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e Gilberto Freyre
Alfredo C
esar Melo
resumo abstract
O artigo pretende estudar as tensas This article seeks to study the tense and
e ambíguas relações que a obra ambivalent relationships established
de Gilberto Freyre estabelece com by Gilberto Freyre’s work with the
o signo “América”. Por um lado, sign “America”. On the one hand, we
procuramos inves tigar como as attempt to investigate how the initial
percepções iniciais que o autor perceptions created by the author
de Casa-Grande & Senzala cria das of The Masters and the Slaves of
culturas brasileira e norte-americana the Brazilian and Nor th American
ajudaram a estruturar sua consagrada cultures helped structure his famous
interpretação do Brasil. Por outro interpretation of Brazil. On the other
lado, examinamos o modo como hand, we examine the way Freyre places
Freyre posiciona o Brasil num antigo e Brazil in a lasting and old debate on
duradouro debate sobre o sentido dos the meaning of the two main civilizing
dois projetos civilizatórios existentes projects existing in the Americas – the
nas Américas – a Anglo e a Latina. Anglo and Latin Americas.
estaria na aposta de uma maior ênfase na espe- enfática a força formadora da cultura brasilei-
cificidade cultural dos países latino-americanos, ra à empreitada portuguesa. Não há dúvida que
o que serviria como um anteparo à homogenei- o elogio ao antigo colonizador é um traço do
zação social levada a cabo pela americanização pensamento conservador latino-americano. No
das culturas. Em outras palavras, Gilberto Freyre entanto, como em quase tudo na obra de Freyre,
apostava numa cultura brasileira mais aberta, isto esse movimento de simpatia a Portugal escon-
é, disposta a experimentar outras temporalidades de algo bem menos óbvio e desconcertante. Já
e novas sensibilidades mais sintonizadas com o Gilberto Freyre constantemente mencionava
meio tropical em que estava inserida, assim como a importância da África, dos muçulmanos e
mais resistente à padronização cultural e mate- judeus na formação do Brasil colonial. Mesmo
rial imposta pelo Ocidente. É possível verificar no quando se referia a países ibéricos, como é o
projeto ideológico de Freyre uma clara oposição caso frequente em relação a Portugal. Em outras
entre “espírito” e “matéria”, ou a afirmação da palavras, o Portugal de Freyre é “antes, um Por-
singularidade cultural contra a estandardização tugal orientalizado, a defesa da vitalidade por-
material da sociedade. Essa oposição também tuguesa está longe de ser um alinhamento com a
está no centro do arielismo. Europa, pois Portugal representaria uma Europa
Isso posto, as diferenças entre os posiciona- reinando mas sem governar; governando antes
mentos de Gilberto Freyre, de um lado, e a tradi- a África” (Freyre, 2002, p. 34). O Portugal de
ção arielista, de outro, são dignas de nota. Des- Freyre é um Portugal orientalizado, mourisco,
tacar essa diferença é importante para entender a africano, judeu, desprovido de qualquer senso
especificidade da proposta freyriana. A distinção de latinidade 8. Como Freyre define nas páginas
principal entre Freyre e a tradição arielista reside de Sobrados e Mucambos:
na ausência, por parte do brasileiro, de qualquer
culto à latinidade. Se, para José Vasconcelos, no “Já hoje ninguém tem a ilusão de sermos nós,
intuito de interpretar as culturas ibero-america- brasileiros – quase todos, mesmo em São Paulo
nas, era necessário primeiramente destacar que e no Rio Grande do Sul, parentes de mulatos –,
“pugna de latinidad contra sajonismo ha llegado um povo verdadeiramente latino, muito menos
a ser, sigue siendo nuestra época; pugna de insti- rigorosamente cristão, no sentido em que o é, por
tuciones, de propósitos y de ideales” [“pugna da exemplo, o povo francês” (Freyre, 2006, p. 799).
latinidade contra o saxonismo chegou a ser, e se-
gue sendo em nossa época, pugna de instituições, Deve-se notar que a afirmação acima de
de propósito e ideais”] (Vasconcelos, 1925, p. 6), Freyre o coloca em posição diametralmente
para Gilberto Freyre tal questão não se colocava, oposta à dos conservadores brasileiros (e não
uma vez que o escritor brasileiro não se alinhava apenas brasileiros), tão obcecados pela identida-
a qualquer ideia de latinidade, de onde pudesse de cristã e ocidental como algo que não apenas
derivar a noção de cultura brasileira da maneira define quem somos, como algo que precisa ser
como fazia Vasconcelos para compreender a cul- defendido de ataques e descaracterizações. Em
tura mexicana. Veremos mais adiante que nem Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre já ha-
mesmo o lusófilo Gilberto Freyre vinculará a cul- via discutido o intricado processo cultural que
tura portuguesa ao espírito latino. deu ensejo à formação cultural portuguesa. São
páginas que bem poderiam sintetizar uma teoria
da ambivalência cultural:
Gilberto Freyre: o Brasil
formado pelo Oriente
8 O que não deixa de ser uma subversão se levarmos em
Gilberto Freyre é considerado um dos gran- conta que, na época, a visão oficial de Portugal, devido
des defensores das virtudes da colonização ao fascismo de Salazar, era fortemente vinculada a
uma retórica de resgate do legado latino. Depois essa
portuguesa no Brasil. Poucos intérpretes do equação vai se modificar, com a colaboração de Gilberto
Brasil atribuíram de maneira tão substancial e Freyre com o Estado Novo salazarista (cf. Melo, 2014).
rua vence a casa, o bacharel europeizado triunfa vir como contraideologia, mostrando que o mapa
sobre o senhor de engenho “oriental”, e o olhar das forças formadoras da cultura brasileira é bem
do estrangeiro se impõe como metro normativo, mais amplo e complexo.
fazendo muitos brasileiros se envergonharem de No último capítulo de seu livro-manifesto
não serem europeus. The Idea of Latin America, Walter Mignolo
tenta vislumbrar um cenário de uma América
“pós-latina”, isto é, Mignolo pensa em maneiras
CONCLUSÃO de descolonizar a ideia de “América Latina”.
Tal ideia foi e tem sido bastante útil para os
Sobrados e Mucambos dramatiza a derrota das euro-americanos, que são uma minoria demo-
“Áfricas e Índias” perante a Europa burguesa e gráfica perto dos descendentes de africanos
industrializada. Poderia ser dito que tal narrativa, e indígenas no continente. De acordo com
por sua vez, reproduz o conflito já encenado por Mignolo, seria preciso imaginar uma outra
Euclides da Cunha no seu Os Sertões em 1902: América que não fosse “latina”: “Desligar-se
a vitória do litoral europeizado e supostamente do conceito para construir uma América pós-
moderno sobre o interior isolado que detém uma -latina é um dos passos dados por ameríndios,
cultura nacional embrionária. afrodescendentes, mulheres, gays e lésbicas”
Na escala de valores de Gilberto Freyre, a pro- [“Delinking from the concept and building an
gressiva ocidentalização do Brasil implicaria uma ‘after (Latin) America is one of the steps being
perda do núcleo mais vital e pujante da cultura taken by Indians, Afros, women of color, gays
brasileira – que nada teria a ver com uma essên- and lesbians] (Mignolo, 2005, p. 101). Espero
cia, mas com um conjunto de práticas e saberes ter mostrado que o modo como Gilberto Freyre
não ocidentais lentamente consolidado ao longo pensa o lugar da cultura brasileira no mundo
dos anos. Essa derrota do núcleo vital da cultura fornece subsídios para refletir sobre o continente
brasileira, no entanto, deve ser vista como uma de um jeito que não o ligue tão somente à Europa
derrota ambivalente, do mesmo tipo da derrota (seja a matriz greco-latina ou a versão moderna
dos judeus e árabes em Portugal. Por mais que o da Europa burguesa), nem busque apenas uma
letrado brasileiro denegue, por mais que ele deseje solução autóctone. O que Freyre faz, portan-
uma integração com o Ocidente, haverá sempre um to, é alargar as referências desse “universal”,
estoque cultural que pode ser ativado e mobilizado deslocando-o do eixo eurocêntrico e enfatizando
contra a hegemonia ocidentalista. Ainda que as eli- outras formações culturais com as quais o Brasil
tes reproduzam ideologias eurocêntricas, sempre tem até mais afinidades. A América de Freyre
haverá “Pan-Américas de Áfricas utópicas” e um não é necessariamente inglesa ou latina, mas
“novo quilombo de Zumbi”, para usar expressões híbrida, repleta de referências árabes, africanas,
da letra de “Sampa”, de Caetano Veloso, para ser- ameríndias e judaicas.
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