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ARTIGO ARTICLE 197

Reinventando a vida: proposta para


uma abordagem sócio-antropológica
do câncer de mama feminina

Reinventing life: a proposal for


a socio-anthropological approach
to breast cancer

Romeu Gomes 1
Márcia Marília Vargas Fróes Skaba 1,2

Roberto José da Silva Vieira 1

1 Instituto Fernandes Abstract This paper analyzes social representations of breast cancer and discusses the possibil-
Figueira, Fundação Oswaldo
ity of including symbolic aspects in the approach to this disease. The methodology is based on
Cruz. Av. Rui Barbosa 716,
2 o andar, Rio de Janeiro, RJ both a critical review of the theme (highlighting socio-anthropological issues) and the authors’
22250-020, Brasil. experience in the field of oncology. The paper thus focuses on: (a) historical aspects of clinical
romeu@iff.fiocruz.br
and surgical approaches to breast cancer; (b) theoretical discussion of socially-constructed rep-
mhskaba@ccard.com.br
rvieira@nitnet.com.br resentations of cancer; and (c) incorporation of the symbolic dimension when dealing with
2 Hospital do Câncer I, women with breast cancer. The authors conclude that health care policy for women with breast
Instituto Nacional de Câncer.
cancer should consider both improvements in technical services and the symbolic dimension in-
Praça Cruz Vermelha 23,
Rio de Janeiro, RJ volved in living with this disease.
202230-130, Brasil. Key words Breast Neoplasms; Women’s Health; Anthropology

Resumo O artigo objetiva analisar as representações sociais do câncer de mama e, com base
nessa análise, discutir a possibilidade da inclusão de aspectos simbólicos na abordagem dessa
doença. A metodologia, de um lado, fundamenta-se numa revisão crítica da temática, pontuan-
do questões sócio-antropológicas e, de outro lado, baseia-se na experiência acumulada dos auto-
res no campo da oncologia. Com base nesses princípios, o trabalho se configura a partir de (a)
resgate de aspectos históricos das abordagens clínica e cirúrgica do câncer de mama; (b) discus-
são teórica da problemática à luz das representações socialmente construídas em torno do cân-
cer; (c) considerações sobre a incorporação da dimensão simbólica na abordagem de mulheres
com neoplasias de mama. Os autores concluem que as políticas de atenção às mulheres com neo-
plasias mamárias devem formular princípios para que se possa lidar, ao mesmo tempo, com o
aperfeiçoamento das intervenções técnicas e da dimensão simbólica construída na trajetória de
ser portador dessa doença.
Palavras-chave Neoplasias Mamárias; Saúde da Mulher; Antropologia

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198 GOMES, R.; SKABA, M. M. V. F. & VIEIRA, R. J. S.

Considerações iniciais truído. Por isso, é de fundamental importância


que a saúde pública contemple também, em
No Brasil, o câncer se apresenta como uma ex- sua agenda, a dimensão sócio-antropológica
pressiva causa de mortalidade. Fonseca (1995) acerca dessa problemática.
observa que, em 1950, as mortes dividiam-se A partir dessas considerações, objetivamos
em 14,2% relacionadas a doenças do coração; analisar as representações sociais do câncer de
5,7% a cânceres e 35,9% a doenças infecciosas mama e, com base nessa análise, discutir a
e parasitárias. No final da década de 80, essas possibilidade da inclusão de aspectos simbóli-
proporções foram alteradas, respectivamente, cos na abordagem dessa doença. No bojo desta
para 32,4%, 12,6% e 6,0%. Em 1997, as neopla- discussão, esperamos contribuir para um olhar
sias femininas continuavam sendo a terceira mais ampliado das políticas oncológicas volta-
causa de morte entre as mulheres, para todo o das às mulheres com neoplasias mamárias. Em
Brasil, segundo dados do Sistema de Informa- outras palavras, buscamos contribuir para o
ção sobre Mortalidade (DATASUS, 1997). deslocamento da exclusividade do foco tera-
Especificamente em relação ao câncer de pêutico dessas políticas, predominantemente
mama, nos anos 80, a incidência foi alta nos baseado no modelo biomédico, para a incor-
Estados Unidos e no Norte da Europa, com 104 poração de práticas preventivas que contem-
casos em 100.000 mulheres e 73,5 casos em plem significados do sujeito demarcados por
100.000 mulheres, respectivamente ( Tessaro, suas relações sociais.
1999). Outro fato importante é que, até 1980, a Nosso referencial teórico-metodológico ba-
maioria dos aumentos nas taxas de incidência seia-se no conceito das representações sociais,
era verificada em mulheres com mais de cin- aqui entendidas como “um tipo de saber, so-
qüenta anos, mas, no período de 1980 a 1987, cialmente negociado, contido no senso comum e
as taxas de incidência também aumentaram na dimensão cotidiana, que permite ao indiví-
em mulheres mais jovens (MS, 2000). duo uma visão de mundo e o orienta nos proje-
Ainda em referência ao câncer de mama, as tos de ação e nas estratégias que desenvolve em
taxas de incidência são mais altas na América seu meio social” (Queiroz, 2000:27).
do Norte e no Norte da Europa, intermediárias Para melhor compreendermos como as re-
no Sul da Europa e América do Sul e mais bai- presentações sociais são construídas e como se
xas na Ásia e na África. Entretanto, tem havido refletem nas ações dos sujeitos e dos grupos
aumento significativo em diversos países da sociais, remetemo-nos ao conceito de habitus
Ásia. No Japão, a taxa de incidência ajustada de Pierre Bourdieu, entendido como “sistemas
para idade foi mais que o dobro no período de de disposições socialmente constituídas que, en-
1983 a 1987, comparando-se com o período de quanto estruturas estruturadas e estruturantes,
1969 a 1972 (Vieira, 1999). constituem o princípio gerador e unificador do
Segundo estimativas do Instituto Nacional conjunto das práticas e das ideologias carac-
de Câncer (MS, 2000), para o ano de 2000, no terísticas de um grupo de agentes” (Bourdieu,
Brasil, estima-se que o câncer de mama femi- 1992:191). Assim, esse conceito se refere a um
nina seja o segundo tipo de câncer mais inci- conhecimento adquirido, um haver, um capi-
dente, com 28.340 casos. Esse tipo de neopla- tal, indicando “uma disposição incorporada,
sia maligna será, ainda, o de maior taxa de in- quase postural” (Bourdieu, 1998:61), revelada
cidência entre a população feminina brasileira, na construção histórica da produção das práti-
com 33,58 em 100.000 mulheres. cas. Ao contrário da palavra “hábito”, que se as-
Atualmente, no Brasil, apenas 3,4% dos ca- socia a algo cristalizado, a expressão habitus
sos de câncer de mama são detectados na fase envolve uma capacidade criadora, ativa e in-
inicial, enquanto 60% são diagnosticados em ventiva.
casos avançados, quando a doença já se tornou Respaldados em Bourdieu, demarcamos a
incurável (MS, 2000). diferença entre “hábito” e habitus, observando
Estudos epidemiológicos indicam que fato- que faz-se necessário abandonar posiciona-
res ambientais são responsáveis por, pelo me- mentos que apontem para uma concepção de
nos, 80% da incidência do câncer de mama. Fa- prática como uma reação determinada apenas
tores genéticos representam de 5% a 7% de sua por condições antecedentes e redutível aos as-
etiologia, porém, quando se apresenta antes dos pectos mecânicos.
35 anos, esta freqüência chega a 25% (MS, 2000). Para esse autor, o conhecimento do mundo
Diante de tão preocupante quadro, em tor- social tem que tomar em conta o conhecimen-
no do câncer, em geral, e em torno do câncer de to prático que lhe preexiste, embora esse co-
mama feminina, em específico, há todo um in- nhecimento seja, num primeiro momento, per-
vestimento simbólico que é socialmente cons- meado por representações parciais. Conside-

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rando os diferentes contextos históricos e ce- tamos a seguir aspectos históricos sobre essa
nários culturais, ele considera que o habitus neoplasia.
expressa uma herança naturalizada que per- A história sobre o tratamento do câncer de
meia as relações sociais. Entretanto, ainda se- mama é antiga. Já no Egito, aproximadamente
gundo o autor em questão, o agente social não no ano 2500 a.C., em um papiro, que descrevia
é um mero reprodutor dessa herança, nem é e prescrevia casos de inúmeras doenças, en-
um mero executor de algo que se encontra ob- contrava-se o seguinte registro: “Uma mama
jetivamente programado e que lhe é exterior. com tumor protuberante e fria ao toque repre-
Herzlich (1991) observa que, embora Bour- senta uma doença para a qual não há trata-
dieu confira um peso maior ao passado, di- mento” (Dias, 1994:3). Também Hipócrates, que
mensão pouco explorada pelos estudos das re- dedicou parte de sua obra ao câncer de mama
presentações sociais, esta teoria não se afasta e o considerava uma doença incurável, em 460
totalmente do conceito bourdiano de habitus. a.C., não recomendava qualquer tipo de trata-
Nesse sentido, entendemos as representa- mento.
ções sociais ou habitus como um conceito di- A primeira cirurgia de mama foi realizada
nâmico, sintetizador de estruturas cristaliza- no século I d.C. pelo médico grego chamado
das, mas com possibilidades de reivenção, que Leonidas, e no mesmo século o enciclopedista
opera na mediação entre estruturas objetivas e romano Aurelius Cornelius Celsus afirmava
a reconstrução da ordem simbólica, subjetiva. que a cirurgia era inútil quando a doença esta-
Sendo assim, poderíamos inferir que essa ma- va ulcerada. Teve-se a primeira esperança quan-
triz teórica aponta caminhos férteis para com- to ao tratamento do câncer de mama no século
preendermos como as representações sociais II, quando Galeno, considerado o maior médi-
sobre o câncer foram historicamente construí- co grego depois de Hipócrates, afirmava ser
das e quais as possibilidades de transforma- possível curar o câncer de mama pela cirurgia,
ções nesse campo (Skaba, 2001). desde que o tumor fosse superficial e todas as
Com base nessa perspectiva teórica, pode- suas raízes extirpadas.
mos, ainda, compreender as representações do No século XVIII, novas técnicas cirúrgicas
câncer de mama como um produto das rela- são descritas trazendo contribuições impor-
ções entre significados, socialmente construí- tantes como ligadura de vasos e a criação de
dos, em torno do câncer em geral, do corpo fe- instrumental específico para a cirurgia de ma-
minino em específico e da experiência de ser ma, com artigos publicados por ilustres nomes
portador dessa patologia. da medicina tais como: Versalenis, Ambroise,
Em termos metodológicos, delineamos o Parré, Michel Servetus e Wilhelm Fabry.
presente estudo como uma revisão crítica acer- Ainda nesse século, os cirurgiões abusaram
ca da temática que nos propomos discutir. Pa- das indicações de mastectomias e as realizaram
ra isso, procuramos pontuar aspectos teóricos em grande número, caindo em descrédito em
para que possam dar suporte ao levantamento virtude dos péssimos resultados alcançados.
de questões sócio-antropológicas que emer- No século X, Avicena, conhecido como Prín-
gem dessa discussão. Por outro lado, nos ba- cipe dos Médicos um dos mais importantes no-
seamos na experiência acumulada dos autores mes da história da Medicina, acreditava que a
no campo da oncologia. cirurgia era válida apenas para casos superfi-
Com base nesses princípios, o presente tra- ciais.
balho se configura a partir de (a) resgate de as- No Renascimento, Lorenj Heister defendia
pectos históricos das abordagens clínica e ci- o uso de uma guilhotina para tornar a mastec-
rúrgica do câncer de mama; (b) discussão teó- tomia um procedimento mais rápido e menos
rica da problemática à luz das representações doloroso. A primeira abordagem médico-pa-
socialmente construídas em torno do câncer; ciente foi feita por ele, que dizia: “muitas mu-
(c) considerações sobre a incorporação da di- lheres podem tolerar a operação com a maior
mensão simbólica na abordagem de mulheres coragem e sem gemer absolutamente. Outras,
com neoplasias de mama. entretanto, fazem um escândalo tal que pode
desencorajar o mais destemido dos cirurgiões e
dificultar a operação. Para realizá-la, o cirur-
Um pouco da história do tratamento gião, portanto, deve ser persistente e não permi-
do câncer de mama tir-se desconcentrar-se com o choro da pacien-
te” (Heister, apud Dias, 1994:3).
A fim de situarmos o avanço do tratamento do Com a descoberta da anti-sepsia por Joseph
câncer de mama, com base em Dias (1994), Lister e da anestesia por Willian Moston (Esta-
Donegan (1995) e Veronesi et al. (1992), resga- dos Unidos), em 1846, a medicina teve um gran-

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de avanço e foram amenizados os grandes ter- de recidiva regional à distância; verificar a inci-
rores da cirurgia que eram a dor e a infecção. A dência da recidiva local e, fundamentalmente,
anatomia patológica teve também seu grande avaliar o resultado cosmético das pacientes
avanço quando, pela primeira vez, um tumor de tratadas com quadrantectomia.
mama foi visto por um microscópio e os primei- Atualmente, é consenso que a cirurgia con-
ros estudos foram publicados, trazendo o aper- servadora terá sempre sucesso se tiver uma in-
feiçoamento de técnicas cirúrgicas baseados dicação clínica precisa. O tumor deve ser único;
em conhecimentos anatômicos mais precisos. seu tamanho não deve passar de 3cm de diâ-
O primeiro a irradiar uma paciente com metro e a ressecção do mesmo deverá ter mar-
câncer de mama foi o estudante de medicina gens menores de 2cm livres. Os fatores prognós-
Emile Grubbe, em Boston, no ano de 1895, mas ticos do tumor e axila decidem o tratamento ad-
só no século seguinte, na década de 20, a radio- juvante (quimioterapia ou hormonioterapia).
terapia é introduzida no período pós-operató- A mastectomia não foi abandonada; em ca-
rio da mastectomia radical. Em 1898, Paul Er- sos como tumores multicêntricos, tumores cen-
lich, considerado o pai da quimioterapia, isola trais (de localização retroareolares) e com des-
o primeiro agente alquilante. proporção entre o tamanho do tumor e o tama-
Em 1889, o cirurgião americano William nho da mama, essa técnica é ainda indicada.
Stewart Halsted (Baltimore) descreve sua téc- Quando feita indicação de tratamento ci-
nica de mastectomia radical que permanece rúrgico conservador da mama, deve-se procu-
como padrão de tratamento de câncer de ma- rar observar o baixo índice de recidiva local
ma por mais de setenta anos. (até 10%), uma boa margem de segurança da
No ano de 1895, foi feita a primeira biópsia ressecção tumoral e principalmente um bom
de congelação pelo patologista americano Wil- resultado estético.
lian Welch, e Vicenz Czerny realiza a primeira Durante setenta anos, a Escola de Halsted,
reconstrução mamária, transportando um gran- baseada no princípio científico de que a muti-
de lipoma para a região da mama amputada. lação era considerada a cura do câncer, e por
No ano seguinte, Tansini, da Universidade de este motivo a extirpação da mama e da região
Pádua (Itália), descreve a primeira tentativa de adjacente assegurava à paciente uma sobrevi-
reconstrução da parede tóracica anterior após da maior, legou à humanidade uma terrível vi-
a mastectomia. são do tratamento do câncer de mama.
No início do século XX, ocorreram várias Ao tratar uma paciente com tamanha agres-
modificações das técnicas cirúrgicas já descri- sividade, deixando sempre seqüelas como o
tas anteriormente, iniciando-se a colocação da edema do braço, que a diferenciava da popula-
prótese de silicone. ção em geral, restringindo sua vida social, fez
Com base em estudos desenvolvidos no com que as demais – não portadoras desta
Guy’s Hospital (Londres), chegou-se à conclu- doença – sequer falassem sobre a mesma.
são de que a cirurgia conservadora alcançava Com o avanço do diagnóstico precoce do
os mesmos objetivos das cirurgias radicais, e câncer de mama através de tecnologia avança-
estudos estatísticos comprovaram que a sobre- da de imagem – como a mamografia, a ultra-
vivência era praticamente a mesma. Esses tra- sonografia, a ressonância magnética, a punção
balhos foram aprimorados pelo professor Vero- biópsia, a estereotaxia para a marcação de nó-
nesi, do Instituto de Milão (Itália). dulos ou áreas de microcalcificações de dimi-
A técnica de quadrantectomia teve início nutos tamanhos – houve a possibilidade do
com grandes ressecções de quadrantes mamá- diagnóstico inicial e ainda restrito da doença
rios, passando, em seguida, para intervenções sem ter se propagado pelo corpo, deixando de
mais moderadas aprimorando a técnica repa- ser uma doença sistêmica para ser uma doença
radora, quando melhores resultados estéticos localizada. Sendo assim, a necessidade da mas-
foram alcançados. Em 1981, foi publicado o tectomia deixou de ser um imperativo para o
primeiro trabalho em que se provava a igual- tratamento do câncer de mama, podendo ser
dade entre a mastectomia radical e a cirurgia retirada apenas a área afetada, e proporcionan-
conservadora para determinados tipos de tu- do à mulher a preservação de um órgão de tão
mores. Segundo Donegan (1995), Bernie Fis- grande importância para a sua feminilidade.
her, em um estudo multicêntrico, realizado no Apesar de toda essa evolução, observamos
Canadá e nos Estados Unidos da América, con- que a suspeita do câncer de mama e a indica-
firma a veracidade das publicações em Milão. ção de todos esses procedimentos ainda cau-
Este estudo propunha quatro níveis de infor- sam medos e crises em muitas portadoras des-
mações, a saber: estudar a sobrevivência global sa doença. No imaginário social, a mama cos-
de dois grupos de pacientes; pesquisar o índice tuma ser associada a atos prazerosos – como

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amamentar, seduzir e acariciar –, não combi- Nessa “guerra”, segundo a autora, quase to-
nando com a idéia de ser objeto de uma inter- do dano causado ao corpo é justificado se a
venção dolorosa, ainda que necessária. meta for salvar vidas. Essa abordagem, em par-
A máquina foi criada, os recursos estão pre- te, pode ser creditada ao fato de o modelo mé-
sentes, mas a relação máquina-mulher ainda dico, em geral, conceber as doenças como en-
não teve seu ajuste final. A mamografia, que é tidades universais biológicas ou psicofisiológi-
um exame totalmente controlado por um com- cas, resultantes de disfunções somáticas. Den-
putador, fazendo com que um aparelho com- tro desse raciocínio, a medicina clínica visa,
prima a mama de tal forma que sejam visuali- principalmente, interpretar sintomas, relacio-
zadas todas as suas estruturas, é feita após a in- nando-os a fontes funcionais e estruturais do
dicação médica que tenta convencer a mulher corpo, e a subjacentes entidades doentes, para
de que esta é a única forma que temos para de- chegar a um diagnóstico. Em seguida, a tarefa
tectar alguma modificação inicial da imagem. da clínica médica é o tratamento racional vi-
Mesmo assim, é comum na população femini- sando intervenção nos mecanismos doentes
na considerar esse exame como algo altamente (Good, 1994).
desagradável. A despeito das crescentes possibilidades te-
Falta, assim, paralelamente ao desenvolvi- rapêuticas para o câncer, subjaz ao seu signifi-
mento de tecnologias de última geração que cado a idéia de algo que cresce e destrói, sendo
busquem obter o máximo de eficácia terapêu- associado em muitas culturas à punição e ao
tica com a ausência ou a redução ao mínimo castigo. Essas crenças podem trazer conseqüên-
de desconforto, avançar no campo de um co- cias desastrosas, tanto do ponto de vista emo-
nhecimento que contemple a dimensão sim- cional, como da ação prática e concreta para o
bólica que é construída em torno desses pro- enfrentamento da possibilidade de adoecer
cedimentos. por câncer.
Françoso (1993:21), com base em Kato, ana-
lisa as repercussões do significado emprestado
As representações sociais do câncer ao câncer e sublinha que “o adulto, por ter uma
representação da doença como fatal, antecipa a
Sontag (1984:7) inicia seu trabalho sublinhan- possibilidade de perda por morte desenvolven-
do que “a doença é o lado sombrio da vida, uma do um processo denominado luto antecipatório
espécie de cidadania mais onerosa. Todas as – processo pontuado pela incerteza e por desin-
pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no rei- vestimentos de grau variado”. Nessa perspecti-
no da saúde e outra no reino da doença”. O cân- va, a sua cura é concebida como um milagre e
cer tem um lugar privilegiado neste “lado som- não como fenômeno possível de ocorrer em
brio da vida”, sendo freqüentemente interpre- virtude dos avanços da área médica. Sendo as-
tado como uma doença insidiosa e arrogante sim, a cura, enquanto realidade, ainda não foi
que transforma a vida das pessoas acometidas incorporada ao repertório cultural.
por essa enfermidade (Skaba, 2000). Em estudo realizado com mulheres mastec-
Historicamente o câncer vem sendo asso- tomizadas, Silva & Mamede (1998:47) perce-
ciado a experiências malditas e servindo como bem que “o medo está em todas as fases percor-
metáforas para diversas ordens de infortúnios ridas pela mulher no processo de adoecer. O me-
físicos, mentais e sociais. Freqüentemente so- do do diagnóstico câncer torna-se ameaçador,
mos lembrados dos diferentes tipos de “cânce- originando, assim, reações emocionais, que pro-
res” sociais. A violência, a desintegração fami- vocarão mudanças no âmbito biológico, mental
liar, o uso de drogas e a corrupção têm sido re- e social”.
feridos como perturbadores da ordem e, con- Com base em Sontag, Schulze (1993) obser-
seqüentemente, denominados câncer. va que, na discussão acerca do câncer, deve-se
Sontag (1984) observa, ainda, que o câncer levar em conta a questão do estigma social,
tem sido visto como uma doença cruel, intra- que faz com que os cancerosos sejam vistos co-
tável e misteriosa. Por ser algo que ataca, inva- mo pessoas que vão morrer por conta de sua
de, o corpo, o seu tratamento tem sido pensa- doença.
do como um contra-ataque, fazendo com que Em face desse imaginário social, a aborda-
muitas vezes seja visto como algo pior do que a gem do câncer envolve sentimentos que são di-
própria doença. Nesse tratamento, costuma-se fíceis de ser administrados, tanto por parte dos
usar metáforas tiradas da linguagem militar. profissionais, como por parte das pessoas em
Assim, a radioterapia é o bombardeamento geral. Medo da dor, resignação diante da per-
com raios tóxicos e a quimioterapia objetiva cepção de que sua doença terá um desfecho fa-
matar as células cancerosas. tal e a negação de que a própria doença existe

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são alguns dos aspectos emocionais que envol- ma, podemos refletir sobre as repercussões que
vem toda a trajetória de ser portador de câncer. as representações sociais sobre essa patologia
Junto à dimensão psicológica, há questões trazem para as mulheres, no sentido de se cria-
sociais que devem ser apontadas no debate em rem condições, objetivas e subjetivas, para que
questão. Silva & Mamede (1998) observam que, haja mobilização em busca de um caminho
diante do enfrentamento da situação, as entre- que favoreça o tratamento e o enfrentamento
vistadas expressaram um movimento de orga- do câncer.
nizar os seus relacionamentos sociais. Nesse Freqüentemente, a mulher, ao se perceber
movimento, pode constituir-se uma rede de como possível portadora de uma patologia re-
pessoas, envolvendo família, amigos, profissio- presentada socialmente como aliada à dor ao
nais de saúde e grupos de apoio: “os compo- sofrimento e com desfecho fatal, sofre reflexos
nentes dessa rede de suporte poderão facilitar dessas construções historicamente determina-
ou não o estabelecimento de laços afetivos e so- das, que podem muitas vezes levá-la à negação
ciais necessários e imprescindíveis ao enfren- desse processo, traduzindo-se em um elemen-
tamento das dificuldades” (Silva & Mamede, to dificultador para a detecção precoce do cân-
1998:105). cer e, conseqüentemente, para a obtenção de
Assim, por conta de toda a problemática melhores prognósticos.
que envolve o tema, a discussão não pode ser A compreensão dessa teia de significados
restrita a aspectos da clínica médica. Nela deve pode sinalizar para uma promoção em saúde
ser contemplada a necessidade de se conside- que invista na desconstrução dessas represen-
rarem os desdobramentos sociais que seguem tações, passando pela busca de possibilidades
à descoberta do câncer, demandando ações de de se lidar com a doença como algo passível de
saúde pública voltadas para essa doença. controle, assegurando melhor qualidade de vi-
O câncer de mama feminina está entre as da a essas pacientes.
doenças que mais afetam a mulher, fazendo
com que suas portadoras vivenciem um pro-
cesso de fragilização. Para que os profissionais Considerações finais: a incorporação
de saúde possam lidar com essa problemática, dos aspectos simbólicos na abordagem
é preciso que haja, além do entendimento da de mulheres com câncer de mama
dimensão psicológica, uma compreensão só-
cio-antropológica do contexto e da situação Com base em nossa reflexão, propomos uma
social em que se encontra o sujeito da doença, reinvenção das representações sociais sobre o
uma vez que é através das interações sociais câncer de mama. Compartilhamos da perspec-
que “indivíduos desenvolvem determinadas ex- tiva de análise sustentada por Pierre Bourdieu.
periências, estabelecem campos de significação Operamos, sobretudo, com o conceito de habi-
e adquirem um senso de sua própria identida- tus, que nos orienta a pensar que as práticas
de” (Hita, 1998:179). sociais e suas representações têm a marca da
Quando tratamos do câncer de mama femi- sua historicidade, mas que a criatividade hu-
nina, acrescentamos aos fatores relacionados mana tem possibilidades de reconstruir para-
ao câncer em geral os aspectos relacionados à digmas.
função social do corpo da mulher. Nesse senti- Nessa perspectiva, reafirmamos o já conhe-
do, no universo simbólico, a mama é um ele- cido problema da saúde pública para propor-
mento fundamental capaz de concentrar pa- cionar os meios objetivos para prevenção,
péis da identidade feminina, como a sexuali- diagnóstico precoce e a oferta de serviços ca-
dade – incluída aí a sensualidade –, sendo os pazes de efetivar o controle do câncer de ma-
seios objeto de prazer e desejo, e a feminilida- ma, traduzido pelas dificuldades de acesso, so-
de diante da possibilidade exclusivamente bretudo nas camadas economicamente menos
concedida à mulher do ato da amamentação. favorecidas. Tais dificuldades se expressam em
A possibilidade de desenvolver uma doen- intermináveis filas, problemas para marcação
ça na mama compromete toda essa construção de consultas, longa espera para atendimento,
fundamental da existência feminina. Com- problemas nas interações entre profissionais
preender esses significados colabora no enten- de saúde e usuários e problemas relacionados
dimento da totalidade dos aspectos que com- a resultados de exame.
põem o adoecimento por câncer, incorporan- Por meio dessa discussão, pretendemos tra-
do ao tratamento do tumor o sujeito fragiliza- zer o olhar das representações sociais, numa
do em suas funções de mulher e mãe. perspectiva complementar, para que o senso
Com base em nossa experiência na aborda- comum sobre a patologia possa ser trabalhado,
gem a mulheres portadoras de câncer de ma- no campo da prevenção e da promoção da saú-

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de, a fim de apontar possibilidades de melhor ção dos sujeitos da doença com tais resultados,
enfrentar o câncer de mama. de forma que possamos avaliar as mudanças
Sendo assim, sublinhamos o papel dos pro- ocorridas e as que serão necessárias no âmbito
fissionais de saúde e dos formuladores de polí- tanto das máquinas, como das atitudes que
ticas preventivas na desconstrução, dentre ou- emergem dessa relação.
tros aspectos, do inseparável binômio câncer Compreender o avanço tecnológico sobre
de mama e mutilação. Apostamos que a pre- determinado campo impõe uma nova defini-
venção e a detecção precoce só serão incorpo- ção para o conceito de tecnologia, conforme
radas às práticas de cuidados com o corpo fe- sublinhou Gonçalves (1994). Este autor concei-
minino se as mulheres vislumbrarem possibili- tua tecnologia “enquanto conjunto de saberes e
dades efetivas de melhores prognósticos. instrumentos que expressa, nos processos de
Dialeticamente, propomos que as constru- produção de serviços, a rede de relações sociais
ções simbólicas sobre o câncer de mama incor- em que seus agentes articulam sua prática em
porem também as construções efetivas de uma totalidade social” (Gonçalves, 1994:32).
diagnóstico e tratamento disponíveis atual- Assim, é necessário incorporar ao desenvolvi-
mente. O controle do câncer, como uma reali- mento tecnológico não apenas os instrumen-
dade possível para certas condições, necessita tos materiais disponíveis, mas também a cons-
ser incorporado ao repertório cultural da vida trução dos saberes em sentido ampliado, que
em sociedade. possibilite, dentre outros aspectos, lidar com a
Se o apelo à informação por intermédio da dimensão simbólica que surge em torno e em
divulgação do desenvolvimento científico, con- decorrência da materialidade da tecnologia.
quistado pela ciência oncológica contemporâ- Com base nessa discussão, em face da com-
nea, pode ser um caminho para a reconstrução preensão do câncer de mama como uma pato-
das representações sociais sobre o câncer de logia permeada por uma complexidade de fe-
mama, não podemos desconsiderar a incorpo- nômenos, concluímos que as políticas de aten-
ração dos aspectos simbólicos para a compre- ção às mulheres com neoplasias mamárias de-
ensão desta problemática. vem formular princípios para que se possa li-
Concomitante aos avanços tecnológicos dar, ao mesmo tempo, com o aperfeiçoamento
conquistados para o controle do câncer de ma- das intervenções técnicas e a dimensão simbó-
ma, faz-se necessário igual avanço no campo lica construída na trajetória de ser portador
do conhecimento que busque trabalhar a rela- dessa doença.

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