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Minha boneca abaiyomi em minhas mãos agora, enquanto morro.

De onde vem o sangue que a

mancha? É o meu próprio sangue que também cai nela. Antes eu soubesse do terror que me

esperava eu teria cuidado de mim e de Yasmim que agora me aguarda no céu se é que existe essa

bobagem.

Cheguei a ter uma visão do nosso terrível fim e mesmo assim ninguém acreditou no que eu disse.

Lembro de ter chegado em nosso apartamento depois de um dia de trabalho e só querer me deitar.

Cumprimentei meus amigos que estavam na sala, joguei minhas coisas no quarto e fui ao banheiro

para mijar. Nos meus últimos segundos de sanidade pensava sobre tudo que já haveria de ter se

passado naquela casa enquanto observava a construção de séculos passados. Tal pensamento me fez

sentir um calafrio crescente enquanto me aproximava do banheiro.

Que Deus me perdoe mas eu o odeio porque permitiu que eu abrisse aquela porta e fosse tomado

pela minha loucura que apareceu como uma visão de outros tempos, de outro lugar ou de outro

mundo, não sei dizer ao certo: Não era meu banheiro que havia depois da porta, mas abri-la me

levou a um lugar escuro que aos poucos eu definia em minha visão enquanto entrava, tomado por

uma coragem que não sei de onde vinha. Um cômodo retangular e extenso de paredes brancas e

chão de terra batida, cheiro de terra no ar, cheiro de sangue no ar. Atordoado eu vi que havia ali um

homem acorrentado a um poste feito de madeira de árvore, totalmente nu, suando e respirando de

maneira ofegante, olhava para o chão mas não via nada porque estava perdido em si mesmo de dor.

Atrás dele outro homem ergueu uma chibata para o alto e acertou o primeiro nas costas, arrancando

um pedaço da carne e um grito atordoador do escravo que chorava e pedia perdão, se debatendo

acorrentado e gritando que faria qualquer coisa para sair dali. Eu também gritei. Medo, nojo e raiva

era o que sentia quando caí de joelhos no chão chorando querendo não ver mais aquilo. Com isso,

chamei a atenção de outro homem que também ali estava, o único branco, que me viu e veio em

minha direção gritando “preto maldito”, me chutou a cara, arrancando sangue.

Acordei gritando e sangrando no chão do banheiro, meus amigos tentando me acalmar enquanto eu

me debatia. Nada do que eles disseram pôde me deixar tranquilo porque o que eu tinha visto era
real. Tentei dormir mas não preguei o olho a noite toda e na manhã seguinte corri para o trabalho

onde passei o dia cansado e dolorido. Pensava em nunca mais voltar para casa, fugir daquela visão,

mas não tinha para onde ir e estava exausto. Quando cheguei ao apartamento fui tomado outra vez

pelo medo, não tinha como ficar ali sabendo que aquele lugar escondia pesadelos. Fui em direção ao

quarto para juntar minhas coisas mas paralisei de horror quando entrei no corredor e vi Yasmim

enforcada, o corpo completamente imóvel pendurado pelo pescoço, de olhos saltados e boca aberta

de medo, nesse momento eu gritei e depois vomitei, corri para meu quarto chorando em desespero,

peguei o celular para chamar ajuda mas fui atingido na cabeça por algo muito pesado que me

derrubou no chão, era meu guarda-roupas. Agora estou esperando a morte pois é certa que vem, já

sinto meu corpo perder energia. Em cima do guarda-roupas estava uma boneca abaiyomi que eu

guardo para lembrar da resistência e sensibilidade dos negros, ela está manchada com meu sangue.

Posso ouvir passos em minha direção.

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