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IMAGEM, ORALIDADE E ESCRITA:

UMA ANÁLISE DA TRAJETÓRIA


DE PIERRE FATUMBI VERGER

SOUTY, Jérôme. Pierre Fatumbi Verger: do olhar livre ao conheci-


mento iniciático. Tradução Michel Colin. São Paulo: Editora Terceiro
Nome, 2011. 448 p.

O tema do livro de Jérôme Souty é a culturas, tendo optado por retratar,


“vida-obra” de Pierre Fatumbi Verger. mais especialmente, a cultura negra da
Trata-se, com algumas diferenças, da África e do Brasil, que se tornou o
versão em português de livro publica- objeto de suas pesquisas e de seus tra-
do na França, em 2007. Para a publi- balhos escritos. Verger fez da própria
cação brasileira, o autor incrementou vida solitária uma experiência limite.
e modificou o texto original, reduziu Sua obra desdobrou-se em função da
as imagens e, nesta edição, desapare- diversidade de culturas com que man-
ce o prefácio de Jean-Paul Colleyn. O teve contato e da expressividade dos
livro é uma adaptação da tese de dou- indivíduos e rituais estudados. Em seu
torado de Souty, de entrevistas que conjunto, compõe um privilegiado
realizou com Verger, em 1993 e 1994, panorama construído a partir de sin-
e de pesquisa documental sobre a vida gular posto de observação: é inegável
e obra do “fotógrafo-etnólogo”. o entrelaçamento da vida com a obra.
Pierre Verger, nascido em Paris, Compreender sua obra implica partir
em 1902, e “renascido” na África, em de múltiplas relações e conexões, sa-
1953, com o nome de Fatumbi, foi ber como ocorreu seu envolvimento
autor polifacético, com notáveis tra- com a fotografia, acompanhar como
balhos em variados campos. A sua tra- seu olhar evoluiu com o passar dos
jetória uniu a experiência do fotógra- anos, saber como se deu seu envolvi-
fo com a do etnógrafo, do etnólogo, mento com a cultura afro-brasileira e
do antropólogo, do historiador e tam- africana, assim como refletir sobre os
bém do iniciado e profundo conhece- procedimentos que adotou em suas
dor da cultura iorubá. A matéria-pri- pesquisas. Implica, ainda, mapear suas
ma de seu trabalho fotográfico era o influências e perceber como sua pro-
cotidiano material, simbólico e ima- dução insere-se na história da fotogra-
ginário dos homens das mais diversas fia mundial e da etnografia.

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Segundo Souty, o propósito de seu culturas e religiões afro-brasileiras. A
livro é analisar a vida e a obra de partir da dimensão particular e do al-
Pierre Fatumbi Verger a partir do cance da experiência de Pierre Verger,
tríptico imagem-oralidade-escrita. o autor, nesta espécie de etno-biogra-
Alcançar a abrangência a que o autor fia, busca uma reflexão mais geral
se propõe é uma tarefa quase impos- sobre os métodos e pressupostos da
sível e o resultado acaba por privile- “ciência do outro”. A trajetória de
giar alguns aspectos. Mesmo que a Verger questiona, de maneira profun-
publicação, com 448 páginas, impres- da, esta ciência e convida a reavaliar
sione por sua extensão, assim como seus métodos e a reconsiderar seus
pela constatação do cuidado com que postulados. Graças a este trabalho,
Souty se debruçou sobre documentos muitas questões podem ser evidenci-
diversos – em suas palavras, “fontes adas.
visuais, orais e escritas” (p. 13) – di- Souty acompanha, de forma não
ante da dificuldade de abarcar tudo cronológica, o percurso de Pierre
em um único trabalho, o Verger fotó- Verger, buscando formar o todo com
grafo fica menos em evidência do que base em variadas entradas. O livro,
o Verger etnógrafo e especialista na além da abertura e da conclusão, está
cultura iorubá. Fica claro, ao longo subdividido em dez capítulos temáti-
da leitura, que o autor opta por en- cos que provocam ecos uns nos ou-
tender e refletir sobre as especifici- tros, abrindo possibilidades de ques-
dades e opções metodológicas de tionamentos e leituras. O autor apre-
Verger como pesquisador. Pode-se senta questões importantes para um
notar esta escolha, inclusive, pela re- pesquisador de campo, com reflexões
dução do número de imagens na edi- sempre baseadas nas opções de
ção brasileira. Enquanto na publica- Verger ao longo de sua vida. Os pri-
ção original encontram-se 140 fotos meiros capítulos partem da descrição
de autoria de Verger, na brasileira da profunda relação de Verger com a
aparecem apenas 22, que servem fotografia a fim de traçar um parale-
como simples ilustrações mais do que lo com a etnografia e explicitar a in-
apoio e sustentação do tríptico pre- fluência de suas escolhas fotográfi-
tendido. cas em seu trabalho de campo. Pro-
Saliente-se que a abordagem de gressivamente, há um adensamento
Souty é muito bem-vinda. Como o teórico e os capítulos finais são dedi-
aspecto científico da obra de Verger cados ao aprofundamento das ques-
tem sido ainda pouco explorado, é de tões metodológicas, epistemológicas
grande interesse o ponto de vista de e éticas, levantadas desde a descri-
alguém como Souty, que pesquisa ção do trajeto de Verger, de sua trans-

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formação de fotógrafo em etnógrafo, tográfica são despendidos na prática
etnólogo, antropólogo, historiador e etnográfica. Souty relaciona os pro-
babalaô. Os títulos que o autor utili- cedimentos de Verger aos de Lydia
za para os capítulos explicitam por si Cabrera e Roger Bastide, considera
só a ênfase dada a cada momento da que a riqueza dos resultados obtidos
obra. é, em larga medida, fruto da qualida-
Interessado em refletir sobre os de das relações humanas estabeleci-
procedimentos adotados por seu re- das no campo e discute as condições
tratado na construção de sua obra, éticas e epistemológicas da produção
bem como em compreender suas de saber.
motivações, Souty utiliza o fotógra- A questão da alteridade, central na
fo como porta de entrada para pensar antropologia e na etnologia, é tam-
sobre as técnicas de pesquisa e o tra- bém introduzida por Souty a partir do
balho de campo do etnógrafo. Parte fotógrafo. O autor apresenta a rela-
de alguns dos aspectos que constitu- ção do fotógrafo com “o outro” antes
em a singularidade do trabalho foto- de passar à relação do etnógrafo com
gráfico de Verger – tais como privi- o outro. As questões vinculadas à res-
legiar a espontaneidade das expres- tituição direta do saber aos próprios
sões e das cenas, buscar uma imagem observados, pertinentes à etnografia,
não marcada por uma composição são trazidas pelo autor que ressalta a
estudada – para tentar entender suas facilidade de, por meio da imagem,
opções metodológicas, seu “método compartilhar o conhecimento com o
instintivo”. Afirma que a técnica de outro e acentua o papel de mensagei-
“fotografia pelo inconsciente” de ro cultural, assumido por Verger. Ima-
Verger “é indissociável do tipo de gens mostradas, trocadas, comparti-
câmera que ele usa” (p. 21) contras- lhadas permitem estreitar ligações e
tando seu olhar, a partir de uma aproximar simbolicamente africanos
Rolleiflex, com o de Henri Cartier- e membros da diáspora, integrantes
Bresson, que optou por uma Leica. da mesma família cultural, que vivi-
Ao abordar o fotógrafo, o autor bus- am afastados e sem notícias uns dos
ca decifrar aspectos do trabalho do outros. Sobre esta questão, Souty in-
etnógrafo – tais como tentar conhe- dica a discrepância em relação às
cer a realidade sem passar por per- concepções de Melville Herskovits e
guntas e hipóteses, visar a um regis- argumenta que posturas assumidas
tro o mais próximo possível do ob- por Verger têm pontos em comum
servado, sem a obrigatoriedade de com preceitos defendidos mais tarde
explicações teóricas. Os mesmos re- pela sociologia compreensiva e pela
quisitos mobilizados na vivência fo- etnometodologia.

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O livro Dieux d’Afrique, de 1954 – o leitor soubesse que a foto que divi-
reeditado em 1995 – aparece com des- de o oitavo e nono capítulos é uma
taque, no texto. Para Souty, aqui Verger das censuradas, poderia assim ter uma
“privilegiou o aspecto documental das ideia mais clara sobre o impacto vi-
cenas” e, em relação à edição original, sual das mesmas nos anos 1950.
“os reenquadramentos permitiam focar Souty destaca a originalidade da
a informação – com frequência em de- narrativa visual de Dieux d’Afrique,
trimento da estética” (p. 123). Uma res- feita por meio de dípticos e séries, e
salva merece ser feita em relação a al- assinala a forte articulação entre ima-
gumas das observações de Souty. Pen- gem e escrita. Ao falar sobre esta pu-
sadas em sua época, não parece tão blicação, o autor apresenta um díptico
evidente que a edição de 1954 tenha – composto de uma foto feita na Áfri-
menos apuro estético que a de 1995. ca (p. 114) e outra na Bahia (p. 115)
Os reenquadramentos que o fotógrafo – que, mesmo não sendo do corpus
utilizou – a boneca do livro foi elabo- do livro, exemplifica bem o que o tex-
rada pelo próprio Verger – eram usuais to descreve. Este é o momento em que
em seu trabalho. A “regra” de nada cor- Souty melhor articula a sua argumen-
tar do quadro original – muito inspira- tação com as imagens que utiliza. As
da na postura de Cartier-Bresson, que fotos, ao serem colocadas lado a lado,
chegava a deixar uma margem negra evidenciam muitas de suas observa-
em suas cópias para evidenciar o uso ções. Se, individualmente, cada uma
do negativo completo – não parece ter exemplifica a troca de olhares entre
sido tão importante para Verger. Em fotógrafo e fotografado, o que Souty
variadas ocasiões, fez um novo enqua- chama “olhar compartilhado” (p. 60),
dramento de suas imagens, com intuito por outro lado, a justaposição convi-
estético, às vezes para mudar o forma- da a uma comparação. A mesma cena
to quadrado da Rolleiflex para o de pai- se repete de um lado e de outro do
sagem ou de retrato. Atlântico. No caso, embora sejam
Souty menciona que algumas fo- cenas de rua e não cenas rituais, as
tos do projeto inicial de Dieux imagens revelam, além da semelhan-
d’Afrique foram retiradas devido a ça de posturas corporais e de expres-
escrúpulos de Verger, acirrados pelas sões, uma similitude cultural. A nar-
reações provocadas pelo material pu- rativa visual, neste espelho, vai além
blicado por Henri-Georges Clouzot
(pp. 330-331).1 Seria interessante que
também uma reportagem fotográfica inti-
tulada “Les possédées de Bahia”, na revis-
ta Paris Match, com fotos de sacrifícios e
1
Em 1951, Henri-Georges Clouzot havia cerimônias sangrentas acompanhadas de
publicado o livro Le cheval des dieux e legendas e comentários sensacionalistas.

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do que o próprio Souty indica. As vado. Analisa ainda sua passagem
imagens, isoladas, parecem espontâ- para a etnologia e a antropologia, com
neas e podem dar a impressão de ser a adoção de conceitos como “arqué-
de fácil realização, abolindo a neces- tipos de personalidade” e “transe de
sidade de competência e especializa- expressão”.
ção. Porém, o díptico faz saltar à vis- Souty explicita vários paradoxos
ta as semelhanças – composição, es- vivenciados por Verger. Apesar de
colha da luz, ângulo da tomada etc – admirador da resistência cultural e da
e, portanto, revela nuances sobre sua capacidade de sobrevivência e adap-
prática que exigem matizar a afirma- tação das culturas afro-americanas,
ção de que o fotógrafo “não procura- ele não se interessou pelos sincretis-
va [...] delimitar e compor uma ima- mos nas formas modernas e chegou a
gem de forma consciente” (p. 22). defender uma reinvenção da tradição
Nas fotos de acontecimentos do mun- africana e atuar em prol da mesma –
do, a composição da cena não está sob por exemplo, no papel que desempe-
o domínio total do fotógrafo e é aí, nhou na criação do Axé Opô Aganjú.
sobretudo, que as sutilezas da auto- O autor discute as tensões entre um
ria devem estar presentes e, mais do imaginário da África e uma África
que nunca, são decisivas. imaginária e indaga se a introdução
As complexas questões envolvi- da escrita fragiliza a transmissão do
das no registro escrito de uma cultu- saber, entendido como um saber vivo,
ra oral e na circulação das informa- apesar de assegurar uma conservação
ções são introduzidas por Souty por abstrata deste mesmo saber.
meio da descrição da própria dificul- Souty apresenta o jovem Verger
dade inicial de Verger em fazer a tran- apenas na metade do livro, quando
sição da imagem para a escrita, as- lança mão de uma leitura do seu per-
sim como dos desafios que enfrentou curso como análogo a uma iniciação.
ao tentar fazer a versão escrita de uma Segundo o autor, sua vida pode ser
cultura baseada na oralidade. A tran- dividida em três fases: até 1932, fase
sição para a escrita, com consequen- da separação, o fotógrafo dedica-se
te distanciamento da fotografia, é in- a fugir de sua família e de seu meio
separável da passagem para a posi- social, a desapegar-se de seu univer-
ção de etnógrafo e etnólogo. Souty so cultural; a seguir, de 1932 a 1946,
reforça a escolha de Verger por uma fase da marginalização, ele procura
etnografia que busca, na escrita, pre- fugir de si mesmo, dissolvendo sua
servar, ao máximo, a tradição oral antiga personalidade social no ano-
sem contaminar suas observações nimato e mudando de nome; final-
com tentativas de explicar o obser- mente, passa à fase da agregação

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quando, fascinado pelo mundo negro, ante”. Aspectos da cultura iorubá, li-
identifica-se com os afro-brasileiros gados ao feminino e ao masculino,
e integra-se aos poucos na família também são abordados. Conforme
brasileira do candomblé (p. 236). Souty, em uma inversão paradoxal,
Souty recupera seus passos iniciais Verger passa de iniciado a iniciador
em direção ao mundo negro e indica, e, depois de sua morte, é alçado ao
como marco inicial, o fascínio que o “status de ancestral venerado no cul-
Bal Nègre da rua Blomet exerce. Pos- to aos eguns” (p. 322). Contudo, o
teriormente, é Mãe Senhora, do Axé autor, apesar de anteriormente deli-
Opô Afonjá, quem propicia a Verger mitar um período específico para a
uma família simbólica, com ramifi- “fase marginal” de Verger, reconhe-
cações na África (p. 268). ce que “sempre foi um pouco margi-
De forma análoga ao que ocorreu nal, recusava-se a se situar no interi-
com Verger, a partir da metade do li- or de um grupo social ou profissio-
vro, quando aborda suas iniciações, nal, do campo artístico ou científico”
Souty distancia-se do fotógrafo. Os (p. 323) e que, mesmo no candom-
capítulos finais são totalmente dedi- blé, não assumiu funções litúrgicas.
cados aos assuntos relativos à cultu- A questão do segredo é abordada
ra e às religiões afro-brasileiras e afri- em suas diferentes facetas. O autor
canas. O autor vai mesclando a vida- busca penetrar nas diversas funções
obra de Verger a reflexões suas em do segredo, funções rituais, simbóli-
um texto minucioso que reconstrói as cas, protetoras, de socialização e de
diversas iniciações, incluídas as que poder. Desdobra, na obra de Verger,
têm lugar em sociedades secretas, o segredo em suas relações com a ini-
como a dos eguns. Detém-se mais ciação, a adivinhação, o uso de plan-
demoradamente na sua iniciação tas e as sociedades secretas. Souty
como babalaô, que propiciou o nome afirma que a imponente obra cientí-
Fatumbi, adotado por Verger. Esta fica parece indicar que a iniciação não
iniciação está vinculada às pesquisas levou Verger ao silêncio total. Seu
de plantas e histórias orais, bem como texto explicita as tensões que existem
à aprendizagem da adivinhação por entre a revelação escrita e a transmis-
Ifá, tarefas que ocupam a atenção do são ritualizada e iniciática do conhe-
pesquisador a partir de então. O au- cimento e a perturbação que a escrita
tor chama a atenção para o longo tem- traz a esta. Sem apresentar uma res-
po despendido na preparação do li- posta definitiva, relativiza a questão
vro de etnobotânica Ewé, publicado do “trair a confiança” ao lembrar que
apenas em 1995, e retorna a questões segredo muitas vezes não é o escon-
relativas à oralidade, ao “verbo atu- dido, mas aquilo que não se sabe ver.

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O segredo pode ser entendido como mais aprofundado. Mas não preten-
experiência vivida em sua singulari- de tal procedimento como método
dade, que não é acessado nem reve- sistemático.
lado pela escrita. No caso específico Para Souty, Verger foi um precur-
de Verger, afirma que jamais escre- sor. Sua maneira de pesquisar encon-
via sem ter em mente o interesse dos tra ressonância na antropologia inter-
próprios envolvidos. pretativa, na “descrição densa”, na
As questões relativas à alteridade crítica pós-moderna e desconstrutivis-
e à identidade sempre retornam ao ta americana e também na antropolo-
texto do autor. Ao refletir sobre estas gia reflexiva. Seus questionamentos
questões, aborda o transe. Souty com- coincidem com os da antropologia
para a postura de Verger à de outros dos objetos próximos e exigem repen-
estudiosos como Alfred Métraux e sar a distância mantida pelo pesqui-
Michel Leiris, que vinculam o transe sador, sua participação e sua legiti-
a certa teatralização, e conclui que o midade. Menciona que os procedi-
posicionamento de Verger é revelador mentos de Verger parecem quase um
de uma posição epistemológica. O “antimétodo”, mas que a qualidade
transe seria algo sui generis, autênti- dos resultados científicos valida in-
co, e como tal deveria ser estudado. teiramente suas escolhas: “Sua vida-
Interessado em compreender os des- obra pode ser lida, enfim, como uma
dobramentos do eu, Souty, mesmo crítica ao etnocentrismo ocidental,
correndo o risco de generalizar, acre- portanto ao logocentrismo e ao es-
dita ser a posição cultural do brasi- criptocentrismo” (p. 419).
leiro mais aberta para a multiplicida- Concordando com Verger, Souty
de e a ambiguidade que a dos euro- afirma que não há como compreen-
peus em geral. De acordo com sua der as pessoas sem tentar comparti-
argumentação, pouco a pouco, a al- lhar sinceramente seus modos de vi-
teridade torna-se parte constitutiva da ver, seus valores, sem sentir por elas
identidade de Verger, múltipla, com uma forma de empatia. Alega que, no
tensões, mas não necessariamente mínimo, é necessário imergir na cul-
contradições. Souty conclui que di- tura e, portanto, por em risco a pró-
minuir a distância do outro não con- pria personalidade, caso contrário,
duz necessariamente a uma perda da não se ultrapassa um olhar superfici-
objetividade. O autor advoga as van- al e etnocêntrico. É necessário certo
tagens do procedimento iniciático desprendimento de si e abertura a uma
adotado por Verger, pois a redução alteridade íntima, ou seja, descobrir
da distância do outro propiciaria um o outro em si.
acesso ao saber e ao conhecimento O texto de Souty evidencia seu

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encantamento e admiração, embora flexão sobre a obra fotográfica é um
não deixe de indicar os paradoxos das pouco oblíqua. O estético e o científi-
escolhas de Verger e identifique em co não foram analisados de forma
sua obra uma dimensão nostálgica, equipotente. Basta observar que o au-
além de certo romantismo, assim tor apresenta uma “ícono-bibliografia
como uma visão um pouco idealiza- completa da obra de Pierre Verger” (p.
da do candomblé e da harmonia raci- 441) que não contempla as inúmeras
al na Bahia (p. 421). publicações do fotógrafo em revistas.
O perfil desenhado pelo autor pri- O papel secundário da fotografia,
vilegia o pesquisador. Ao adotar con- em sua abordagem, pode ser também
ceitos vindos da etnografia, da antro- constatado quando o autor divide em
pologia e da etnologia, a inserção de “fases” a vida de Verger e caracteri-
Verger neste campo do conhecimento za os anos de 1932 a 1946, ou seja, a
está meticulosamente tratada. Uma vez fase anterior à Bahia, época em que
que Souty se propõe a abordar a vida- atuava como fotógrafo, mas não como
obra de Verger, o que inclui fazer uma etnógrafo, como “fase de marginali-
análise detalhada da obra científica, zação” marcada pela “vontade de se
bem como da obra artística, algumas manter incógnito” e pela “rejeição a
observações devem ser feitas. qualquer forma de reconhecimento”
O tratamento dispensado à obra (p. 247). A argumentação de Souty
historiográfica, no texto de Souty, fica parte do fato de Verger ter publicado,
um pouco fragilizado. O autor não se em meados dos anos 1930, uma série
debruça nela com o mesmo empenho de fotos no jornal inglês Daily Mirror
com que o faz sobre a obra etnográfi- com o pseudônimo de “Lensman”, e
ca: apenas mantém a leitura de João associa esta ocorrência à busca de
José Reis, que utilizou o termo “fo- anonimato. Ora, o episódio poderia
tografismo” ao vincular a maneira de ter uma interpretação distinta e o fo-
o pesquisador escrever história à es- tógrafo destes anos, ao contrário do
crita fotográfica. Ao não pensar con- que afirma Souty, não parece estar
ceitualmente com ferramentas da pró- buscando o anonimato. O próprio
pria história, algumas questões mais Verger apresenta, em seu conhecido
complexas não são pontuadas. livro 50 anos de fotografia,2 uma lei-
Embora se detendo bem mais na tura alternativa: ele publicou no jor-
obra fotográfica, uma situação aná- nal inglês fotografias feitas em via-
loga ocorre: os fatos são apresenta- gem ao redor do mundo financiada
dos sem a mesma costura coesa que
marca o tratamento dispensado ao
2
estudioso das culturas iorubás. A re- Pierre Verger, 50 anos de fotografia. Sal-
vador: Corrupio, 1982, p.95.

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pelo Paris-Soir e este periódico fran- Prévert, surrealista dissidente, do tra-
cês tinha seu escritório londrino no balho junto ao grupo de etnólogos do
mesmo prédio do Dairly Mirror. Pos- Musée du Trocadéro e da sua partici-
sivelmente, diante desta situação, a pação junto ao grupo de artistas, ar-
empresa e/ou o fotógrafo não acha- quitetos e fotógrafos de studios rela-
ram conveniente que constasse o cionados com a nouvelle vision foto-
nome do autor das imagens. Foi um gráfica francesa. Uma afinidade es-
episódio pontual. Além disto, no pe- sencial entre estes grupos é que neles
ríodo indicado por Souty como da debatia-se a função da imagem en-
busca de anonimato, Verger publicou quanto discurso sobre o outro. Verger
muito, tanto em revistas como em li- soube equacionar estas confluências
vros, e sempre procurou assinar suas a sua maneira.
imagens. A percepção da influência dos
Pensar a obra fotográfica signifi- studios permitiria entender não ape-
caria, entre outras coisas, observar as nas as fotos iniciais de Verger como
conexões, antecedentes e consequên- uma experimentação em uma das ver-
cias de seu trabalho, visualizar as tentes da “nova visão”. Apesar de
implicações entre fatos aparentemen- Souty mencionar (p. 54) a vinculação
te desconexos, mas que encontram direta de Verger a René Zuber,3 um dos
relação, por vezes, direta. Conforme principais representantes da “nova
o próprio Souty afirma, Verger não objetividade”, em Paris, ele não se
era um “analfabeto” em imagens. Mas serve desta referência ao falar dos “ân-
como se “alfabetizou”? Refletir so- gulos muitas vezes inovadores e ori-
bre isto levaria a tornar evidentes as ginais” de algumas das tomadas do
influências em sua formação estéti- Dieux d’ Afrique, preferindo dizer que
ca. Verger não estava tão isolado. “lembram os fotógrafos modernistas
A obra fotográfica de Verger é como Alexandre Rodckenko e Dzira
uma poderosa síntese de impulsos e Vertov” (p. 126). O autor não preci-
ideias artísticas diversas. Seu traba- saria referir-se diretamente ao cons-
lho é fruto de interação pessoal e co- trutivismo russo.
letiva com o entorno social, político Embora no texto de Souty haja
e cultural ao qual pertencia e respon- menção ao fato de Verger ser bene-
de às inquietudes dos grupos aos ficiário das concepções de Alfred
quais esteve vinculado. Na sua for-
3
mação como fotógrafo, não podem Textos de René Zuber, que mostram suas
posições estéticas, estão publicados. Ver
ser minimizadas as influências da fa- Dominique Baqué, Les Documents de la
miliaridade com o mundo gráfico, das modernité: anthologie de textes sur la
experiências com o grupo de Jacques photographie de 1919 à 1939, Paris:
Éditions Jacqueline Chambon, 1993.

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Métraux (p. 29 e 78), seria válido que Finalizando, no texto de Souty,
o autor aprofundasse mais a matriz dois planos se cruzam e se comple-
etnográfica do olhar de Verger, inver- mentam, um que apresenta a singula-
tendo um pouco sua abordagem ridade do percurso de Verger, outro
dirigida, prioritariamente, para a influ- que pensa os significados das opções
ência posterior do fotógrafo no traba- deste pesquisador inclassificável.
lho etnográfico. Poderia ter apresen- Souty sabe entrelaçar conceitos diver-
tado, de forma mais contundente, as sos e ressaltar as especificidades do
reflexões advindas de sua inserção no trabalho de Verger. Articula vários dos
Musée du Trocadéro – que gestava, conceitos, termos, valores, métodos e
nos anos 1930, o Musée de l’Homme questões que estão em jogo, tanto na
– e o compartilhamento de fortes ques- etnografia, como na etnologia e na
tões, entre as quais se destacam as vi- antropologia. Apresenta reflexão so-
agens, a coleta de documentos e a bus- bre a própria antropologia e análise da
ca da alteridade. Poderia, também, ter produção de Verger. Evidencia vanta-
lembrado a “invenção” de certo tipo gens e paradoxos de sua postura.
de observação etnográfica, discutida Há originalidade na abordagem
na revista de vanguarda Documents,4 de Souty. Trata-se de leitura que in-
que reunia etnógrafos e surrealistas teressa tanto a quem não tem intimi-
dissidentes com os quais Verger tinha dade com a figura emblemática de
relações: Jacques Prévert, George- Verger ou formação específica nas
Henri Rivière, Alfred Métraux, Michel ciências sociais, como ao estudioso
Leiris, para citar apenas alguns nomes. mais experiente.
Cláudia Pôssa
Universidade Federal da Bahia

4
A revista Documents: Doctrines
Archéologie Beaux-Arts Ethnographie foi
editada por Georges Bataille e publicada
nos anos 1929 e 1930.

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