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Por uma Democracia Antimanicomial

a alteridade é incontornável, o outro existe, o mundo é de todos e não há muro que nos liberte dessa
responsabilidade

O dezoito de Maio marca, no Brasil, o dia nacional da Luta Antimanicomial, momento oportuno
para lembrarmos dos motivos pelos quais dizemos não ao manicômio. Desde a inauguração do
primeiro asilo em nosso país, o Hospício de Pedro II, em 1854, instaurou-se também uma lógica
que visava resolver, com um único ato, todos os problemas que o enlouquecimento podia trazer para
um indivíduo, uma família e uma comunidade. Todas as complexidades de uma vida – histórias da
infância, amizades e amores, compromissos, promessas, relações de trabalho, desejos para o futuro
– colocadas em suspenso por dias, anos e, muitas vezes, para sempre, a partir da infundada crença
de que tratar a loucura significaria encaminhá-la a uma instituição total. Nesses locais ocorriam uma
série de maus-tratos, negligências, abusos de poder e mortes. No entanto, ainda que esse tipo de
violência não ocorresse, a simples suposição de que toda uma vida pode ser reduzida a um único
rótulo – doente mental – e a uma única solução – o encarceramento – já seria inaceitável.

Ano após ano, seguimos lembrando dessa luta e do que ela significa, não só como um marco
histórico, mas como uma advertência de que esse enfrentamento continua sendo necessário. E não
lutamos, apenas, porque ainda existem instituições que encarceram a loucura, mas também, e
principalmente, porque temos visto a lógica manicomial se espalhar por diversos setores de nossa
sociedade. Para pensar essa lógica, propomos tomar o manicômio como uma figura de linguagem –
uma metonímia – que representa uma relação de contiguidade com um modo de pensar: uma
racionalidade que afirma poder solucionar qualquer tipo de questão com respostas rápidas,
padronizadas e simples. Foi assim com os manicômios. É indisciplinado na escola, na rua ou em
casa? Envie para o manicômio. Usuário de drogas? Exile no manicômio. Gay? Despache para o
manicômio. Engravidou de um homem casado? Esconda no manicômio. É opositor político?
Expatrie para o manicômio.

Foi a partir desse tipo de pensamento que o trem para Barbacena seguiu seu percurso, sempre
lotado, até o Hospital Colônia: apenas lá, esquecidas, morreram mais de 60.000 pessoas. Sob a
aparente simplicidade dessa lógica fica velada, invisibilizada, a violência que a mesma produz; sua
eficácia é sustentada por essa fabricação de um ocultamento: essas pessoas (transformadas em
problemas e enviadas ao hospício) eram simplesmente esquecidas sob a crença de que estariam
sendo tratadas; no entanto, tinham seus corpos castigados, negligenciados e violados. Em
Barbacena, os cadáveres dessas “pessoas problema” não eram apenas ocultados – decompostos com
ácido no pátio do hospício –, mas também transformados em lucro: ao serem vendidos ilegalmente
para faculdades de medicina geraram aos cofres da instituição algo em torno de seiscentos mil
reais**. Em vez de eternizados por lápides, como fazemos com nossos mortos, esses corpos foram
convertidos em dinheiro, como fazemos com os objetos que produzimos. Essa é outra característica
dessa lógica: ocultam-se os corpos daqueles que pagam pela simplicidade da resposta e ocultam-se,
também, os interesses particulares que guiam as escolhas por determinadas soluções.

Resumindo, por lógicas manicomiais entendemos todas as soluções simples e rápidas, movidas por
interesses individuais, que reduzem pessoas à condição de dejetos, não sem antes invisibilizá-las, de
modo que tais soluções pareçam racionais, ponderadas e de interesse geral. Para tanto, os muros
criados nem sempre precisam ser concretos para que determinados grupos de pessoas sejam
ocultados e submetidos. Ainda que o desejo pela concretude dos muros permaneça, como na recente
aprovação no senado de proposta que regulamenta as internações compulsórias, o que temos visto
na atualidade é a construção de muros simbólicos, mais eficazes na medida em que são menos
visíveis.

Nossa atualidade tem oferecido uma profusão de exemplos dessa lógica: armar a população
resolveria os problemas de segurança pública, liberar terras para exploração impulsionaria o
agronegócio, flexibilizar as relações de trabalho diminuiria o desemprego, impedir discussões sobre
sexualidade e gênero garantiria o desenvolvimento normal das crianças. Ainda que sem muros
concretos, todas essas ações “simples” criam barreiras para determinados grupos. Linhas são
desenhadas definindo quem fica dentro e quem fica de fora. Nesse contexto, negros, índios, pobres,
gays e loucos pagam com seus corpos para que as tais soluções apazíguem o desejo de ordem e
progresso de outros grupos.

Lutamos por décadas contra a exclusão social da loucura. Tarefa árdua e constante em direção à
construção de uma sociedade sem manicômios, ou seja, sem os muros concretos que aprisionam e
ocultam os loucos e, também, sem os muros simbólicos que os exilam em suas próprias casas
(impossibilitados de circular numa sociedade que não os aceita) e em suas mentes (adormecidas
pela abusiva prescrição de medicações). Nessa luta, a questão da loucura deixou de ser um
problema exclusivamente clínico (e, mais especificamente, da clínica psiquiátrica), passando a ser
compreendido também e, principalmente, como uma questão política – movimento que
acompanhou o processo brasileiro de redemocratização. Que tipo de sociedade gostaríamos de ter,
passou a ser uma pergunta norteadora, cuja resposta deu origem a reflexões, novos tipos de serviço,
outras práticas em saúde mental e ao lema do movimento: “por uma sociedade sem manicômios”.
No contexto de retrocessos nas políticas de saúde mental, no final de 2015 – com a indicação do
antigo diretor do maior manicômio privado da América Latina para o cargo de coordenador geral de
Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde –, e com o iminente impeachment de
Dilma Rousseff, em 2016, uma nova máxima começou a ser usada pelos movimentos de luta contra
os manicômios: “por uma Democracia Antimanicomial” – outro bom guia para responder à
pergunta sobre que tipo de sociedade queremos.

A escolha dessa máxima não poderia ser mais precisa e atual. Vivemos hoje, no Brasil, uma espécie
de metástase da lógica manicomial, que se alastra por diferentes setores de nossa sociedade, a partir
da modernização das técnicas de controle e de sujeição dos corpos. Diante desse cenário, é mais do
que urgente seguir pensando que tipo de sociedade queremos. A que temos visto se construir nos
últimos anos tem intensificado processos de exclusão, de busca por soluções que deixam de fora
parcelas cada vez maiores da população: em uma inversão do que ocorria nos manicômios, agora
quem fica dentro dos muros são as castas privilegiadas, deixando aquilo que elas consideram como
restos para fora. Contra essa lógica do condomínio, que tem por princípio excluir o que está para
além de seus muros, criando a falsa sensação de que o que fica dentro é o universal, fez-se
necessário adjetivar o substantivo democracia. Em tese, toda democracia deveria ser
antimanicomial, tendo em vista que a racionalidade manicomial é claramente totalitária e, portanto,
antidemocrática. Habitamos, no entanto, uma época que tem se mostrado drasticamente paradoxal
quando se trata de pensar a democracia. Nosso governo democraticamente eleito, sob o pretexto de
lutar contra o comunismo, ataca aquilo que é o comum, o público, o que deveria ser de todos***.
Colocando em outros termos, o atual governo tem construído muros, restringido acessos, decidindo
quem fica dentro e quem fica de fora: uma democracia manicomial.

Talvez tenhamos sido, enquanto sociedade, nesses pouco mais de trinta e quatro anos de
democracia, pouco radicais com seu significado. Tal fato nos obriga a sermos redundantes ao
nomear o que queremos: uma democracia antimanicomial. A democracia é muito mais do que a
eleição direta de representantes. Ela também significa menos muros, menos catracas e menos
condomínios e se sustenta na ideia de que há uma responsabilidade compartilhada de cada um de
nós em relação aos outros. É justamente a favor da desresponsabilização que os muros são
construídos. Aqui, os manicômios e a luta contra eles são um instrumento potente para a
compreensão dessa questão. Compartilhar responsabilidades diante da loucura não é tarefa em nada
fácil. Foi frente a obstáculos como esse que se decidiu pela internação como solução: um tipo de
resposta que, como discutimos, é regida por uma lógica que oculta, excluí e, se possível, lucra com
isso – uma lógica que se desresponsabiliza pela loucura, ocupando-se apenas de interesses
individuais.

Quando falamos em lutar contra a lógica manicomial, mais do que propor uma solução, é
importante lembrar, impomos um desafio: como responsabilizar-se? Seria simplificar demais a
questão supor que bastaria acabar com o manicômios e com sua lógica na sociedade. Esse não passa
de um primeiro (importante) passo, pois o desafio vem depois. Como estar diante da loucura,
relacionar-se com ela, sustentar sua radical diferença, suas crises e sua inconstância? Qualquer
pessoa que trabalha nesse campo sabe que, nesse ponto, saímos do campo das respostas prontas e
entramos para o campo da invenção. Ser antimanicomial não é apenas ser contra algo, mas,
fundamentalmente, ser capaz de habitar o mundo tomando responsabilidades para si: sem a proteção
dos muros e sem qualquer garantia de que aquilo que funciona um dia, funcionará no próximo.

Trata-se, por consequência, de um eterno processo de construção no qual as conquistas de um dia


podem ser os perigos do dia seguinte. Pois bem, a democracia se faz de uma indeterminação
equivalente a essa, bem como de uma constante invenção de respostas repletas de perigos – o que
nos obriga a sempre repensá-las. A democracia é, portanto, antimanicomial. Fica como desafio
aprofundarmos o significado dessa fórmula, evitando que ela seja rebaixada ao rol das respostas
simples, rápidas e, portanto, violentas. Que o dezoito de Maio sirva para lembrarmos de seguir
adiante com essa tarefa.

i Atualizando os valores da época para os dias de hoje.


i Essa é uma ideia apresentada pelo Bruno Torturra em seu podcast Fluxo apresenta: Boletim do Fim do Mundo. Link
no corpo do texto.

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