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Antes de começar a tratar do livro, pelas razões que citei no parágrafo acima, creio ser importante
apresentar o contexto do autor e a estrutura da obra.
O autor
Não se sabe ao certo sobre a formação de Dante Alighieri (1265, Florença -1321, Ravena). Alguns
acreditam que ele é autodidata, outros creem que ele teve instrução formal por um preceptor. Não
importa muito como ele atingiu os resultados que conquistou, só é possível afirmar, lendo A divina
comédia, que ele foi um homem de grande erudição. Nessa obra ele reuniu personagens políticos e
mitológicos, autores clássicos, correntes filosóficas e religiosas, dentre outras coisas.
Nessa época, o comércio burguês começa a tomar conta dos limites feudais e Dante começou a
perceber o acirramento de conflitos de interesses materiais, usura e ganância.
Nesse contexto de ingerência política, crise de valores e costumes que Dante começou a
escrever A divina comédia.
A obra
Dante esquematiza sua cosmogonia com erudição, racionalidade e moralismo. Ele organizou e
classificou todo esse conhecimento em esquemas baseados no conhecimento astronômico e
filosófico da época subordinados à moral cristã sob seu próprio ponto de vista. Essa última parte é
importante, pois percebemos que muitas vezes Dante contraria às diretrizes da Igreja e estabelece
seus próprios critérios de julgamento. A Igreja não mandaria um papa para o inferno, por exemplo.
A edição da Editora 34 traz uma introdução que contextualiza o século XIII, explica o esquema da
obra, no começo dos cantos, há um resumo do conteúdo e no final de um há notas que explicam
personagens, mitos, figuras políticas etc. Enfim, é um edição que nos instrumenta à leitura, que não
é muito fácil, pois imaginem o malabarismo sintático que o tradutor teve que fazer para manter as
rimas de cada verso sem corromper o encadeamento e o ritmo.
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O enredo
No livro que trata do inferno, há 34 cantos com mais ou menos 140 versos cada um. Vejam a
matriz que mescla a organização do inferno, as classes e as subclasses de pecados.
Vamos resumir essa estória?
os ignavos, relaxados na escolha do bem, são punidos com picadas de vespas e obrigados a
correr sem parar atrás de uma insígnia (Canto III);
os tíbios e frouxos são obrigados a carregar, ininterruptamente, uma bandeira (Canto III);
os luxuriosos (Canto V);
os gulosos são estendidos na lama sob chuva suja e espancados pelo monstro Cérbero
(Canto VI);
os avaros e os pródigos são divididos em dois grupos e empurram pesos, fazendo, cada
grupo, meia volta em sentidos opostos até se baterem e serem obrigados a retomar o
caminho inverso (Canto VII);
os heréticos, são colocados em túmulos ardentes em chamas (Canto IX);
os tiranos são mergulhados até os olhos em sangue fervente, os homicidas são mergulhados
até a garganta e os salteadores são mergulhados até o peito (Canto XII);
aos suicidas a punição é ter a alma caída como semente na selva, ao crescer o arbusto, as
folhas são alimentos para as harpias (Canto XIII);
os perdulários fogem de cadelas raivosas que dilaceram os que perdem o vigor na
corrida (Canto XIII);
os blasfemos ficam deitados sob chuva de chispas de fogo; os usurários ficam sentados e
os sodomitas ficam em contínuo caminhar (Canto XIV);
os usurários levam pendurara no pescoço uma bolsinha vazia decorada com o emblema de
sua família (Canto XVII);
os rufiões e os sedutores são separados em duas filas e andam em sentido contrário (Canto
XVIII);
os aduladores são submersos em esterco (Canto XVIII);
os simoníacos (que exerciam a magia) são enfiados de cabeça para baixo em estreitos buracos
redondos com uma perna para fora (Canto XIX);
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os adivinhos têm a cabeça torcida em relação ao corpo, o que os obriga a caminhar para
trás (Canto XX);
os traficantes são atirados por diabinhos numa fervura (Canto XXI);
os hipócritas desfilam lentamente, vestidos de pesadas capas de chumbo (Canto XXIII);
os ladrões são atacados por serpentes (Canto XXV);
Chamo a atenção para o papel de Virgílio nessa obra. Ele significa a Razão, condição da Virtude,
na concepção aristotélica que foi adotada por Dante. Na prática, essa condição o coloca num status
especial que o possibilita desbravar os caminhos
e facilitar a trajetória de Dante, um vivente, no
espaço dos mortos. Para isso, ele
demanda intervenção divina, e é atendido,
solicita auxílio de diabetes, e é atendido. É como
se Virgílio estivesse além do bem e do mal.
A narrativa
O poema é narrado em primeira pessoa pelo personagem Dante, uma figura ambígua que ao
mesmo tempo se coloca como aprendiz e como moralizador.
O texto é um poema, mas, em razão de sua função moralizante, o narrador é bem presente, algo
bem diferente do eu lírico com o qual estamos acostumados na contemporaneidade. Muitas vezes,
ele fala diretamente ao leitor: “Pensa, leitor, no meu desanimar” (v.94, Canto VIII); “desta
Comédia, meu leitor, te Juro – ” (v. 128, Canto XVI); “Leitor, um jogo ora ouvirás diverso:” (v.
118, Canto XXII). Esse recurso foi muito utilizado dentre os escritores do século XIX, como José
de Alencar, Machado de Assis e Freud. Essa fala direta ao leitor busca uma intimidade, passo
crucial para a proximidade de ideias.
Ainda não desenvolvi a contento meu projeto de leitura sobre a era medieval, mas já andava
desconfiando que, muito longe de ser um “período de trevas” como os iluministas sempre nos
fizeram acreditar, a Idade Média foi um período de grande efervescência cultural, em que a cultura
greco-romana exerceu grande influência, sobretudo ao Cristianismo. A divina comédia nos faz
perceber que, ao mesmo tempo em que a Igreja exercia um poder de Estado e que a moral cristã
classificava comportamentos e pensamentos, as diretrizes teórico-religiosas eram embasadas na
cultura clássica. Uma contradição? Acho que não, afinal, era preciso partir de alguma coisa para
criticar ou usar como exemplo (às vezes, esses dois posicionamentos, embora contraditórios, eram
aplicados numa mesma categoria; é o caso do politeísmo tão criticado pelo cristianismo, mas ao
mesmo templo aplicado, como na ideia de um santo para cada coisa). Assim, temos uma situação
em que a concepção “científica” do mundo era fundamentada em Aristóteles; parte das concepções
cristãs, em Platão.
Podemos entender a obra de Dante como um resumo das concepções da Idade Média. Ele
poderia ter feito um tratado, mas como era um poeta, fez um poema. É uma obra soberba!