laban
entrasse, e parou ao pé da escada.
“Mrs. Tall, vim buscar a chave do granário para pegar as lonas dos
fardos”, disse Oak, com a voz altíssima.
“A chave do granário.”
Até então tudo estava bem. Com aquele artifício apressado, o trigo da
propriedade de Bahsheba estava seguro por uma semana ou duas, desde que
não houvesse muito vento.
Antes que Oak pusesse as mãos em suas ferramentas outra vez, um quinto
clarão, como o salto de uma serpente e o grito de um demônio. Era verde
como uma esmeralda e a reverberação foi impressionante. O que aquela luz
lhe revelou? No terreno aberto à sua frente, ao olhar por cima do topo da
pilha, viu uma forma escura e aparentemente do sexo feminino. Poderia ser
da única mulher ousada da paróquia — Bathsheba? A forma deu um passo:
em seguida, ele não podia ver mais nada.
“Adormecido no celeiro.”
Então veio o estrondo. Era difícil acreditar que uma luz tão celestial
pudesse trazer um som tão diabólico.
Oak mal teve tempo para reunir essas impressões num pensamento e ver
como a pena vermelha do chapéu dela brilhou de forma estranha sob essa luz,
quando a árvore alta na colina antes mencionada parecia em chamas de um
calor branco, e um novamente entre aquelas vozes terríveis misturavam o
último estouro com os anteriores. Foi uma explosão espantosa, dura e
impiedosa e caiu nos ouvidos deles num golpe morto e vazio, sem a
reverberação que empresta os tons de um tambor ao trovão mais distante.
Pelo brilho refletido de todas as partes da terra, e do amplo arco acima dele,
viu que a árvore foi cortada de cima a baixo por todo o comprimento do seu
tronco alto, em linha reta, e uma enorme tira da casca foi visivelmente
arrancada. A outra parte permaneceu ereta e revelou a superfície nua como
uma faixa de cor branca na frente. O raio havia caído na árvore. Um cheiro
sulfuroso encheu o ar. Então tudo ficou em silêncio e negro como uma
caverna em Hinnom.
Bathsheba não disse nada, mas ele pôde ouvir claramente o ritmo da
respiração ofegante dela e o farfalhar recorrente do feixe ao lado dela em
resposta às suas pulsações assustadas. Ela desceu a escada e ele, pensando
melhor, a seguiu. A escuridão era agora impenetrável pela visão mais nítida.
Ambos ainda estavam parados na parte inferior, lado a lado. Bathsheba
parecia pensar apenas no tempo — Oak só pensava nela naquele momento.
Por fim, ele disse:
“Gabriel, você é melhor do que mereço! Vou ficar e ajudá-lo ainda. Oh,
por que alguns dos outros não estão aqui?”
Ele foi até o celeiro, deixando-a sozinha. Olhou pelas frestas da porta.
Tudo estava em total escuridão como ele havia deixado, e ainda se seguia,
como no anteriormente, o zumbido constante de muitos roncos.
Sentiu uma brisa passando sobre sua face e se virou. Era a respiração de
Bathsheba, que o seguiu e estava olhando pela mesma fenda.
Oak olhou para ela. Não falava desde que ele deixou o celeiro. O brilho
suave e contínuo do relâmpago morrendo mostrou um rosto de mármore
contra o céu negro do lado oposto. Bathsheba estava sentada quase no topo
da pilha com os pés descansando no topo da escada.
“Suponho que pensou que quando fui para Bath naquela noite tinha o
propósito de me casar.”
“No final, sim, mas não no início”, ele respondeu, um tanto surpreso com
a brusquidão com que o novo assunto foi abordado.
“Sim.”
“Bem, um pouco.”
“Foi o que pensei. Agora, me preocupo um pouco para a sua boa opinião
e quero explicar algo desde que voltei, e você me olhava tão preocupado. Se
eu estivesse para morrer, e posso morrer logo, seria terrível se sempre tivesse
uma impressão errada de mim. Agora, ouça.”
“Fui para Bath naquela noite na total intenção de romper meu noivado
com Mr. Troy. Foi devido a circunstâncias que ocorreram depois que cheguei
lá que... nos casamos. Agora você entende a questão sob uma nova luz?”
“Sim... um pouco.”
“Preciso dizer mais, agora que começei. E talvez não faça mal nenhum,
você certamente não tem a mínima ilusão de que eu alguma vez o amei, ou
que eu possa ter qualquer objeção em falar, mais do que já o tenho
mencionado. Bem, eu estava sozinha numa cidade estranha e o cavalo estava
coxo. E não sabia o que fazer. Vi, quando já era tarde demais, que o
escândalo podia apoderar-se de mim por encontrá-lo só dessa maneira. Mas
eu vinha embora quando, de repente, ele disse que viu naquele dia uma
mulher mais bonita do que eu, e que sua constância não poderia ser
considerada a não ser que de uma vez por todas eu me tornasse sua... fiquei
aflita e confusa...” Ela limpou a voz, e esperou um momento, como se
tomasse fôlego. “E então, entre o ciúme e a loucura, me casei com ele!”,
sussurrou com impetuosidade desesperada.
“Ele não teve culpa, pois era perfeitamente verdade sobre... sobre ver
outra pessoa”, ela rapidamente acrescentou. “E agora não quero uma única
observação sua sobre o assunto. Na verdade, eu o proíbo. Só queria que
soubesse deste pequeno mal-entendido da minha história antes que nunca
pudesse saber dela. Quer mais alguns feixes?”
“Acho que é melhor você ir para dentro de casa agora. Está cansada. Eu
posso terminar o resto sozinho. Se o vento não mudar, é provável que a chuva
não venha.”
“Se sou inútil, irei”, disse Bathsheba, com sinais de cansaço. “Mas oh, e
se perder sua vida?”
“Você não é inútil, mas preferia não cansá-la mais tempo. Esteve muito
bem.”
“E você, melhor!”, agradeceu ela. “Obrigada por sua devoção, mil vezes,
Gabriel! Boa noite. Sei que está fazendo o seu melhor por mim.”
Ela diminuiu na penumbra e desapareceu, e ele ouviu o trinco do portão
cair assim que ela passou. Ele trabalhou num devaneio, meditando sobre sua
história, e sobre a contradição daquele coração feminino que a fez conversar
mais calorosamente com ele nesta noite, do que nunca tinha feito enquanto
solteira e livre para falar calorosamente como fez.
Oak, de repente, se lembrou de que oito meses antes ele estava lutando
contra o fogo no mesmo local tão desesperadamente como lutava contra a
água agora e pelo amor fútil da mesma mulher. Quanto a ela... Mas Oak era
generoso e verdadeiro e rejeitou suas reflexões.
Era cerca de sete horas de uma manhã escura como chumbo quando
Gabriel desceu da última pilha e exclamou alegremente:
Logo Oak também foi para casa por um caminho diferente do deles. Na
frente dele, contra a superfície molhada da pista, viu uma pessoa que andava
ainda mais lentamente do que ele, debaixo de um guarda-chuva. O homem
virou-se e claramente sobressaltou-se: era Boldwood.
“Sim, está um dia úmido. Oh, estou bem, muito bem, obrigado, muito
bem.”
“Eu? Nem um pouco. Estou muito bem. O que o faz pensar isso?”
“Achei que não parecia tão bem como de costume, só isso.”
“Trabalhei duro para cobrir as nossas pilhas e quase não deu tempo.
Nunca lutei tanto em minha vida... Os seus, claro, estão seguros, Sir.”
“Não.”
“Não estão.”
“Possivelmente não.”
“Oak, você sabe tão bem quanto eu que as coisas deram errado comigo
ultimamente. Minha vida se resolveria um pouco; mas, de alguma forma, o
meu plano deu em nada.”
“Achava que minha patroa se casaria com o senhor”, disse Gabriel, sem
saber o suficiente da profundidade do amor de Boldwood para manter
silêncio por conta do fazendeiro, e determinado a não esquivar-se da
disciplina ao fazê-lo por conta própria. “No entanto, às vezes, é assim, e nada
acontece como esperamos”, acrescentou, com a tranquilidade de um homem a
quem tinha se habituado à desgraça ao invés de subjugá-la.
“Ouso dizer que sou uma piada na paróquia”, declarou Boldwood, como
se o assunto viesse irresistivelmente para sua língua, e com uma leveza triste
quis expressar sua indiferença.
“Sim, se não fosse por essa chuva miserável eu teria ganho duzentas
libras tão facilmente só de ficar olhando”, dizia ele. “Você não vê que tudo
mudou? Como num livro que li uma vez, o tempo úmido é a narrativa e os
dias bons são os episódios da história do nosso campo. Não é verdade?”
“E você quer dizer, Frank”, disse Bathsheba tristemente. Sua voz estava
dolorosamente reduzida da plenitude e vivacidade do verão anterior, “que
você perdeu mais de cem libras num mês nestas corridas de cavalos terríveis?
Oh, Frank, é cruel, é tolo você tirar o meu dinheiro. Teremos que deixar a
fazenda. Será o fim de tudo!”
“Engana-se sobre ser cruel. Agora, outra vez, vai começar a chorar. Você
é exatamente assim.”
“Não sei por que eu deveria; na verdade, se for num belo dia, eu estava
pensando em levá-la.”
“Nunca, nunca! Vou cem milhas por outro caminho primeiro. Odeio o
som da própria palavra!”
“Mas o problema de ver a corrida ou ficar em casa tem muito pouco a ver
com o assunto. As apostas são todas reservadas com segurança suficiente
antes da corrida começar, você pode confiar. Quer se trate de uma corrida boa
ou ruim para mim, terá muito pouco a ver com a nossa ida lá na próxima
segunda-feira.”
“Mas você não quer dizer que arriscou tudo nesta também!”, exclamou
ela, com um olhar agoniado.
“Agora você está sendo um tanto tola. Espere até que eu conte tudo. Ora,
Bathsheba, você perdeu toda a coragem e atrevimento que tinha
anteriormente, e pela minha vida, se eu soubesse que escondia essa criatura
covarde sob toda aquela coragem, eu nunca teria... sei bem o quê.”
“Não sei.”
“Fique onde está e tome conta do cavalo!”, disse Troy, jogando as rédeas
e o chicote de forma decidida. “Leve o cavalo para cima. Vou cuidar da
mulher.”
“Mas eu...”
“Não ouviu? Vá, Poppet! – disse ele para ela e para o cavalo.
“Como foi que veio parar aqui? Pensei que estivesse a milhas de distância
ou morta! Por que não me escreveu?”, perguntou Troy para a mulher, com
uma voz estranhamente suave, mas apressada, enquanto a levantava.
“Tem dinheiro?”
“Nada.”
“Deus do céu... Gostaria de ter mais para dar-lhe! Aqui está — miserável
— muito pouco. É cada centavo que me resta. Não tenho nada além do que
minha esposa me dá, você sabe, e não posso pedir-lhe agora.”
“Tenho pouco tempo”, continuou Troy, “e agora ouça. Para aonde vai
esta noite? Para o Abrigo de Casterbridge?”"
“Não deve ir para lá ainda, espere. Sim, talvez por esta noite. Não posso
fazer nada melhor, que falta de sorte! Durma lá esta noite e fique lá amanhã.
Segunda-feira é o primeiro dia livre que tenho, e de manhã, às dez em ponto,
encontre-me em Grey Bridge fora da cidade. Vou trazer todo o dinheiro que
puder juntar. Você não passará falta, vou providenciar tudo, Fanny; e então
vou encontrar um alojamento em algum lugar. Adeus por enquanto. Sou um
bruto, mas adeus!”
“Achei que soubesse”, disse ela, com altivez irritada, e ainda encarando-
o. “Quem é ela?”
De repente, ele parecia pensar que a franqueza não beneficiaria nem uma
das mulheres.
“Pode achar o que quiser, e fique...” A sentença foi completada por uma
chicotada no flanco de Poppet, o que fez o animal avançar a um ritmo
selvagem. Nada mais foi dito.
CAPÍTULO XL
NA ESTRADA DE CASTERBRIDGE
Por alguns segundos, a viajante ficou naquele silêncio tenso que não
significa ser o fim, mas apenas a suspensão de um movimento anterior. Sua
atitude foi a de uma pessoa que escuta, quer para o mundo externo dos sons
ou para o discurso imaginado do pensamento. Uma crítica poderia ter
detectado sinais que provassem que ela tinha a intenção da última alternativa.
Além disso, como foi mostrado pelo que se seguiu, estava estranhamente
exercendo a faculdade de invenção sobre a especialidade do inteligente
Jacquet Droz, o projetista de substitutos automáticos para membros humanos.
Segurando na cerca, ela avançou, empurrando uma mão para frente sobre
a cerca, depois a outra, em seguida, inclinando-se sobre ela enquanto
arrastava os pés.
Esta foi uma aplicação prática do princípio de que uma fé meio fingida e
fictícia é melhor do que não ter fé alguma.
“Vou passar mais cinco acreditando que meu lugar desejado é no próximo
quinto. Eu posso fazer isso.”
“Cinco a mais.”
Arrastou-se até a ponte. Durante o esforço, cada respiração dela foi para o
ar como se nunca mais voltasse.
Ela percebeu algo tocando sua mão; era suave e quente. Abriu os olhos, e
uma substância tocou seu rosto. Um cão a estava lambendo.
Era uma criatura grande, pesada e calma, parada no escuro contra o baixo
horizonte e pelo menos dois pés mais alto do que a posição atual de seus
olhos. Se era um terra nova, um mastim, um cão de caça ou o que quer que
fosse, era impossível dizer. Sua natureza muito estranha e misteriosa parecia
pertencer a qualquer variedade entre aqueles de nomenclatura popular. Sendo
assim atribuída a nenhuma raça, era a personificação ideal da grandeza
canina, a generalização do que era comum a todas. A noite, em seu aspecto
triste, solene e benevolente, além do seu lado sorrateiro e cruel, foi
personificada naquela forma. A escuridão dota os pequenos e comuns entre
os homens com poder poético, e até mesmo a mulher que sofria jogou sua
ideia numa imagem.
Em sua posição reclinada ela olhou para ele, assim como em épocas
anteriores que tinha, quando em pé, olhado para um homem. O animal, que
era tão abandonado quanto ela, afastou-se respeitosamente um ou dois passos
quando a mulher se mexeu e, ao ver que ela não o repeliu, lambeu a mão dela
novamente.
“Há um cão lá fora”, murmurou a viajante exausta. “Onde ele está? Ele
me ajudou.”
Bathsheba pouco conversou com seu marido naquela noite de seu retorno do
mercado, nem ele estava disposto a conversar muito com ela. Mostrava a
combinação desagradável de uma condição inquieta com uma língua
silenciosa. O dia seguinte, que era domingo, Bathsheba passou quase da
mesma maneira com relação ao seu silêncio e foi à igreja tanto de manhã
como à tarde. Este foi o dia antes das corridas de Budmouth. À noite, Troy
disse, de repente:
“Bem, suponha que eu o queira para as corridas”, disse ele, por fim.
Troy hesitou. Não a amava mais o suficiente para permitir-se ser levado
longe demais por suas maneiras. No entanto, era necessário ser educado.
Ela corou.
“Não gostaria que falasse assim. Entristece a minha alma por ser elegante
às minhas custas.”
“E você tem que partir? Ah! Houve um tempo, Frank, quando muitas
promessas de outras pessoas eram necessárias para arrastá-lo para longe de
mim. Você costumava me chamar de querida. Mas agora não se importa de
como os meus dias passam.”
“Tenho que ir, apesar da emoção.” Troy, enquanto falava, olhou para o
relógio e, aparentemente acionado por princípios ilógicos, abriu-o pela parte
de trás, revelando, confortavelmente arrumado dentro dele, um pequeno
cacho de cabelo.
“Estou lhe dizendo que tinha me esquecido!”, disse ele, em voz alta.
“Que absurdo.”
“Muito bem... vou lhe contar, assim não teremos mais confusões. É o
cabelo de uma jovem com quem eu ia me casar antes de conhecê-la.”
“Ela já se casou?”
“Não.”
“Está viva?”
“Sim.”
“É bonita?”
“Sim.”
“É maravilhoso como ela pode estar, coitada, sob uma aflição tão
terrível!”
“Aflição? Que aflição?”, ele perguntou, rapidamente.
“Oh... oh... eu gosto!”, disse Troy, recuperando-se. “Os cabelos dela eram
admirados por todos que os viam desde que ela os usou soltos, que não foi
por muito tempo. Eram cabelos bonitos. As pessoas costumavam virar a
cabeça para olhá-los, pobre menina!”
“Basta! Isso não é nada, isso não é nada!”, exclamou ela, em tons
incipientes de mágoa. “Se eu me importasse com o seu amor tanto quanto eu
costumava, poderia dizer que as pessoas se viravam para olhar o meu.”
“Bathsheba, não seja tão indecisa e ciumenta. Sabia como seria a vida de
casada e não deveria ter entrado nela se temia essas incertezas.”
Troy a tinha levado por esta altura à amargura: seu coração estava na
garganta e os dutos para seus olhos estavam dolorosamente cheios.
Envergonhada como ficava ao demonstrar emoção, finalmente ela explodiu:
“Isso é tudo que ganho por amá-lo tanto! Ah! Quando me casei com você
a sua vida era mais preciosa do que a minha. Eu teria morrido para você...
realmente posso dizer que teria morrido para você! E agora zomba de minha
loucura em me casar com você. Oh! Está certo jogar o meu erro na minha
cara? Seja qual for a opinião que possa ter da minha sabedoria, não deve me
dizer tão impiedosamente, agora que estou em seu poder.”
“Não posso evitar como as coisas acontecem”, disse Troy, “pelo meu
coração, as mulheres serão a minha morte!”
“Bem, não deve guardar os cabelos das pessoas. Vai queimá-los, não vai,
Frank?”
“Não vai queimar essa mecha. Gosta da mulher que possui este lindo
cabelo, sim... É bonito, mais bonito do que a minha juba preta miserável.
Bem, não adianta, não posso evitar que seja feio. Deve gostar mais dela
mesmo!”
“Até hoje, quando o peguei de uma gaveta, nunca tinha olhado para
aquela mecha de cabelo durante vários meses... posso jurar.”
“Mas agora há pouco você disse ‘laços’”, e então... é aquela mulher que
encontramos?”
“É dela, então?”
“Sim. Agora que você já arrancou isso de mim, espero que esteja
satisfeita.”
Ela viu chegando pela estrada um homem como Mr. Boldwood. Era Mr.
Boldwood. Bathsheba corou dolorosamente e o observou. O fazendeiro parou
quando ainda estava longe e ergueu a mão para Gabriel Oak, que estava
numa ronda pelo campo. Os dois homens então se aproximaram e pareciam
envolvidos numa conversa séria.
Bahsheba, que tinha visto esta pantomima com alguma surpresa, sentiu
um grande alívio quando Boldwood voltou.
“Sim senhora.”
“Morreu de quê?”
“Não sei ao certo, mas acho que foi de fraqueza. Era uma empregada tão
ágil que não via dificuldade em nada, mesmo quando a conheci, e era como
quem acende as velas. Passou mal na parte da manhã e por estar muito fraca e
cansada, morreu à noite. Ela pertence por lei à nossa paróquia e Mr.
Boldwood vai mandar uma carroça às três da tarde para buscá-la e enterrá-la
aqui.”
“Na verdade, não posso deixar Mr. Boldwood fazer tal coisa. Eu vou
fazer isso! Fanny era uma criada de meu tio e, embora só a conhecesse há
poucos dias, ela pertence a mim. Isso é muito, muito triste! A ideia de Fanny
estar num abrigo.” Bathsheba acabara de saber o que era sofrimento e falou
com sentimento real. “Encontre Mr. Boldwood e diga-lhe que Mrs. Troy
tomará para si o dever de buscar uma velha criada da família... Não devemos
colocá-la numa carroça. Usaremos um carro fúnebre.”
“Talvez não”, ela disse, pensativa. “Quando você disse que devemos estar
na porta? Às três horas?”
“Muito bem, vá. Uma carroça bonita é melhor do que um carro funerário
feio, afinal de contas. Joseph, pegue a carroça nova azul com rodas
vermelhas, e lave-a muito bem. E, Joseph...”
"Sim senhora."
“Pode deixar, Madame. Eu devia ter dito que o abrigo, sob a forma de
quatro empregados, me encontrará quando sair do portão do nosso adro, a
levará e a enterrará de acordo com os ritos do Conselho de Guardiões, como
manda a lei.”
“Não. Ela primeiro foi morar numa guarnição do outro lado de Wessex, e
desde então tentou viver de costuras em Melchester por vários meses, na casa
de uma viúva, uma mulher muito respeitável que faz trabalhos desse tipo. Só
chegou ao Abrigo no domingo de manhã, creio eu, acho que ela percorreu
cada passo do caminho de Melchester a pé. A razão de ela ter deixado seu
lugar eu não sei, e não iria mentir. Assim é um resumo da história, Madame.”
“Ah!...”
“Ela andou ao longo da nossa rodovia?”, perguntou ela, com uma voz de
repente inquieta e ansiosa.
“Acredito que ela sim... Senhora, devo chamar Liddy? Não está bem,
Madame, está? Parece um lírio de tão pálida e fraca!”
“Não, não a chame, não é nada. Quando ela passou por Weatherbury?”
“No ultimo sábado à noite.”
“Certamente , senhora.”
Ela virou-se para longe dele, que não perceberia o estado que a abateu tão
visivelmente e entrou em casa com uma sensação angustiante de desmaio e a
testa franzida. Cerca de uma hora depois, ouviu o barulho da carroça e saiu,
ainda com uma consciência dolorosa de seu olhar confuso e perturbado.
Joseph, vestido com suas melhores roupas, estava atrelando o cavalo para
sair. Os arbustos e flores estavam todos empilhados na carroça como ela
havia dito. Bathsheba mal os via agora.
“Tem certeza?”
“De quê?”
“Tenho certeza de que tudo que sei é que ela chegou à parte da manhã e
morreu à noite sem mais conversa. O que Oak e Mr. Boldwood me disseram
foi só: ‘a pequena Fanny Robin morreu, Joseph’, Gabriel disse, me olhando
com seu jeito firme de sempre. Eu fiquei muito triste e disse: ‘Ah! E como é
que ela veio a morrer?’ ‘Bem, ela morreu no Abrigo de Casterbridge’, ele
respondeu, ‘e talvez não importe muito sobre como ela veio a morrer. Ela
chegou ao domingo de manhã cedo no Abrigo e morreu à tarde, isso é certo.’
Então eu perguntei o que ela estava fazendo ultimamente, e Mr. Boldwood
virou-se para mim e tocou um cardo com a ponta de sua bengala. Me contou
sobre ela ter vivido de costuras em Melchester, como já lhe falei, e que saiu
andando no final da semana passada, passando perto daqui no sábado à noite
quando estava escurecendo. Eles então disseram que era melhor que eu
apenas lhe contasse da morte dela, e lá se foram eles. Sua morte pode ter
acontecido por apanhar o vento da noite, sabe, senhora, porque as pessoas
costumavam dizer que ela não estava bem. Tossia bastante no inverno. No
entanto, é tudo muito estranho para nós, agora que acabou.”
“Não ouviu uma história totalmente diferente?”, ela olhou para ele com
tanta intensidade que os olhos de J Joseph tremeram.
“Queria saber por que o próprio Gabriel não trouxe a mensagem para
mim. Ele faz questão de me ver sobre a missão mais insignificante.” Estas
palavras foram apenas murmuradas e ela estava olhando para o chão.
“Parecia que alguma coisa se passava pela cabeça dele enquanto falava
sobre isso com você?”
“Acho que não, Madame. Ele estava muito triste, assim como o
fazendeiro Boldwood.”
“Qual era a cor dos cabelos da pobre Fanny Robin? Você sabe? Eu não
me lembro. Eu só a vi uma ou duas vezes.”
“Sim. Do mesmo regimento que Mr. Troy. Ele disse que o conhecia
muito bem.”
“O que, Mr. Troy disse isso? Como foi que ele disse?”
“Sim, e disse que havia uma forte semelhança entre ele e o outro jovem,
de modo que às vezes as pessoas os confundiam...”
Joseph Poorgrass olhou em volta de sua triste carga para o que aparecia,
indistintamente, através das florações de laurotinos; em seguida, para a
escuridão impenetrável no meio das árvores altas de cada lado, indistinta,
sem sombras e fantasmagórica em seu cinza-monocromático. Não se sentia
alegre e desejou que tivesse a companhia de alguém vivo, ainda que de uma
criança ou um de cão. Ao parar o cavalo, escutou. Nem um passo ou uma
roda era audível em qualquer lugar ao redor. O silêncio de morte foi
quebrado apenas por uma partícula pesada caindo de uma árvore através das
sempre-vivas e pousando com uma batida rápida sobre o caixão da pobre
Fanny. O nevoeiro a esta altura estava saturado nas árvores e aquela foi a
primeira queda da água das folhas encharcadas. O eco vazio de sua queda
lembrou dolorosamente o condutor dos sombrios Levellers.[26] Caiu então
mais uma gota, e depois, duas ou três. Por fim, houve uma batida contínua
dessas gotas pesadas sobre as folhas mortas, na estrada e nos viajantes. Os
ramos mais próximos foram enfeitados com a névoa grisalha, como os
idosos, e as folhas vermelho-oxidadas das faias, penduradas com gotas
semelhantes, como diamantes nos cabelos ruivos.
“É uma boa bebida, muito boa mesmo, e mais do que alegra a minha
tarefa melancólica, por assim dizer.”
“Bem, tenho que continuar”, disse Poorgrass. “Não que não gostaria de
outro trago com vocês, mas a paróquia pode perder a confiança em mim se eu
for visto aqui.”
“De volta para Weatherbury. Estou com a pobre Fanny Robin na minha
carroça lá fora e devo estar às portas cemitério às quinze para as cinco com
ela.”
“Ah... ouvi falar disso. E então ela está num caixão, afinal, sem ninguém
para pagar o sino de um xelim e meia-coroa pela sepultura.
“A criada mais bonita que já vi! Mas por que a pressa, Joseph? A coitada
está morta mesmo e você não pode trazê-la de volta, pode também sentar-se à
vontade e tomar outra conosco.”
“Claro, vai tomar mais um gole. O homem é duas vezes homem depois.
Você se sente tão quente e glorioso que faz o seu trabalho sem qualquer
problema, e tudo continua como varas quebrando. O excesso de bebidas
alcoólicas é ruim e nos leva ao homem com chifres na casa esfumaçada, mas
afinal, muitas pessoas não têm o dom de desfrutar de um trago e uma vez que
somos agraciados com um poder assim, devemos aproveitar ao máximo.”
“Agora, agora, Joseph! Que besteira! A pobre mulher está morta, não
está, por que a pressa?”
“Bem, espero que a Providência Divina não se zangue comigo por minhas
ações”, reclamou Joseph, sentando-se mais uma vez. “Fiquei incomodado
com momentos de fraqueza ultimamente, na verdade. Já bebi uma vez este
mês e não queria ir à igreja no domingo, e ontem praguejei uma ou duas
vezes, então não quero abusar. O seu próximo mundo é o seu próximo mundo
e não para ser desperdiçado de repente.”
“Não falo muito por mim, não quero”, continuou Coggan, com a
tendência de falar em princípios que é característica do grão de cevada. “Mas
nunca mudei uma única doutrina: sou preso como que fundido à antiga fé em
que nasci. Sim, é o que se pode dizer da Igreja, um homem pode pertencer a
Igreja e esperar em sua antiga estalagem alegre e nunca se incomodar ou se
preocupar com doutrinas. Mas para ser um seguidor, você deve ir à capela,
não importa como esteja o tempo, e fazer-se de louco. Os membros da capela
são pessoas muito inteligentes. Eles podem tirar belas orações de suas
próprias cabeças, tudo sobre suas famílias e tragédias no jornal.”
“Os religiosos são mais unha-e-carne entre eles do que conosco”, disse
Joseph, pensativo.
“Sim”, afirmou Coggan. "Sabemos muito bem que se alguém vai para o
céu são eles. Se esforçam para isso e o merecem. Não sou tão tolo para fingir
que nós que só vamos à Igreja temos a mesma chance que eles, porque
sabemos que não temos. Mas odeio um sujeito que vai mudar suas antigas
doutrinas por uma questão de ir para o céu. Sou testemunha do Rei por
poucas. Porque, vizinhos, quando todas as minhas batatas sofreram com a
geada, o nosso Pároco Thirdly foi quem me deu um saco de sementes,
embora quase não tivesse uma para ele mesmo nem dinheiro para comprá-las.
Se não fosse por ele, não teria nenhuma batata para plantar no meu quintal.
Acham que eu não voltaria depois disso? Não, eu vou ficar, e se estivermos
errados, que assim seja: vou cair com os caídos!”
“Bem falado, muito bem falado”, observou Joseph. “No entanto, amigos,
preciso ir agora, não tem jeito. O Pároco Thirdly estará esperando nos portões
da igreja e tem uma mulher aguardando do lado de fora na carroça.”
“Joseph Poorgrass, não fique tão triste! O Pároco Thirdly não vai se
importar. Ele é um homem generoso! Encontrou-me perdido há anos e passei
uma boa parte da minha vida na sombra, mas ele nunca chorou por isso.
Sente-se.”
Quanto mais tempo Joseph Poorgrass permanecia, menos seu espírito
ficava perturbado pelos deveres que recebera naquela tarde. Os minutos se
passavam incontáveis, até que as sombras da noite começavam
perceptivelmente a ficarem mais profundas e os olhos dos três eram os pontos
brilhantes na superfície da escuridão. O relógio repetidor de Coggan marcou
seis horas dentro de seu bolso nos tons costumeiros e curtos.
“Pela minha alma, tenho vergonha de você, seu infame, Joseph, infame!”,
disse Gabriel, indignado. “Coggan, você se diz um homem e faz isso.”
“Não leve por esse lado, pastor!”, disse Mark Clark, olhando em tom de
censura para a vela, que parecia possuir características especiais de interesse
para os olhos.
“Ninguém pode ferir uma mulher morta”, disse Coggan lentamente, com
a precisão de uma máquina. “Tudo o que poderia ser feito para ela já foi feito,
ela está além de nós; e por que um homem deveria colocar-se numa pressa
danada por argila sem vida que nem pode sentir nem ver, e não sabe o que
fazer com ela? Se estivesse viva, eu teria sido o primeiro a ajudá-la. Se agora
ela quisesse comida ou bebida, eu pagaria tudo. Mas ela está morta e nada
que façamos irá trazê-la à vida. Ela nos deixou, tempo passado com ela é
jogado fora. Por que devemos nos apressar para fazer o que não é necessário?
Beba, pastor, e vamos ser amigos, porque amanhã podemos estar como ela.”
Amanhã, amanhã!
Amanhã, ama—[27]
“Pare com essa buzina, Jan!”, disse Oak; e voltando-se para Poorgrass,
“quanto a você, Joseph, que faz seus atos perversos de maneiras tão
abominavelmente santas, está o mais bêbado quanto se pode estar.”
“Sempre aparece quando estou num lugar público por pouco tempo”,
disse Joseph Poorgrass humildemente. “Sim, vejo dois de cada tipo, como se
eu fosse um santo vivendo nos tempos do rei Noé, entrando na arca... é...”,
acrescentou ele, tornando-se muito afetado pela imagem de si mesmo e
derramando lágrimas: “me sinto bom demais para a Inglaterra; eu deveria ter
vivido no Gênesis por direito, como os outros homens de sacrifício e então
não seria ch-ch-chamado de b-b-beberrão desse jeito!”
Gabriel, vendo que nenhum dos três estava apto a assumir o comando da
carroça pelo restante da viagem, não deu resposta e, fechando a porta de
novo, foi até onde o veículo estava, tornando-se indistinto no nevoeiro e na
escuridão daquele tempo coberto de musgos. Puxou a cabeça do cavalo do
grande tapete de relva, reajustou os ramos sobre o caixão e guiou a carroça
pela noite perigosa.
“Não”, disse Gabriel. “Espero que Poorgrass tenha, mas ele está no
Buck’s Head. Esqueci-me de perdir a ele.”
Gabriel tinha suas razões para achar o último um plano mais censurável,
apesar do fato de Fanny ter vivido na casa da fazenda por vários anos quando
o tio de Bathsheba era vivo. Visões de diversas contingências infelizes que
pudessem surgir a partir deste atraso passaram rapidamente diante dele. Mas
sua vontade não era lei, e entrou em casa para consultar a sua patroa sobre
quais eram seus desejos sobre o assunto. Encontrou-a num humor incomum:
seus olhos ao observarem-no eram suspeitos e perplexos como com algum
pensamento antecedente. Troy ainda não tinha retornado. Inicialmente,
Bathsheba concordou com um semblante de indiferença à sua proposição de
que deviam ir para a igreja com a sua carga; mas logo depois, seguindo
Gabriel até o portão, mudou completamente sua solicitude na conta de Fanny,
e pediu que a menina fosse trazida para a casa. Oak argumentou sobre a
conveniência de deixá-la na carroça, assim como estava naquele momento,
com suas flores e ramos sobre ela, apenas empurrando o veículo para a
cocheira até o outro dia, mas sem nenhum propósito.
“Ainda vai precisar de mim, Madame?”, perguntou Liddy, uma hora depois
na mesma noite, de pé ao lado da porta com um castiçal na mão dirigindo-se
a Bathsheba, que estava triste e sozinha na grande sala de estar ao lado do
primeiro fogo da temporada.
“Posso ficar até mais tarde para esperar o patrão se quiser, senhora. Não
fico com medo de Fanny se puder me sentar no meu próprio quarto com uma
vela. Ela era uma jovem tão infantil e tímida que o seu espírito não apareceria
a ninguém, tenho certeza.”
“Oh não, não! Vá dormir. Vou esperar por ele até meia-noite e, se não
chegar a essa altura, vou desistir e ir dormir também.”
“Ah, é?”
“Não, Liddy... não preciso mais de você. Mal posso dizer por que eu
tenho chorado ultimamente. Não costumava chorar. Boa noite.”
“Maryann acaba de ouvir algo muito estranho, mas eu sei que não é
verdade. E vamos ter a certeza de conhecer os direitos disso num dia ou
dois.”
“O que foi?”
Bathsheba virou-se e olhou para o fogo para que Liddy não pudesse ver
seu rosto. Percebendo que a patroa não diria mais nada, Liddy saiu, fechou a
porta suavemente e foi para a cama.
Bathsheba tinha razões para conjecturar uma conexão entre sua própria
história e a tragédia, vagamente suspeita, do fim de Fanny, que Oak e
Boldwood nem por um momento lhe revelaram. O encontro com a mulher
solitária na noite do sábado anterior não teve testemunhas. Oak pode ter tido
a melhor das intenções em reter por tantos dias quanto possível os detalhes do
que tinha acontecido com Fanny, mas se soubesse que as percepções de
Bathsheba já haviam sido exercidas no assunto, não teria feito nada para
alongar os minutos de suspense em que ela estava agora submetida, quando a
certeza que deve terminá-la, afinal, seria pior do que o fato suspeito.
Envolveu-se num manto, foi até a porta e abriu-a. Cada folha de grama,
cada galho estava parado. O ar ainda estava espesso com umidade, embora
um pouco menos denso do que durante a tarde, e um tamborilar constante de
gotas sobre as folhas caídas era quase musical na sua regularidade calmante.
Parecia melhor estar fora de casa do que dentro dela e Bathsheba fechou a
porta, caminhou lentamente pela trilha até que chegou em frente à cabana de
Gabriel, onde agora morava sozinho, tendo deixado a casa de Coggan depois
de passar necessidades por um quarto. Havia uma luz numa única janela. As
venesianas não estavam fechadas nem qualquer cortina estava puxada sobre a
janela, nem o roubo nem a observação eram uma contingência que poderia
trazer muito prejuízo para o ocupante do domicílio. Sim, era o próprio
Gabriel que estava acordado: estava lendo. De seu lugar na estrada, ela pode
vê-lo claramente, sentado, imóvel, sua cabeça clara e cacheada apoiada em
sua mão, e só ocasionalmente olhando para cima para inalar a vela que estava
ao lado dele. Finalmente, olhou para o relógio, parecia surpreso com o
adiantado da hora, fechou o livro e se levantou. Estava indo para a cama, ela
sabia, e se fosse bater à porta, devia fazê-lo imediatamente.
Ai de sua determinação! Sentiu que não poderia fazê-lo. Não podia dar
indícios sobre seu sofrimento para ele por nada no mundo, muito menos
pedir-lhe claramente informações sobre a causa da morte de Fanny. Ela devia
suspeitar, adivinhar, irritar-se e suportá-lo sozinho.
Como um andarilho sem teto ela vagou pelo banco do rio, como se
embalada e fascinada pela atmosfera que parecia espalhar-se pelas poucas
habitações, que sentia tanta falta em sua própria. Gabriel apareceu num
cômodo no andar superior, colocou a luz no banco da janela e, em seguida,
ajoelhou-se para orar. O contraste da imagem com sua existência rebelde e
agitada ao mesmo tempo foi demais para que ela suportasse continuar
olhando. Não era para ela fazer uma trégua com problemas por tais meios.
Devia trilhar sua medida perturbadora e tonta até a última nota, como tinha
começado. Com o coração apertado, ela foi novamente até a trilha e entrou
em sua própria porta.
Mais febril agora por uma reação a partir dos primeiros sentimentos que o
exemplo de Oak haviam levantado nela, parou no corredor, olhando para a
porta do quarto em que Fanny estava. Ela fechou seus dedos, jogou a cabeça
para trás e esfregou suas mãos quentes rigidamente na testa, dizendo com um
soluço histérico:
“Quisera Deus que você pudesse falar e me contar seu segredo, Fanny!...
Oh, eu espero, espero que não seja verdade que há dois de você!... Se eu
pudesse olhá-la só por um único minuto, saberia de tudo!”
“E vou.”
Estava consciente de que descobriu com esta situação uma série de ações
feitas como num sonho extravagante; de seguir essa ideia como um método
que explodiu sobre ela no corredor com obviedade gritante, correndo para o
alto da escada, assegurando-se ao ouvir a respiração pesada de suas criadas
que elas estavam dormindo, correndo para baixo outra vez, girando a
maçaneta da porta onde a jovem estava deitada e deliberadamente
preparando-se para fazer o que, se houvesse previsto tal compromisso à noite
e sozinha, teria ficado horrorizada, mas que, quando feito, não foi tão terrível
quanto a prova conclusiva da conduta do marido que veio ao conhecer sem
sombra de dúvida o último capítulo da história de Fanny.
O rosto de Fanny era emoldurado pelos seus cabelos louros e não havia
mais espaço para dúvidas quanto à origem do cacho em propriedade de Troy.
Na imaginação acalorada de Bathsheba, o rosto branco inocente expressava
uma leve consciência triunfante da tristeza que estava retaliando sua dor com
todo o rigor implacável da lei Mosaica: ‘olho por olho, dente por dente’.
“Oh, eu a odeio, mas não quero dizer que a odeio, porque é doloroso e
perverso, e ainda assim a odeio um pouco! Sim, minha carne insiste em odiá-
la, queira meu espírito ou não!... Se ao menos ela estivesse viva eu poderia
sentir raiva e ser cruel com ela com alguma justificativa, mas ser vingativa
com uma pobre mulher morta recai contra mim. Oh, Senhor, tenha
misericórdia! Estou infeliz em tudo isso!”
“Tenho que ir! Preciso ir!”, disse Bathsheba mais para si mesma do que
para a ele. Foi até a porta com o olhar dilatado para passar por ele.
“Não, fique, eu insisto!”, ele agarrou a mão dela e então a vontade parecia
deixá-la e estava num estado de passividade. Ele, ainda segurando-a, foi à
sala, e assim, de mãos dadas, Troy e Bathsheba aproximaram-se do lado do
caixão. A vela estava num nicho perto deles e a luz inclinada para baixo,
distintamente suscitando as características frias da mãe e do bebê. Troy
olhou, largou a mão de sua esposa, o conhecimento de tudo caiu sobre ele
num brilho lúgubre e ficou parado.
“Você a conhece?”, disse Bathsheba num pequeno eco fechado como que
de dentro de uma cela.
“É ela?”
“Sim.”
O que Troy fez foi ajoelhar-se com uma união indefinível de remorso e
reverência em seu rosto, e, curvando-se sobre Fanny Robin, gentilmente
beijou-a como se beija um bebê dormindo para evitar despertá-lo.
“Não! Não os beije! Oh, Frank, não posso suportar isso, não posso! Eu o
amo mais do que ela o amou! Beije-me também, Frank... beije-me! Vamos,
Frank, beije-me também!”
“O que tem a dizer como seu motivo?”, perguntou ela, com a voz amarga
estranhamente baixa, quase como se fosse de outra mulher.
“Tenho que dizer que sou um homem mau, de coração negro”, respondeu
ele.
“E que esta mulher é sua vítima, e eu, não menos do que ela.”
“Ah! Não me insulte, Madame. Essa mulher é mais para mim, morta
como está, do que você nunca foi, é, ou poderá ser. Se Satanás não tivesse me
tentado com aquele seu rosto e galanteios malditos eu teria me casado com
ela. Nunca tive outro pensamento até que você entrou em meu caminho.
Quisera Deus que eu tivesse, mas é tarde demais!” Ele virou-se para Fanny
então. “Mas não importa, querida”, disse ele, “aos olhos do Céu você é sim,
minha esposa!”
“Se ela é... isso... o que... eu sou?”, acrescentou ela como uma
continuação do mesmo grito e soluçando lastimosamente, e a raridade de que
tal abandono só agravou a condição.
“Você não é nada para mim, nada”, disse Troy impiedosamente. “Uma
cerimônia diante de um sacerdote não faz um casamento. Não sou
moralmente seu.”
Era um tentilhão.
Um esquilo.
Era um jovem camponês. Vindo do lado oposto, ela acreditava pela sua
voz que fosse um dos meninos de sua própria fazenda. Era seguido por uma
caminhada cambaleante de pés pesados e, olhando através das samambaias,
Bathsheba podia discernir à luz pálida do amanhecer uma parelha de seus
próprios cavalos. Pararam para beber numa lagoa no outro lado do caminho.
Ela observou-os agitando-se na água, bebendo, jogando suas cabeças,
bebendo de novo, a água escorrendo como fios de prata. Houve outro
movimento brusco, saíram da lagoa e voltaram novamente para a fazenda.
Havia uma abertura em direção ao leste, e o brilho do sol, que ainda não
havia nascido, atraiu os olhos dela. Aos seus pés e entre as belas samambaias
amareladas, com braços de plumas, o chão inclinava para baixo num oco, que
era uma espécie de pântano pontilhado com fungos. A névoa da manhã,
pendurada sobre ele, era como um véu grosseiro, mas prateado e magnífico,
cheio de luz do sol, ainda que opaca, meio escondida por sua luminescência
nebulosa. Pelos lados desta depressão cresciam feixes de junco, e aqui e ali
uma espécie peculiar de cálamo e suas folhas brilhavam ao sol emergente
como foices. Mas o aspecto geral do pântano era maligno. De seu
revestimento úmido e venenoso pareciam exalar as essências das coisas más
da terra e nas águas debaixo dela. Os fungos cresciam em todos os tipos de
posições das folhas em decomposição e tocos de árvores, alguns exibindo ao
olhar apático dela seus topos úmidos; outros, suas lamelas cheias de limo.
Alguns tinham grandes manchas vermelhas como o sangue arterial, outros
eram amarelo açafrão e outros altos e atenuados, com hastes como macarrão.
Alguns eram parecidos com couro e dos tons ricos de marrom. O buraco
parecia um viveiro de pestes pequenas e grandes, um risco imediato para o
conforto e a saúde da vizinhança, e Bathsheba levantou-se com um tremor no
pensamento de ter passado a noite à beira de um lugar tão lúgubre.
“Oh, minha senhora! Estou tão feliz que a encontrei”, disse a moça assim
que viu Bathsheba.
Ela chegou em segurança do outro lado, e olhou para o belo rosto, embora
pálido e cansado, de sua jovem patroa.
“Não posso falar mais do que um sussurro, estou sem voz”, disse
Bathsheba apressadamente. “Creio que o ar úmido daquele buraco a afetou.”
Liddy, por favor, não me pergunte nada. Quem a mandou aqui?”
“Ninguém. Pensei, quando descobri que você não estava em casa, que
algo cruel tivesse acontecido. Imaginei ter ouvido a voz dele tarde na noite
passada e assim, sabendo que algo estava errado...”
“Não vamos voltar para casa no momento, então. Vamos andar por essa
mata?”
“Mas é melhor entrar, senhora, para comer alguma coisa. Você vai morrer
de frio!”
“Devo pegar algo para comer, e mais alguma coisa para colocar sobre sua
cabeça, além desse pequeno xale?”
“Vou ver.”
Ela voltou com a informação de que os homens haviam acabado de retirar
o cadáver, que perguntaram por Bathsheba, que ela havia respondido que a
patroa estava doente e não podia ir.
“Oh, Madame, não fale assim!”, disse Liddy, pegando sua mão. “Posso
perguntar que coisa terrível aconteceu entre vocês?”
“Tricô?”
“E isso também.”
“Então, Liddy, esteve olhando meus livros sem me dizer, e eu lhe disse
que não o fizesse! Como sabe que me serviria? Não me serviria em nada.”
“Não, eles não olham, e não vou ler livros sombrios. Por que eu deveria
ler livros sombrios? Traga-me O Amor num Vilarejo e A Dama do Moinho, e
Doutor Syntax, e alguns volumes do Spectator.”
Durante todo aquele dia Bathsheba e Liddy ficaram no sótão num estado
de barricada; uma precaução que se mostrou desnecessária contra Troy, pois
ele não apareceu na vizinhança nem as perturbou. Bathsheba sentou-se à
janela até o crepúsculo, por vezes, na tentativa de ler, em outros momentos
observando cada movimento fora sem muito efeito, e ouvindo cada som sem
muito interesse.
Cavalgou lentamente para casa e, pela primeira vez, foi atingido com um
pensamento de que Fanny estivesse realmente impedida por alguma doença
de manter sua promessa. Ela não poderia ter cometido nenhum erro desta vez.
Lamentou que não tivesse permanecido em Casterbridge e feito perguntas.
Chegando em casa, calmamente, desatrelou o cavalo e entrou, como vimos,
para o terrível choque que o aguardava.
Assim que havia luz o suficiente para distinguir objetos, Troy levantou-se
da cama, e num clima de absoluta indiferença para com o paradeiro de
Bathsheba, quase inconsciente de sua existência, desceu as escadas e saiu da
casa pela porta dos fundos. Sua caminhada foi em direção ao cemitério, onde
entrou e procurou ao redor até que encontrou uma sepultura recém-escavada
e desocupada — o túmulo escavado no dia anterior para Fanny. Marcando
sua posição, saiu apressado para Casterbridge, apenas parando e pensando
por um tempo sobre a colina em que vira Fanny viva pela última vez.
Ao chegar à cidade, Troy desceu numa rua lateral e entrou num par de
portas, debaixo de uma placa com os dizeres ‘Lester, trabalhos em pedra e
mármore’. Dentro encontravam-se pedras de todos os tamanhos e modelos,
inscritas como que sagradas para a memória de pessoas não identificadas que
ainda não tinham morrido.
“Eu quero um bom túmulo”, disse ele ao homem que estava num pequeno
escritório no quintal. “Quero o melhor que puder me dar por vinte e sete
libras.”
“Muito bem”, disse Troy, impaciente. “Vamos ver o que você tem.”
“Quanto?”
Troy entrou no adro de Weatherbury por volta das dez horas e foi
imediatamente para o canto onde havia marcado a sepultura vazia no início
da manhã. Ficava do lado obscuro da torre, protegido da visão dos
transeuntes ao longo da estrada na maior parte, um local que até recentemente
era deixado para pilhas de pedras e arbustos de amieiro, mas que agora estava
limpo e próprio para enterros, pela razão do preenchimento rápido do chão
em outro lugar.
Seguimos seu curso até o chão neste ponto do tempo. O fim da parábola
líquida veio para frente da parede, avançando ao longo dos moldes do
pedestral, sobre um amontoado de pedras ao longo da borda de mármore para
o meio da sepultura de Fanny Robin.
Troy não acordou do seu sono desconfortável até que já era dia. Por não
estar numa cama por duas noites, sentia os ombros rígidos, os pés fracos e a
cabeça pesada. Lembrou-se de sua posição, levantou-se, tremeu, pegou a pá e
saiu novamente.
A chuva tinha quase parado e o sol brilhava através das folhas verdes,
marrons e amarelas, agora brilhantes e envernizadas pelos pingos de chuva
com o brilho de efeitos semelhantes aos das paisagens de Ruysdael e
Hobbema, cheio de todas aquelas belezas infinitas que surgem da união de
água e corantes com luzes fortes. O ar estava tão transparente pela forte
chuva que os tons de outono a meia distância eram tão ricos como os mais
próximos, e os campos remotos interceptados pelo ângulo da torre pareciam
no mesmo plano que a própria torre.
Quase pela primeira vez em sua vida, Troy, enquanto estava perto do
túmulo desmantelado, desejou ser outro homem. Sentia, à sua maneira
transitória, centenas de vezes, que não podia invejar a condição de outras
pessoas, pois a posse dessa condição exigiria uma personalidade diferente,
quando não desejar outra senão a sua própria. Não se importava com as
peculiaridades de seu nascimento, as vicissitudes da sua vida, a incerteza
meteórica de tudo o que era relacionado a ele, porque pertenciam ao herói de
sua história, sem as quais não teria havido nenhuma história para ele. Era do
tipo de pessoa que não se importava, afinal, as coisas se acertavam numa data
adequada, e daria tudo certo. Bem, naquela manhã, a ilusão completou seu
desaparecimento e, por assim dizer, de repente, Troy odiava a si mesmo. A
surpresa era provavelmente mais aparente do que real. Como um recife de
coral, à superfície do oceano, que não é mais para o horizonte do que se
nunca tivesse se iniciado.
Bathsheba não dormiu muito bem naquela noite. Quando sua atendente
estava inconsciente e respirando calmamente na sala ao lado, a dona da casa
ainda estava olhando para fora da janela, para o brilho fraco se espalhando
entre as árvores. Não um brilho constante, mas piscando como uma luz
costeira giratória, embora este aspecto não sugerisse que uma pessoa
estivesse indo e voltando na frente dela. Bathsheba sentou-se ali até que
começou a chover e a luz desapareceu, quando foi se deitar sem descanso em
sua cama e reencenar na mente cansada a cena sinistra da noite anterior.
“Ouvi um barulho estranho. Acho que deve ter sido a água das bicas da
torre.”
“Apenas de passagem, como sempre fazia, que eu achei que havia parado
recentemente. Mas as bicas da torre costumavam respingar nas pedras e
estamos intrigados, pois este era como a ebulição de uma panela.”
Não sendo capaz de ler, pensar ou trabalhar, Bathsheba pediu que Liddy
ficasse e tomasse o desjejum com ela. A língua da mulher mais infantil ainda
rondava os acontecimentos recentes. “Vai à igreja, Madame?”, perguntou ela.
“O que a faz pensar que ele foi para lá?”, indagou ela.
EM MEMÓRIA DA AMADA
FANNY ROBIN
Oak a viu e seu primeiro ato foi olhar intrigado e descobrir como ela
tomou conhecimento da autoria da obra, que para ele próprio causou espanto
considerável. Mas, tais descobertas não a afetaram muito. Convulsões
emocionais pareciam ter se tornado comuns à sua história, ela deu-lhe bom
dia e pediu-lhe para preencher o buraco com a pá que estava ali. Enquanto
Oak fazia o que ela pediu, Bathsheba recolheu as flores e começou a plantá-
las com que a manipulação solidária de raízes e folhas, que é tão visível na
jardinagem de uma mulher, cujas flores pareciam compreender e prosperar.
Ela pediu a Oak para chamar os guardiões da igreja para consertar a bica, na
boca da gárgula que pendia aberta para baixo, em cima deles, para que,
assim, o fluxo fosse direcionado para outro lado e uma repetição do acidente
fosse evitada. Finalmente, com a magnanimidade supérflua de uma mulher,
cujos instintos mais estreitos traziam-lhe amargura em vez de amor, limpou
as manchas de lama do túmulo, como se apreciasse todas as palavras ali
escritas, e voltou para casa.
CAPÍTULO XLVII
AVENTURAS À BEIRA-MAR
“Não, não é verdade, não pode ser verdade!”, então não disse nem ouviu
mais nada. O gelo do autocontrole que recentemente a cobrira estava
quebrado e as correntes romperam-se novamente a oprimi-la. A escuridão
cobriu seus olhos e ela caiu.
Avançou novamente e mandando uma mulher até ela, saiu para verificar
todos os fatos do caso. Estes pareciam estar limitados ao que ele já tinha
ouvido. Ordenou então que seu cavalo fosse colocado no veículo e quando
tudo estava pronto, voltou para informá-la. Descobriu que, embora ainda
pálida e doente, havia mandado chamar o homem de Budmouth que trouxe a
notícia e ouviu dele tudo o que havia para saber.
Como mal tinha condições de voltar para casa como viera à cidade,
Boldwood, com toda delicadeza de modos e sentimentos, ofereceu-se para
arranjar-lhe um condutor ou para usar um lugar em sua carruagem, que era
mais confortável do que o seu próprio transporte. Bathsheba, gentilmente,
recusou as propostas e o fazendeiro partiu imediatamente.
Cerca de meia hora mais tarde ela se recuperou com esforço e tomou seu
assento e as rédeas, como de costume, como se nada tivesse acontecido. Saiu
da cidade por uma rua tortuosa na parte de trás e dirigiu lentamente,
inconsciente da estrada e da paisagem. As primeiras sombras da noite
mostravam-se quando Bathsheba chegou em casa, onde, silenciosamente
pousando e deixando o cavalo nas mãos do menino, foi diretamente para o
andar de cima. Liddy a encontrou no patamar. A notícia havia precedido
Bathsheba em Weatherbury por meia hora e Liddy olhava interrogativamente
para o rosto de sua patroa. Bathsheba não tinha nada a dizer.
“Eu estava pensando que deve haver algo para você usar”, disse Liddy,
hesitante.
“Luto.”
“Mas acho que deve haver algo a ser feito pelo pobre...”
“Eu não sei. Mas não seria diferente se eu não tivesse ouvido, Liddy?...
Ou... eu não sei como é, mas a morte seria diferente de como... Estou
perfeitamente convencida de que ele ainda está vivo!”
Bathsheba permaneceu firme na presente opinião até segunda-feira,
quando duas circunstâncias associadas a abalaram. A primeira foi um
pequeno parágrafo no jornal local, que, além de fazer por uma sistematização
evidente e formidável de presumir a morte de Troy por afogamento, continha
o testemunho importante de um jovem, certo Mr. Barker, médico de
Budmouth, que falou de ser uma testemunha ocular do acidente em uma carta
ao editor. Nisso, ele afirmou que estava passando sobre o penhasco, no lado
mais remoto da enseada, quando o sol estava se pondo. Naquele momento,
viu um banhista sendo arrastado na corrente para fora da entrada da enseada e
imaginou imediatamente que havia apenas uma pequena chance para ele, a
menos que possuisse poderes musculares incomuns. Flutuou para trás de uma
projeção da costa e Mr. Barker seguiu ao longo da costa na mesma direção.
Entretanto, pelo tempo que poderia alcançar uma altitude suficientemente
grande para ter uma vista do mar além, chegou o crepúsculo e nada mais
pôde ser visto. A outra circunstância foi a chegada de suas roupas, quando foi
necessário que ela as examinasse e identificasse, embora isso houvesse sido
feito muito antes por aqueles que inspecionaram as cartas em seus bolsos. Era
tão evidente para ela no meio de sua agitação, que Troy havia se despido na
plena convicção de vestir-se de novo, quase imediatamente, que a noção de
que qualquer coisa, menos a morte, poderia tê-lo impedido de que aquela
diversão era perversa.
Boldwood vivia isolado e inativo. Grande parte do seu trigo e toda a sua
cevada daquela temporada foram estragados pela chuva. Ela germinou
cresceu em esteiras intrincadas e acabou por ser jogada aos porcos às
braçadas. A estranha negligência, que resultou nesta ruína e perda, tornou-se
o assunto da conversa à boca miúda entre todos nas redondezas. Foi
desencadeada por um dos homens de Boldwood, que contou que o
esquecimento não tinha nada a ver com o ocorrido, pois Boldwood havia sido
lembrado, muitas vezes e com tanta persistência que seus inferiores se
atrevessem a fazer, do perigo que seu milho corria. A visão dos porcos
transformando em desgosto as espigas podres pareceu despertar Boldwood e
ele mandou chamar Oak uma noite. Se foi sugerido pelo recente ato de
promoção de Bathsheba ou não, o fazendeiro propôs, na entrevista, que
Gabriel assumisse a superintendência de Lower Farm, bem como da de
Bathsheba, devido à necessidade que Boldwood sentia por tal auxílio, bem
como a impossibilidade de encontrar um homem mais confiável. A estrela
maligna de Gabriel estava seguramente se afastando depressa.
“Seja o que for que pensem”, disse Susan Tall, “Gabiel Oak está ficando
muito vaidoso. Agora ele usa botas brilhando duas ou três vezes por semana,
uma cartola aos domingos, e mal sabe o nome de um avental. Quando vejo as
pessoas se empavoarem tanto disfarçando que são galinhas, fico apenas
imaginando e não falo mais nada!”
Acabou por ser conhecido que Gabriel, embora recebesse um salário fixo
da parte de Bathsheba, independente das flutuações dos lucros agrícolas,
tinha assumido um compromisso com Boldwood pelo qual recebia uma parte
das receitas, pequena, certamente, mas era dinheiro de uma maior qualidade
do que meros salários e capaz de expansão de uma forma que os salários não
eram. Alguns estavam começando a considerar Oak um pão duro, pois,
embora sua condição tivesse melhorado, não vivia num estilo melhor do que
antes, ocupando a mesma cabana, cultivando suas próprias batatas,
remendando as meias e, às vezes, até mesmo arrumando sua cama com suas
próprias mãos. Mas, como Oak não era apenas provocadoramente indiferente
à opinião pública, mas um homem que se agarrava persistentemente aos
velhos hábitos e costumes, simplesmente por serem antigos, não havia
margem para dúvidas quanto aos seus motivos.
“Espero que Mrs. Troy esteja bem depois de sua longa ausência”,
continuou ele, imaginando que por Lydia falar sobre sua vizinha, de uma
forma usual e fria, pudesse dizer mais sobre ela.
“E contente, eu suponho.”
“Sim, alegre.”
“Não, senhor.”
"Sim, senhor.”
“Mrs. Troy confia muito em você, Lydia, e muito sabiamente, talvez.”
“Sim, senhor. Estive com ela durante todos os seus problemas, e estava
com ela quando Mr. Troy se foi. E se ela se casar de novo, espero ficar com
ela.”
“Ela nunca faz alusão a isso, senhor”, disse Liddy, pensando em como
Mr. Boldwood estava ficando estúpido.
“Minha patroa certamente disse uma vez, embora não a sério, que achava
que poderia se casar novamente no final de sete anos, a partir do ano passado,
arriscando-se com o retorno de Mr. Troy para reclamá-la.”
“Ah, seis anos agora. Disse que poderia. Pode se casar imediatamente na
opinião das pessoas razoáveis, o que quer que os advogados possam dizer do
contrário.”
Esta noção agradável ficou continuamente em sua mente. Seis anos eram
um longo tempo, porém mais curto que nunca, a ideia que foi muito tempo
obrigado a suportar! Jacó serviu Raquel[29] duas vezes por sete anos: o que
eram seis para uma mulher como essa? Tentou gostar da noção de esperar por
ela melhor do que a de ganhá-la imediatamente. Boldwood sentia que seu
amor era tão profundo, forte e eterno, que era possível que ela nunca
conhecesse o seu volume total, e essa paciência atrasada podia trazer-lhe uma
oportunidade de dar provas doces sobre aquilo. Ele aniquilaria os seis anos de
sua vida como se fossem minutos, tão pouco ele valorizava seu tempo na
terra. Ele a deixaria ver, por todos esses seis anos de corte etérea intangível,
como pouco se importava com algo como pela consumação de seu amor.
“Ora”, disse Coggan, apelando numa voz séria para o público em geral,
uma vez que estava apertado até suas omoplatas. “Já ouviram uma mulher
tão injusta assim? Por meu cadáver, vizinhos, se eu pudesse sair dessa prensa
de queijo, as malditas mulheres poderiam comer a apresentação por mim!”
Jan segurou a língua para não reclamar, como se não tivesse nenhuma
objeção a ser pacificado para agradar a um amigo. Pouco a pouco chegaram
ao pé da escada, com Poorgrass sendo achatado como um boneco de
engonço, em meio ao fedor por causa do calor. Num aperto de mão animado
com a mulher em lantejoulas, anéis de bronze, diamantes de vidro, rosto e os
ombros riscados, lá se foram os seis centavos da entrada que havia preparado
meia hora mais cedo. Ela levou o dinheiro dele e, às pressas, deixou cair
novamente por medo de que algum truque tivesse queimado seus dedos.
Então todos entraram e o pano da tenda, aos olhos de um observador do lado
de fora, inchou-se em inúmeras bolhas como um saco de batatas, causado
pelas diferentes cabeças, costas e cotovelos humanos em alta pressão no
interior.
“Espero que as ovelhas estejam bem hoje, Mrs. Troy”, disse ele, nervoso.
“Sim, exceto que tenho que ver mais um negociante em duas horas,
senão, deveria estar indo para casa. Ele estava olhando para a tenda enorme e
para o anúncio. Já viu a peça ‘Turpin’s Ride to York”? Turpin existiu mesmo,
não existiu?”
“Oh, sim, perfeitamente que sim. Na verdade, acho que já ouvi Jan
Coggan dizer que um parente seu conhecia Tom King, amigo de Turpin,
muito bem.”
“Sim, sim, conhecemos Coggan. Mas Turpin é, sim, real. Você nunca viu
a encenação, creio eu?”
“Nunca. Eu não tinha permissão para entrar nesses lugares quando era
jovem. Ouça! O que é aquela agitação? Como eles gritam!”
“Acho que Black Bess acabou de começar. Estou certo em supor que
gostaria de ver a apresentação, Mrs. Troy. Por favor, desculpe-me se estiver
errado, mas se quiser, posso conseguir uma cadeira para você com prazer.”
Percebendo que ela hesitou, ele acrescentou: “Eu mesmo não ficarei para
assistir: já vi antes.”
Ela parecia tão encantadora e linda que a frieza dele com as pessoas de
Weatherbury mudou. Não esperava que ela exercesse esse poder sobre ele
num piscar de olhos. Deveria continuar e não se importar com nada? Não
conseguia fazer isso. Além de um desejo político para permanecer
desconhecido, de repente, surgiu nele um sentimento de vergonha. A
possibilidade de que sua jovem e atraente esposa, que já o desprezou,
desprezasse ainda mais, encontrando-o em condição tão ruim depois de tanto
tempo, o apavorou. Ele realmente corou com o pensamento e estava
incomodado demais, pois seus sentimentos de desagrado para com
Weatherbury o haviam levado a flertar de uma maneira perigosa e
desconcertante para ele.
Mas Troy nunca foi tão inteligente quanto a sua sagacidade. Empurrou
apressadamente a cortina que dividia seu camarim com o do administrador e
proprietário, que agora aparecia como o indivíduo chamado Tom King, e
disse:
“O diabo está aqui para me cobrar.”
“Como?”
“Ora, há um credor patife na tenda que não quero ver, que vai me
descobrir e me prender tão certo como Satanás se eu abrir a minha boca. O
que pode ser feito?”
“Não posso.”
“Diga que Turpin está resfriado e não pode falar, mas que fará seu papel
do mesmo jeito, porém sem falar.”
“De qualquer forma, com ou sem a peça, não vou abrir minha boca”,
disse Troy, com firmeza.
“Muito bem, então deixe-me ver. Vou lhe dizer como trabalhamos”, disse
o outro, que, talvez, pensou que seria extremamente difícil de ofender seu
astro principal naquele exato momento. “Não direi a eles coisa alguma sobre
seu silêncio. Continue com a peça e não diga nada, fazendo o que puder com
uma piscadela criteriosa vez em quando, e alguns acenos indomáveis nos
lugares heroicos, certo? Nunca vão descobrir que as falas foram omitidas.”
Aquilo parecia viável o bastante, pois as falas de Turpin não eram muitas
ou longas e o fascínio da peça estava inteiramente na ação. O espetáculo
começou normalmente, e na hora marcada Black Bess saltou para dentro do
círculo gramado em meio aos aplausos dos espectadores. Na cena da estrada,
onde Bess e Turpin são perseguidos durante a noite pelos oficiais, e o
porteiro meio acordado com sua touca de franjas nega que qualquer cavaleiro
tenha passado, Coggan soltou um ‘Bem feito!’ do estufado e pôde ser ouvido
por toda a feira apesar dos balidos das ovelhas. Poorgrass sorriu feliz com
uma agradável sensação do contraste dramático entre o nosso herói, que
pulou friamente o portão, repensando a justiça na forma de seus inimigos,
cujas necessidades eram esperar para deixar passar. Com a morte de Tom
King, Coggan ficou com lágrimas nos olhos: “É claro que ele não levou
realmente um tiro, Jan, só aparentemente!” E quando a última cena triste veio
e o corpo do galante e fiel Bess teve que ser levado para um obturador por
doze voluntários dentre os espectadores, nada pôde conter Poorgrass de
estender a mão, exclamando, conforme pedia a Jan de se juntar a ele: “será
algo para contar no Warren’s nos próximos anos, Jan, e passar para os nossos
filhos.”
Troy via a cena completamente agora. Ela estava inclinada para trás,
tomando uma xícara de chá que tinha na mão e o dono da voz masculina era
Boldwood, que aparentemente tinha apenas trazido a xícara para ela.
Bathsheba, de um modo negligente, tinha os braços cruzados à frente do
corpo, e estava de costas para a lona que era pressionada pelos seus ombros.
Ela estava, na verdade, tão bem quanto nos braços de Troy, e ele foi obrigado
a conter sua respiração com cuidado para que ela não sentisse o seu calor
através do tecido da lona. Troy encontrou acordes inesperados de uma
sensação se agitando novamente dentro dele, como aconteceu no início
anteriormente. Ela estava bonita como sempre e era dele. Passaram-se alguns
minutos antes que ele pudesse neutralizar seu desejo repentino de entrar e
reclamá-la. Então pensou em como a menina orgulhosa que sempre o olhou
de cima mesmo enquanto o amava, o odiaria ao descobrir que ele era um
artista itinerante. Se fosse reconhecido, esse capítulo de sua vida devia ser
escondido para sempre dela e das pessoas de Weatherbury, ou seu nome seria
uma piada em toda a paróquia. Ele seria apelidado de ‘Turpin’ enquanto
vivesse. Seguramente antes que pudesse reclamá-la estes poucos últimos
meses de sua existência deviam ser completamente apagados.
“Não posso ouvi-lo agora”, disse ela friamente. Que Bathsheba não podia
suportar aquele homem era evidente. Na verdade, ele estava continuamente
vindo a ela com uma história ou outra, pela qual podia rastejar em favor à
custa de caluniados.
Dobrou o papel e entregou a ela. Bathsheba não iria lê-lo, nem mesmo o
pegaria para levá-la. Pennyways, então, com um riso de escárnio, jogou-o no
seu colo, e, virando-se, deixou-a.
O acerto para voltar para Weatherbury fora que Oak deveria tomar o lugar
de Poorgrass no transporte de Bathsheba e levá-la para casa, descobrindo-se
no final da tarde que Joseph estava sofrendo do que sempre reclamava, um
olho multiplicador e estava, portanto, pouco confiável como cocheiro e
protetor de uma mulher. Oak, contudo, viu-se tão ocupado, pois estava cheio
de tantos cuidados relativos aos rebanhos de Boldwood que não foram
vendidos que Bathsheba, sem falar com ele ou mais alguém, resolveu ir para
casa sozinha como fez muitas vezes do Mercado de Casterbridge, e confiar
em seu bom anjo para realizar a viagem sem ser molestada. Mas, ao encontrar
com o fazendeiro Boldwood acidentalmente (por parte dela, pelo menos) na
tenda de refrescos, descobriu que era impossível recusar a oferta dele para
cavalgar ao lado dela como escolta. O crepúsculo chegou antes do que ela
percebesse, mas Boldwood assegurou-lhe que não havia motivo para
inquietação, pois a lua apareceria em meia hora.
Ele logo encontrou uma desculpa para o avanço de sua posição na parte
traseira e caminhava ao lado dela. Tinham percorrido duas ou três milhas ao
luar, falando enfastiadamente através da condução do coche dela, sobre a
feira, sobre agricultura, a utilidade de Oak para os dois e outros assuntos
indiferentes, quando Boldwood simplesmente disse, de repente:
“Não se esqueça que sua morte não foi absolutamente comprovada e pode
não ter ocorrido, de modo que posso não ser realmente uma viúva”,
complementou ela, pegando a rota de fuga que o fato proporcionava.
“Não tenho nenhuma agora ou teria agido de forma diferente”, disse ela,
delicadamente. “É claro que a princípio eu tinha um sentimento inexplicável
e estranho que ele não poderia ter morrido, mas sou capaz de explicar de
várias maneiras desde então. Mas, embora esteja plenamente convencida de
que não o verei mais, estou longe de pensar em casamento com outro. Seria
ser muito desprezível ter tal pensamento.”
“Também fico muito triste”, disse ela, e depois se conteve. “Quero dizer,
você sabe, sinto muito pelo que pensou de mim.”
“E agora?”
“Sim.”
“Qual deles?”
“Não sei, pelo menos não posso lhe dizer. É difícil para uma mulher
definir seus sentimentos na linguagem que é, principalmente, feita para os
homens se expressarem. A forma com o tratei foi impensada, indesculpável,
má! Arrependerei-me eternamente. Se houvesse alguma coisa que eu pudesse
ter feito para fazer as pazes, teria feito com prazer... não havia nada no
mundo que eu desejasse mais do que reparar meu erro. Mas isso não era
possível.”
“Não se culpe. Não errou tanto como imagina. Bathsheba, suponha que
tivesse a prova real completa do que é, na verdade que está... viúva...
repararia o velho erro casando-se comigo?”
“Bem, então você sabe que, sem mais uma prova de qualquer tipo que
pode se casar novamente em cerca de seis anos a partir da data atual, sujeita a
nenhuma objeção ou culpa?”
“Ah, sim”, concordou ela rapidamente. “Sei de tudo isso. Mas não vamos
falamos disso — seis ou sete anos — onde estaremos a essa altura?”
“Agora ouça mais uma vez”, implorou Boldwood. “Se eu esperar tanto
tempo, se casará comigo? Você já possui o que você me deve... deixe que
seja a sua maneira de desculpar-se.”
“Claro, esquecerei o assunto se quiser. Mas decoro nada tem nada a ver
com razões. Sou um homem de meia-idade, disposto a protegê-la para o resto
de nossas vidas. Pelo seu lado, pelo menos, há paixão ou precipitação
censurável; para mim talvez haja. Mas não posso deixar de ver que se você
escolher a partir de um sentimento de piedade e como diz, um desejo de
reparação fazendo uma barganha comigo para o futuro, um acordo que
acertará todas as coisas direito e me fará feliz, embora possa ser tarde, não há
nada de errado em estar com você como uma mulher. Não fui o primeiro ao
seu lado? Quase não foi minha uma vez? Certamente pode dizer tanto quanto
sobre mim, me terá de volta caso as circunstâncias o permitam? Agora, por
favor, fale! Oh, Bathsheba, é apenas uma pequena promessa que se você se
casar de novo será comigo!”
Seu tom era tão animado que ela quase teve medo dele naquele momento,
mesmo enquanto o compreendia. Foi um simples medo físico do fraco pelo
forte. Não havia nenhuma aversão emocional ou repugnância interior. Ela
disse, com alguma aflição na voz por lembrar-se vividamente de sua explosão
na estrada de Yalbury e encolheu a uma repetição da sua ira:
“Mas deixe repousar estas simples palavras: dentro de seis anos será
minha esposa? Não mencionemos acidentes inesperados, porque estes, é
claro, devem ser respeitados. Desta vez sei que manterá sua palavra.”
“Oh, o que posso fazer? Não o amo e tenho muito medo de que nunca o
ame tanto quanto uma mulher deve amar um marido. Se sabe disso e ainda
posso dar-lhe a felicidade por uma mera promessa de casamento no final de
seis anos se meu marido não voltar, é uma grande honra para mim. E se
valoriza tamanho ato de amizade de uma mulher que não se estima e tem
pouco amor sobrando, por que eu... eu...”
“Prometa!”
“No Natal!”, ele não disse mais nada até que acrescentou: “Bem, não direi
mais nada sobre isso até lá.”
“Bem, acho, senhora, o mesmo que disse anos atrás”, disse Oak, “que a
vida dele será um vazio total se não tiver esperanças por você, mas não posso
supor... Espero que nada tão terrível esteja ligado a isso como imagina. Sua
maneira natural sempre foi sombria e estranha, você sabe. Mas como o caso é
tão triste e esquisito, por que não dá uma promessa condicional? Acho que eu
faria assim.”
“Bem, sua falta de amor parece-me a única coisa danosa de tal acordo
com ele. Se houvesse um calor selvagem, fazendo-a desejar superar a
estranheza sobre o desaparecimento do seu marido, então estaria errado, mas
um acordo de coração frio, compromentendo-se com um homem parece
diferente, de alguma forma. O verdadeiro pecado, senhora, em minha
opinião, encontra-se no pensamento de se casar com um homem que não ama
honesta e verdadeiramente.”
“Que estou disposta a pagar por isso”, disse Bathsheba com firmeza.
“Sabe, Gabriel, é isto que eu não consigo tirar da minha consciência, que o
feri uma vez seriamente por pura futilidade. Se eu nunca tivesse feito aquela
brincadeira, ele nunca iria querer se casar comigo. Oh, se ao menos eu
pudesse pagar os danos em dinheiro, pagar pelo mal que eu fiz e assim
remover o pecado da minha alma!... Bem, há a dívida, e só pode ser quitada
de uma maneira, e creio que eu sou obrigada fazer isso; se honestamente se
encontra em meu poder, sem qualquer consideração de meu próprio futuro,
devo fazê-lo. Quando um farrista atira suas expectativas para longe, o fato de
ser uma dívida inconveniente não o torna menos responsável. Eu fui a farrista
e o único ponto que pode ser considerado são os meus próprios escrúpulos.
Mas, o fato é que, aos olhos da lei, o meu marido está apenas desaparecido e
eu não posso me casar com qualquer homem até que sete anos se passem.
Estou livre para acolher tal ideia, mesmo que seja uma espécie de penitência,
pois não será isso? Eu odeio o ato do casamento em tais circunstâncias e é a
classe das mulheres a qual parecerei pertencer ao fazê-lo!”
“Parece-me que tudo depende de como você pensa, como todo mundo
faz, que o seu marido está morto.”
“Sim... faz muito tempo que deixei de duvidar disso. Sei muito bem o que
o teria trazido de volta há muito tempo se estivesse vivo.”
“Bem, então, no sentido religioso, você será tão livre para pensar em se
casar novamente como qualquer viúva real dentro de um ano. Mas, por que
não pede um conselho a Mr. Thirdly sobre como tratar Mr. Boldwood?”
“Não. Quando quero uma opinião de mente aberta para esclarecimento
comum, diferente de um conselho especial, jamais iria a um homem que lida
com o assunto profissionalmente. Também gosto da opinião do pároco sobre
a lei, do advogado sobre a advocacia, do doutor para os negócios, e de meu
administrador para a moral, que é você.”
“E no amor...”
“Tenho medo que haja um obstáculo a este argumento”, disse Oak, com
um sorriso preocupado.
Conforme ficava mais tarde, o fogo foi aceso no grande e amplo salão, no
qual a escada descia e tudo que pudesse atrapalhar foi esvaziado para a dança.
A lenha que formaria a marca do fogo da noite era um tronco sem rachaduras
de uma árvore, tão pesado que não poderia ser nem trazido nem rolado para o
seu lugar e, consequentemente, dois homens foram vistos arrastando-o e
erguendo-o por correntes e alavancas conforme a hora da montagem se
aproximava.
***
“Pois eu gostaria de ir”, disse Liddy, que ia com ela. Boldwood foi
indiscriminado em seus convites.
“Sim. Eu sou a razão da festa. Se não fosse por mim, ela nunca
aconteceria. Eu não posso explicar mais... não há mais nada a ser explicado.
Queria nunca ter visto Weatherbury.”
“Não, Liddy. Nunca estive livre de problemas desde que moro aqui, e esta
festa é provável que me traga mais. Agora, pegue meu vestido de seda preta e
veja como ele fica em mim.”
***
“Oh, Oak”, disse Boldwood. “É claro que vou vê-lo aqui esta noite.
Alegre-se. Estou determinado: nem despesas nem problemas me tirarão a
paz.”
“Vou tentar estar aqui, senhor, embora talvez não muito cedo”, informou
Gabriel, em voz baixa. “Estou feliz, de fato, por ver essa sua mudança de que
costumava ser.”
“Sim, tenho que reconhecer. Estou radiante esta noite! Alegre e mais do
que alegre, tanto que quase fico triste novamente com a sensação de que tudo
isso está passando. E, às vezes, quando estou excessivamente esperançoso e
contente, sinto que um problema está se aproximando, de modo que, muitas
vezes, começo a buscar a melancolia em mim, pois temo está feliz. Ainda que
possa ser um absurdo, sinto que é mesmo absurdo. Talvez, finalmente, a
minha hora esteja chegando.”
“Oh, não é nada. Quero que faça o melhor que puder, por favor. Existe
algum nó na moda, Oak?”
“Não sei, senhor”, respondeu Oak. Seu tom tinha afundado em tristeza.
“Não vou responder por ela”, disse Oak com fraca amargura. “Essa
palavra é com tantos furos quanto uma peneira.”
“Oak, não fale assim. Anda muito cínico ultimamente... por quê? Parece
que mudamos as nossas posições: eu me tornei o homem jovem e
esperançoso, e você, um velho e incrédulo. No entanto, uma mulher cumpre
uma promessa, não de se casar, mas de comprometer-se a se casar algum
momento? Você conhece as mulheres melhor do que eu... diga-me.”
“Ainda não chegamos aí, mas acho que chegaremos em breve, sim, sei
que vamos”, disse ele num sussurro impulsivo. “Eu a pressionei sobre o
assunto, e ela se dispõe a ser gentil comigo e pensar em mim como um
marido no futuro, e isso é suficiente para mim. Como posso esperar mais? Ela
tem uma noção de que uma mulher não deve se casar dentro de sete anos do
desaparecimento de seu marido, o que não deveria mesmo, quero dizer,
porque seu corpo não foi encontrado. Pode ser apenas essa razão legal que a
influencie, ou pode ser um motivo religioso, mas ela está relutante em falar
sobre o ponto. No entanto, ela prometeu... deu indícios... que irá ratificar um
compromisso esta noite.”
“Não, não! Não é assim!”, ele disse, com impaciência. “Cinco anos, nove
meses e alguns dias. Quinze meses quase se passaram desde que ele
desapareceu, e não há nada tão maravilhoso num compromisso de pouco
mais de cinco anos?”
“Parece muito tempo olhando para frente. Não espere muito sobre tais
promessas, senhor. Lembre-se, já foi enganado uma vez. A intenção dela
pode ser boa, mas... ela ainda é jovem.”
***
“Boldwood?”
“Isso é um incômodo.”
“Mas não é isso, exatamente. Se um homem muda seu nome e assim por
diante, e toma medidas para enganar o mundo e sua própria esposa, ele é uma
fraude, e que aos olhos da lei é mais que um ladino, e que não é menos que
um vagabundo, e isso é uma situação punível.”
“Ha-ha! Muito bem, Pennyways”, Troy riu, mas foi com alguma
ansiedade que disse: “Agora, o que quero saber é o seguinte, você acha que
não há realmente nada acontecendo entre ela e Boldwood? Por minha alma,
eu nunca deveria ter acreditado! Como ela deve me detestar! Descobriu se ela
tem dado espaço a ele?”
“Não fui capaz de saber. Parece que há muito sentimento por parte dele,
mas não sei por parte dela. Não soube uma palavra sequer sobre qualquer
coisa até ontem, e tudo que eu ouvi foi que ela iria à festa na casa dele esta
noite. Dizem que esta é a primeira vez que ela vai lá. E dizem que não tem
falado muito com ele desde que estiveram em Greenhill Fair. Mas pode-se
acreditar no que as pessoas falam? No entanto, ela não está apaixonada por
ele, muito arisca e desinteressada, pelo que sei.”
“Não tenho tanta certeza disso... Ela é uma mulher bonita, Pennyways,
não é? Admita que você nunca viu uma criatura mais fina ou mais esplêndida
em sua vida. Por minha honra, quando eu pus os olhos nela naquele dia, me
perguntei como pude ser capaz de deixá-la sozinha por tanto tempo. E então
fui prejudicado com aquele espetáculo entediante, do qual estou livre,
finalmente, graças às estrelas”, fumou um pouco e depois acrescentou:
“Como ela estava quando passou por ela ontem?”
“Oh, ela não prestou muita atenção em mim, você pode imaginar, mas
parecia muito bem, até onde eu sei. Apenas piscou os olhos altivos sobre o
meu pobre corpo e depois passou por mim como se eu não passasse de uma
árvore sem folhas. Tinha acabado de descer de sua égua para ver a última
prensa de sidra do ano. Esteve cavalgando, então suas cores estavam fortes e
sua respiração era bem rápida, de modo que o peito se estufava e abaixava,
estufava e abaixava o tempo todo que eu olhei. Ah, e havia os rapazes em
volta dela espremendo o queijo, correndo em volta dela e dizendo: ‘Cuidado
com as maçãs, senhora, vai estragar seu vestido.’ ‘Não importa’, dizia ela.
Então Gabe trouxe um pouco de sidra e ela tinha que beber por um canudo, e
não de uma forma natural. ‘Liddy’, disse ela, ‘leve alguns galões para dentro
e vou fazer um pouco de vinho de sidra.’
“Tenho que encontrá-la de uma vez... Oh, sim, eu sei... tenho que ir. Oak
ainda é quem está à frente, não é?”
“Sim, creio eu. E em Little Weatherbury Farm também. Ele toma conta
de tudo.”
“Não sei disso. Ela não pode ficar sem ele, e sabe muito bem que ele é
muito independente. E ela tem lugares suaves para ele em sua mente, embora
eu nunca fui capaz num deles, diabos!”
“Ah, capataz, ela está acima de você, e tem que assumir isso: uma classe
superior de animal, um tecido mais fino. No entanto, junte-se a mim e não
será esta deusa altiva, de feminilidade vistosa, Juno minha esposa (Juno era
uma deusa, sabe), nem ninguém lhe fará dano algum. Mas tudo isso precisa
de atenção, pelo que percebo. Com uma coisa e outra.”
***
“Nunca a vi tão bem antes. Sim, vou lhe dizer quando esteve assim:
naquela noite, um ano e meio atrás, quando veio tão ferozmente e nos
repreendeu por fazer observações sobre você e Mr. Troy.”
“De qualquer forma, minha senhora, não pode se vestir com mais
simplicidade do que como está, a menos que use um saco. É o seu entusiasmo
que a faz parecer tão notável esta noite.”
“Eu não sei qual é o problema, me sinto triste num momento e flutuante
em outro. Queria poder ter continuado sozinha como fui pelo último ano ou
assim, sem esperança, sem medos, sem prazer e sem dor.”
***
“Por favor, não fale sobre isso, senhor”, pediu Oak apressadamente. “Não
sabemos o que pode acontecer. Tantas ruínas podem acontecer... Há muitos
deslizes, como dizem, e aconselho-o... eu sei se você vai me perdoar por isso
dessa vez... não tenha tanta certeza.”
“Eu sei, eu sei. Mas a sensação que tenho sobre o aumento de sua parte é
por causa do que sei de você. Oak, sei um pouco do seu segredo: o seu
interesse por ela é mais que o de um administrador pela patroa. Mas se
comportou como um homem, e eu, como uma espécie de rival bem-sucedido,
em parte, através de sua bondade de coração... gostaria definitivamente de
demonstrar o meu sentimento pela sua amizade, sobre o que deve ter sido
uma grande dor para você.”
“Eu já estava descendo. Estas rodas que ouvi, são de Mrs. Troy?”
***
Ele estava abotoando um sobretudo cinza pesado, com capa e gola altas,
sendo esta última ereta e rígida, como uma parede côncava e quase chegando
à beira de um chapéu de viagem que foi puxado para baixo sobre suas
orelhas.
“Por que não escreve para ela? Está numa situação muito esquisita,
Sargento. Sabe que todas estas coisas virão à luz se você voltar e elas não são
tão boas. Sim, se eu fosse você, aguardaria como está, um solteiro com o
nome de Francis. Uma boa esposa é bom, mas a melhor esposa não é tão bom
como não ter nenhuma. É isso que penso e sou chamado de astuto aqui e ali.”
“É tudo um absurdo!”, disse Troy, com raiva. “Lá está ela com tanto
dinheiro, uma casa e uma fazenda, cavalos, conforto, e aqui estou eu vivendo
na miséria, um aventureiro necessitado. Além disso, não adianta falar agora, é
tarde demais e estou contente com isso. Fui visto e reconhecido aqui esta
tarde. Deveria ter voltado para ela no dia após a feira se não fosse por você
falando sobre a lei e aquele lixo sobre conseguir uma separação. Não vou
adiar isso por mais tempo. Que diabo me deu na cabeça para fugir, não
entendo! Um sentimento idiota, isso é o que foi. Mas, que homem no mundo
saberia que sua esposa teria com tanta pressa para se livrar de seu nome!”
“Bem, Sargento, tudo o que eu digo é que, se eu fosse você, iria para o
estrangeiro novamente de onde veio... não é tarde demais para fazê-lo agora.
Eu não mexeria com o negócio e ganharia uma má reputação pelo bem de
viver com ela, porque tudo o que fingiu vai ser revelado, você sabe, embora
pense o contrário. Por meus olhos e membros, haverá uma confusão se voltar
agora, no meio da festa de Natal de Boldwood!”
“Hum, sim. Acho que não serei um convidado muito bem-vindo se ela
estiver lá”, disse o sargento, com uma leve risada. “Uma espécie de Alonzo, o
Bravo; e quando eu entrar, os convidados se sentarão em silêncio e com
medo, e todos os risos e alegrias serão abafado. As luzes no salão ficarão
azuis, e os miseráveis... Ugh, horrível! Peça mais um pouco de conhaque,
Pennyways, senti um arrepio terrível nesse momento! Bem, o que mais está
faltando? Uma bengala... preciso de uma bengala.”
“Agora, deixe-me ver que horas são”, disse Troy, depois de esvaziar o
copo de uma vez. “Seis e meia. Não vou me apressar ao longo da estrada e
estarei lá então antes das nove.”
CAPÍTULO LIII
CONCURRITUR — HORAE MOMENTO
“É uma história estranha”, disse o outro. “Pode acreditar que ela não sabe
nada sobre isso.”
“Talvez ele não queira que ela saiba”, falou outro homem.
“Se ele está vivo e aqui na vizinhança, não tem boa intenção”, disse o
primeiro. “Coitadinha! Tenho pena dela, se for verdade. Ele vai levá-la ao
pior.”
“Oh, não, ele vai se aquietar de uma vez”, comentou alguém disposto a
ter uma visão mais esperançosa do caso.
“Que tola ela foi por ter se envolvido com o homem! É tão obstinada e
independente também. Melhor dizer que está colhendo o que plantou em vez
de ter pena.”
“Não, não. Não concordo com você. Não passava de uma ideia de
menina, e como podia imaginar o que aconteceu? Se é verdade mesmo, é uma
punição muito dura e mais do que ela merece... Olá, quem é?” Isso foi para
alguns passos que ouviram se aproximando.
“Oh, estou ouvindo agora que é Sam Samway, achei que conhecia a voz,
também. Vão entrar?”
“Qual? Aquela sobre o Sargento Troy ter sido visto? É desta que estão
falando?”, perguntou Smallbury, também baixando a voz.
“Isso, em Casterbridge.”
“Sim, eu soube. Laban Tall comentou alguma coisa há pouco, mas eu não
sei. Ouçam, lá vem o próprio Laban, creio eu.” Os passos se aproximavam.
“Laban?”
Boldwood veio e passou pelos homens sem vê-los, pois estavam sob os
arbustos. Fez uma pausa, inclinou-se por cima do portão e soltou um longo
suspiro. Eles ouviram as palavras ditas em tom baixo por ele:
“Peço a Deus que ela venha, ou esta noite não será nada além de
sofrimento para mim! Oh, minha querida, minha querida, por que você me
deixa assim, nesse suspense?”
“Meu bom Deus, eu não sabia que ele era assim!”, disse um dos homens.
“Achava que a paixão dele tinha acabado há muito tempo.”
“Você não conhece o patrão muito bem se pensou isso”, disse Samway.
“Não acho que ele sabe que ouvimos o que disse”, comentou um terceiro.
A luz do painel foi agora percebida por não estar brilhando sobre o muro
coberto de hera como de costume, mas sobre algo perto do vidro. Era um
rosto humano.
“É tudo por causa dela, não é?”, perguntou o velho. “Embora ele nos fez
acreditar que é para esperar o Natal?”
“Ah, é verdade, sim. Não posso entender que o fazendeiro Boldwood seja
um tolo, a vida inteira adorando aquela mulher desse jeito, e ela não se
importa nem um pouco com ele.”
“Não acho que seja problema nosso”, Smallbury murmurou com dúvidas.
“Não tenho condições para tal coisa”, disse Laban, nervoso. “Acho que
William deve fazer isso. Ele é o mais velho.”
“Oh não! Não vou falar com Mr. Boldwood. Se eu contar a alguém, será
para a patroa.”
“Acredito que Laban já deve ter visto a patroa a esta altura”, disse
Smallbury, quebrando o silêncio. “Talvez ela não vá falar com ele.’
“Não quis chamá-la depois de tudo”, Laban hesitou. “Estavam todos num
rebuliço, tentando animar a festa. De alguma forma, a diversão parece
travada, embora tenha tudo que se possa imaginar, eu não poderia interferir e
estragá-la, mesmo se fosse para salvar a minha vida, eu não poderia!”
“Mrs. Troy... não está de partida?”, perguntou ele. “Nós nem bem
começamos!”
“Se me der licença, eu gostaria de ir agora.” Seu jeito era inquieto, pois se
lembrou de sua promessa e imaginou o que ele estava prestes a dizer. “Mas,
como não é tarde”, acrescentou, “posso ir para casa e deixar meu empregado
e Liddy para irem quando quiserem.”
“Sinto que sim”, disse Bathsheba; “que é isso que procura. Mas sou outra
mulher... infeliz, e não... não...”
No entanto, não teve muito efeito, pois ela disse, num murmúrio sem
paixão, que era em si uma prova de suas palavras:
“Não tenho nenhum sentimento nesse assunto. E não tenho a menor ideia
do que é certo a fazer na minha difícil posição e não tenho ninguém para me
aconselhar. Mas prometo, se for preciso, como a prestação de uma dívida,
condicionalmente, é claro, se eu for viúva.”
“Mas com certeza vai dizer o tempo, ou não há nada para prometer,
afinal?”
“Oh, não sei, por favor, deixe-me ir!”, disse ela, com seu peito
começando a subir. “Tenho medo do que fazer. Devo me casar com o senhor,
mas talvez eu esteja quebrando os mandamentos. Há uma considerável
dúvida da morte dele, e então é terrível... Deixe-me perguntar a um
advogado, Mr. Boldwood, se eu deveria ou não!”
“Muito bem. Vou me casar com você dentro de seis anos a partir deste dia
se estivermos vivos”, declarou ela solenemente.
Boldwood chegou perto de seu lado, tomou uma das mãos dela entre as
suas e levantou-a para seu peito.
“O que é isso? Oh, não posso usar um anel!”, exclamou ela ao ver o que
ele fez. “Além disso, eu não teria alma sabendo que é um compromisso!
Talvez seja impróprio. Além disso, não estamos comprometidos como de
costume, não é mesmo? Não insista, Mr. Boldwood, não!”
Com seu incômodo, por não ser capaz de livrar sua mão da dele de uma
vez, ela bateu um pé no chão nervosamente e as lágrimas invadiram seus
olhos.
“Não posso usá-lo”, disse ela, chorando como se seu coração fosse
quebrar. “Você quase me assusta. Um plano tão violento! Por favor, deixe-
me ir para casa!”
“Muito bem, então, usarei hoje, se deseja tão ardentemente. Agora solte
minha mão. Eu vou usá-lo esta noite.”
Ele saiu da sala, e quando pensou que ela poderia estar suficientemente
recomposta, enviou uma das criadas para ela. Bathsheba encobriu os efeitos
da cena o melhor que pôde, seguiu a garota e, em alguns minutos, desceu as
escadas com seu chapéu e seu casaco, pronta para ir embora. Mas, para
chegar até a porta, era necessário passar pelo hall, e antes de fazer isso, fez
uma pausa na parte inferior da escada, a qual descia num canto para dar uma
última olhada na festa.
“Estou aqui”, disse Bathsheba. “Embora não lhes dissesse para vir.”
A mensagem foi dada e Troy, coberto até olhos como foi visto, estava à
porta.
Boldwood estava entre aqueles que não perceberam que era Troy.
Bathsheba moveu seus pés um pouco, mas não se levantou. Troy foi até
ela.
Uma voz estranha veio da lareira, uma voz que parecia longe e confinada,
como se de um calabouço. Dificilmente uma alma na reunião reconheceria os
tons finos como sendo de Boldwood. O desespero súbito o transformara.
Ela, no entanto, não se moveu. A verdade era que Bathsheba estava além
dos limites da atividade, mas ainda não havia desmaiado. Ela estava num
estado de gutta serena;[31] sua mente estava totalmente privada de luz, ao
mesmo tempo sem obscurecimento aparente.
Troy estendeu a mão para puxá-la em sua direção quando ela rapidamente
recuou. Este medo visível dele pareceu irritar Troy, e ele agarrou seu braço e
puxou-o bruscamente. Se sua força a machucou ou se o seu mero toque foi a
causa, nunca se soube, mas no momento de sua apreensão, ela se contorceu e
deu um grito rápido e abafado.
O grito foi ouvido, mas poucos segundos depois foi seguido por estrondo
ensurdecedor e repentino que ecoou pela sala e surpreendeu a todos. A
divisão de carvalho tremeu com o choque e o lugar se encheu de fumaça
cinza.
Troy caiu. A distância entre os dois homens era tão pequena que a
munição não se espalhou, mas a bala atravessou seu corpo. Ele soltou um
longo suspiro gutural, houve uma contração, uma extensão, então seus
músculos relaxaram e ele ficou imóvel.
Boldwood foi visto através da fumaça de novo envolvido com a arma. Era
de cano duplo, e ele, por sua vez, de algum modo prendeu seu lenço ao
gatilho e, com o pé na outra extremidade estava no ato de dar o segundo tiro
em si mesmo. Samway, seu empregado, foi o primeiro a ver isso, e no meio
do horror geral, correu até ele. Boldwood já havia puxado o lenço e a arma
explodiu uma segunda vez, enviando o seu conteúdo, por um golpe oportuno
de Samway, num raio que atravessou o teto.
Sua declaração do fato em palavras tão calmas e simples veio com mais
força do que uma declamação trágica e teve, de alguma forma, o efeito de
definir as imagens distorcidas em cada mente presente no local. Oak, quase
antes de ter registrado a cena em sua mente, correu para fora da sala, selou
um cavalo e afastou-se. Não tinha percorrido mais de uma milha quando
ocorreu-lhe que teria feito melhor se tivesse enviado outro homem nessa
missão e ele tivesse ficado em casa. O que tinha acontecido com Boldwood?
Ele precisava de atenção. Estaria furioso, houve uma briga? E como Troy
chegou lá? De onde veio? Como este ressurgimento notável teve seu próprio
efeito quando supostamente, para muitos, ele estava no fundo do mar? Oak
tinha uma ligeira medida preparada para a presença de Troy, por ouvir um
boato sobre seu retorno antes de entrar na casa de Boldwood; mas antes que
tivesse considerado a informação, esse evento fatal se sobrepôs. No entanto,
já era tarde demais para pensar em enviar outro mensageiro e ele continuou.
Na inquietação das perguntas não discernentes, a cerca de três milhas de
Casterbridge, um pedestre de silhueta quadrada passava sob a cobertura
escura na mesma direção que ele.
“Sim, senhor, sugerimos que era melhor esperar até que as autoridades
soubessem. Mas ela disse que a lei era nada para ela, e que não deixaria o
cadáver de seu querido marido ficar negligenciado, para que todos olhassem
por todos os coroados da Inglaterra.”
“No andar de cima com ele, senhor. Quando ele foi trazido para casa e
levado para cima, ela disse que não queria mais a ajuda dos homens. Então
me chamou e me fez encher a banheira, depois me disse que era melhor que
eu fosse me deitar porque parecia tão doente. Se trancou no quarto sozinha
com ele e não deixou que uma enfermeira entrasse, ou quem quer que fosse.
Mas eu pensei em esperar na sala ao lado, caso ela precisasse de mim. Eu a
ouvi movendo-se lá dentro por mais de uma hora, mas ela só saiu uma vez,
que foi para buscar mais velas, porque as dela tinham queimado até o fim.
Disse para informá-la quando você ou Mr. Thirdly chegasse, senhor.”
Oak entrou com o pároco naquele momento e todos eles subiram juntos,
precedidos por Liddy Smallbury. Tudo estava silencioso como um túmulo
quando pararam no patamar. Liddy bateu e o vestido de Bathsheba foi ouvido
sussurrante em todo o quarto: a chave girou na fechadura e ela abriu a porta.
Sua aparência era calma e quase rígida, como um busto levemente animado
de Melpomene.
Olhando para a câmara da morte que ela havia desocupado, eles viram,
pela luz das velas que estavam na cômoda, uma silhueta reta e alta na outra
extremidade do quarto, embrulhado em branco. Tudo ao redor estava muito
organizado. O médico entrou, e depois de alguns minutos voltou para o
patamar outra vez, onde Oak e o pároco ainda esperavam.
“Está tudo pronto, de fato, como ela disse”, comentou Mr. Aldritch com
voz suave. “O corpo foi despido e devidamente colocado nas mortalhas. Deus
do céu, aquela simples menina! Deve ter uma força estóica!”
Eles a levaram para outro quarto e o atendimento médico, que tinha sido
inútil no caso de Troy, foi inestimável para Bathsheba, que caiu numa série
de desmaios que pareciam sérios. A doente foi levada para cama e Oak,
sabendo pelos boletins que nada realmente terrível estava acontecendo com
ela, deixou a casa. Liddy vigiava a câmara de Bathsheba, onde ouviu sua
patroa, gemendo em voz baixa durante as horas lentas sem brilho daquela
noite infeliz: “Oh , é minha culpa! Como posso viver? Oh, meu Deus, como
posso viver?”
CAPÍTULO LV
DEPOIS DE MARÇO — “BATHSHEBA
BOLDWOOD”
Passamos rapidamente pelo mês de março, num dia com vento e sem sol,
com geada e orvalho. Em Yalbury Hill, a meio caminho entre Weatherbury e
Casterbridge, onde a rodovia expressa passa sobre a crista, uma numerosa
multidão se reunia. Os olhos do maior número sendo frequentemente esticado
em direção ao norte. Os grupos eram formados por uma multidão de
desocupados, um grupo de atiradores de dardos e dois trompetistas, e no meio
estavam as carruagens, numa das quais estava o xerife. Com os desocupados,
muitos dos quais haviam subido ao topo de um corte formado na estrada,
havia vários homens e meninos de Weatherbury, entre outros, estavam
Poorgrass, Coggan e Cain Ball.
Ao fim de meia hora uma leve poeira foi vista na parte esperada e, logo
depois uma carruagem de viagem, trazendo um dos dois juízes do Circuito
Ocidental, subiu até a colina e parou no topo. Uma procissão se formou ao
lado do veículo, e dos atiradores de dardos, depois todos foram em direção à
cidade, com exceção dos homens de Weatherbury, que assim que viram o
juiz saindo, voltaram para seu trabalho.
“Vi”, respondeu Poorgrass. “Olhei firme para ele, como se lesse sua
própria alma e não havia misericórdia em seus olhos, ou para falar a verdade
neste momento solene, no olhar na minha direção.”
“Bem, espero pelo melhor”, observou Coggan, “apesar de que deve vir o
pior. No entanto, não hei de ir para o julgamento, e aconselho o resto de vós
que não vá. Ver-nos ali olhando para ele, como se fosse um espetáculo, o
incomodará mais do que qualquer coisa.”
Que ele esteve desde Greenhill Fair até a véspera do Natal fatal em
estados de espírito animados e incomuns era conhecido por aqueles que eram
íntimos dele, mas ninguém imaginou que se mostravam nele sintomas
inequívocos do desarranjo mental que Bathsheba e Oak, separados de todos
os outros, e em momentos diferentes, imediatamente suspeitaram. Num
armário fechado foi agora descoberta uma extraordinária coleção de artigos.
Havia vários conjuntos de vestidos de senhora, de materiais caros diversos;
sedas e cetins, popelinas e veludos, todos das cores do estilo dos vestidos que
Bathsheba poderia considerar seus favoritos. Havia dois regalos de zibelina e
de arminho. Acima de tudo isso, havia uma caixa de joias, contendo quatro
pulseiras de ouro pesadas e vários medalhões e anéis, todos de boa qualidade
e fabricação. Essas coisas tinham sido compradas em Bath e outras cidades
ao longo do tempo e trazidas para casa secretamente. Todas elas foram
cuidadosamente acondicionadas em papel e cada pacote estava rotulado como
“Bathsheba Boldwood” e uma data que estava acrescida de seis anos de
antecedência em todos os casos.
Estas evidências patéticas de uma mente enlouquecida com cuidado e
amor eram o assunto do discurso no Warren’s quando Oak entrou de
Casterbridge com notícias da sentença. Ele veio à tarde, e seu rosto, como o
brilho do forno o iluminou, contou tudo muito bem. Boldwood, como cada
um imaginou que faria, declarou-se culpado e foi condenado à morte.
“Acha que ele realmente estava fora de si quando fez aquilo?”, perguntou
Smallbury.
“Não posso dizer honestamente que sim”, respondeu Oak. “No entanto,
podemos falar disso outra hora. Houve qualquer mudança com a patroa esta
tarde?”
“Nenhuma.”
“Não. E está tão bem como sempre. Está um pouco melhor agora de novo
do que estava no Natal. Continua perguntando se você virá, se há notícias, até
que alguém se cansa de responder. Devo ir lá e dizer que veio?”
“Não”, disse Oak. “Ainda resta uma chance, mas eu não podia ficar na
cidade por mais tempo, depois de vê-lo também. Então, Laban... Laban está
aqui, não está?”
“O que combinei é que você deve ir para a cidade esta noite. Saia daqui
perto das nove horas e espere um tempo lá, para chegar em casa por volta de
meia-noite. Se nenhuma notícia for recebida até as onze é porque não haverá
nenhuma.”
“Espero muito que sua vida seja poupada”, disse Liddy. “Se não for, ela
também enlouquecerá. Coitada! Seu sofrimento é terrível. Ela merece
piedade.”
“Sim... consegui. Ele não vai morrer. Ficará confinado durante a vontade
de Sua Majestade.”
“Viva!”, Coggan disse, com o coração apertado. “Deus ainda está acima
do diabo!”
CAPÍTULO LVI
A BELA NA SOLIDÃO — FINALMENTE
Mas ela permanecia sozinha a maior parte de seu tempo e ficava em casa
ou apenas no jardim. Evitava a todos, até mesmo Liddy, não fazia
confidências e nem pedia compreensão.
À medida que o verão chegou, ela passou mais de seu tempo ao ar livre e
começou a examinar os assuntos da agricultura por pura necessidade, embora
nunca cavalgasse ou supervisionasse pessoalmente como em tempos
passados. Numa sexta-feira à noite, em agosto, caminhou um pouco ao longo
da estrada e entrou na vila pela primeira vez desde o evento sombrio do Natal
anterior. A cor antiga ainda não havia voltado a suas bochechas e sua palidez
absoluta era agravada pelo preto-azeviche do vestido, parecendo anormal.
Quando chegou a uma pequena loja, na outra extremidade do lugar, que
ficava quase em frente ao adro da igreja, Bathsheba ouviu cânticos do lado de
dentro e sabia que os cantores estavam ensaiando. Atravessou a rua, abriu o
portão e entrou no cemitério. Os altos peitoris das janelas da igreja
protegiam-na efetivamente dos olhos das pessoas reunidas ali dentro. Seu
andar furtivo foi para o recanto em que Troy trabalhara no plantio de flores
sobre o túmulo de Fanny Robin, e ela foi até a lápide de mármore.
EM MEMÓRIA DA AMADA
FANNY ROBIN,
AOS 20 ANOS
OS RESTOS DO MENCIONADO
FRANCIS TROY,
AOS 26 ANOS
Guia-me a ti.
Os sentimentos de Bathsheba sempre dependiam de alguma forma de um
dos seus caprichos, como é o caso de muitas outras mulheres. Algo grande
entrou em sua garganta, e uma revolta em seus olhos, e ela pensou que
permitiria que as lágrimas iminentes fluíssem. Elas realmente fluíram,
abundantemente, e uma delas caiu sobre o banco de pedra ao seu lado. Uma
vez que havia começado a chorar mal sabia por que, não podia deixar de fora
a confusão de pensamentos que conhecia muito bem. Daria qualquer coisa no
mundo para ser, como aquelas crianças, indiferente para o significado de suas
palavras, por serem muito inocentes para sentir a necessidade de tal
expressão. Todas as cenas apaixonadas de sua breve experiência pareceram
reviver com emoção aumentada naquele momento e essas cenas que eram
sem emoção, durante a promulgação ganharam emoção. No entanto, a dor
chegou mais como um luxo do que como o flagelo dos tempos passados.
“Mr. Oak”, exclamou ela, desconcertada, “há quanto tempo está aqui?”
“Eu ia”, disse Gabriel. “Sou um dos cantores, você sabe. Canto baixo há
vários meses.”
A música continuou:
Que amo há muito tempo, e perdi por algum tempo...
“Não deixe que me afaste, senhora. Acho que não poderei ir esta noite.”
“Eu não a vejo, quero dizer, converso com você, faz tanto tempo, não é?”
Mas ele temia trazer memórias angustiantes e interrompeu-se com: “Estava
indo para a igreja?”
“Não”, informou ela. “Vim para ver a lápide sozinha, para ver se tinham
colocado a inscrição como eu desejava. Mr. Oak, não precisa se preocupar
em conversar comigo, se desejar, sobre o assunto que está em nossas mentes
neste momento.”
“Oito meses atrás!”, Gabriel murmurou quando viu a data. “Parece que
foi ontem para mim.”
“Queria citar uma questão pequena para você assim que possível”, disse
ele com hesitação. “Meramente sobre negócios e acho que posso mencioná-lo
agora, se me permite.”
“Mas todos sabem que vai tocar a fazenda do pobre Mr. Boldwood por
sua própria conta.”
“Fui recusado, na verdade, mas nada está resolvido ainda, e tenho razões
para desistir. Vou terminar o meu ano, como gerente para os administradores,
mas não mais.”
“E o que vou fazer sem você? Oh, Gabriel, não acho que deveria ir
embora. Está comigo há tanto tempo... nos bons e nos maus momentos,
somos velhos amigos, isto parece quase indelicado. Pensava que você tivesse
alugado a outra fazenda como patrão e ainda ajudar na minha. E agora vai
embora!”
“No entanto, agora que estou mais impotente do que nunca você vai
embora!”
“Sim, essa falta de sorte”, disse Gabriel, num tom angustiado. “E é por
causa dessa mesma impotência que me sinto obrigado a ir. Boa tarde,
senhora”, concluiu, na ansiedade evidente de fugir, e logo saiu do adro da
igreja por um caminho que ela poderia seguir sem nenhuma pretensão.
Bathsheba foi para casa, a mente ocupada com um novo problema que era
muito mais ofensivo do que mortalmente calculado, desviando-a da
melancolia crônica de sua vida. Passou muito tempo pensando sobre Oak e de
seu desejo de afastá-la, e ocorreram a Bathsheba vários incidentes de sua
última conversa com ele, que, trivial quando isoladamente visto, somaram
juntos para uma relutância perceptível para a sociedade com ela. Aquilo a
surpreendeu durante um tempo, como uma grande dor que seu último e
antigo discípulo estava prestes a abandoná-la e fugir. Ele, que acreditava nela
e a defendia quando todo o resto do mundo estava contra ela, finalmente,
como os outros, tinha se cansado, se tornado negligente da sua causa, e a
deixava para lutar suas peóprias batalhas, agora sozinha.
Três semanas se passaram e mais provas de sua falta de interesse por ela
apareceram. Ela notou que, em vez de entrar na pequena sala de estar ou no
escritório, onde as contas da fazenda eram mantidas, e esperado por ela, ou
deixado um memorando como havia feito durante sua reclusão, Oak nunca
vinha quando era possível que ela estivesse lá, apenas entrando nas horas
intempestivas quando sua presença nessa parte da casa era menos de se
esperar. Sempre que queria informações, enviava uma mensagem ou uma
nota sem título, nem assinatura, para a qual ela era obrigada a responder no
mesmo estilo de improviso. A pobre Bathsheba começou a sofrer desde então
a dor mais torturante de todas: uma sensação de que era desprezada.
A manhã seguinte trouxe o golpe culminante. Ela esperou por isso por
muito tempo. Foi uma notificação, por carta, de que ele que não renovaria seu
compromisso com ela para o próximo Dia da Anunciação.
Bathsheba estava tão desolada naquela noite que, numa fome absoluta por
compaixão e compreensão, e desesperada por parecer ter sobrevivido a única
amizade verdadeira que possuía, ela colocou seu chapéu e seu casaco e
desceu para a casa de Oak logo após o pôr do sol, guiando seu caminho pelos
raios pálidos como prímulas de uma lua crescente de alguns dias.
Uma luz viva do fogo brilhava pela janela, mas ninguém era visível na
sala. Ela bateu nervosamente, e depois achou que seria duvidoso para uma
mulher sozinha recorrer a um solteirão que vivia sozinho, embora fosse o seu
administrador e ela pudesse visitá-lo a negócios sem qualquer impropriedade
real. Gabriel abriu a porta, e a lua brilhou na sua testa.
“Sim, sou Mr. Oak”, respondeu Gabriel. “A quem tenho a honra... Oh,
que estupidez a minha de não reconhecê-la, senhora!”
“Não serei sua patroa por muito mais tempo, não é, Gabriel?”, disse ela
em tom patético.
“Bem, não. Eu suponho... Mas entre, senhora. Oh, vou pegar uma luz”,
respondeu Oak com alguma estranheza.
“É tão raro eu receber a visita de uma dama que tenho medo de não ter
acomodações adequadas. Sente-se, por favor. Aqui está uma cadeira, ali,
também. Lamento que minhas cadeiras tenham assentos de madeira e sejam
um pouco duras, mas eu... estava pensando em comprar novas.” Oak colocou
duas ou três para ela.
Então ela se sentou, assim como ele, o fogo dançando em seus rostos, e
sobre a velha mobília. Era muito estranho para estas duas pessoas, que se
conheciam tão bem, que a mera circunstância da reunião, em um lugar novo e
de uma nova maneira, os tornasse tão desajeitados e constrangidos. Nos
campos ou na casa dela nunca houve qualquer constrangimento, mas agora
que Oak tornou-se o anfitrião, sua vida parecia movida de volta aos dias em
que eram estranhos.
“Mas eu pensei... Gabriel, não estou tranquila, acho que o ofendi e que
está indo embora por conta disso. Isso me entristeceu muito e eu não podia
deixar de vir.”
“Não o ofendi?”, perguntou ela, agradecida. ‘Mas, por que está indo
embora para outro lugar?”
“Não vou emigrar, você sabe, eu não estava ciente em fazê-lo”, disse ele
com simplicidade. “Eu acertei com Little Weatherbury Farm e devo tê-la em
minhas próprias mãos no Dia da Anunciação. Sabe que eu tinha uma
participação nela há algum tempo. Ainda assim, isso não me impediria de
assistir ao seu negócio como antes, se não tivessem sido ditas as coisas que
disseram sobre nós.”
“Casar-me com você, numa linguagem mais simples. Você me pediu para
dizer, então não deve me culpar.”
“Casar-se comigo! Não sabia que era isso que diria”, disse ela, em voz
baixa. “Uma coisa como essa é um imenso absurdo, tão rápido, para se
pensar!”
Gabriel olhou muito tempo para o rosto dela, mas como a luz do fogo era
fraca, não havia muito a ser visto. “Bathsheba”, disse ele, com ternura e com
surpresa, aproximando-se: “se ao menos eu soubesse de uma coisa; que me
permitiria amá-la e ganhá-la, e me casar com você depois de tudo... se ao
menos eu soubesse disso!’
“Oh... Oh!”, disse Gabriel, com uma risada baixa de alegria. “Minha
querida...”
“Não devia ter me enviado aquela carta dura”, ela o interrompeu. “Isso
mostra que você não se importa nem um pouco comigo e que estava pronto
para me abandonar como todo o resto deles! Foi muito cruel de sua parte,
considerando que eu era a primeira amada que teve, e você foi o primeiro que
tive, e nunca vou esquecê-lo!”
“Agora, Bathsheba”, disse ele, rindo. “Você sabe que eu estava indo
embora puramente porque, como um homem solteiro, levando um negócio
para você, uma jovem muito atraente, eu tinha um papel muito difícil para
desempenhar, ainda mais, porque as pessoas sabiam que eu tinha uma espécie
de sentimento por você; e imaginei, desde a forma como éramos
mencionados juntos, que poderia prejudicar a sua boa reputação. Ninguém
sabe o calor e a aflição que isso tem me causado.”
“Isso é tudo?”
“Sim.”
“Oh, como estou feliz por ter vindo!”, exclamou ela, grata ao se levantar
de sua cadeira. “Tenho pensado muito mais em você desde que imaginei que
não queria mesmo me ver de novo. Mas preciso ir agora, ou vão procurar por
mim. Mas Gabriel”, ela disse, com uma leve risada, ao irem até a porta,
“parece exatamente que vim para cortejá-lo... que coisa terrível!”
“E muito certo também”, disse Oak. “eu correria atrás de você, minha
linda Bathsheba, por muitas milhas e muitos dias e é difícil me invejar essa
visita.”
“Uma licença... Oh, sim, deve ser uma licença”, ele disse para si mesmo,
finalmente. “Muito bem, então, em primeiro lugar, uma licença.”
Numa noite escura, alguns dias depois, Oak foi com passos misteriosos à
porta do juiz, em Casterbridge. No caminho para casa ouviu passos pesados
na frente dele, e, ultrapassando o homem, viu que era Coggan. Eles
caminharam juntos para a aldeia, até que chegaram a uma pequena pista atrás
da igreja, que levava até a casa de Laban Tall, que recentemente havia sido
instalado como secretário da paróquia, e ainda tinha um pavor mortal da
igreja aos domingos.
“Bem, boa noite, Coggan”, disse Oak, “estou indo por este caminho.”
“Sim, eu sei mesmo. Bem, então, a patroa e eu vamos nos casar amanhã
de manhã.”
“Pela torre mais alta do Céu! E ainda pensei numa coisa dessas de vez em
quando; é verdade, já pensei. Mas assim tão perto! Bem, não é da minha
conta, e desejo toda a felicidade a você e a ela.”
“Obrigado, Coggan. Mas garanto que todo esse mistério não é o que eu
desejava, ou o que qualquer um de nós teria desejado, se não fosse por certas
coisas que fariam um casamento feliz parecer outra coisa. Bathsheba tem um
grande desejo, de que toda a paróquia não esteja na igreja, olhando para ela,
pois está tímida e nervosa com isso. Na verdade, então, vou fazer isso pelo
humor dela.”
“Meu Deus! Não tinha pensado nisso”, disse Oak, fazendo uma pausa.
“No entanto, tenho que contar-lhe esta noite, suponho.”
“Vou lhe dizer como poderíamos enfrentá-la”, disse Coggan. “Vou bater
e pedir para falar com Laban do lado de fora, você fica no fundo. Então ele
vai sair e você pode conversar com ele. Ela nunca vai adivinhar o que eu
quero com ele. E vou soltar algumas palavras sobre o trabalho na fazenda,
como um cego.”
“Não importa, chova ou faça sol, ventando ou nevando, ele deve ir”,
acrescentou Jan. “É muito particular, na verdade. O fato é que precisa
testemunhar, assinar um documento sobre a tomada de ações com outro
agricultor para um longo período. Então, sendo assim, e agora que já lhe
contei, Mother Tall, de uma maneira que não deveria se não gostasse tanto de
vocês.”
Coggan retirou-se antes que ela pudesse perguntar qualquer outra coisa. O
próximo que chamaram de uma forma que não levantou nenhuma curiosidade
foi o vigário. Então Gabriel foi para casa e se preparou para o dia seguinte.
“Sim, mas eu tenho algo importante para fazer, o que vou lhe contar
quando chegar a hora, e é melhor para ter certeza.”
Bathsheba, no entanto, acordou sozinha às quatro horas, nem podia por
qualquer artifício conseguir dormir novamente. Por volta das seis, tendo
quase certeza que o relógio havia parado durante a noite, ela não pôde mais
esperar. Bateu na porta de Liddy, e depois de algum trabalho, ela despertou.
“Mas pensei que era eu quem tinha que chamá-la”, disse Liddy, confusa.
“E ainda não são nem seis horas.”
“São, sim. Como pode falar assim, Liddy? Eu sei que já deve passar
muito das sete. Venha para o meu quarto assim que puder. Quero que escove
os meus cabelos muito bem.”
“Sim.”
Assim que Bathsheba serviu uma xícara de chá, seus ouvidos foram
chocados pelo disparo de um canhão, seguido pelo que parecia ser um
tremendo toque de trombetas, na frente da casa.
“Ah!”, disse Oak, rindo. “Eu sabia que aqueles companheiros fariam algo
pela cara deles.”
Oak pegou uma luz e foi para a varanda, seguido de Bathsheba com um
xale sobre a cabeça. Os raios caíam sobre um grupo de figuras masculinas,
reunidas sobre o cascalho na frente da casa, que, quando viram o casal recém-
casado no pórtico, gritaram: “Viva!” e no mesmo momento veio o estrondo
novamente do canhão ao fundo, seguido de um ruído medonho de música de
um tambor, um pandeiro, uma clarineta, um serpentão, um oboé, um violão
tenor e um baixo duplo, as únicas relíquias remanescentes da verdadeira e
original banda de Weatherbury: instrumentos veneráveis e carcomidos, que
estiveram presentes nas vitórias de Marlborough, sob os dedos dos
antepassados de quem os tocava agora. Os artistas se aproximaram e
marcharam até a frente.
“Esses garotos brilhantes, Mark Clark e Jan, estão por trás de tudo isso”,
disse Oak. “Entrem, amigos, venham comer e beber comigo e com minha
esposa.”
“Nunca ouvi sujeito nenhum casado há vinte anos cantar ‘minha esposa’
numa nota com mais ternura como ele usou”, disse Jacob Smallbury.
“Poderia ter sido um pouco mais fiel à natureza masculina, falando um pouco
mais frio, o que não era de se esperar neste momento e nem da parte de Oak.”
“Essa melhoria virá com o tempo”, disse Jan, girando seu olho.
Então Oak riu e Bathsheba sorriu (porque ela nunca ria prontamente), e
seus amigos se viraram para ir embora.
“Sim, acredito que o sorriso dela seja do tamanho da alegria deles”, disse
Joseph Poorgrass, com um suspiro alegre, ao se afastarem. “E desejo a ele a
alegria dela. Já disse hoje uma ou duas vezes como o sagrado Oséias, na
minha maneira de falar a escritura, que é a minha segunda natureza: ‘Efraim
está entregue aos ídolos, deixa-o como prefere.’[33] Mas desde que as coisas
são como são, poderia ter sido pior e me sinto agradecido adequadamente.”
[1] Hardy publicou um total de catorze romances. A ação de todas elas se
desenvolve no campo inglês, em uma região batizada pelo novelista como
Wessex, na verdade ele se inspirou em Dorset, a sua terra natal. A cada
cidade de Wessex tem sua equivalência real na toponímia de Dorset; assim
como Oxford recebe nas novelas de Hardy o simbólico nome de
Christminster.
[2]Weatherbury foi inspirada em Puddletown, uma vila próxima a Dorset
onde o avó e o bisavó de Hardy nasceram.
[7]
Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon, foi um filósofo e
economista francês, um dos fundadores do socialismo moderno.
[8]Bebida alcoólica, cuja maior parte dos seus açúcares fermentados, vem
do mel.
[9]
Referência a um cântico inspirado em Mateus 5:16. Deixe a sua luz
brilhe diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem
a vosso Pai que está nos céus.
[10]
Música cantada no Dia dos Namorados e para comemorar o início da
primavera. “Eram Molly e Betty, e Dolly e Kate, e atrás vinha Dorothy”
[tradução livre].
[13]
É o nome que se dá ao descanso ou repouso proporcionado às terras
cultiváveis.
[14]Sorte sacra foi um tipo de adivinhação praticada no início do Cristianismo
derivada e adaptada a partir dos antigos romanos. Os primeiros cristãos iam à
igreja e, quando entravam, ouviam as palavras das escrituras que estavam
sendo cantadas como um meio aleatórios de prever o futuro e a vontade de
Deus.
[15]
Referência a Daniel, um profeta judeu do Antigo Testamento da
Bíblia, que não aceitou adorar os deuses pagãos da Babilônia.
[16] Cavalo de pelo branco com malhas escuras e redondas.
[17] Um dos três maiores vilões da Mitologia Grega.
[18] Trecho do poema Lycidas, de John Milton.
[23] Papiro ou pergaminho, cujo texto primitivo foi raspado para dar lugar
a outro.
[24]Referência ao livro de Jonas 4: 6: “E fez o Senhor Deus nascer uma
aboboreira, e ela subiu por cima de Jonas, para que fizesse sombra sobre a
sua cabeça, a fim de o livrar do seu enfado; e Jonas se alegrou em extremo
por causa da aboboreira.”