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CONTR AFOGOS

CONTR AFOGOS A chegada do Boeing 767


à torr
torree gêmea
por Firmino Holanda

“E então, de repente, o imediatismo da o registro do fato inicial, tiveram tempo para aquele flagrante,
televisão nos coloca diante da realidade viva”, a imagem mais reiterada dos últimos meses pelo mundo afora.
constatava Eisenstein, em l946. O cineasta O Taleban, que implodiu as estátuas de Buda, no
discorria sobre o processo da montagem que, nesse Afeganistão, que condena a filmagem de seres vivos, que baniu
novo meio, era puxado “para o momento da a televisão etc., não dispensa o uso da imagem na propaganda
percepção”, na instantaneidade do evento flagrado de seus atos. Seus líderes falam para as câmeras, em nome da
pelas câmaras (A Forma do Filme; Jorge Zahar causa. Os ataques em Nova York e Washington foram,
Editor, l990). Era a sobretudo, manifestos visuais.
televisão nascente, Atingindo alvos-símbolos, amal-
com seus programas diçoaram o capital, o militarismo
ao vivo. E se hoje e a política externa dos norte-
muito desse imediatis- americanos. Ali, um homem-
mo permanece, even- bomba numa lanchonete seria de
tualmente é a trans- pouco impacto, até porque os
missão editada com EUA são auto-suficientes em
cenas gravadas no momento, ou atentados contra si mesmos
previamente. Características do (Oklahoma; massacres juvenis em
telejornalismo mesclam-se, assim, escolas) ou contra a humanidade
à montagem audiovisual, siste- (Hiroshima, Nagasaki, Vietnã).
matizada bem antes pelo cinema. A idéia, portanto, seria
Uma competição esportiva com espetacularizar a morte, num ato
o replay do gol seria exemplo midiático, a superar aquelas
rotineiro. Outro, seria a tragédia transmissões ao vivo da guerra
do 11 de setembro de 2001, em contra o Iraque (l991), quando
Nova York, transmitida ao vivo, pela primeira vez algo dessa
com dezenas de repetições natureza fora transmitido
daquele Boeing destruindo a segunda torre do World Trade simultaneamente para o resto do mundo. Aquelas precárias
Center, seguindo-se o desabamento desse conjunto de cenas noturnas, de luzes esverdeadas e silenciosas (na tela),
edifícios. distantes mísseis atingindo alvos mergulhados em sombras,
Muito já se comentou sobre a natureza foram de efeito arrebatador: a morte higienizava-se no frio
espetacularizante do ataque contra os EUA. O segundo Boeing tubo de imagem. A família poderia consumi-la em horário
atingiu o alvo uns 20 minutos após o primeiro jato explodir. nobre, na sala, até se saciar com a banalização dessa “co-
Assim, as câmeras (inclusive as amadoras), posicionadas para produção” Pentágono-CNN.

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O cinema enquanto propaganda política e militar que estão no ar, trazendo a realidade como uma perene
também não é tema novo. Paul Virilio já o estudou em Guerra encenação.
e Cinema (Scritta Editorial,l993). Ele focaliza Hitler além A idéia daquele “filme” – que ainda não se rivaliza
dos limites de Leni Riefenstahl, que espetacularizou o nazismo com o de Hitler – se afina com as construções que a ficção
em O Triunfo da Vontade (1934) ao documentar uma hollywoodiana faz sobre o “outro” (sobre seus inimigos de
superproduzida encenação política (o congresso de ontem e de hoje) e sobre seus próprios mártires e heróis
Nuremberg). Para o cineasta Hans-Jurgen Syberberg, citado devidamente sentimentalizados na tela.
por Fredric Jameson (As Marcas do Visível, Ed. Graal), Hitler No dia ll de setembro, no princípio, era o plano
foi o maior cineasta do século XX, autor do maior filme geral (PG), com o claro céu novaiorquino tomado por espessa
dessa era: a Segunda Guerra – observação esta em sintonia nuvem de poeira e fumaça, após o ataque dos aviões às torres
com o citado texto de Virilio. gêmeas do WTC. Depois, vieram
Mas, se o ato atribuído os planos de conjunto e meio
a Bin Laden pode se enquadrar conjunto: gente correndo nas
nessa tradição do espetáculo ruas. Nas primeiras horas
bélico-propagandístico, o que predominavam, assim, os planos
dizer do registro audiovisual do mais abertos. A iminência de um
mesmo nas transmissões terceiro ataque induzia o recurso
televisivas do Ocidente? Não do PG sobre a metrópole, para
seria isto a absorção do “filme” captação de um outro eventual
do inimigo, produzindo-se auto- flagrante ao vivo. E, entre tais
maticamente sua contrapartida, planos ouvíamos as intervenções
uma outra peça pela outra ideo- dos locutores e convidados espe-
logia, uma espécie de antídoto a cialistas em política, guerra ou
partir do vírus invasor? Pegue- história. Havia um peso docu-
mos o caso das emissoras brasi- mental de sabor mais “direto”,
leiras que trabalharam com ima- sem chances para artifícios
gens norte-americanas. O que te- audiovisuais. Os atentados, por
mos a dizer adequa-se por si só, superavam iniciativas dessa
princípio ao próprio material ordem.
original. A natureza dos planos, Ouviam-se vozes de
gerados no calor da hora, nos EUA, já definiam a orientação pessoas aturdidas, em planos que as visualizavam a contento.
ideológica do trágico show transmitido. Mas estas permaneciam anônimas. Identificadas eram somente
Esse “filme” ocidental, no caso, pode ter um começo as vozes de comentaristas e autoridades. Os terroristas seriam
comum. Mas, com as várias fontes transmissoras e identificados em fotos fixas de documentos ou, de modo
retransmissoras, com seus respectivos fugidio, por câmaras de vigilância em aeroporto.
comentaristas e editores, o seu “roteiro” foi variável, Antes de completadas as 24 horas após os atentados,
captado e configurado de acordo com a disponibilidade de já conhecíamos imagens e vozes de algumas vítimas em seus
tempo e de assimilação de cada telespectador. Um filme em derradeiros comunicados telefônicos com familiares.
aberto. Em Vida, o Filme (Cia. das Letras, l999), Neal Gabler Saberíamos seus nomes, endereços de residência e trabalho,
aponta para múltiplas possibilidades de espetáculos midiáticos quem eram seus parentes etc. Na guerra contra o Iraque, ou

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qualquer nação do “círculo do mal”, não se identificam Na medida em que jornalistas, professores,
indivíduos. No máximo, as vítimas estão em alvos civis, são autoridades, anônimos e parentes de vítimas tinham suas vozes
genericamente mulheres e crianças. Não sabemos seus nomes, transmitidas, emergiam nas primeiras horas após o atentado
endereços ou seus sonhos. São parte de frias estatísticas de os testemunhos das celebridades colunáveis, que têm Nova
guerra. Nos filmes se dizimam índios ou vietcongs, York como residência ou destino rotineiro de viagem. O
personagens tão estranhas à nossa cultura de matriz européia registro documental aí tem outro valor. São pessoas, mais ou
que, também, não dignos de serem revelados mais intimamente. menos, de nosso imaginário mundano e cotidiano; são
Uma vítima norte-americana do 11 de setembro, contudo, referências, têm histórias que nos são familiares – o que
pode ter uma canção de sua lavra apresentada pelo irmão adiciona o sabor mais intimamente humano à tragédia em
numa matéria jornalística. pauta. Gerald Thomas, conhecido por polemizar no meio
As músicas, aliás, teatral, chorou diante da câmara;
foram usadas gradativamente nas Luiza Brunet, ao lado da filha
transmissões pós-atentados. Na modelo, parecia muito
manhã daquele dia nem comovida. Suas falas, em geral,
caberiam. Mais tarde, numa pouco acrescentam em seu
entrevista telefônica, insinuava- impressionismo. O que vale aí,
se uma leve flauta pontuando o sobretudo, é a imagem deles,
depoimento da testemunha espécie de “sobreviventes” vip.
brasileira. No segundo dia, o Os ricos e famosos de
programa Cidade Alerta já Hollywood e do panteão pop-
encaixava acordes tensos, rock dariam concerto benefi-
similares aos de suas notícias cente, clamando pela paz e pela
policiais, ao mostrar Nova York liberdade. Também, dias depois,
arrasada. No dia l6, o Man- veríamos uma série de propagan-
hatthan Connection reprisava das convidando os novaiorqui-
queda das torres ao som do tema nos a retomar o ritmo normal
erudito sobre a destruição de de suas vidas, a exemplo de
Dresden (Segunda Guerra Woody Allen ou Kissinger, se
Mundial). O emocionalismo da exibindo em atividades prosai-
trilha de acordo com o público. cas, sem medo. No dia l8 de
No plano exclusivo das imagens, com o passar dos setembro, o jornalista Jorge Pontual faria uma espécie de
dias, novas tomadas (flagrantes amadores) revelavam planos e crônica sobre esta “cidade que nunca dorme”. Com a
ângulos diversos do choque dos jatos nas torres. Já era possível intimidade que ele (assim como nós) não teria em relação a
montar, em satisfatória continuidade, a ação, imprimindo-lhe Bagdá ou Beirute, mostrou gente comum se divertindo na
ritmo mais condizente com a arte narrativa. Emocionante, por noite, apesar dos receios. A matéria tinha aquele charme cool
outro lado, foi a crueza do “cinema direto” (visto no Fantástico), só mesmo possível naquela geografia urbana ocidental. Um
com imagens de um amador, gravadas em sua fuga pelas ruas imaginário que consumimos e desejamos, graças ao cinema.
após o desabamento de uma torre. Depois dos planos gerais A essa altura do texto, longe já estão aqueles planos
do dia 11, era a vez de se mergulhar no interior da tormenta, gerais que descortinavam Nova York agredida, como qualquer
com a câmara hesitante na mão, em tempo real, na nuvem de pó. palco tradicional de guerra.

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Quando os EUA provaram do amargo sabor dessa (claro, ao lado de uma estapafúrdia explicação numerológica
experiência comum a outros povos, a abordagem dos fatos). Ao lado de Leão Lobo, um arguto historiador
audiovisual haveria de ser outra. Com aproximações. Em parecia citar a glauberiana profecia de A Idade da Terra
meio à dor coletiva, haveria de emergir um elenco de heróis, (1980): a tragédia representava “o choque do mundo rico
tradicionais ou de ocasião, devidamente identificados e com o mundo pobre”.
dosados com a emoção mais conveniente. Um sentimento Por fim, a aproximação das lentes chegaria do
que, de praxe, contamina o mundo, pois vale o que é bom território macro ao microscópico. A paranóia gerada pelo
(ou mau) para os EUA. Na época, a Globo ficou meio desmoronar das torres foi desviada para o horror dos bacilos
enlutada e cortou do Intercine seus tradicionais filmes de do anthrax minando surdamente os pulmões de inocentes –
pancadaria; as escolas primárias induziram nossa crianças um mal quase tão invisível quanto os 3000 mortos nos

a trocar suas armas de plástico por livros (numa fábula, escombros dos WTC, que não foram registrados pelas câmeras,
lida por inocente cearense, “a bruxa é jogada no fogo”...); numa omissão asséptica do espetáculo da mídia.
no Rio, outros menores desenharam a tragédia, traduzindo Varrido o entulho, a homenagem às vítimas do lugar
cenas vistas na TV. Imagens produzem imagens, agora viria na forma provisória de duas enormes fontes de luz
prenhes de sentimentalismo, pois, vindas do mundo mirando o céu da cidade. Idéia não muito original, pois lembra
infantil, despertam em nós a noção spielbergiana de que o as duas colunas luminosas usadas em Nuremberg para extasiar
mundo dos adultos é de uma maldade desmedida e as massas hitleristas suscetíveis a quaisquer efeitos emocionais.
incorrigível. Longe também estavam aqueles comentários Do Trem chegando à estação de La Ciotat, dos Lumière, aos
mais aprofundados, que chegaram a ser largamente fatídicos Boeings do 11 de setembro, existem mais
transmitidos até em programa de fofocas da Bandeirantes coincidências do que imagina nossa vã cinefilia.

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