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Mundo
24 • CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, sábado, 13 de novembro de 2010
DIREITOS HUMANOS
Mianmar em espera
País governado por
militares aguarda
para hoje a soltura
da dissidente e
Nobel da Paz Suu
Kyi, presa desde 2003
» RODRIGO CRAVEIRO
budismo prega que a vida
O é sofrimento e incita seus
seguidores a aceitarem
suas fortunas e seus infor-
túnios. Em um país de 53,4 mi-
lhões de habitantes (47,5 milhões
de budista), a dissidente Aung
San Suu Kyi é, ao mesmo tempo,
uma prova e uma exceção. Líder
da oposição em Mianmar, nação
governada a mão de ferro pelo
general Than Shwe e por sua Jun-
ta Militar, ela amargou 15 dos úl-
timos 22 anos sem direito à liber-
dade (leia o Personagem da notí-
cia). Desde 2003, Suu Kyi cumpre
prisão domiciliar na casa de dois
andares às margens do Lago In-
ya, em Yangun, capital de Mian-
mar (ou Burma). A expectativa é
de que ainda hoje a política, ven-
cedora do Prêmio Nobel da Paz
em 1991, seja solta mais uma vez.
Citando integrantes da Liga Na-
cional pela Democracia (LND) e
autoridades do governo, agências
internacionais de notícias divul-
garam ontem que Shwe assinou
ontem a suspensão da Ordem de
Restrição sobre Suu Kyi.
Assim que a informação co-
meçou a circular pela cidade de
4,4 milhões de habitantes, cerca
de 400 pessoas se reuniram dian-
te do quartel-general da LND, à
espera da libertação. Outras 300
montaram guarda na rua à frente
da casa de Suu Kyi. Mas, como
em qualquer ditadura, o direito à
associação foi violado. Cinco ca-
minhões da polícia pararam
diante da mansão, um deles en-
trou no complexo. Os agentes or-
denaram a dispersão dos mani-
festantes. Nyan Win, um dos ad-
vogados de Suu Kyi, revelou à TV
CNN que ela deve ser solta no
início da noite de hoje (hora lo-
cal), quando expira a última pe-
na de sete anos de prisão domi-
ciliar. Ao mesmo tempo, rumo-
res davam conta de que a cha-
mada “Dama de Yangun” teria
recusado uma oferta de liberda-
de condicional e estaria receben-
do a visita de diplomatas.
Para Benjamin Zawacki, es-
pecialista em Sudeste da Ásia na
Pontos de vista
Por Myo Thein
Revolução
iminente
A qualquer momento uma
revolução pode explodir em
Mianmar. A população birma-
nesa tem sofrido, nas mãos de
um dos regimes mais brutais e
repressivos do mundo. A Junta
Militar utiliza o assassinato, a
tortura, o estupro, o aprisiona-
mento político e o trabalho for-
çado como práticas de controle
dos cidadãos. As liberdades de
expressão e de associação ine-
xistem e os cidadãos de Mian-
mar têm negada qualquer pos-
sibilidade de modelar o próprio
futuro.
Meu irmão mais velho, Myo
Yan Naung Thein,é um dos mais
proeminentes líderes de Mian-
mar. Ele ficou mais de 10 anos
na prisão. Durante o interroga-
tório, foi brutalmente torturado
AFP
Hla Hla HTAY /AFP
organização não governamental
Anistia Internacional, a soltura
de Aung Suu Kyi está “bastante
atrasada”. “Como prisioneira de
consciência, ela jamais deveria
ter sido detida”, afirma ao Cor-
reio, em entrevista por e-mail.
Ele acusa a comunidade inter-
nacional de fracassar ao não
Fotos: Arquivo pessoal
e ficou com paralisia parcial.
Aung San Suu Kyi definitiva-
mente nos conduzirá a um país
melhor, até que possamos atin-
gir a meta de estabelecer uma
democracia genuína. Ela sem-
pre disse estar pronta para coo-
perar com o regime, para o bem
da nação e do povo.Ela está sem-
pre apelando ao diálogo, a fim
de se obter uma verdadeira re-
conciliação nacional no país.
» Myo Thein é birmanês e diretor
da ONG Burma Democratic
Concern (BDC), em Londres
Personagem da notícia
Ela sacrificou
sua liberdade
Aung San Suu Kyi nasceu a 19
de junho de 1945 em Yangun, ca-
pital de Mianmar. Filha do fun-
dador do Exército birmanês, per-
deu o pai aos dois anos de idade,
assassinado por adversários polí-
ticos. Sua mãe, Khin Kyi, galgou
espaço na política do país e foi
nomeada embaixadora de Mian-
mar na Índia e no Nepal. Aung
Suu Kyi mudou-se com a mãe
para Nova Délhi, onde formou-se
em ciência política. Mais tarde,
mudou-se para Oxford, no Reino
exercer uma pressão efetiva so-
bre Mianmar em relação ao futu-
ro de seus 2,2 mil prisioneiros
políticos e às constantes viola-
ções dos direitos humanos. “A
tortura nas prisões é endêmica.
Nas regiões de minorias étnicas,
a Junta Militar cometeu crimes
de guerra e contra a humanida-
Por Derek Tonkin
Impacto
reduzido
O povo de Mianmar tem
grande respeito e amor por Suu
Kyi, mas ela tem se tornado uma
figura distante. Muitos jovens
nem sequer sabem quem ela é.
Atualmente, seu impacto atual,
no contexto interno, é bem me-
nor do que sua importância no
âmbito internacional. Ainda as-
sim, a política dos Estados Uni-
dos está bastante atrelada à po-
sição de Suu Kyi. A Casa Branca
sabe que será difícil, ou impossí-
vel, perseguir qualquer política
para Mianmar, se não tiver a
aprovação dela. Nesse sentido,
ela tem um veto sobre qualquer
desejo dos EUA de se engajarem
com o regime, a menos que Suu
Kyi possa exercer um papel.
A política da União Europeia
está menos ligada aos anseios de
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Manifestantes celebram possível libertação iminente de Suu Kyi
diante da sede do partido Liga Nacional pela Democracia, em Yangun
Unido, e concluiu o curso de filo-
sofia política e econômica, em
1969. Após a graduação, migrou
para Nova York e trabalhou por
três anos na Organização das
Nações Unidas. Em 1972, casou-
se com o professor de cultura ti-
betana Michael Aris, com quem
teve dois filhos. A carreira acadê-
mica seguiu-se com o pós-douto-
rado pela Universidade de Lon-
dres, 13 anos depois.
Por sua vez, a carreira política
teve início em 26 de agosto de
1988, quando ela discursou para
500 mil pessoas em Yangun, con-
clamando por um governo demo-
crático. Em setembro, uma nova
Junta Militar tomou o poder. Suu
de, além de não ter dado passos
positivos rumo à consolidação
dos direitos econômicos, sociais
e culturais”, explica, ao acrescen-
tar que o histórico de Mianmar
nesse aspecto é “revoltante”.
O birmanês Myo Thein sabe o
que é isso. “Meu irmão mais ve-
lho, Myo Yan Naung Thein, é um
Suu Kyi, mas enquanto o Conse-
lho Europeu poderia contem-
plar uma aproximação com o
regime, o Europarlamento ado-
taria uma postura linha-dura.
Isso não ocorreria apenas se Suu
Kyi obtivesse total liberdade de
movimento e ação, o que o regi-
me jamais concederá, a menos
que seja deposto. Tenho certeza
que Suu Kyi continuará com sua
luta pela liberdade e pela demo-
cracia enquanto puder.
» Derek Tonkin é ex-embaixador
do Reino Unido em Mianmar
3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155
Kyi retaliou com a criação da Liga
Nacional pela Democracia
(LND), da qual assumiu a secre-
taria-geral. Foi também o começo
de encontros constantes com a
prisão: o primeiro deles ocorreu
em 20 de julho de 1989 — o regi-
me a deteve em casa, para que
não participasse das eleições de
1990 — e durou seis anos. Em 21
de setembro de 2000, tornou a ser
presa, ao tentar deixar Yangun.
Foi libertada em 6 de maio de
2002. A nova e mais recente de-
tenção ocorreu em 30 de maio de
2003, depois que simpatizantes
da Junta Militar atacaram sua
caravana em Yaway Oo, a 560km
da capital, deixando 70 mortos.
dos mais proeminentes líderes
de Mianmar. Ele ficou mais de
10 anos na prisão e, durante o
interrogatório, foi brutalmente
torturado e adquiriu uma para-
lisia parcial”, relata à reporta-
gem, também por e-mail. Myo
fundou em Londres a organiza-
ção não governamental Burma
Por Benjamin Zawacki
Direitos
ignorados
É difícil imaginar uma Aung
San Suu Kyi passiva ou desenga-
jada, especialmente quando se
considera sua conduta durante
o julgamento, em 2009, e seu en-
gajamento durante a eleição
deste ano. Ela passou 22 anos
combatendo pela liberdade do
povo birmanês, e pagou por isso
com sua própria liberdade. Mes-
mo que ela possa ser perdoada
por escolher uma vida mais re-
clusa, dificilmente o fará. Suu
Kyi se tornou envolvida na bata-
lha pelos direitos humanos gra-
ças à demanda popular. O povo
de Mianmar precisa dela mais
do que nunca.
A receita para Mianmar al-
cançar a democracia e o respeito
aos direitos civis inclui a incon-
dicional libertação de todos os
Editora: Ana Paula Macedo //
anapaula.df@dabr.com.br
Democratic Concern (BDC) e
passou a monitorar a situação
em seu país natal. “A prisão arbi-
trária de Suu Kyi demonstra que a
Junta Militar se sobrepõe às leis e
volta as costas à reconciliação
nacional”, critica. De acordo com
ele, a opositora líder da LND
transformou-se em ícone mun-
dial do pacifismo. “Como líder
corajosa, ela nos dá esperança,
confiança e fé em nossa aspira-
ção pela democracia em Mian-
mar”, acrescenta Myo.
O ativista acusa o regime do ge-
neral Than Shwe de ampliar repe-
tidamente o tempo de detenção
da dissidente. “Suu Kyi passou 15
dos últimos 22 anos sob prisão
domiciliar e, como a Junta Militar
não quis libertá-la quando ela
completou seis anos de detenção
ilegal, as autoridades montaram
um plano para a manterem pre-
sa”, diz Myo. Ele lembra que a LND
venceu com folga as eleições de
1990. Os militares haviam prome-
tido entregar o poder. Com a der-
rota, ignoraram a transferência de
governo. “Para anular o resultado
daquelas eleições, o general Shwe
planejou o vergonhoso pleito de
2010, arquitetado para legitimar o
domínio militar”, explica.
Ex-embaixador do Reino Uni-
do em Mianmar, Derek Tonkin
encontrou-se com Suu Kyi em
dezembro de 1999 e, anos de-
pois, com Michael Aris, marido
da dissidente. Ele vê como possí-
vel a recusa da Nobel da Paz a
aceitar uma liberdade condicio-
nada e não crê numa “aposenta-
doria” da Dama de Yangun. “Te-
nho certeza de que ela seguirá
lutando pela democracia. Mas
está com 65 anos, alguns dos in-
tegrantes mais experientes da
LND têm entre 70 e 80 anos, e o
partido foi cassado”, lamenta.
www.correiobraziliense.com.br
Leia as entrevistas com Myo Thein,
Benjamin Zawacki e Derek Tonkin.
presos de consciência, não ape-
nas de Daw Aung Suu Kyi. Tam-
bém é preciso punir as violações
dos direitos humanos cometidas
no passado. Como Mianmar já
demonstrou, por meio de sua
Constituição, que não tem a in-
tenção de manter pessoas em
prisão domiciliar, uma Comis-
são de Inquérito Internacional
sobre crimes contra a humani-
dade deveria ser instaurada.
» Benjamin Zawacki é analista
da Anistia Internacional
para o Sudeste da Ásia