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RESENHAS 159

Relações entre associação de uma grande massa de profissionais,


mantendo-se ao longo do processo de democrati-
profissionalismo e política zação do país como porta-voz da opinião pública
nas carreiras jurídicas e posicionando-se com autonomia ante o Estado.
Quanto ao Poder Judiciário, a autora dirige
Maria da Glória BONELLI. Profissionalismo e polí- seu olhar para os desembargadores do Estado de
tica no mundo do direito. São Carlos, Suma- São Paulo. Ao analisar o Judiciário paulista, a au-
ré/Edufscar/Fapesp, 2002. 303 páginas. tora demarca suas diferenças em relação à litera-
tura existente: primeiro, ante as vertentes que se
Cátia Aida Silva pautam nos estudos sobre elites políticas, ou
apontando a diferença dos juízes em relação às
Entre as recentes pesquisas da área de ciên- demais elites ou enfatizando os interesses de clas-
cias sociais que vêm revelando o funcionamento se dos mesmos; segundo, ante a abordagem que
das instituições e os perfis dos profissionais do di- vê a crescente heterogeneidade social dos juízes
reito no Brasil, o livro de Maria da Glória Bonelli como fonte de rupturas ideológicas no Poder Ju-
certamente desponta como leitura de grande rele- diciário. Em relação aos primeiros enfoques, Bo-
vância. O livro analisa, de forma inovadora, o nelli argumenta que os conceitos de burocracia e
modo pelo qual as carreiras de advogados, de- profissão são utilizados como sinônimos quando
sembargadores, procuradores de justiça e delega- representariam, na verdade, formas distintas de
dos de polícia interagiram com os modelos do organização do trabalho. Bonelli argumenta que o
profissionalismo, do mercado livre e da burocra- profissionalismo conseguiu aos poucos suplantar
cia, aproximando-se ou distanciando-se da cons- a burocracia e que o modelo profissional resultan-
trução de uma ideologia profissional. O ethos pro- te dos “embates” no Judiciário privilegiou o co-
fissional acentuaria o compromisso de ter nhecimento técnico e domínio da jurisprudência –
exclusividade no exercício de determinada fun- sem abrir mão de “influenciar a política”: “Sua ha-
ção e a condição de autonomia para exercê-la, di- bilidade foi distinguir-se dos interesses particula-
ferenciando-se do modelo de livre-mercado – que res que caracterizam a política cotidiana, cons-
enfatizaria a lógica das relações entre classes – e truindo um ideário voltado para o conhecimento
do modelo burocrático – baseado na hierarquia e especializado e para valores reconhecidos como
na obediência. A dimensão política está presente universais” (p. 93).
na análise, uma vez que a interação das carreiras Quanto à vertente que destaca a crescente
com esses modelos é considerada fruto das rela- heterogeneidade da origem social da corporação,
ções construídas com o Estado e com a política que levaria a uma pluralidade de orientações e
convencional. Adotando uma perspectiva históri- quebra da tradição normativista, Bonelli sustenta
ca, Bonelli recorreu ao exame da morfologia so- que heterogeneidade ideológica não é um proces-
cial de determinados grupos dentro dessas carrei- so que resulta automaticamente da existência de
ras, assim como à realização de uma pesquisa que heterogeneidade social. Segundo a autora, a ori-
incluiu entrevistas e análise de survey, de publica- gem social semelhante que marcou o passado não
ções especializadas, de discursos e de memórias. impediu a existência de diversas ideologias profis-
Entre os advogados, Bonelli mostra como a sionais e que as disputas entre elas no mundo do
ideologia profissional produzida no âmbito do Ins- direito persistem ainda hoje pelo fato de serem
tituto dos Advogados do Brasil (IAB) e, em segui- profissões muito próximas à política e ao Estado.
da, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Entretanto, como a própria autora reconhe-
conseguiu fazer frente à lógica do mercado e da ce, seu estudo restringe-se à analise do Judiciário
política convencional. Enquanto o IAB despontou paulista, em particular os desembargadores do Tri-
como uma associação de uma elite portadora da bunal de Justiça do Estado de São Paulo, cujas pu-
excelência profissional, a OAB assumiu o papel de blicações e fontes pesquisadas (Revista dos Tribu-
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nais, Revista de Jurisprudência e memória de juí- miu o papel de portadora dos interesses da socie-
zes) favorecem a leitura da visão dos grupos do- dade e dos cidadãos. O mais curioso é que o re-
minantes e, no interior da instituição paulista, dos curso à política convencional foi o meio utilizado
membros da segunda instância. Os títulos e auto- para se alcançar esse novo status, o que possibi-
res citados como representantes dos enfoques aci- litou, paradoxalmente, o florescimento de uma
ma – como o estudo de Luis Werneck Vianna e ideologia que condena de forma veemente essa
equipe, por exemplo, voltam-se para os membros mesma política.
da primeira instância, e não apenas no Estado de Reiterando, o estudo de Bonelli restringe-se
São Paulo. Além disso, não têm como foco a dis- aos membros da segunda instância do Ministério
cussão sobre o profissionalismo. De qualquer ma- Público e identifica nesse contexto duas ideolo-
neira, insinua-se aí um importante debate a ser gias em permanente confronto. Contudo, arrisca-
aprofundado em pesquisas futuras, que ainda têm ria a dizer que, talvez, entre os promotores de jus-
muito por dizer sobre o “mundo do direito”, para tiça (membros que atuam na primeira instância),
empregar a expressão da própria autora. as ideologias a respeito da carreira estabelecem
Em relação aos procuradores de justiça do uma relação estreita com a área na qual atuam.
Ministério Público paulista, Bonelli identifica os Por exemplo, os promotores da área criminal en-
anos de 1980 como um momento de transforma- carariam a carreira de modo completamente dis-
ções na composição social e “ideário” dos procu- tinto daquele dos promotores da área de defesa
radores em direção a mudanças na instituição e a do meio ambiente. Ademais, parece florescer en-
valores profissionais próximos aos magistrados. tre eles uma ideologia que condena a política
As mudanças no perfil da instituição teriam gera- convencional, mas que não se caracteriza como
do condições para o fortalecimento de uma ideo- antipolítica, pois valoriza os efeitos políticos do
logia profissional que rejeita a política, sobretudo papel da instituição e, por isso mesmo, apresenta
a convencional. A autora conclui que, entre os o promotor e o procurador de justiça como agen-
procuradores de justiça, predomina a ideologia tes intocáveis a combater autoridades corruptas e
profissional que procura distanciar-se da política, a defender os interesses dos cidadãos pobres, dos
contrária a uma ideologia minoritária, que ques- que foram lesados, das minorias etc.
tiona a profissão como antipolítica. Por fim, o quarto capítulo trata da carreira
Muitos estudos mostram que as mudanças dos delegados de polícia. Bonelli mostra que os
em relação à maneira pela qual a carreira é per- delegados experimentaram um processo de desle-
cebida e exercida pelos membros do Ministério gitimação ante juízes, promotores e advogados. O
Público paulista e de outros Estados tiveram ori- mesmo ocorreu em relação à população, uma vez
gem nas transformações legais e institucionais que foram inevitavelmente associados à imagem
que, ao longo dos anos de 1980 e 1990, procura- corrupta e incompetente da polícia. A autora vê
ram igualar juízes e promotores de justiça, dando ambigüidade da corporação quanto ao ethos pro-
aos últimos atribuições importantíssimas. Nesse fissional, já que a política convencional sempre
sentido, o terceiro capítulo do livro pode ser ana- teria predominado entre os delegados. Segundo
lisado como um resgate dos bastidores da mobili- Bonelli, a política convencional contraria a “cren-
zação da instituição paulista durante a Constituin- ça na missão de prestar serviços de qualidade
te e sua força na redação de um novo capítulo com independência”, opondo-se, nesse sentido, à
para o Ministério Público no Brasil. Há que se res- ideologia profissional, uma vez que a profissão
saltar que a diferença entre Poder Judiciário e Mi- procura resguardar-se dos seus efeitos nocivos,
nistério Público reside no fato de que, no Minis- criando uma política própria. Assim, perda de
tério Público, as disputas por ideologias prestígio social, politização do cargo, preocupa-
profissionais ou pela redefinição da carreira no in- ção dos governantes em controlar a polícia e bai-
terior do “mundo do direito” ocorriam num con- xa identificação com a expertise (mérito, conheci-
texto de reconstrução da instituição, a qual assu- mento científico, opinião dos pares, exclusividade
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sobre determinada função) atuaram como impe- Encontros e desencontros


dimentos à profissionalização, favorecendo a pre-
dominância da política convencional. Os delega- da sociologia e educação
dos são, portanto, os mais distantes da ideologia no Brasil
profissional e, não por acaso, trata-se, de todas as
carreiras jurídicas analisadas, de menor status so- Graziella Moraes DIAS DA SILVA. Sociologia da
cial e menor poder aquisitivo. A falta de legitimi- sociologia da educação: caminhos e desafios de
dade dificulta, segundo Bonelli, assumir a “autori- uma policy science no Brasil (1920-1979). Bra-
dade técnica” com “mandato moral”. gança Paulista, Editora da Universidade São Fran-
Em contrapartida, a autora sustenta que a cisco. 203 páginas
análise dos dados de um survey realizado entre os
delegados revela uma momento de importantes Carlos Benedito Martins
mudanças. As respostas mostram o desconforto
dos delegados com o peso da política convencio- Após uma fase de acentuado recuo no inte-
nal que incide sobre sua carreira. O survey mostra rior das ciências sociais brasileira, assiste-se a par-
também a valorização do profissionalismo pelos tir da década de 1980 a retomada de uma reflexão
delegados, certamente associada à preocupação sistemática e da realização metódica de trabalhos
dos membros dessa carreira com a legitimidade da teóricos e empíricos sobre o tema da educação e
autoridade policial – daí a importância atribuída de sua articulação com outros campos sociais. Em
por eles à prestação de serviços à comunidade. recente publicação da Anpocs O que ler na ciên-
Além disso, as respostas dos delegados parecem cia social brasileira (1970-2002), Clarissa Baeta
indicar que, pelo menos em relação à autopercep- Neves, ao realizar um balanço crítico do estágio
ção, houve mudanças, mas resta saber de que for- atual dos estudos sociológicos sobre educação no
ma isso se reflete na sua atuação profissional. Mu- Brasil, destacou não só o seu significativo volume,
danças mais profundas, de qualquer modo, mas também uma riqueza de linhas de pesquisa e
enfrentariam resistências não só de membros da uma pluralidade de enfoques analíticos, bem
carreira, como também da própria estrutura da Po- como a existência de diversos grupos de pesqui-
lícia Civil – organização burocrática com mescla sa dedicados a essa temática, a maioria deles, em
de profissionalismo, como aponta a autora. estreita conexão com os programas de pós-gra-
duação em sociologia, localizados em várias re-
Cátia Aida Silva é doutora em Ciência giões do país. O trabalho de Graziella Silva é uma
Política pela Universidade de São Paulo. contribuição relevante para resgatar determinados
momentos dos caminhos e dos descaminhos per-
corridos pelas afinidades estabelecidas entre a so-
ciologia e a educação no país. Uma das motiva-
ções que orientaram sua realização foi entender
as condições que conduziram o desinteresse da
sociologia brasileira pela temática da educação,
de modo destacado durante o período que se es-
tende do golpe militar até o início do processo de
redemocratização do país. Esse desinteresse não
deixa de ser intrigante, quando se tem em conta
a própria origem da sociologia no Brasil, a qual,
na visão da autora, nasceu em estreita relação
com a temática educacional.
Ao longo do trabalho, Graziella esboça os
contornos históricos e institucionais que permea-

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