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João Antônio entre o corpo a corpo com a vida e a luta corporal com a linguagem
Seleção de Doutorado
Área: Ciência da Literatura / Teoria Literária
Linha de pesquisa: Construção Crítica da Modernidade
Amar,
Um rádio de pilha,
Um fogão jacaré,
A marmita, o domingo, o bar
Onde tantos iguais se reúnem
Contando mentiras pra poder suportar
Ai, são pais de santo, paus de arara, são passistas,
São flagelados, pingentes, balconistas,
Palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados,
Dançando, dormindo de olhos abertos
À sombra da alegoria dos
Faraós embalsamados.
1
ANTÔNIO, João, “De Malagueta, de Perus e de Bacanço”, in ANTÔNIO, João. Contos reunidos.
Apresentação de Rodrigo Lacerda. Ilustrações de Carlos Issa. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 569.
para volume de Contos Reunidos do escritor, esse “sucesso retumbante de crítica” deveu-
se, sobretudo, “graças à força e à sensibilidade do conjunto, e ao ímpeto de artesão do
jovem escritor”2, apesar da rede de relações literárias e editoriais que João Antônio vinha
cultivando desde o final da década de 1950.
Em geral, a recepção crítica imediata da obra do estreante se caracterizou por uma
dupla clivagem, pois, se por um lado “apontavam João Antônio como um porta-voz dos
marginais e dos marginalizados”, por outro “alçavam-no à condição de representante de
São Paulo na literatura”.3 A comparação com o modernista Alcântara Machado era
recorrente e quase automática nas resenhas, principalmente com os contos de Brás,
Bexiga e Barra Funda (1927). Muitos elementos estruturais presentes nos contos do autor
modernista de morte precoce pareciam autorizar o paralelo logo estabelecido por alguns
críticos – a ambiência das narrativas nos bairros populares habitados pelos imigrantes
italianos pobres de São Paulo, a inovação formal da narrativa (que se escorava em
influências do jornalismo moderno, quanto em técnicas cinematográficas, como a
montagem) e da linguagem literária, bebendo na fonte da inventividade da língua popular
e coloquial dos chamados carcamanos, em seu português popular hibridizado com o
italiano, buscando uma construção que trabalhasse literariamente essa fonte. A tripartição
do título do livro de estreia de João Antônio (Malagueta, Perus e Bacanaço) lembrava a
presente no de Alcântara Machado (Brás, Bexiga e Barra Funda). Porém, recusa
veementemente desde o início a “coroa de herdeiro”, pois “se julgava ‘menos anedótico’
e mais ‘de mergulho’”4
Após o enorme sucesso de seu primeiro livro, João Antônio publica um de seus
melhores contos, Paulinho Perna Torta, escrito como encomenda para integrar a
antologia publicada pela Civilização Brasileira, Os dez mandamentos, que coligia contos
de diversos autores. Paulinho Perna Torta - conto longo considerado por um crítico do
2
LACERDA, Rodrigo, “Ele está de volta”, in ANTÔNIO, João. Op. cit., p. 18.
3
Idem, p. 19.
4
Idem, ib. Na nota de rodapé da mesma página de seu estudo introdutório, Rodrigo Lacerda chama a
atenção, contudo, para o fato de que tal aproximação do autor estreante em relação à obra precocemente
interrompida do autor modernista é anterior ao lançamento de Malagueta, Perus e Bacanaço. A convite do
crítico Paulo Rónai, João Antônio havia escrito uma nota crítica sobre Novelas Paulistanas, de Alcântara
Machado, que saiu publicada na revista Comentário, em novembro de 1960. A comparação com o escritor
de Brás, Bexiga e Barra Funda continuaria acompanhando João Antônio ainda por alguns anos. Lacerda
faz referência a uma resenha publicada em O Estado de São Paulo, no ano de 1967, na qual o epíteto de
“Antônio da Alcântara Machado do bas-fond” é aplicado a João Antônio, com a ressalva de que, enquanto
o modernista seria um “escritor do dia”, o estreante seria “da noite”.
porte de Antonio Candido uma “obra-prima”5 -, seria republicado no livro seguinte do
autor, Leão de chácara, que viria a lume apenas em 1975.
Apesar do longo hiato de doze anos entre o lançamento de Malagueta, Perus e
Bacanaço (1963) e de Leão de Chácara (1975), seu segundo livro, João Antônio manteve
uma ativa presença na imprensa, publicando contos e inovando com a forma híbrida do
chamado conto-reportagem. Com o amplo sucesso de crítica de seu primeiro livro, e
graças à influência de alguns contatos intelectuais, jornalísticos e editoriais, como o de
Ênio da Silveira, dono da Editora Civilização Brasileira, o escritor estreante é alçado a
uma posição de prestígio na imprensa, mudando-se para o Rio de Janeiro e começando a
trabalhar no Jornal do Brasil. João Antônio permaneceria na cidade até a sua morte em
1996. A partir de então, começa um período de presença ativa e marcante na imprensa e
em projetos editoriais. Pouco depois da mudança de cidade, o autor é convidado para ter
uma coluna no jornal Última Hora. Após uma breve passagem pela revista Cláudia, João
Antônio chega em 1967 à redação da revista Realidade, onde o jovem escritor, segundo
uma formulação precisa de Rodrigo Lacerda, “completou a última etapa de
amadurecimento de seu projeto literário”6. A revista do grupo Abril era considerada,
apesar do Golpe Civil-Militar de 1964 que caminhava cada vez mais em direção ao
fechamento do regime e do recrudescimento da repressão, “um oásis de liberdade”, pois
“reunia uma elite de jornalistas e adotava propostas bastante modernas e ousadas, tanto
na parte gráfica e na seleção das pautas quanto na confecção de textos”7.
Naquele momento, “os ventos do Novo Jornalismo americano começavam a bater
no Brasil”8, o que trouxe uma abertura da prática do fazer jornalístico aos recursos da
escrita literária e, no caso de João Antônio, um processo de hibridização que resultaria
nas formas literárias que passariam a ser típicas de sua obra, em “formatos de um
intrigante caráter mutável – contos-crônica, contos-paisagem, crônicas-retrato, contos-
reportagem, entre outras variações combinatórias”9 No final da década, com o
fechamento do regime, o escritor passa a contribuir assiduamente com os novos jornais
5
Candido diz literalmente: “sua obra-prima (e obra-prima em nossa ficção) é o conto longo Paulinho perna
torta, de 1965. Nele parece realizar-se de maneira privilegiada a aspiração a uma prosa aderente a todos os
níveis de realidade, graças ao fluxo do monólogo, à gíria, à abolição das diferenças entre falado e escrito,
ao ritmo galopante da escrita, que acerta o passo com o pensamento para mostrar de maneira brutal a vida
do crime e da prostituição.” (Antonio Candido, “A nova narrativa”, in CANDIDO, Antonio. A educação
pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006. p. 255)
6
LACERDA, Rodrigo. Op. cit., p. 26.
7
Idem, p. 25.
8
Idem, p. 23.
9
Idem, p. 15.
que fizeram o sucesso da chamada “imprensa nanica” (expressão cunhada por ele): O
Pasquim, Movimento, entre outras publicações.
A experiência desses dozes anos de trabalho jornalístico e literário na imprensa
resultaria em Leão de chácara (1975), onde o estilo maduro do autor, sem deixar as
marcas temáticas e formais do livro de estreia, seria “submetido à avaliação dos
especialistas, e não apenas aos leitores de jornais e revistas”10 O jovem escritor passou
novamente pelo crivo da crítica e do público, seu sucesso e prestígio se consolidam e, a
partir do segundo livro de contos, sua produção literária se sucede em ritmo alucinante na
segunda metade da década de 1970 e início da década de 1980. Nesse período, o de maior
produtividade do autor, são publicados oito volumes, muitos deles esgotando-se em
poucos meses: Malhação do Judas Carioca (1975), Casa de Loucos (1976), Calvário e
porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1977), Lambões de caçarola
(1977), Ô, Copacabana (1978), Noel Rosa: literatura comentada (1981) e Dedo-duro
(1982).
Como lembra Rodrigo Lacerda, com acerto, nesse período dá-se a consagração
definitiva do autor, a que se seguiria um outro de duro ostracismo de difícil digestão por
parte do escritor, entre os anos 1980 e a sua morte em 1996. Os motivos da ascensão da
obra a partir de 1975, conforme sublinha o crítico, são resultantes de uma conjunção de
fatores diversos. Em primeiro lugar, Leão de chácara, o segundo livro publicado após um
jejum de doze anos, e depois da explosão e surpresa causadas por Malagueta, Perus e
Bacanaço (apesar do autor ter se mantido ativo na imprensa durante o período),
confirmou-se que João Antônio era um autor substantivo que inaugurava um estilo e uma
temática novos naquele contexto, além de confirmar um domínio narrativo, formal e de
linguagem que não fora apenas uma novidade passageira. O escritor reafirma e consolida
nesse período de intensidade criativa a sua opção literária de narrar a partir da perspectiva
daqueles que ele batizaria de “pingentes urbanos” ou “merdunchos”, uma gama de
personagens “migrantes, mestiços, malandros, trabalhadores informais, soldados,
operários”:11
(...) uma característica formal que demonstra uma adesão total a esse universo
de seres desgarrados narrado nos contos: as histórias são dadas a partir da voz
dos próprios personagens que protagonizam os acontecimentos, o que introduz
o leitor nas franjas da sociedade, em um mundo da noite, habitado por
10
LACERDA, Rodrigo. Op. cit., p. 29.
11
PERES, Elena Pajero, “Cantos e recantos urbanos na literatura de João Antônio”, in Revista de História,
São Paulo, n. 164, jan./jun. 2011. p. 319.
“marafonas, bandidetes, travestidos, jogadores, gente da noite, da polícia,
picaretas”, enfim, “gente descarrilada” a qual é enfocada a partir de seus
próprios olhos e definida por suas próprias palavras. Ausenta-se, portanto, o
olhar “de fora”, o qual por certo redundaria em piedade ou desprezo por esses
seres da margem.12
12
MACEDO, Tânia, “Malandros e merdunchos”, in ANTÔNIO, João. Op. cit., p. 585.
13
CANDIDO, Antonio, “Na noite enxovalhada”, in ANTÔNIO, João. Op. cit., pp. 581-82. Grifo nosso.
consumindo, é uma tentativa de encontrar uma linguagem paulistana de
determinado grupo. Acredito, até agora, que se eu partir de um
conhecimento verdadeiro do homem que vou trabalhar, das suas formas
de comportamento aparente e inaparente, encontrarei a sua linguagem,
literariamente. (...)14
14
Carta a Ilka Brunhilde Laurito, de 27/01/1962. Apud LACERDA, Rodrigo. Op. cit., p. 22. Grifo nosso.
15
Em livro publicado em 1975, o sociólogo Lúcio Kowarick procura caracterizar esse fenômeno típico das
realidades urbanas das sociedades periféricas latino-americanas do pós-guerra: “Na América Latina, foi
fundamentalmente após a Segunda Guerra Mundial que a marginalidade urbana apareceu como problema
teórico e prático. Na medida em que o ritmo da urbanização se acentuava devido à intensificação das
migrações internas, as populações migrantes passaram a se localizar na periferia ou nas áreas decadentes
das grandes metrópoles, dando origem ao que se denominou bairros marginais. (...)” (KOWARICK, Lúcio.
Capitalismo e Marginalidade na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. p. 13).
1962, congregando intelectuais e artistas como os dramaturgos Oduvaldo Viana Filho e
Gianfrancesco Guarnieri, Paulo Pontes, os cineasta Leon Hirszman e Cacá Diegues, os
compositores Carlos Lyra, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré, o poeta e escritor
Ferreira Gullar, entre outros nomes de importância da intelectualidade nacional. É a esse
processo amplo a que pertence organicamente a obra literária de João Antônio.
2. Pressupostos teóricos
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
O carnaval no Rio é o acontecimento da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A
formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.
O debate estético das décadas de 1960 e 1970, oscilando entre a defesa da pesquisa
formal e a necessidade de uma consciência social do artista, teve, talvez uma de suas
traduções mais sintomáticas na obra Vanguarda e Subdesenvolvimento, do poeta e
escritor Ferreira Gullar. Apesar de profundamente marcada por questões e debates
teóricos feitos no calor do momento, a obra de Gullar ainda é um documento
incontornável para se compreender concretamente as questões candentes que agitavam o
debate artístico daquele momento. Publicada originalmente em 1969, a obra seria
republicada em 1978, com um prefácio do autor, em cuja primeira frase se encontra
sintetizada o questionamento que se desenvolve verticalmente nos ensaios: “Um conceito
de ‘vanguarda’ estética, válido na Europa ou nos Estados Unidos, terá igual validez num
país subdesenvolvido como o Brasil?”16
Gullar aponta em diversos momentos para uma importação “artificial” de certos
esquemas formais das vanguardas estrangeiras por certos movimentos artísticos
brasileiros (o principal interlocutor do poeta no livro é o Movimento Concretista dos
irmão Campos e de Décio Pignatari), uma tradução desligada da “problemática nacional
ou cultural, da época em que viveram e criaram” certos autores caros aos concretistas,
como, por exemplo, Ezra Pound e James Joyce. Sobretudo, esse era considerado um
processo de importação artificial por “apresentar o curso da arte como um
16
GULLAR, Ferreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978. p. 17.
desenvolvimento linear, fatal e historicamente incondicionado”, “como se o processo
artístico constituísse uma história à parte, desligada da história geral dos homens”.
Mesmo Oswald de Andrade, personagem central do Modernismo brasileiro
evocado pelo Concretismo como figura prototípica da pesquisa formal na tradição
literária brasileira, era, segundo a argumentação de Gullar, “desnaturalizado”, pois
operava-se uma “seleção dentro da seleção”, através da qual “as obras e os autores eram
reduzidos a aspectos estritos, exclusivamente àqueles que interessavam à conceituação de
‘vanguarda’, ignorando-se a evolução e a transformação da obra no curso do tempo”.
Especificamente sobre a incidência dessa operação de recorte sobre a obra de Oswald,
ressalta Gullar:
17
GULLAR, Ferreira. Op.cit., pp. 17-18. Grifo nosso.
defesa futurista do novo se convertia, no Movimento Antropofágico, em seu
oposto: no reconhecimento das culturas populares brasileiras. (...) 18
18
SUBIRATS, Eduardo. A Penúltima Visão do Paraíso: ensaios sobre memória e globalização. São Paulo:
Studio Nobel, 2001. pp. 95-96.
empostada, mal adquirida, sujeita a todas as ondas e sempre mal
digerida.19
Tudo isso não deveria. Afinal, a literatura brasileira que ficou teve uma seiva,
antes de qualquer outra qualidade. Um compromisso com a coisa brasileira
sem retoques imposturas e embelecos mentais. A que ficou e que pode servir
de exemplo foi sempre produzida por uma atitude de caráter, de análise crítica
e crítica realista, de novas propostas, de atitudes modificadoras e renovadoras,
de denúncia, revelação e participação. Os escritores que ficaram, entre nós,
firmaram um compromisso sério com o fato social, com o povo e a terra –
Lima Barreto, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Oswald de Andrade,
Manuel Antônio de Almeida lá atrás.
Compreenderam uma verdade fundamental e descobriram a chave. Não é
possível produzir uma literatura de heróis taludos ou de grandiosidade
imponente, nem horizontal, nem vertical, na vida de um país cujo homem está,
por exemplo, comendo rapadura e mandioca à beira de estrada esperando
carona em algum pau-de-arara para o Sul, já que deve e precisa sobreviver.
Logo, tais grandezas quiquiriris, salve-salves e loas apologéticas tropeçam nas
próprias pernas e têm pernas curtas como a mentira. 20
19
ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço incluindo Malhação do Judas Carioca. São Paulo:
Círculo do Livro, 1987. pp. 315-16. Grifo nosso.
20
Idem, pp. 316-17.
primeira edição de Malaguetas, Perus e Bacanço, de 1963, mas passa a estar presente em
todas as reedições do livro a partir de 1975) “parece, entretanto, restringir-se ao plano
ideológico e à presença da cidade do Rio de Janeiro em sua obra, pois, estilisticamente,
as diferenças são muito maiores do que as semelhanças”. E aqui parece fundamental
retomar a comparação, aparentemente despretensiosa, que Antonio Candido faz entre
João Antônio e João Guimarães Rosa, que foi destacada anteriormente:
O luminoso acende e, num golpe, fixa as oito letras do nome francês e isto
aqui, a que os otários e os espertinhos chamam de buate, está aberto na noite.
De olho em pé, aceso e bem. Que para essa gente afobadinha demais, metida a
ter vontade, mal-acostumada, fantasiada com seus leros e ondas, quase tudo é
folgança e prosa fiada. Ainda mais no começo da noite. E o pior é que o
movimento e o rumor, as idas e vindas, essa fricoteira toda, para esses caras
distraídos e de cabeça fria, é curtição.
- Faça o favor, doutor.
Curvo-me, estiro uma fineza, dou o lado direito ao cidadão e à madame. O gajo
finge me conhecer para fazer média com a dona e eu entro na dele. Meu
cumprimento é largo, igualmente cínico e conluiado. Abro a porta de madeira
falsamente antiga, trabalhada e de dourado. Com uma mesura, estendo o braço
e ponho para a casa o primeiro otário da noite.
A cambada é grande, folgada, pensando que a noite lhe pertence, ainda mais
aqui nestas casas da Zona Sul. O que vai me baixar pela frente não está em
nenhum caderno. O que vai pintar de trouxa, espertinho, pé-grande,
mocorongo do pé-lambuzado, muquira, bêbado amador, loque, cavalo-de-teta,
zé-mané dando bandeira, doutor de falsa fama, papagaio enfeitado,
quiquiriquis, langanhos, paíbas, não será fácil. Eu aturando, ô pedreira! Para
mim a noite vai ser de murro.
Na noite malhada e escrota, disciplinando mulheres, beliscando os otários,
distribuindo mesuras e apanhando grojas, picardo e sonso; mas também
molhando a mão dos ratos, que os arreglos são de lei, acabarei dando muitas
cerca-lourenço, muita piaba e bastante pau nessa cambada de fariseus,
sambudos e mal topados. Hoje é sexta-feira. E gajo solto nesta noite é falso
21
CANDIDO, Antonio. Op. cit., p. 582.
22
ANTÔNIO, João. Op. cit., p. 317.
boêmio, metido a alegre e sabidinho, achando que é algum manda-tudo na
cidade. Mordo-lhes uma grana, é verdade, mas me dão canseira.23
A fidelidade temática que João Antônio demonstra ao longo de sua obra aos seus
“malandros e merdunchos” vem organicamente entremeada à elaboração da fatura
literária, da linguagem e da narrativa. Rodrigo Lacerda lembra que o escritor sempre
rejeito que fizesse pesquisa e “tinha horror à palavra” e, apesar de sempre anotar tudo o
que ouvia em termos de invenções linguísticas e neologismos das camadas populares, “o
tratamento que dava ao material colhido era outro, pois na confecção do texto procura
23
ANTÔNIO, João. Contos reunidos. Apresentação de Rodrigo Lacerda. Ilustrações de Carlos Issa. São
Paulo: Cosac Naify, 2012. pp. 193-94.
24
ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço incluindo Malhação do Judas Carioca. São Paulo:
Círculo do Livro, 1987. pp. 201-202.
eliminar a distância entre seu olhar e o objeto”25. Contudo, o escritor cultivou por toda a
vida uma
mania de fazer – em letra miúda, usualmente nos papéis que revestem os maços
de cigarro, dos quais tirava o laminado – listas de palavras, gírias e expressões
saborosas, com os seus respectivos significados na linguagem popular.26
Ao longo de toda a sua obra, o escritor João Antônio jamais abandonou o “corpo
a corpo com a vida”, mas esse movimento em direção aos seus personagens, sempre foi
acompanhado por uma tensão marcada pela luta corporal com a elaboração da linguagem
e da fatura literárias de sua representação. O que pode ser percebido tanto a partir da
leitura crítica direta de sua obra, quanto em seus depoimentos, entrevistas e na sua
correspondência. Urge o retorno à sua obra com esse olhar, buscando, simultaneamente,
iluminá-la com o que foi reunido no Acervo João Antônio, que se encontra desde 1998
no Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa (CEDAP) da Faculdade de Ciências e
Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Assis, São Paulo.
Articular dialeticamente o corpo a corpo com a vida e a luta corporal com a
linguagem que o escritor travou do início de sua obra até a sua morte, talvez seja a única
maneira de realizar uma leitura crítica que escape de certos rótulos reducionistas e fáceis
que muitas vezes foram colados ao nome e à literatura de João Antônio. Pelo menos, é
uma forma de procurar-se manter fiel aos seus “pingentes urbanos” em sua dura luta
cotidiana para sobreviver, “Dançando, dormindo de olhos abertos / À sombra da alegoria
dos /Faraós embalsamados”, como cantam João Bosco e Aldir Blanc em O Rancho da
Goiabada.
3. Metodologia
A pesquisa revisitará criticamente os pontos mais importantes de uma ampla
bibliografia que discute tanto a temática mais abrangente abordada pela obra de João
Antônio, quanto os sentidos específicos da obra do escritor dentro da literatura e do debate
social, cultural e artístico dentro do contexto histórico em que ela se desenvolveu. A
releitura crítica dos principais momentos da fortuna crítica do autor também se constitui
como tarefa incontornável para a realização dos objetivos que estabelecemos neste
projeto. Parte desta bibliografia está elencada ao final deste anteprojeto, na seção
dedicada às referências bibliográficas. A pesquisa no Acervo João Antônio deve
25
LACERDA, Rodrigo. Op. cit., p. 28.
26
Idem, ibidem.
completar a pesquisa, buscando elementos para embasar concretamente as hipóteses
desenvolvidas.
4. Cronograma
Leituras e
x x x x x
fichamentos
Pesquisa e
formulação
crítica do x x x x
projeto da
tese
Preparação
para a
qualificação x x
/
Qualificaçã
o
Redação da
x x x x x
tese
Finalização
x
e revisão
Preparação
e defesa da x
tese
5. Considerações finais
A intuição crítica fundamental que deu direção e estrutura a esse projeta foi
desenvolvida de maneira bastante lateral na nossa dissertação de mestrado, O Louco de
Deus e O Anjo da História: surrealismo, mística, tempo messiânico e escatologia em
Murilo Mendes, defendida no Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ, em
setembro de 2016. A partir da releitura da obra de João Antônio dentro de uma temática
transversal trabalhada em um dos seminários das matérias cursadas ao longo do mestrado.
6. Referências bibliográficas
6.1 – Bibliografia de João Antônio
ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1963.
_________. Leão de chácara. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
_________. Malhação do Judas carioca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
_________. Casa de Loucos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
_________. Calvários e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
_________. Lambões de caçarola (Trabalhadores do Brasil!). Porto Alegre: L&PM,
1977.
_________. Ô Copacabana! Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
_________. Dedo duro. Rio de Janeiro: Record, 1982.
_________. Noel Rosa. Série Literatura Comentada. São Paulo: Abril, 1982.
_________. Patuleia – gentes da rua. São Paulo: Ática, 1982.
_________. Abraçado ao meu rancor. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
_________. Zicartola e que tudo mais vá para o inferno. São Paulo: Scipione, 1991.
_________. Um herói sem paradeiro: vidão e agitos de Jacarandá, herói do momento.
São Paulo: Atual, 1993.
_________. Sete vezes rua. São Paulo: Scipione, 1996.
_________. Dama do Encantado. São Paulo: Nova Alexandria, 1996.
_________. Contos reunidos. Apresentação de Rodrigo Lacerda. Ilustrações de Carlos
Issa. São Paulo: Cosac Naify, 2012.