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Lerruras Do MUNDO Coerente com esse propésito, todas as figuras mencionadas ao longo do livro caracterizam-se pela virtude. Logo no primeiro capitulo, dedicado ao “bom menino”, a narradora refere-se ao pequeno estudante que “vem todos os dias a escola, com a sua roupinha asseada e as suas li¢des bem sabidas.” (Meireles, 1977, p. 11) A ele, seguem-se as meninas que colhem flores no jardim, os trabalhadores que se preocupam com a educacao dos filhos, 0 ga- roto que da uma esmolaa uma velha que passa fome, o pequeno pobre que se sente rico gracas ao amor recebido dos pais, e assim por diante. Nada mais convencional em termos de representagio da crianga, sobre- tudo se pensamos a obra desde a perspectiva do tempo, pois Cecilia viria a escrever, anos depois, Ou isto ou aquilo, marco da poesia destinada a infancia. Por sua vez, cada um dos temas ou das personagens ocupa capitulos diferentes, que se mostram curtos e de facil compreensao, gracas ao emprego de periodos breves e paragrafos constituidos de, no maximo, duas frases. Al- guns capitulos resumem-se a cantigas muito simples, como “A cancio dos tamanquinhos” (Meireles, 1977, p. 59), em que predominam onomatopéias € diminutivos, recursos usados para facilitar a leitura da crianga: Troc... troc... troc.., troc... Ligeirinhos, ligeirinhos, Troc... troc... toc... troe. Vio cantando os tamanquinhos... Madrugada. Troc... troc. Pelas portas dos vizinhos Vao batendo, troc... troc, Vio cantando os tamanquinhos... A singeleza dos versos parece complementar a imagem estereotipada da crianca com que a obra trabalha em todas as suas paginas. Contudo, assim como é legitimo contrapor 0s versos acima aqueles que Cecilia viria a produzir quando escreveu Ou isto ou aquilo, verificando como a autora aperfeicou sua poética, aprofundando a pesquisa com a linguagem, a sonoridade e o ritmo, vale cotejar Crianga meu amorcom 0 tipo de livro didati- co oferecido a crianca brasileira na terceira década do século XX. Com efeito, os livros didaticos de entéo correspondiam 4s seletas em que se reuniam excertos modelares de escritores canGnicos da literatura em lingua portuguesa. A Antologia Nacional, de Fausto Barreto ¢ Carlos de Laet, de larga circulacao desde 1895, representa o padrao desse tipo de obra, em que se recuperava a hist6ria da literatura desde vultos ilustres, como os que os compiladores destacam no Prefacio: Joao de Barros, Francisco Manuel de Melo 7 Lerruras po MUNDO Estou trabalhando numa comissio técnica, estudando 0 que Iéem e como léem as criangas cariocas, Isto me absorve cerca de quatro horas mais, por dia. Faco- © intensamente, quer como agio quer como intengao. Pode ser que se chegue ‘a uma visio sugestiva do que temos ¢ do que precisamos.* Em 12 de abril do ano seguinte, ela comenta que o trabalho ia adianta- do, embora prejudicasse a realizagao de outros projetos: Aguele inquérito de que Ihe falei, sobre literatura infantil, s6 agora esta che- gando ao fim. Creio que até o dia 15 estara terminado, com o respectivo rela- t6rio, etc. Foi ele que me impossibilitou de me dedicar completamente ao seu livro. Mas creio que também agora nos vai ser bastante util, pois, com cerca de 1.500 questionarios, com 12 respostas cada um, ja se pode avaliar do interesse ¢ das disposigdes literdrias da nossa infincia e encaminhar melhor um livro que se Ihe queira oferecer. Até o fim deste més, portanto, 0 Sr. receber4 os originais do livro. E aproveita- rei para Ihe mandar as conclusdes do inquérito que talvez saiam em separata da Diretoria de Instrucio, visto pareceremthe extremamente longas para pu- blicacao no Boletims A pesquisa, contudo, consome ainda esse ano ¢ o préximo, sendo dada por concluida em 1933, com relatério publicado em 1934. Logo na abertura, arelatora declara seu objetivo: “conhecer a situagao de nossos escolares tanto no seu cabedal de leituras como nas suas preferéncias individuais.” (Meireles, 1944) Para chegar a esse conhecimento, a pesquisadora aplicou um questio- nario contendo doze questdes abertas dirigidas a 933 meninas e 454 meni- nos, variando suas idades entre 7 € 17 anos. Dentre esses, o maior ntimero de entrevistados situa-se entre 10 e 14 anos (ainda mais especificamente: entre 11 e 13anos), procedentes, todos, de 24 escolas do Rio de Janeiro, localizadas em 19 distritos escolares. A amostra abrange alunos dos 3°, 4° ¢ 5° anos prima- rios. As respostas, relativas a cada uma das perguntas (boa parte das ques- t6es pede uma justificativa), podem ser assim resumidas: a) a maioria diz gostar de ler; b) a maioria diz ter lido pelo menos 10 livros; ‘MEIRELES, Cecilia. Correspondéncia de 8/11/1981 [a Fernando de Azevedo). In: LAMEGO, 1996, p. 218. ®MEIRELES, Cecilia. Correspondéncia de 12/04/1932 [a Fernando de Azevedo]. In: LAMEGO, 1996, pp. 222-293, 179 Lerruras Do MUNDO Cecilia nao analisa os resultados do inquérito em Leituras infantis, limi- tandosse a transcrever os ntimeros. Na correspondéncia dirigida a Fernando de Azevedo, que Valéria Lamego reproduz, a pesquisadora refere-se 4 grande quantidade de informacées a serem ordenadas. Lidando com questées aber- tas que requeriam justificativa, ela se defrontou com grandes dificuldades de tabulacao. Como esse trabalho tomou muito tempo, talvez abdicasse da inter- pretagao dos dados. ‘As informacées, contudo, repercutiram em sua atividade profissional, conforme sugere a carta de 9 de novembro de 1932, dirigida a Azevedo. Nes- ta, declara ao destinatario que o livro que produz levaré em conta as expecta- tivas dos leitores, indicadas pelos resultados do inquérito: E quanto ao livro, tenho a comunicarlhe o seguinte. (...) Como o inquérito realizado sobre a leitura infantil demonstrava um interesse maior em criangas de 12a 14 anos, procurei fazer o livro para esse leitores ¢, assim, tive que escolher o tema ea linguagem que jé sio bastante poéticos; numa transigio da infincia para a adolescéncia.* Tao importante é para ela a recep¢ao dos jovens leitores, que projeta experimentar a reagio deles em classe, expondo-os a obra em producio: Pensei, entdo, em fazer passar estes contos por uma classe de quarto ou quinto ano que, desconhecendo autora, finalidade, etc., opinasse com toda a isenc¢ao sobre o assunto. Na mesma carta, Cecilia expressa sua opinido sobre os livros que Monteiro Lobato dirigia a infancia: Recebi os livros de Lobato. Preciso saber 0 endereco dele para Ihe agradecer diretamente. Ele é muito engragado, escrevendo. Mas aqueles seus persona- gens sio tudo quanto ha de mais malcriado e detestavel no territ6rio da infan- cia, De modo que eu penso que os seus livros podem divertir (tenho reparado que divertem mais os adultos que as criangas) mas acho que deseducam mui- to. E uma pena. (...) Por nenhuma fortuna do mundo cu assinaria um livro como os do Lobato, embora nao deixe de os achar interessantes.” Cotejado 0 comentario de Cecilia a seu proprio livro, Crianca meu amor, conclui-se que a escritora estava sendo coerente: as personagens de suas pagi- “MEIRELES, Cecili 1996, p. 228. VIdem, p. 229. Correspondéncia de 9/11/1932 [a Fernando de Azevedo}. In: LAMEGO, Ist Lerruras bo MUNDO Através do Rio de Janeiro Rute ¢ Alberto resolveram ser turistas incorpora, desde o titulo, um projeto narrativo, revelando-se 0 contetido didatico apenas na folha de rosto, na con- digdo de subtitulo. A capa, figurativa, mostra uma paisagem conhecida do Rio de Janciro: em primeiro plano, bondinho que leva ao Pao de Acticar, este colocado ao fundo; dentro do veiculo, duas criangas, provavelmente os sujei- tos da oracao que intitula a obra, acompanhadas por um adulto, todos vesti- dos com trajes de passeio. Nos anos 30, a Livraria do Globo, sob a direcao de Henrique Bertaso, intensifica sua linha editorial, gracas 4 publicacao de autores nacionais con- temporaneos, traducées ¢ livros didaticos. A literatura infantil recebe especial atengao, constando, entre seus publicados, tanto os locais Erico Verissimo e Pepita de Ledo, quanto os traduzidos Joana Spyri, autora de Heidi, e Charles Kingsley, de Os bebés d’égua® Nio surpreende, pois, a presenca de uma narrativa escrita por Cecilia Meireles, contempordnea dos escritores que compunham 0 catilogo entio em crescimento da Globo. Nem 0 leitor era jogado, logo apés a leitura da folha de rosto, numa obra de cunho didatico; pelo contrario, a autora, com habilidade, vai retardando a introducao dos prometidos contetidos de Cién- cias Sociais, por intermédio da interpolacao de um enredo com comeco int gante. Dividido em trés partes, Rute e Alberto comecam ex abrupto pela exclama- cao contida no titulo do primeiro capitulo: “Vamos para Copacabana!” (Meireles, 1938, p. 7) A essa convocacio — cuja efetividade retérica mede-se tanto pelo uso do verbo no presente, como pela adogao da primeira pessoa do plural, invocando o nés que engloba leitor e personagens — segue-se a ex- plicagao: “Rute e Alberto nunca tinham morado perto do mar”, razio por que sua mae, D. Isabel, aproveitando as férias de verao dos filhos, aluga aparta- mento na praia. Os quatro primeiros capitulos tratam dos preparativos da mudanca do subtirbio para o litoral. O narrador nao esclarece onde reside a familia Silveira, mas a travessia na direcao de Copacabana toma cinqienta minutos de Gnibus, conforme um roteiro — Praca Saenz Peiia, Largo Estacio de $4, Canal do Man- gue, Avenida Rio Branco, Cinelandia, Russel, Flamengo, onde se avista 0 Pao. de Acticar, e 0 Mourisco em Botafogo, enfim, Copacabana ~ que parece co- megar na Tijuca. °Relativamente A trajet6ria da literatura infantil no Rio Grande do Sul, cf. MARCHI, 2000. 183 Lerruras bo MUNDO percurso escolhido por Cecilia funde tempo e espago: Mario conduz 0s pequenos pelos locais que suscitam a narrativa de eventos do passado, cha- mando a atencio para os vultos que construiram, modelaram e modificaram a cidade, até chegar ao formato atual. Os episddios sio curtos, mas bastam para desenhar a trajet6ria hist6rica do ambiente agora conhecido e dominado por seus pequenos habitantes. Uma comemoragio de Natal, ocasiiio festiva com que Cecilia Meireles também encerrara suas outras obras destinadas 4 infincia = Crianga meu amore A festa das letras conclui alegremente a obra. Nio € dificil reconhecer, ao longo do livro, as matérias com que as Cién- jas Sociais lidavam nos anos 30, quando se reestruturava 0 ensino basico no Brasil, com as reformas promovidas, primeiramente, por Francisco Campos, e, depois, por Gustavo Capanema, que ocuparam, um apés 0 outro, 0 Ministério da Educagao ¢ Satide, durante o governo Vargas. Dirigido a criangas como aque- las perquiridas por Cecilia Meireles no comeco da década, Rute e Alberto resolve- ram ser turistasinclui temas relacionados & histéria e geografia do Brasil, mescla- dos a instrugées sobre satide, habitos de higiene pessoal e familiar, e alimenta- cio. Tem como fito a formacio da crianca, inserindo-a num contexto sécio- histérico, que no exclui sua preparacdo como cidada. Pois, embora o assunto em 1938 nao fosse muito agradavel, a obra aborda, nas tiltimas paginas, a ques- tio do voto e das eleicdes, referindo-se a escolha do presidente: - Faz muita diferenca ser império ou ser reptiblica? - perguntou a menina. Tio Mario explicou: ~ [.] Os reis ou imperadores podem mandar no seu povo, fazer o que qu rem. Nesse caso, a monarquia é absoluta. As vezes, porém o rei tem seus mi tros, com os quais governa. Mas o rei é sempre rei, e 0 governo passa sempre para os seus filhos ou descendentes. Na Repiblica nio é assim. O chefe do governo chama-se presidente. Quem o escolhe € © povo. Cada pessoa que sabe ler e escrever, enfim, que é cidadéo, escolhe a pessoa que Ihe parece mais capaz de governar. E di o seu voto. Ea eleigao. Quem tiver mais votos, é eleito. - Aqui no Brasil é assim? ~ perguntou Rute. - Aqui no Brasil, © governo é republicano... ~ di p- 207. Grifos da Autora) ¢ tio Mario. (Meireles, 1938, O questionamento das criangas prossegue, e Mario continua se esqui- vando, evitando mencionar a excepcionalidade vivida pelo pais naquele mo- mento, sob a ditadura do Estado Novo, dirigido por Gettilio Vargas. Ainda que nao mencione o regime autoritério, também nao aplaude o governante, deixando nas entrelinhas a distancia entao existente entre 0 propésito demo- cratico da Reptiblica e a realidade da época. 185 Cecitia Meiners: 4 roetica Da Epucacho renunciou a militancia pedagégica, nem deixou de escrever para criancas. Mas foi na busca de outros procedimentos para alcancar o objetivo desejado: © de formar leitores, cidadios conscientes e respeitaveis que sabem amar a literatura. BIBLIOGRAFIA BARRETO, Fausto & LAET, Carlos de. Antologia Nacional ou Colecdo de excertos dos principais escritores da lingua portuguesa. 14.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929, BILAG, Olavo. Poesias infantis. 13.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1935. DEBUS, Eliane Santana Dias. O leitor, este conhecido: Monteiro Lobato e @ formagdo de Leitores. Porto Alegre: PUCRS, 2001, (mimeo.). LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: historia & histé- rias. Sao Paulo: Atica, 1984. LAMEGO, Valéria. A farpa na lira: Cecilia Meireles na Revolucdo de 30, Rio de Janeiro: Record, 1996. MARCHI, Diana Maria. A literatura infantil garicha, Uma historia possivel. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2000. MEIRELES, Cecilia. Leituras infantis. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. - Crianga meu amor, 3.ed, Ilustracdes de Marie Louise Nery. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. . Poesia completa, Rio de Janciro: Nova Aguilar, 1994. Crénicas de educagao I (Obra em prosa). Apresentagao ¢ planejamento editorial de Leodegirio A. de Azevedo Filho. Rio de Janeiro: Fundacao Bibliote- ca Nacional/Departamento Nacional do Livro, Nova Fronteira, 2001. . Rute e Alberto resolveram ser turistas. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1938. CASTRO, Josué de. A festa das letras, tustragdes de Joao Fahrion. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. ZILBERMAN, Regina. A leitura eo ensino da literatura, Sio Paulo: Contexto, 1988. 188 Cecilia Meireles: A Poética da Educacaa Em Busca pa Crianca Lerrora Regina Zilberman Quando nos aproximamos do mundo infantil, o pri- meiro cuidado que devemos ter é 0 de agir de tal modo, que entre nése as criancasse estabeleca uma ponte de absoluta confianga, por onde possamos ir até elas, ¢ elas, por sua vez, sejam capazes de vir até né (Cecilia Meireles, 2001, p. 161) Quando se diplomou professora, em 1917, pela Escola Normal, no Rio de Janeiro, Cecilia Meireles ja tinha escrito seus primeiros poemas, reunidos em Espectros, que publicou em 1919. Dedicada desde entio ao magistério ¢ A literatura, a jovem desenvolveu, durante as décadas de 30 ¢ 40, uma espécie de vida dupla, porque se dividiu entre os afazeres exigidos, de um lado, pelo ensino, de outro, pela criacdo poética, sem abrir mao de nenhuma das duas atividades. Sea poesia apareceu primeiro, a pedagogia nao se fez esperar: em 1924, Cecilia lanca Grianga meu amor, destinado a sala de aula e “adotado pela Dire- toria Geral de Instrucao Publica do Distrito Federal e aprovado pelo Conse- Iho Superior de Ensino dos Estados de Minas Gerais e Pernambuco.” (Meireles, 1994, p.97) A obra foi reeditada em 1927; depois, ficou fora do mercado por cingiienta anos, retornando em 1977, provavelmente na esteira da popularizagao entao alcancada pela literatura infantil, em decorréncia das novas determinacées ditadas pela reforma do ensino, na década de 1970.! Cecilia nao parou ai, envolvendo-se crescentemente com questdes edu- cacionais. Logo ap6s a revolugao de 30, assinou uma coluna, Pagina de Edu- cacio, no Didrio de Noticias, do Rio de Janeiro, em que discutia temas pedagé- gicos segundo a 6tica da Escola Nova, tendéncia emergente desde os anos 20, propalada por teéricos como Anisio Teixeira e Fernando de Azevedo? “Doutora em Letras. Professora do Programa de Pés-graduagio em Letras da PUCRS. ‘A nova legislacao, vigente a partir de 1971, estimulava o professor a empregar textos literarios em sala de aula, independentemente da selegio imposta pelo livro didatico. Essa sugestio facultou a adogio de obras destinadas ao piiblico infantil, determinando 0 chamado boom experimentado até o presente pela literatura para criangas. *Relativamente a essa atividade, cf. LAMEGO, 1996. 175 CéciLta MEIRELES: a PoéTIcA DA Epucagao e Latino Coelho, ao lado de Rocha Pita, Gongalves de Magalhaes e José de Alencar. Cecilia Meireles nao cita clissicos da lingua portuguesa, nem qualquer escritor de periodos histéricos precedentes, mesmo porque se esforca por conferir tom coloquial as suas expressdes e estabelecer um didlogo com 0 leitor. Nesse sentido, reproduz a atuacao de uma professora moderna que nada impée a seu aluno, e sim procura se dirigir a ele de igual para igual, sem abrir mio, contudo, de sua condi¢ao de adulta. Sob esse aspecto, justifica-se Crianga meu amor, representando a tentativa de ruptura com o padrao autori- tario do livro didatico de seu tempo. E também o que explica o carater hoje convencional de suas personagens, pois, apresentando criancas pobres e ri- cas, pertencentes ao sexo masculino e feminino, destaca um comportamento em que a virtude nao resulta da adocao do paradigma paterno, e sim da ex- pressao da naturalidade infantil. Além disso, Cecilia colocava em pritica a concepcio de crianca que ti- nha em mente, conforme sugerem as crénicas que publicou entre 1930 e 1933, no Didrio de Noticias. Nesses textos, deixa claro os valores que desejaria expandir por meio da educagao: poucas doses de autoritarismo € muitas por- gdes de ética, exigindo que o adulto nao falseie a realidade da crianga, ao apresentar-lhe uma imagem artificial do mundo, diversa daquela que lhe pro- piciard a “vida real”. Aspira igualmente estabelecer uma relacao igualitaria entre o adulto e a crianca, embora reconheca as respectivas diferencas, que, por se deverem a idade, nao sao perenes, e sim transitérias: A ccrianga nao é um boneco, cujas habilidades ou inabilidades se exploram. E uma criatura humana, com todas as forgas e fraquezas, todas as possibilidades de evolugio e involugao inerentes condicio humana. Por isso mesmo, sio condenaveis todas as atitudes que a rebaixem, ou que Ihe estorvem o seu nor- mal desenvolvimento. (Meireles, 2001, p. 163) ‘A pesquisadora entra em cena Foi nesse perfodo que a jovem professora carioca procedeu a um in- quérito pedagégico com o fito de conhecer o que liam as criangas das escolas do Rio de Janeiro. A pesquisa realizou-se em 1931, e dela da noticias Cecilia em correspondéncia datada de 8 de novembro daquele ano, dirigida a Fernando de Azevedo: SBARRETO & LAET, 1929. A respeito da trajetéria do livro didatico no Brasil. ZILBERMAN, Regina. A contribuigao do livro didatico. In: __. A leitura ¢ o ensino da literatura, Sio Paulo: Contexto, 1988. 178 CrciLia MEIRELES: 4 POETICA DA EDucacho c) essas criancas elegem preferentemente um desses trés géneros: em primeiro lugar, livros escolares, depois os que Cecilia chama de “fantasia” (equi- valentes a hist6rias de fadas) e, por fim, “literatura”; d) os livros escolares preferidos sao Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manuel Bonfim, e os de Erasmo Braga; os livros “de fantasia” preferidos sao 0s que contam as histérias da Carochinha, 4 moda das coletaneas organizadas por Figueiredo Pimentel (nome que Cecilia Meireles nao cita); e) Erasmo Braga, autor preferido de muitos, é também o mais rejeita- do, colocando-se numa situacao contraditéria entre as criangas, divididas en- tre os que 0 amam € os que 0 recusam; f) a maioria das criangas indica que preferiria ler livros de fantasia, 0 que sugere serem elas levadas a consumir obras de cunho escolar ou educativo; g) amaioria acredita que vale a pena ler; solicitada a se justificar, amaior parte diz que ler é instrutivo, sendo que poucos consideram tal agio divertida (expresso escolhida pelas crian¢as para falar do prazer da leitura); h) a maioria diz preferir ler em casa, nao na escola; i) a preferéncia de quase todos é pela prosa, nao pela poesia; j) consultadas a respeito dos géneros literarios, as criancas dao respos- tas diferentes conforme o sexo: as meninas preferem historias, enquanto que os meninos elegem aventuras; k) Olavo Bilac desponta como 0 autor preferido de meninos e meninas, superando os nomes estrangeiros; 1) Olavo Bilac é igualmente o autor nacional predileto de todos; mas, dentre os preferidos das meninas, aparece Monteiro Lobato, destaque digno de nota, porque, até 1931, o escritor paulista ja tinha publicado A menina do narizinho arrebitado e outros sucessos, mas suas obras nado costumavam passar pelo crivo da escola. O inquérito ilustra o horizonte da leitura com que a pesquisadora se depara: criancas ¢ jovens consumiam sobretudo obras destinadas a escola, como as de Erasmo Braga, e de contetido civico, como 0 Através do Brasil, que Bilac e Bonfim tinham lancado em 1910 e que vinha constituindo, desde en- to, grande sucesso de vendas, apreciado por grandes ¢ pequenos. Porém, eles confessam preferir ler narrativas imaginarias em casa, sem a interferéncia de pais e professores. A poesia nao conta com muitos admiradores, talvez porque ainda estivesse mediada pelo mesmo propésito educativo que se veri- fica nas Poesias infantis (1904), do ja mencionado Bilac, ou em Alma infantil (1912), de Francisca Juilia e Julio da Silva. De todo modo, uma certa ideologia da leitura infiltrava-se em suas mentes, pois as criangas e jovens justificam que ler € titil, esquecendo-se de que também pode ser prazeroso. 180 Ceciuia Meets: 4 pottica pa Epucagio nas siio educadas, virtuosas e corretas. Cecilia, porém, estava, em parte, con- tariando a manifestagdo dos pesquisados, que, sobretudo entre as meninas, jé expunham sua predilecao pelo criador de Emilia e Narizinho.* Sio essas coordenadas, diferentes entre si, que explicam os livros que destinou a infancia ¢ publicou pela Globo, de Porto Alegre, apés deixar de escrever as crénicas da Pagina de Educacio. O primeiro deles 6 A festa das Letras, elaborado em parceria com Josué de Castro e langado em 1937, na Série Alimentagio. A obra toma a forma de um abecedirio, sendo que as palavras que correspondem a cada letra tratam de temas relacionados a higiene e habitos alimentares. Os autores explicam 0 tema: A festa das letras procura ser um pretexto agradavel para fazer chegar as crian- cas, revestidos de certo encantamento, esses primeiros preceitos de higiene alimentar, indispensaveis 4 sua vida. (Meireles e Castro, 1996) Os quatro versos a seguir transcritos ilustram 0 processo criativo, pois, como se vé, 0s vocibulos iniciados com maitiscula e em negrito referem-se & 08 versos, cujo contetido é pedagégico, ja que ensinaa apren- E de Escola ede Estudante, que Entende que aprende! Abecedarios sio comuns na época, que, amparando as cartilhas utiliza- das na alfabetizagao, colaboram para a memorizagao da escrita. Na mesma €poca, Erico Verissimo publicou, também pela Globo, Meu ABC, dentro da Coleco Nanquinote, que o proprio romancista dirigia. Por sua vez, a preocu- pacao com a higiene estava na ordem do dia, como sugere outra obra sobre 0 assunto, igualmente de Erico Verissimo, Aventuras no mundo da higiene, de 1939. Nessa ocasio, porém, Cecilia, agora sozinha, abraga outro projeto — a escrita de Rute e Alberto resolveram ser turistas, destinado ao terceiro ano ele- mentar, com contetidos do Programa de Ciéncias Sociais. Obra mais alentada que as anteriores, somando duzentas paginas, a educadora e poeta propoe um formato de livro didatico diferente dos que ela mesmo conhecia, seja na posicao de estudante, seja na qualidade de escritora. "Ao contritio do que declara Cecilia a Azevedo, as criangas apreciavam Lobato € manifesta- vam seu gosto em correspondéncia pessoal remetida ao escritor. Cf. DEBUS, 2001. 182 Cecitin MetReLEs: 4 PoeticA Da Epucagio Somente no quinto capitulo introduzem-se as primeiras ligdes, relacio- nadas A situacdo geografica das criangas: procurando mostrar onde estao, 0 pai, Dr. Silveira, explica os pontos cardeais, tomando como referéncia atra- Ges turisticas do Rio de Janeiro, como o ja citado Pio de Agticar. O sexto capitulo, em que os meninos visitam a praia, amplia os ensinamentos, abor- dando tema importado de A festa das letras: a importancia da vida saudavel, que depende da boa nutricao e dos exercicios fisicos. A primeira parte estende-se por dezessete capitulos, dirigidos aos temas citados: satide, alimentagao ¢ higiene. Silveira destaca o valor, nas refeigdes, de frutas e verduras, que contém vitaminas; também salienta que cabe manter a casa limpa, livre de insetos, dando instrugdes sobre os melhores procedi- mentos para se evitar o actimulo de lixo. O pai ainda leciona geografia, refe- rindo-se, de um lado, as caracteristicas da vida urbana, de outro, aos corpos celestes, fomentando a curiosidade dos filhos, interessados em estrelas e cons- telagées. Na segunda parte, intensificam-se os ensinamentos escolares: como as criangas decidem ser turistas, para melhor conhecer 0 Rio de Janeiro € o pais, Silveira perora sobre as diferencas regionais brasileiras, chamando a atengao para as Virias atividades econémicas que distinguem Norte ¢ Sul, Centro e Litoral. Depois, ainda alimentado pela curiosidade dos meninos, menciona a carta de Caminha, pretexto para narrar a vinda dos portugueses 4 América, no século XVI. A terceira parte coincide com o assunto proposto pelo titulo da obra, pois, depois da chegada de nova personagem, o tio Mario, os meninos podem concretizar a idéia de se tornarem turistas. Esse desejo justifica-se desde 0 segundo capitulo da Parte II, quando, apés ouvir a prelecao do pai, para quem © turismo beneficia tanto os viajantes de fora, quanto os comerciantes do lo- cal visitado, Alberto resolve valorizar seu entorno, formado pela bela paisa- gem do Rio de Janeiro: - Papai disse — continuou Alberto ~ que o Rio é uma cidade maravilhosa para o turismo. Que hd uma porcio de coisas lindissimas para se ver: a Tijuca... 0 Corcovado... 0 Pio de Agticar... o Jardim Botanico... (Meireles, 1938, p. 109) Contudo, o projeto s6 toma corpo com o aparecimento de Mario que, disponivel, leva os sobrinhos a passear pela cidade, aproveitando para contar sua histéria. Inicia pela fundacao do Rio de Janeiro, com Mem e Estacio de Sa, ¢ estende-se até as transformagoes promovidas no comeco do século XX, passando pela aio dos colonizadores dos administradores, como Gomes Freire, no século XVIII, e Pedro II, no século XIX. 184 Lerruras bo MUNDO A opgio pela cidade grande, contudo, revela outra recusa e outra faca- nha, pois Cecilia rejeita a eleigdo do procedimento, entio ja consagrado, ado- tado por Monteiro Lobado e seguidores: o de identificar o Brasil a um sitio, de que o do Picapau Amarelo é sintese e simbolo.'° Localizando, de modo realista, a ago no Rio de Janeiro, a autora menciona a vida rural apenas para contrap6-la aos habitos urbanos, que considera mais civilizados; com isso, adequa o espaco onde transcorrem os acontecimentos ficticios (passeios de Rute ¢ Alberto) ou hist6ricos (episédios do passado brasileiro, ocorridos du- rante a Colénia ou o Império) ao mundo conhecido pelo leitor, também ele habitante das grandes cidades, fosse o Distrito Federal ou outro lugar, situado nas demais regides do pais. Essa escolha faculta 4 autora modernizar sua narrativa, enquanto valori- za. a modernidade enquanto situacdo a ser vivida e experimentada, ajustando o tema ao estilo. Supera o arcaismo presente na narrativa de Bilac e Bonfim; procura ultrapassar o feito de Lobato que, se, de um lado, revoluciona a lite- ratura infantil brasileira, estabelece suas personagens em espaco sintomatico do atraso que ele mesmo desejaria suplantar. Pode-se entender Rute e Alberto como versées urbanas de Narizinho e Pedrinho. Porém, enquanto que os dois moradores da Tijuca deslocam-se para um ambiente representativo do presente e do progresso, Pedrinho retorna ao campo, de onde Narizinho nunca sai, a nao ser por forga da fantasia. Desse modo, Cecilia tem condigées de concretizar 0 que promete em carta a Fernando de Azevedo, realizando uma obra em que se reconhecem tragos lobateanos - 0 uso permanente do didilogo como processo de ensino-aprendi- zagem, a posicdo igualitaria ocupada por criancas ¢ adultos —sem que se veri- fiquem os prejuizos apontados pela autora, vale dizer, 0, segundo ela, carter deseducativo. Rute e Alberto tenta circular na contramao de duas tendéncias, com as quais dialoga e que tenta superar: de um lado, o nacionalismo patrioteiro de Bilac, que pedia as criancas amarem “com fé e orgulho, a terra em que” nasce- ram, jf que no veriam “nenhum pais” igual; (Bilac, 1935, p. 122) de outro, a presenga de personagens, conforme Cecilia, malcriadas e detestaveis. O resul- tado € original, se lembramos que se trata de um livro didatico, género con- servador que tende A repeticao de procedimentos bem-sucedidos. Contudo, a obra nao teve seguidores, ¢ a propria escritora abando- nou, aos poucos, a trajetdria de responsavel por livros dessa natureza. Nao "Cf, a respeito LAJOLO e ZILBERMAN, 1984. 187 Ou Isto ov Aguito: Um CrAssico Da Poesia INFANTIL BRASILEIRA Ana Maria Lisboa de Mello” Narreflexo sobre a poesia infantil, o adjetivo que especifica o destinata- rio da produgao nao justifica o seu deslocamento de um fenémeno mais am- plo que é literirio, embora a delimitacao de ptiblico possa ter certas implica- G6es no processo de criacao. A tentativa de eliminar a distancia que separa o autor-adulto e 0 leitor-crianga, em termos de condig6es emocionais ¢ intelec- tuais, € uma dificuldade que pode levar o escritor a assumir um discurso didatico, centrado no ponto de vista do adulto.' As obras construidas com a linguagem conotativa, garantindo a plurissignificacao textual, quesito essencial da obra de arte literaria, sio as que fazem frente a esse risco, dando espacos ao leitor no processo de atribui- cao de sentidos. No poema, a imagem acrescenta um sentido analégico ou simbélico a um sentido primeiro. Forma-se a partir da relacdo que o poeta estabelece entre sensa¢ao, sentimento ou impressao e a palavra que, por seu sentido, sonoridade e aspecto exterior, remete a uma realidade diferente, po- dendo ser outra sensa¢ao, outro sentimento, enfim, uma realidade nova, ensejada pela formulagao verbal. As miltiplas dimensGes semanticas das ima- gens discursivas permitem diferentes interpretacdes do texto, variveis con- forme a experiéncia do leitor e 0 contexto em que esta inserido. Na imagem, a conjugacdo de palavras de campos semanticos diferentes desfaz as relacées légicas e poe a imaginacao em funcionamento, exigindo a participacao do leitor no preenchimento das entrelinhas ou vazios do texto, |j4 que os sentidos sio mais sugeridos do que plenamente enunciados. No poema, 0 conjunto das imagens forma uma rede a partir de uma imagem principal, como se fossem nuancas de uma mesma representacdo. O processo de reiteragao ¢ acumulagao imagética di coesao ao texto, evitando que o po- ema se desfaca em uma seqiiéncia descoordenada de estados animicos.* Aliado aos recursos imagéticos, 0 ritmo é outro elemento importante na significacao do texto lirico, pois toca 0 leitor no ambito dos estados animicos. * Doutora em Teoria da Literatura. Professora do Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisadora do CNPa. * Quando do surgimento, no Brasil, de uma poesia designada “infantil”, o sujeito lirico repre- senta um adulto a quem cabe transmitir ensinamentos aos pequenos leitores. E caso da ‘obra Poesia infantil, publicada em 1904, por Olavo Bilac. * Cf. STAIGER, 1975, p. 30. 189 Cecitin Meinetes: a poétics pa Epucagio Em 1931, a escritora promoveu um inquérito, em que, por meio de questiondrios respondidos por 1.500 criangas e jovens, verificou o que e como elas liam. Leituras infantis, resultado da pesquisa, é publicado somente em 1934, ainda sob a égide de Anisio Teixeira, que dirigia o Instituto de Pesqui- sas Nacionais. De 1937 data A festa das letras, obra escrita em parceria com Josué de Castro e ilustrada por Joao Fahrion, publicada pela Livraria do Globo. Sozi- nha, ela redige, em 1938, Rule ¢ Alberto resolveram ser turistas, cujo titulo, narra- tivo, parece esconder o intuito didatico. O livro, que, conforme a folha de rosto, “contém a matéria do Programa de Ciéncias Sociais do 3° Ano Elemen- tar”, (Meireles, 1938) destina-se a estudantes, tendo sido igualmente divulga- do pela Globo. Tais iniciativas dao conta da atividade pedagégica exercida por Cecilia Meireles por quase vinte anos. Nao que ela a tenha interrompido: entre 1940 ¢ 1943, voltou a produgio jornalistica, assinando a coluna “Professores ¢ Es- tudantes”, em A Manhd, do Rio de Janeiro; Problemas da literatura infantil resul- ta de uma série de conferéncias apresentadas em Belo Horizonte em 1951, onde o livro foi publicado. Ou isto ou aquilo, conjunto de poemas dirigidos ao leitor infantil, data de 1964, e constitui um dos principais marcos da literatura brasileira dirigida A crianca. Porém, o nticleo de obras aqui destacadas revela um projeto comum, associado a atividade intensa da autora, na condigao de uma educadora em didlogo com a tradi¢o pedagégica que a antecede e que deseja modificar. Por isso, justifica-se sua abordagem em separado, como se procede a seguir. Aexperiéncia da jovem professora Quando Grianca meu amorapareceu, a autora contava 23 anos, ¢ 0 Brasil acabava de provar, em Sao Paulo, 0 gosto da revolucdo modernista, evento que, apesar da repercussio, ainda nao atingira plenamente o sistema artisti- co, ainda arraigado as estéticas do século XIX. A propria Cecilia, que lancara Espectros em 1919, era adepta do Simbolismo, de que se desvencilhou mais tarde. Crianca meu amor parece traduzir, de um lado, a ingenuidade da jovem escritora: na abertura, dirige-se a uma crianga andnima, a quem deseja decla- rar afeto, simples, sincero, verdadeiro. De outro, expressa seu ideal pedagégi- co, voltado a formagao ética e ao desenvolvimento da sensibilidade dos estu- dantes. Assim, formula em diferentes capitulos o que designa “mandamen- tos” da crianca, induzindo-a a amar a escola, a professora ¢ os colegas, bem como a no mentir e a ser décil. 176 Lerruras po MUNDO Estou trabalhando numa comissio técnica, estudando 0 que Iéem e como léem as criangas cariocas, Isto me absorve cerca de quatro horas mais, por dia. Faco- © intensamente, quer como agio quer como intengao. Pode ser que se chegue ‘a uma visio sugestiva do que temos ¢ do que precisamos.* Em 12 de abril do ano seguinte, ela comenta que o trabalho ia adianta- do, embora prejudicasse a realizagao de outros projetos: Aguele inquérito de que Ihe falei, sobre literatura infantil, s6 agora esta che- gando ao fim. Creio que até o dia 15 estara terminado, com o respectivo rela- t6rio, etc. Foi ele que me impossibilitou de me dedicar completamente ao seu livro. Mas creio que também agora nos vai ser bastante util, pois, com cerca de 1.500 questionarios, com 12 respostas cada um, ja se pode avaliar do interesse ¢ das disposigdes literdrias da nossa infincia e encaminhar melhor um livro que se Ihe queira oferecer. Até o fim deste més, portanto, 0 Sr. receber4 os originais do livro. E aproveita- rei para Ihe mandar as conclusdes do inquérito que talvez saiam em separata da Diretoria de Instrucio, visto pareceremthe extremamente longas para pu- blicacao no Boletims A pesquisa, contudo, consome ainda esse ano ¢ o préximo, sendo dada por concluida em 1933, com relatério publicado em 1934. Logo na abertura, arelatora declara seu objetivo: “conhecer a situagao de nossos escolares tanto no seu cabedal de leituras como nas suas preferéncias individuais.” (Meireles, 1944) Para chegar a esse conhecimento, a pesquisadora aplicou um questio- nario contendo doze questdes abertas dirigidas a 933 meninas e 454 meni- nos, variando suas idades entre 7 € 17 anos. Dentre esses, o maior ntimero de entrevistados situa-se entre 10 e 14 anos (ainda mais especificamente: entre 11 e 13anos), procedentes, todos, de 24 escolas do Rio de Janeiro, localizadas em 19 distritos escolares. A amostra abrange alunos dos 3°, 4° ¢ 5° anos prima- rios. As respostas, relativas a cada uma das perguntas (boa parte das ques- t6es pede uma justificativa), podem ser assim resumidas: a) a maioria diz gostar de ler; b) a maioria diz ter lido pelo menos 10 livros; ‘MEIRELES, Cecilia. Correspondéncia de 8/11/1981 [a Fernando de Azevedo). In: LAMEGO, 1996, p. 218. ®MEIRELES, Cecilia. Correspondéncia de 12/04/1932 [a Fernando de Azevedo]. In: LAMEGO, 1996, pp. 222-293, 179 Lerruras Do MUNDO Cecilia nao analisa os resultados do inquérito em Leituras infantis, limi- tandosse a transcrever os ntimeros. Na correspondéncia dirigida a Fernando de Azevedo, que Valéria Lamego reproduz, a pesquisadora refere-se 4 grande quantidade de informacées a serem ordenadas. Lidando com questées aber- tas que requeriam justificativa, ela se defrontou com grandes dificuldades de tabulacao. Como esse trabalho tomou muito tempo, talvez abdicasse da inter- pretagao dos dados. ‘As informacées, contudo, repercutiram em sua atividade profissional, conforme sugere a carta de 9 de novembro de 1932, dirigida a Azevedo. Nes- ta, declara ao destinatario que o livro que produz levaré em conta as expecta- tivas dos leitores, indicadas pelos resultados do inquérito: E quanto ao livro, tenho a comunicarlhe o seguinte. (...) Como o inquérito realizado sobre a leitura infantil demonstrava um interesse maior em criangas de 12a 14 anos, procurei fazer o livro para esse leitores ¢, assim, tive que escolher o tema ea linguagem que jé sio bastante poéticos; numa transigio da infincia para a adolescéncia.* Tao importante é para ela a recep¢ao dos jovens leitores, que projeta experimentar a reagio deles em classe, expondo-os a obra em producio: Pensei, entdo, em fazer passar estes contos por uma classe de quarto ou quinto ano que, desconhecendo autora, finalidade, etc., opinasse com toda a isenc¢ao sobre o assunto. Na mesma carta, Cecilia expressa sua opinido sobre os livros que Monteiro Lobato dirigia a infancia: Recebi os livros de Lobato. Preciso saber 0 endereco dele para Ihe agradecer diretamente. Ele é muito engragado, escrevendo. Mas aqueles seus persona- gens sio tudo quanto ha de mais malcriado e detestavel no territ6rio da infan- cia, De modo que eu penso que os seus livros podem divertir (tenho reparado que divertem mais os adultos que as criangas) mas acho que deseducam mui- to. E uma pena. (...) Por nenhuma fortuna do mundo cu assinaria um livro como os do Lobato, embora nao deixe de os achar interessantes.” Cotejado 0 comentario de Cecilia a seu proprio livro, Crianca meu amor, conclui-se que a escritora estava sendo coerente: as personagens de suas pagi- “MEIRELES, Cecili 1996, p. 228. VIdem, p. 229. Correspondéncia de 9/11/1932 [a Fernando de Azevedo}. In: LAMEGO, Ist Lerruras bo MUNDO Através do Rio de Janeiro Rute ¢ Alberto resolveram ser turistas incorpora, desde o titulo, um projeto narrativo, revelando-se 0 contetido didatico apenas na folha de rosto, na con- digdo de subtitulo. A capa, figurativa, mostra uma paisagem conhecida do Rio de Janciro: em primeiro plano, bondinho que leva ao Pao de Acticar, este colocado ao fundo; dentro do veiculo, duas criangas, provavelmente os sujei- tos da oracao que intitula a obra, acompanhadas por um adulto, todos vesti- dos com trajes de passeio. Nos anos 30, a Livraria do Globo, sob a direcao de Henrique Bertaso, intensifica sua linha editorial, gracas 4 publicacao de autores nacionais con- temporaneos, traducées ¢ livros didaticos. A literatura infantil recebe especial atengao, constando, entre seus publicados, tanto os locais Erico Verissimo e Pepita de Ledo, quanto os traduzidos Joana Spyri, autora de Heidi, e Charles Kingsley, de Os bebés d’égua® Nio surpreende, pois, a presenca de uma narrativa escrita por Cecilia Meireles, contempordnea dos escritores que compunham 0 catilogo entio em crescimento da Globo. Nem 0 leitor era jogado, logo apés a leitura da folha de rosto, numa obra de cunho didatico; pelo contrario, a autora, com habilidade, vai retardando a introducao dos prometidos contetidos de Cién- cias Sociais, por intermédio da interpolacao de um enredo com comeco int gante. Dividido em trés partes, Rute e Alberto comecam ex abrupto pela exclama- cao contida no titulo do primeiro capitulo: “Vamos para Copacabana!” (Meireles, 1938, p. 7) A essa convocacio — cuja efetividade retérica mede-se tanto pelo uso do verbo no presente, como pela adogao da primeira pessoa do plural, invocando o nés que engloba leitor e personagens — segue-se a ex- plicagao: “Rute e Alberto nunca tinham morado perto do mar”, razio por que sua mae, D. Isabel, aproveitando as férias de verao dos filhos, aluga aparta- mento na praia. Os quatro primeiros capitulos tratam dos preparativos da mudanca do subtirbio para o litoral. O narrador nao esclarece onde reside a familia Silveira, mas a travessia na direcao de Copacabana toma cinqienta minutos de Gnibus, conforme um roteiro — Praca Saenz Peiia, Largo Estacio de $4, Canal do Man- gue, Avenida Rio Branco, Cinelandia, Russel, Flamengo, onde se avista 0 Pao. de Acticar, e 0 Mourisco em Botafogo, enfim, Copacabana ~ que parece co- megar na Tijuca. °Relativamente A trajet6ria da literatura infantil no Rio Grande do Sul, cf. MARCHI, 2000. 183 Lerruras bo MUNDO percurso escolhido por Cecilia funde tempo e espago: Mario conduz 0s pequenos pelos locais que suscitam a narrativa de eventos do passado, cha- mando a atencio para os vultos que construiram, modelaram e modificaram a cidade, até chegar ao formato atual. Os episddios sio curtos, mas bastam para desenhar a trajet6ria hist6rica do ambiente agora conhecido e dominado por seus pequenos habitantes. Uma comemoragio de Natal, ocasiiio festiva com que Cecilia Meireles também encerrara suas outras obras destinadas 4 infincia = Crianga meu amore A festa das letras conclui alegremente a obra. Nio € dificil reconhecer, ao longo do livro, as matérias com que as Cién- jas Sociais lidavam nos anos 30, quando se reestruturava 0 ensino basico no Brasil, com as reformas promovidas, primeiramente, por Francisco Campos, e, depois, por Gustavo Capanema, que ocuparam, um apés 0 outro, 0 Ministério da Educagao ¢ Satide, durante o governo Vargas. Dirigido a criangas como aque- las perquiridas por Cecilia Meireles no comeco da década, Rute e Alberto resolve- ram ser turistasinclui temas relacionados & histéria e geografia do Brasil, mescla- dos a instrugées sobre satide, habitos de higiene pessoal e familiar, e alimenta- cio. Tem como fito a formacio da crianca, inserindo-a num contexto sécio- histérico, que no exclui sua preparacdo como cidada. Pois, embora o assunto em 1938 nao fosse muito agradavel, a obra aborda, nas tiltimas paginas, a ques- tio do voto e das eleicdes, referindo-se a escolha do presidente: - Faz muita diferenca ser império ou ser reptiblica? - perguntou a menina. Tio Mario explicou: ~ [.] Os reis ou imperadores podem mandar no seu povo, fazer o que qu rem. Nesse caso, a monarquia é absoluta. As vezes, porém o rei tem seus mi tros, com os quais governa. Mas o rei é sempre rei, e 0 governo passa sempre para os seus filhos ou descendentes. Na Repiblica nio é assim. O chefe do governo chama-se presidente. Quem o escolhe € © povo. Cada pessoa que sabe ler e escrever, enfim, que é cidadéo, escolhe a pessoa que Ihe parece mais capaz de governar. E di o seu voto. Ea eleigao. Quem tiver mais votos, é eleito. - Aqui no Brasil é assim? ~ perguntou Rute. - Aqui no Brasil, © governo é republicano... ~ di p- 207. Grifos da Autora) ¢ tio Mario. (Meireles, 1938, O questionamento das criangas prossegue, e Mario continua se esqui- vando, evitando mencionar a excepcionalidade vivida pelo pais naquele mo- mento, sob a ditadura do Estado Novo, dirigido por Gettilio Vargas. Ainda que nao mencione o regime autoritério, também nao aplaude o governante, deixando nas entrelinhas a distancia entao existente entre 0 propésito demo- cratico da Reptiblica e a realidade da época. 185 Cecitia Meiners: 4 roetica Da Epucacho renunciou a militancia pedagégica, nem deixou de escrever para criancas. Mas foi na busca de outros procedimentos para alcancar o objetivo desejado: © de formar leitores, cidadios conscientes e respeitaveis que sabem amar a literatura. BIBLIOGRAFIA BARRETO, Fausto & LAET, Carlos de. Antologia Nacional ou Colecdo de excertos dos principais escritores da lingua portuguesa. 14.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929, BILAG, Olavo. Poesias infantis. 13.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1935. DEBUS, Eliane Santana Dias. O leitor, este conhecido: Monteiro Lobato e @ formagdo de Leitores. Porto Alegre: PUCRS, 2001, (mimeo.). LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: historia & histé- rias. Sao Paulo: Atica, 1984. LAMEGO, Valéria. A farpa na lira: Cecilia Meireles na Revolucdo de 30, Rio de Janeiro: Record, 1996. MARCHI, Diana Maria. A literatura infantil garicha, Uma historia possivel. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2000. MEIRELES, Cecilia. Leituras infantis. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944. - Crianga meu amor, 3.ed, Ilustracdes de Marie Louise Nery. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. . Poesia completa, Rio de Janciro: Nova Aguilar, 1994. Crénicas de educagao I (Obra em prosa). Apresentagao ¢ planejamento editorial de Leodegirio A. de Azevedo Filho. Rio de Janeiro: Fundacao Bibliote- ca Nacional/Departamento Nacional do Livro, Nova Fronteira, 2001. . Rute e Alberto resolveram ser turistas. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1938. CASTRO, Josué de. A festa das letras, tustragdes de Joao Fahrion. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. ZILBERMAN, Regina. A leitura eo ensino da literatura, Sio Paulo: Contexto, 1988. 188 Cécitta MEIRELES: A POETICA DA EDucAGio O mew, a acentuagao das silabas, as figuras fénicas, as rimas ¢ as pausas, no interior € no final dos versos, sao fatores de ritmo que revelam, juntamente com as imagens, os estados animicos do sujeito lirico, os quais sio comparti- lhados pelo leitor. Assim, a um estado animico melancélico, podera corresponder um ritmo mais lento, povoado de siléncios provocados pelas pausas, com a presenca marcante de tonicas que refreiam a precipitagao rit- mica. Em contrapartida, um ritmo mais gil poder estar relacionado a um estado animico de alegria ou de convite a vida. Para 0 leitor-crianga, 0 ritmo do poema é 0 aspecto que, primeiramen- te, Ihe chama aatencio, na medida que responde a sua necessidade de ludismo. O prazer da sonoridade surge muito cedo na vida da crianga, através do con- tato com a poesia folclérica em suas diferentes formas, desde a escuta da can- tiga de ninar até a participagao nas cantigas de roda, passando pelas brinca- deiras das parlendas, trava-linguas e adivinhas. Entre os livros destinados ao leitor infantil, Ou isto ou aquilo, de Cecilia Meireles, publicado em 1964, constitui-se uma espécie de divisor de aguas entre dois periodos de produgao poética para crianga no Brasil, inaugurando um novo modo de criagao que privilegia o olhar ¢ os sentimentos da crianca, ao deixar para tras o feitio diditico e doutrinario, predominante na produ- cao anterior, Nesse livro, a autora vale-se de recursos préprios da poesia fol- clérica, especialmente os voltados & exploracao da sonoridade, dentre esses: © uso das aliteracdes que, em certos casos, provoca a dificuldade de expres- si; 0 trocadilho de palavras semelhantes que leva ao riso; a regularidade ritmica, que marca 0 compasso repetitive e auxilia a memorizacao; a onomatopéia ¢ outras figuras fénicas que reproduzem sons da natureza ou das coisas; a exploragao das rimas. Sensivel aos jogos de palavras da poesia folclorica, o leitor de Cecilia Meireles redescobre o prazer no ritmo, nas combinagées sonoras € na melo- dia dos poemas. Em alguns poemas, as aliteracdes reproduzem o ludismo do trava-lingua, tipo especial de parlenda cujas reiteragdes fonéticas provocam dificuldade de pronunciagio e até mesmo a deturpagio dos termos, quando lidos em ritmo acelerado. No caso do poema “O menino dos ff e dos rr” esta nitida a intengao lidica, bem como a matriz folclérica: O menino dos ff'e rr Onfew Orofilo Ferreira Ai com tantos rr, néo erres! (p. 35)* 3 MEIRELES, Cecilia, 1990, p. 41. Obs.: A partir desta nota, nas citagdes retiradas desse livro, serio indicadas apenas as paginas. 190 Lerruras Do MUNDO Coerente com esse propésito, todas as figuras mencionadas ao longo do livro caracterizam-se pela virtude. Logo no primeiro capitulo, dedicado ao “bom menino”, a narradora refere-se ao pequeno estudante que “vem todos os dias a escola, com a sua roupinha asseada e as suas li¢des bem sabidas.” (Meireles, 1977, p. 11) A ele, seguem-se as meninas que colhem flores no jardim, os trabalhadores que se preocupam com a educacao dos filhos, 0 ga- roto que da uma esmolaa uma velha que passa fome, o pequeno pobre que se sente rico gracas ao amor recebido dos pais, e assim por diante. Nada mais convencional em termos de representagio da crianga, sobre- tudo se pensamos a obra desde a perspectiva do tempo, pois Cecilia viria a escrever, anos depois, Ou isto ou aquilo, marco da poesia destinada a infancia. Por sua vez, cada um dos temas ou das personagens ocupa capitulos diferentes, que se mostram curtos e de facil compreensao, gracas ao emprego de periodos breves e paragrafos constituidos de, no maximo, duas frases. Al- guns capitulos resumem-se a cantigas muito simples, como “A cancio dos tamanquinhos” (Meireles, 1977, p. 59), em que predominam onomatopéias € diminutivos, recursos usados para facilitar a leitura da crianga: Troc... troc... troc.., troc... Ligeirinhos, ligeirinhos, Troc... troc... toc... troe. Vio cantando os tamanquinhos... Madrugada. Troc... troc. Pelas portas dos vizinhos Vao batendo, troc... troc, Vio cantando os tamanquinhos... A singeleza dos versos parece complementar a imagem estereotipada da crianca com que a obra trabalha em todas as suas paginas. Contudo, assim como é legitimo contrapor 0s versos acima aqueles que Cecilia viria a produzir quando escreveu Ou isto ou aquilo, verificando como a autora aperfeicou sua poética, aprofundando a pesquisa com a linguagem, a sonoridade e o ritmo, vale cotejar Crianga meu amorcom 0 tipo de livro didati- co oferecido a crianca brasileira na terceira década do século XX. Com efeito, os livros didaticos de entéo correspondiam 4s seletas em que se reuniam excertos modelares de escritores canGnicos da literatura em lingua portuguesa. A Antologia Nacional, de Fausto Barreto ¢ Carlos de Laet, de larga circulacao desde 1895, representa o padrao desse tipo de obra, em que se recuperava a hist6ria da literatura desde vultos ilustres, como os que os compiladores destacam no Prefacio: Joao de Barros, Francisco Manuel de Melo 7

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