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CLASSES E SOCIABILIDADES NO MEIO URBANO*

Brasilmar Ferreira Nunes*

Apresentação

O texto que segue tem como objetivo lançar elementos para discussão sobre questões
que estão a indicar alterações nos mecanismos de socialização e de sociabilidade presentes
nas estruturas urbanas neste fim de século. Privilegia pontos que no entender do autor esta
exigindo novas abordagens que dêem conta dos profundos processos de mudança na
explicação dos comportamentos sociais e na racionalidade coletiva e individual tal qual ela se
apresenta nos dias de hoje . De qualquer forma estamos buscando corresponder a essência do
pensamento sociológico que tem como tarefa responder às questões básicas: o que muda,
como muda, e porque muda? na esfera das relações humanas e sociais.
A ênfase que estamos dando ao caráter urbano de tais transformações está ligada à
nossa concepção de “urbano” entendido mais como um fenômeno cultural do que propriamente
espacial/territorial (Pechman,1991). Assim, estamos considerando que são nas cidades
(manifestação concreta do urbano) que novos modos de vida se gestam e a cultura daí
decorrente se transforma em paradigma de uma cultura universal abrangendo também o
campo.
O objetivo seria, portanto trazer à luz dos estudos sociológicos urbanos elementos que
nos permitam mapear comportamentos neste mesmo espaço e procurar ampliar a metodologia
para estudos gerais sobre a sociedade urbana.

Introdução
Não cabe mais estranhamento frente ao volume de mudanças que vêm ocorrendo nas
práticas de sociabilidade. É inegável que nas últimas duas décadas houve mudanças
significativas nos jogos relacionais que se traduzem em formas interativas de sociabilidade
entre os variados e múltiplos conjuntos de atores sociais. Isso implicou inevitavelmente em
muitos processos de mudanças que derivaram em negociações de significados e de linguagem,
já que estes são imbricados na forma. Tais mudanças tem no espaço urbano o seu locus
privilegiado, e uma visibilidade assegurada, garanindo-lhes um efeito multiplicador.
Duas dimensões estão sendo consideradas estratégicas na construção de uma

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Prof. Titular Depto Sociologia/UnB. Agradeço cooperação o da bolsista de IC Nara Kolrsdorf
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abordagem alternativa de tais processos: de um lado, o profundo grau de inovações


tecnológicas que estão redefinindo as relações entre os indivíduos e destes com a sociedade
no seu conjunto e, de outro lado, a ênfase exacerbada das teorias sobre ações individuais
fazendo deste indivíduo um elemento autônomo frente às transformações sociais em curso.
Nos deteremos basicamente nesta segunda dimensão. Entendemos que mesmo com a crise
das utopias que atravessa o mundo contemporâneo, novas formas de vida estão em
permanente construção, descartando qualquer alusão ao fim da história tão a gosto dos
teóricos do capitalismo triunfante que vêm na mão invisível do mercado a síntese das lógicas
sociais.
Neste sentido, falar em classes sociais hoje pode parecer, à primeira vista, algo fora do
contexto ou mesmo fora do debate que se trava no interior do campo sociológico. As razões
pelas quais isto ocorre são de várias naturezas, mas estão essencialmente ligadas à crise do
marxismo, corrente teórica que praticamente monopolizou o uso do conceito em seus estudos.
De fato, podemos considerar que a partir da assertiva de Marx no Manifesto Comunista,
segundo o qual a luta de classes é o motor da história, é todo um debate que passa a ser
ideologizado, impedindo, muitas vezes, um diálogo mais frutífero no interior da produção
acadêmica das ciências sociais. No entanto, além de Marx, o uso do conceito pelos clássicos
da sociologia, especialmente Weber, sempre foi um recurso utilizado para explicar a dinâmica
do social em suas diferentes matizes. Além destes, outros autores mais recentes também
importantes dentro da sociologia mundial utilizam com familiaridade o conceito, dando-lhe um
status destacado na compreensão desta dinâmica. Não restam dúvidas que as classes sociais
com certeza vêm passando por redefinições tanto quando pensamos em termos objetivos,
quanto quando raciocinamos nas subjetividades que se estruturam face aos novos estímulos.
Estas considerações de natureza absolutamente gerais nos servem para levantarmos a
hipótese que guia nossas reflexões: haveria um movimento na dinâmica social que estaria
alterando os processos constitutivos das classes e a estrutura social; se assim o é, haveria
também a necessidade de incorporar estas novas dimensões no estudo das classes que,
apesar de tudo, ainda constitui um conceito extremamente rico para se compreender a natureza
da sociedade na qual nos inserimos.

Bases clássicas no tratamento da questão

Sabemos que é vasta a produção intelectual sobre o assunto, cobrindo vários campos
3

do conhecimento tais como a economia, a filosofia, a política, e evidentemente a sociologia1 .


No fundo, todos eles vão buscar inspiração nos fundadores das ciências sociais, especialmente
em dois autores por nós escolhidos Marx e Weber. Entretanto, e curiosamente, com exceção de
Weber que tem escritos onde trata explicitamente da questão2 , em Marx esta está diluída em
seus escritos, quase como uma dedução óbvia de seus trabalhos, notadamente nas suas
análises sobre o “Capital” (Marx, 1998) na sua teoria do valor.
Esta ênfase nas classes e no seu papel estratégico na reprodução do capitalismo em
Marx fez com que todos os chamados movimentos revolucionários do século XX colocassem a
questão no cerne de suas ações, considerando o desaparecimento das classes como condição
sine-qua-nom para ultrapassar as contradições típicas deste modo de produção. O exemplo do
processo ocorrido na Rússia depois de 1917 ilustra bem este aspecto pois estava-se em uma
situação onde largos segmentos da sociedade não eram nem claramente proletários nem
claramente burgueses, mas entretanto, deveriam estar ligados a um ou outro campo, receber
uma localização social precisa e serem objetos de justiça social e de construção (engineering)
social. Para os bolcheviques a idéia de classe não poderia estar separada daquela de luta de
classes, o que estava de acordo com o pensamento de Marx sobre a questão (Fitzpatrik, 1990).
Isso comprova algo de vez em quando esquecido que é justamente o fato de que por detrás de
qualquer prática política há sempre uma teoria que lhe da sustentação ou legitimidade no
campo mesmo da teoria.
. Dois conceitos são estratégicos nas reflexões de Marx para solidificar a idéia de classes:
de um lado, a determinação da exploração do trabalho pelo capital no processo de produção e,
de outro, em decorrência, o processo de alienação ao qual se submete o trabalhador
constituindo o que ele vai chamar de o fetichismo da mercadoria, substrato ideológico de
legitimação daquela exploração. Haveria, portanto, uma contradição estrutural na base sobre a
qual as relações sociais no capitalismo se organizariam, determinando um mundo do trabalho
essencialmente conflituoso definido, em sua dinâmica, pelo antagonismo entre as classes
sociais, fundamentalmente capitalistas e trabalhadores. Cabe insistir no fato de que Marx se
refere a um mercado de trabalho composto, necessariamente, por trabalhadores “livres” e que
esta condição, pelo fato de ser de mais abstrata que real, pressupõe relações fetichizadas que
irão, em última instância, legitimar o processo de exploração. Esta é, de fato, a síntese de um
argumento que deu sustentáculo teórico a inúmeros processos sociais e políticos e que, dada a

1
-Para se ter uma idéia do volume de títulos disponíveis sobre a questão,citamos como exemplo, os mais de 800
títulos existentes na biblioteca da Unb, a partir das palavras chaves: classe e estrutura de classe
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- Em “Economia e Sociedade” (Weber, 1986.)o tema aparece; entretanto, nossa leitura irá se centrar no artigo
“Classe, Status e Partido” do mesmo autor (Weber, 1976) na medida em que aqui encontramos reflexões mais
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ênfase na sua ideologização pelos grupos que dele se apropriou, no final das contas, terminou
por esvaziar o seu conteúdo.
Da mesma forma, a recuperação do raciocínio weberiano sobre classes e a distinção
entre este conceito e aquele de status nos parece útil para nossa tarefa. Weber (1964) também
insiste na característica essencial do capitalismo ocidental que é, justamente, o de ser
composto por trabalho livre e regulado pelo lucro monetário. Neste caso, houve muito menos
ideologização, sobretudo porque a lógica weberiana, não trabalhando o conflito como
antagonismo nos moldes de Marx, fez com que o uso de suas reflexões ficasse mais restrito
ao campo acadêmico e, talvez pudéssemos dizer, se mantivesse com um grau de pureza mais
palpável3
Em Weber há uma preocupação em construir o raciocínio sobre as classes partindo da
consideração da existência de uma ordem social, regulada por leis gerais, que funcionam como
freio, e estabelece limites ou possibilidade de sanção a possíveis transgressores. As sanções
que a sociedade utiliza para manutenção de uma ordem se apresentam como elemento
essencial, idéia esta já presente em Durkheim (Giddens, 1978) e que será retomada
posteriormente, quando vão interagir a teoria social e a teoria psicanalítica, condição a partir da
qual se constrói o arcabouço teórico para o estudo das identidades e das subjetividades
individuais. O desenvolvimento do conceito de capital simbólico é um dos desdobramentos
desta interação e vai lançar pistas para sofisticar a análise da estrutura social e dos
comportamentos, sobretudo a partir da segunda metade deste século, entendendo o conceito
de estrutura social como sendo mais amplo que estrutura de classe. Com base nele podemos
considerar que os grupos, encarados como elemento na estrutura, não precisam ser classes
sociais podendo ser, por exemplo, categorias de idade, grupos étnicos, etc. (Ossovski, 1976).
Se avançarmos um pouco além nesta argumentação e contrapondo-a às teses
marxistas do Capital podemos perceber que Marx não fala em sanções morais à transgressão
da ordem social. Pelo contrário, ele nos diz sobre um processo que é sobretudo de dominação
e que impede, ou pelo menos procura impedir, qualquer possibilidade de contestação a esta
ordem. Em princípio, estaria aí, nesta tensão latente, a essência do processo de evolução ou de
transformação social. Alguns autores pensam esta dinâmica como uma relação de um poder e
de um não poder, embora com Foucault isto esteja resolvido no sentido de que se fala, de fato,
em duas dimensões de um mesmo poder e de seus embates cotidianos e estruturais. Em
outras palavras, estamos sempre analisando relações de poder que se cruzam ou que se

pontuais que atendem a nosso interesse.


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- O que aliás, de forma alguma que dizer que Weber estivesse ausente do debate político em curso na Alemanha e
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chocam onde, embora as sanções morais possam se apresentar, o que é enfatizado em Marx é
ou a alienação ou a repressão tout-court .
Na ótica weberiana toda ordem social constitui-se numa estrutura estratégica na
distribuição do poder na sociedade, entendendo poder como a possibilidade que tem o
indivíduo ou o grupo de indivíduos em realizar sua própria vontade, numa ação comunal mesmo
com a resistência de outros que participam da ação; o poder seria assim uma dimensão das
relações sociais e estaria diluído no conjunto do social não havendo, portanto, lugares do não
poder.
Weber desenvolve ainda uma discussão sobre a noção de poder que valeria a pena
recuperar. Diz ele, “... o poder econômico não é, evidentemente, idêntico ao “poder” como tal,
pelo contrário, o surgimento do poder econômico pode ser conseqüência de um poder que
tenha outro fundamento”( Weber, 1976). Poderíamos aqui salientar uma distinção básica entre
a visão weberiana de poder e aquela de Marx. Neste último o poder é, na sua essência, um
poder econômico e só a partir daí que poderíamos recuperar o seu significado. Para Weber, as
coisas são mais sutis: o poder calcado exclusivamente no critério econômico, na posse,
portanto da moeda ou na possibilidade de acesso a ela, não se traduz automaticamente por
uma honra ou prestígio social e mais ainda, nem é o poder a única base de honra social, que,
no fundo, seria o objetivo do existir em sociedade.

Classe e status

Permanece, porém nesta reflexão um conceito de classe que assume uma conotação
genérica e o que, em última instância, vai jogar como fator decisivo na determinação
permanece sendo aquilo que Weber vai chamar de “situação de mercado”; em outros termos, o
fator que cria uma classe é o interesse econômico, ligado à existência do mercado. Enquanto
que para Marx haveria uma impossibilidade objetiva de adequar os interesses das classes na
medida em que eles seriam antagônicos entre si , para Weber o interesse das classes se situa
numa dimensão muito mais sutil e ambígua. Luta de classe em Weber seria algo pouco
adequado, havendo mais “interesse de classe” que estaria determinado por aquelas
racionalidades individuais.
Em Weber, o lugar social e mesmo o destino dos homens está determinado por uma
estimativa social, de honra, onde – conforme já explicitado – nem sempre a propriedade joga
um papel chave. Em outras palavras, pessoas com propriedade e pessoas sem propriedade

na Europa de seu tempo, conforme nos expõe Giddens (1998)


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podem pertencer ao mesmo grupo de status , desde que gozem de uma honra social comum4.
Esta honra advinda do status está ligada à semelhança de estilos de vida comum aos
indivíduos participantes e que impõe aos que desejam entrar no circulo a adaptação de seus
estilos de vida àquele do grupo.
Mesmo se apresentando como algo natural, no essencial trata-se de um conjunto de
regras, na maioria informal e consensual, que desenvolve junto aos participantes do grupo um
status próprio ao grupo e percebido pelos que estão exteriores a ele como identificatório de
seus membros. As restrições no casamento, o fechamento endogâmico, o morar em certo
bairro ou rua, o estilo de se comportar, de vestir, os lugares que freqüenta, etc. são exemplos
de uma gama enorme de estilos e comportamentos que funcionam como produtos e produtores
de status. O que é interessante remarcar é que o grupo de status não é privilégio de grupos
ricos ou com posses materiais. É, portanto, justamente aí que se pode pensar numa certa
estabilidade e numa garantia mais efetiva de reprodução de valores e estilos.
Poderíamos nos referenciar a Maffesoli (1996) quando ele nos fala sobre tribos urbanas
como sendo indivíduos que se reconhecem entre si por uma serie de símbolos comuns e que
terminam por adaptarem padrão de vida e valores que lhes permite este reconhecimento. A
seqüência dos fatos cotidianos que constituem a vida numa sociedade urbana termina sempre
por nos fixar em potencialidades, procurar estabelecer as múltiplas situações relacionais
possíveis, o que nos aproximaria mais do real. Neste caso, estaríamos utilizando a idéia de
estrutura social mais do que de classe nos moldes de Ossovski conforme nos referimos
anteriormente. Este, de fato, é um fenômeno que sempre esteve conduzindo os grupos de
status que traduzem a necessidade de uma certa identidade e de identificação que lhes garanta
uma existência social distinta. Os wasp (White, Anglo-saxon and Protestants) dos Estados
Unidos, a aristocracia inglesa, ou os membros das chamadas famílias tradicionais como os
usineiros no Nordeste, etc. estariam nesta categoria. A idéia de tribo, nos moldes de Maffesoli,
procura incorporar nesta dinâmica grupos mais efêmeros, sobretudo do meio urbano – punks,
hippies, torcedores de futebol, clubbers, etc. – o que poderia ser mais eficaz para captar toda a
diversidade de novas formas de vida urbana, que aparecem sobretudo nas metrópoles
mundiais neste fim de século. O estar junto, o fazer parte de um grupo, vai estar possível
sobretudo nas interfaces da vida oficial, apropriados muitas vezes de maneira fugaz,
provocando esta sensação de precariedade nas relações sociais no cotidiano.

O capital simbólico

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- Mesmo considerando esta hipótese, no longo prazo ela é precária, como bem afirma Weber.
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Maffesoli (1996,32) argumenta que a maior parte da sociologia continua a funcionar


sobre as imortalizadas categorias sócio-profissionais, mesmo quando a realidade esteja
apontando que seria transversalmente que se elaborariam os signos de reconhecimento:
práticas culturais, faixas etárias, participação de grupos afetivos. Diz ele: "...num processo de
massificação constante, operam-se condensações, organizam-se tribos mais ou menos
efêmeras que comungam valores minúsculos e que em um balé sem fim, entrechocam-se,
atraem-se, repelem-se numa constelação de contornos difusos e perfeitamente fluidos. É essa
a característica das sociedades pós-modernas”. Esta reflexão nos dá o sentido de algo que se
quer atual quando se pretende analisar classes e estratificação em sociedades urbanas. É
neste espaço, ou pelo menos é principalmente nele, que os símbolos desempenham um papel
estratégico no ordenamento da vida coletiva. As diferenciações aí vão se estabelecer com base
em fatores tais como: práticas diletantes, vistas como modelo de bom gosto, freqüentar certos
ambientes, etc., tudo isto dentro do contexto específico a cada grupo, com seus modelos de
comportamento particulares. Em outras palavras, o papel decisivo de um “estilo de vida”
significa sobretudo que certas convenções são identificadoras de um grupo e não de outro.
Por outro lado, sociologicamente falamos em estrutura quando nos referimos a estrutura
social pressupondo aí que cada classe social pode ser afetada pelas relações que as unem a
outras partes constitutivas da estrutura (Bourdieu, 1992). Assim, a classe social não é um
elemento autônomo mas se incorpora em um dada estrutura que a cria e que ela mesma
reproduz. A noção de espaço das classes estaria metaforicamente ligada àquela da física que
nos diz que dois corpos não podem ocupar um mesmo lugar no espaço. O lugar das classes
seria, assim, o espaço ocupado dentro da estrutura social, espaço este que se situa em uma
posição, num ambiente hierarquizado por critérios que ultrapassam os de natureza puramente
econômica. .
A título de ilustração poderíamos recorrer ao pensamento de Bourdieu sobre a
reprodução das elites que passa também pelo domínio de um código cultural específico do qual
estão excluídas total ou parcialmente, as camadas menos privilegiadas. Bourdieu complexifica
o tema e se afasta da perspectiva de Marx quanto considera que os objetos do mundo social
podem ser percebidos e enunciados de diferentes maneiras; isto implica que eles contêm algo
indeterminado e este jogo de incertezas gera a pluralidade de visões de mundo. Bourdieu
insiste que esta multiplicidade de visões de mundo gera um clima de incertezas difícil de se
integrar numa teoria objetivista à moda de Marx. O conceito de capital simbólico tem aí um peso
crucial no jogo entre as classes. Assim, diz ele: “... a percepção do mundo social é produto de
uma dupla estruturação social: do lado objetivo, ela está socialmente determinada; do lado
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subjetivo, está estruturada porque os esquemas de percepção e de apreciação susceptíveis de


serem utilizados são produto de lutas simbólicas anteriores e exprimem de forma diferenciada o
estado das relações simbólicas” (Bordieu,1992,32).
Neste contexto, haveria no mundo social uma primazia do sistema simbólico organizado
sobre a lógica da diferença constituindo assim uma distinção significante (Bordieu, 1979),
organizada em sistemas e procedimentos que lhes são próprios. Estando as diferentes
representações de mundo em confronto seria fundamentalmente no campo simbólico que se
daria a verdadeira luta de classes onde a luta pela permanência das relações de força
instaurada é o que estaria em questão. O que deve ser destacado é que estaríamos lidando
com conjuntos de símbolos a serem utilizados pelas pessoas nas suas interações e opções
cotidianas. Estes símbolos, ou melhor, estas ações simbólicas expressam sempre a posição
social segundo uma lógica que é da classe e do indivíduo que a ela pertence. A valoração do
status vai se dar em função da posição numa estrutura social, definida enquanto sistema de
posições e de oposições. O mecanismo é adequado a toda e qualquer posição da estrutura e
se manifesta nas mais diferentes dimensões da vida cotidiana, envolvendo desde a linguagem
ate o vestuário5. A relação entre o desempenho de papéis e esses conjuntos de símbolos
constitui uma questão estratégica para o estudo das classes sociais e o verdadeiro sentido da
luta política é transformar estas representações particulares em senso comum, estando aí em
jogo o real poder político.
As relações inter-classes não têm a posssibilidade de abranger a enorme gama de
valores de natureza simbólica que circula no interior dos capitais particulares. O mundo social
seria, dentro desta perspectiva composto por múltiplas visões de mundo, cada qual hegemônica
no seu espaço de existência e só nele. O capital em geral existiria em um circuito que lhe é
próprio e teria uma hegemonia que transcende os capitais em particular. O critério de
intercâmbio social entre as classes em suas definições de classe social aparece como
conseqüência deste raciocínio. Pode-se deduzir da leitura de inúmeros cientistas sociais que a
concepção de classe social seria o maior grupo de pessoas entre as quais pode existir o
contato social estreito entre os membros. No essencial estes encaram as classes como
agrupamentos cujos membros se ligam uns aos outros por virtude de um elo social interno e as
relações inter-classistas como caracterizadas por separação, distância social ou antagonismo.
Os sistemas simbólicos constituem sistemas hierarquizados que se movem
constantemente na procura de uma “diferença” que vai, em ultima instancia, distinguir um

5
Simmel observa que a moda, por exemplo, permite marcar sibolicamente a “distinção” obedecendo a uma lógica
semelhante à da honra, pelo que ela confere de marca comum aos membros de um grupo (Simmel, 1998)
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grupo de outro grupo, a linguagem sendo a mais usual de suas manifestações. Como escreve
Bourdieu (1974, 73) “numa sociedade diferenciada não se trata apenas de diferenciar do
comum, mas de se diferenciar diferentemente” . O mecanismo é extensivo a todas as classes e
posições de classe cada qual com seus critérios que lhes são pertinente. Os critérios de
pertencimento a uma classe variam de uma para outra, as classes inferiores se referindo
sobretudo ao dinheiro, as classes médias ao dinheiro e à moral, enquanto as classes superiores
enfatizam o nascimento e o estilo de vida (Davis, Gardner, 1941).
Ressaltamos que não se trata de sintetizar aqui todas as regras da diferenciação social
à sua dimensão simbólica e nem como, nos alerta Bourdieu, reduzir as relações de força a
relações de sentido. Trata-se de situar um mecanismo “abstrato” de diferenciação que se
expressa de forma sutil e ambígua mesmo quando ele se mostra de maneira límpida e precisa.
Os mecanismos de honra e de prestígio se guiam por códigos muitas vezes imperceptíveis que
aparecem como traços da cultura. São portanto, os sistemas simbólicos em flagrantes relações
de superioridade e inferioridade que usando de sanções morais para se firmarem que será
chamado de sistema de estratificação (Parsons, 1974).

Indivíduo e sociedde

Podemos considerar portanto que o cotidiano está atravessado por inúmeras


determinações, tais como, identidade étnica, origem familiar, crença religiosa, ideologia política,
além, evidentemente, das classes. Em outras palavras o indivíduo singular é parte do social e
gozando de autonomia relativa elabora projetos pessoais. No caso dos projetos de classes
sociais, estes implicam relações de poder e neste sentido são sempre políticos; conforme
frisamos acima, a sua eficácia vai depender do instrumental simbólico que os grupos em
confronto possam manipular. Para os indivíduos singulares em sociedades complexas, ha todo
um debate que os incorpora enquanto sujeito social e poderíamos dizer que Durkheim inaugura
esta problemática quando considera que as totalidades sociais não só pré-existem ao indivíduo
que as produzem como também se expandem no tempo e no espaço, tese esta que Giddens
sintetiza quando considera que na teoria da estruturação o essencial pode ser apresentado a
partir da consideração de que as sociedades humanas, ou os sistemas sociais não existiriam
sem o indivíduo, mas os agentes, os atores, não criam sistemas sociais; eles os reproduzem ou
transformam, refazendo o já feito (Giddens, 1989,40).
É claro que o raciocínio que se constrói sobre as classes a partir dos clássicos está
pressupondo um coletivo que teria algumas afinidades, a principal delas decorrente da inserção
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no processo produtivo. Se aceitarmos tais pressupostos, os estudos de classes e estratificação


social no meio urbano precisam conceitualizar de forma mais pontual este indivíduo. que,
mesmo sem ter uma autonomia absoluta, guarda espaços onde sua individualidade se articula
com o espaço onde ele se insere, sobretudo na dimensão cultural, lugar por excelência das
manifestações simbólicas.
Talvez por isto, o indivíduo urbano é bastante teorizado. Interessa-nos aqui algumas das
reflexões de Simmel desenvolvidas no seu texto clássico “A metrópole e a vida mental”31 .
Embora neste texto não se aborde a relação do indivíduo com o coletivo, ou com as classes,
Simmel dá a este indivíduo urbano um lugar privilegiado para explicar a dinâmica social neste
espaço. Ele é visto isoladamente a partir de uma relação que estabelece com o seu ambiente,
não estando em jogo a compreensão do processo de sua integração no social; ao invés disso
há uma clara opção pelo entendimento comportamental de um ser visto isoladamente.
Com base nestes elementos, Simmel trabalha este indivíduo a partir da intensificação
dos estímulos nervosos que o submetem a permanentes e bruscas alterações que de forma
ininterrupta o atingem através de influências em sua psicologia interior criando assim um
“indivíduo metropolitano” calcado num comportamento altamente individualizado, o indivíduo
blasé (Simmel, 1976).
Por outro lado, é a noção de indivíduo que vai marcar as diferenças culturais. Se nos
determos em texto de Elias (1994) onde se discute a relação indivíduo/sociedade iremos nos
dar conta de que entre estas duas categorias haveria um impasse teórico e analítico que
precisaria ser devidamente enfrentado. Assim, considerando que a noção de “indivíduo” se
refere ao ser humano singular como uma entidade existindo em completo isolamento e a de
“sociedade” como uma mera acumulação ou somatória de muitas pessoas individuais, ambas
parecem ser, como ele afirma, ontologicamente diferente. Entretanto, é comum falar em
sociedade dos indivíduos, indicando a maneira segundo a qual os seres humanos individuais
ligam-se uns aos outros numa pluralidade, isto é, numa sociedade. O próprio Elias nos alerta
para o fato de que o que falta são modelos conceituais e uma visão global mediante as quais
possamos tornar compreensíveis no pensamento aquilo que vivenciamos diariamente na
realidade, ou seja, como um grande número de indivíduos compõem entre si algo maior e
diferente de uma coleção de indivíduos isolados ou “como eles formam uma sociedade?
Comparativamente a Marx, que enxerga as classes, e a Simmel, cuja análise centra-se no
indivíduo, Elias nos alerta para a necessidade de percebermos ambos nas franjas de suas inter-
relações.
As classes seriam, dentro desta ótica, um lugar de construção de identidades que se
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firmam enquanto um fenômeno social e termina por intervir na identidade individual. Visto desta
forma, poderíamos considerar que pertencer a uma classe seria algo inexorável e teria como
um de seus determinantes a trajetória individual de cada um de seus membros, a partir de sua
origem. A identidade de classe fica definida a partir do momento em que os valores simbólicos
da classe se configuram como efetivos para garantir a coerência ou a estabilidade da
identidade individual.

Sociedades Avançadas: níveis e tipos ao invés de classes

Na introdução do presente texto, foi colocada a necessidade de reformulação das


teorias sociais clássicas e de certos conceitos referentes ao estudo sobre classes. Ocorreram
mudanças relevantes desde a construção de tais teorias, tanto na infra quanto na super-
estrutura, cuja proeminência é inegável na sociedade atual. Conforme também já procuramos
expor, vários autores contribuíram para dar ao debate novos elementos analíticos.
Giddens (1975) procurou redefinir a teoria e o próprio conceito de classe social no
capitalismo do fim do século XX. Segundo o autor, a questão das teorias de classes e das
interpretações do desenvolvimento destas sociedades por ele analisadas foram ofuscadas por
um simplismo nas comparações entre as sociedades tradicionais e as modernas. Assim, os
fatores de influência na divisão das sociedades em níveis não poderiam ser buscados apenas
na infra-estrutura e nem inferidos diretamente na designação “sociedades de classes”. Desta
forma, ele parte do pressuposto de que classe seria um agregado em grande escala de
indivíduos no qual as relações seriam definidas impessoalmente.
A teoria explicitada não refere-se à assertiva marxista sobre a luta de classes como
sendo o motor da história, principalmente devido à já colocada ideologização deste debate. Ela
não parte, portanto, de um modelo de classes dicotômico; refere-se, na verdade, não ao
conflito de classes, mas ao conflito de interesses gerado pela multiplicidade de possibilidades
de mercado existentes e no qual todos os participantes do processo de troca estão envolvidos.
Neste quadro, Giddens acrescenta que as reflexões de Marx basearam-se na
concepção de propriedade como referente apenas a objetos físicos tais como o maquinário, por
exemplo. Entretanto, propriedade refere-se também a direitos associados a tais objetos, isto é,
a possibilidades. Sendo assim, o trabalhador assalariado desfruta de tal possibilidade pois tem
a força de trabalho que é necessária ao empregador. O significado das diferenciações de
possibilidade de mercado não deriva diretamente da posse de propriedade, mas do valor de
escassez que o indivíduo possui no mercado, isto é, das qualificações educacionais,
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habilidades, titulação, etc.


Assim, a questão essencial para Giddens não é o reconhecimento da diversidade de
classes e conflitos, mas a identificação destas como formas estruturadas. Por isso a crítica a
Marx por não ter dado a devida atenção às maneiras pelas quais as classes assumem ou se
expressam em formas sociais definidas. O principal problema das teorias de classe seria,
portanto, a identificação da realidade das classes estruturadas6 . Dessa forma, Giddens
considera o uso do termo “classe” para se referir tanto a uma categoria econômica quanto a
grupamentos sociais como um erro conceitual.
A estruturação das relações de classe pode ser classificada como mediata ou como
imediata. A primeira considera os fatores que intervêm entre a existência de possibilidades de
mercado e a formação de classes como sistemas estruturados de relações de classe supondo,
assim, chances de mobilidade. A estruturação imediata de relações de classe, por sua vez,
enfoca os fatores ‘localizados’ que condicionam ou moldam a formação de classes, não
considerando possibilidades de mudanças.
A classificação em classes alta, média e trabalhadora só é possível quando o padrão de
mobilidade é fechado. Entretanto, no sistema capitalista, pelo menos no que diz respeito às leis
escritas ou sancionadas, a mobilidade não tem muita limitação e, portanto, as classes formadas
não são facilmente identificáveis. Devido a este fato, Giddens prefere não dividir a sociedade
em classes mas sim em tipos e níveis. São explicitadas, no seu modelo, três fontes
relacionadas de estruturação imediata de relações de classe: a divisão do trabalho dentro da
empresa, as relações de autoridade dentro da empresa e a influência dos “grupamentos
distributivos”. O esquema funciona da seguinte forma: a técnica separa o trabalhador manual do
administrador, o que influencia a divisão do trabalho dentro da empresa que é reforçada pelo
sistema de autoridade da mesma. Os grupamentos distributivos dizem respeito ao consumo e
constituem a terceira fonte da estruturação imediata. Giddens divide os grupos de status de
Weber em grupamentos de consumo e grupo de status – cuja diferenciação encontra-se em um
valor não-econômico que produz uma escala de honra e prestígio. Os grupamentos distributivos
mais significativos são aqueles formados pela tendência de segregação em comunidade, seja
pela renda, seja por outros fatores como, por exemplo, o acesso à política. As subclasses são
os desempregos ou subempregos, ocupações mal-remuneradas ou qualquer situação onde,
devido a condições étnicas, haja desqualificação da oportunidade de mercado.
Percebe-se, assim, que Giddens não utiliza a concepção de classe como sendo

6
“...as lacunas mais importantes na teoria de classes referem-se aos processos por meio dos quais as classes
econômicas transformam-se em classes sociais”(Giddens, 1875)
13

sinônimo de estrato, considerando qualificação como um fenômeno distinto da teoria de


classes. Esta diferenciação baseia-se no fato de, como foi demonstrado acima, as classes não
possuírem divisões definidas como as fronteiras entre os estratos.
A classe social designaria, portanto, os efeitos da estrutura total no campo das relações
sociais. No Estado capitalista, as esferas econômica e política têm uma relação que não é a
marxista, segundo a qual a segunda está subordinada à primeira. Apesar dos pensamentos de
Marx – segundo o qual o Estado seria uma expressão das relações de classe geradas no
mercado – e de Weber – pelo qual o princípio de classe está subordinado ao princípio
burocrático – serem complementares, ambos erram por considerar Estado como um poder
separado e apenas uma mediação institucional entre política e economia.
Giddens mostra que a confusão entre quem detém os meios de produção e quem
possui o domínio político é errônea. Para ele, a liderança tem dois caminhos: pela fama e
realização pessoal ou pela ocupação de posições altas em organizações sociais específicas. A
elite corresponde ao segundo grupo (indivíduos que ocupam posição de autoridade no topo de
uma organização social ou instituição). Um dos principais aspectos da estruturação da classe
alta é justamente o processo de mobilidade para posições de elite e um alto grau de
solidariedade social dentro de e entre os grupos de elite.
Duas formas de mediação das relações de poder são indicadas pelo autor: a
institucional e a de controle. Na primeira, os grupos de elite são recrutados e estruturados e as
organizações se dão por instituições e leis. Na segunda, certos grupos exercem suas vontades
às custas de outros uma vez que a formação de política e decisão dos membros de grupos de
elites ocorre pelo poder real.
Há uma hierarquia entre os grupos de elite de acordo com a amplitude da força de
mando, isto é, dependendo do controle das decisões. Apesar das formas de hierarquia de elite
não serem inseparáveis da organização institucional do poder, mas possuem certo grau de
dependência.
Pela teoria de classes marxista, a abolição formal da propriedade privada superaria a
sociedade de classes. Entretanto, Giddens demonstra que isso não significaria o fim da
exploração pois o caráter de exploração não é criado necessariamente na esfera da produção.
Ele considera que a teoria da exploração das estruturas de classe se encontra na separação
entre o indivíduo produtor e seus produtos que, no fundo, é o cerne da divisão de classes. Diga-
se de passagem que Weber (1994) argumenta algo na mesma direção quando afirma que a
estatização dos meios de produção, ao invés de acabar com a exploração do Capital sobre o
trabalho, criaria, na verdade, um segmento burocrático no aparelho de estado que iria, em
14

última instância, desempenhar o papel que a classe capitalista desempenha normalmente, ou


seja, haveria sempre a continuidade da exploração mesmo se em novas bases classistas.
A partir do momento que a exploração refere-se à “... qualquer forma socialmente
condicionada de produção assimétrica de chances de vida...” (Giddens, op.cit. 158) , isto é, de
chances de se compartilhar os bens econômicos e culturais – uma vez que a produção atual se
refere a bens materiais e intelectuais – socialmente criados, ela é uma característica de todas
as sociedades. Além disso, o uso das recompensas materiais depende de aspectos da
produção cultural pela qual gostos e habilidades são moldados por meio da educação e do
ambiente de trabalho. Assim, a despeito da exploração de classes ser inseparável da sociedade
de classes, o fim desta sociedade não implicará no fim da exploração entre indivíduos.
A importância da análise das classes e dos tipos de sociedades são determinados pelos
seguintes fatores interdependentes: a natureza e tipos de estruturação e de consciência de
classe, as formas de conflito das classes de manifesto e o caráter da exploração de classes.
Assim, analisar uma sociedade de classes implica no exame da natureza das relações de
classe.

Classes sociais urbanas

Podemos deduzir de todo este debate aqui sumariado a concepção de que a


constituição das classes é um processo sujeito a um jogo de forças que se trava no interior da
própria sociedade. Este jogo, por um lado, guarda a identidade com processos econômicos; por
outro, está intimamente condicionado por dimensões simbólicas que, abarcadas todas as
dimensões do social, terminam por se transformar no lugar privilegiado de construção e
reprodução das classes. A consolidação do modelo espacial de localização da população na
estrutura social é induzido e induz inúmeras outras dimensões da vida social afim de respalda-
lo, tanto no que ele pressupõe quanto no que necessita. Sendo perceptíveis, os símbolos
urbanos provocam a sensação de liberdade e mobilidade, mas terminam por funcionarem como
uma vitrine repleta de personagens imóveis ou imobilizados7.
A tese principal de Weber (1973) quando analisa a passagem do feudalismo ao
capitalismo é de que nas “cidades”, então em gestação, estaria sendo gerado também e
sobretudo a autonomia dos campos econômicos, jurídicos e políticos, embrião portanto da infra-
estrutura necessária ao desenvolvimento do capitalismo na forma que ele adquire a partir daí.

7
- É de certa forma consensual entre os estudiosos considerar o fenômeno urbano especialmente como um fenômeno
cultural que age sobre todas as dimensões da vida. Ver por exemplo Simmel, Pechman, etc. na bibiliografia
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Desta forma, o espaço urbano corresponderia a uma típica espacialidade das classes então
nascentes e é a cidade o seu locus por excelência. As classes vagueiam neste espaço como
em territórios simbólicos comuns, como num puzzle cujas peças são fragilmente unidas e
articuladas e que vão encontrar aí, nesta união instável, o seu sentido.
Este espaço urbano é também o berço de um habitante peculiar, o cidadão que se
insere numa lógica monetarizada de mercado. O seu aparecimento irá, pouco a pouco,
induzindo a uma divisão do trabalho que criará novos grupos distintos daqueles dois principais.
Desta forma, a sociedade vai se complexificando no seu desenvolvimento e adquire uma
conformação social que inclui o indivíduo como ser singular . Distancia-se, portanto, cada vez
mais daquela sociedade calcada nos valores simbólicos da religião, um substrato ideológico
que se sustentava em esferas simbólicas precisas; cria-se uma nova religião adequada ao que
então se firmava, e contraditoriamente, traduzindo o capitalismo então nascente, antes de mais
nada, em “espírito” , agora com uma religião que lhe é própria. (Weber, 1964).
Marx, em “O Capital”, trabalhou a evolução do capitalismo considerando duas classes
urbanas, portanto com uma espacialização que lhes é própria. Podemos, também, falar da
produção de um espaço que é um espaço social, ou com uma sociabilidade que lhe é própria.
Esta expressão produção do espaço envolve, portanto o conjunto da sociedade ou, de outra
maneira, toda sociedade produz “um” espaço que lhe é próprio. O do capitalismo é, por
excelência, o espaço urbano, lugar do efêmero, do símbolo sem referências precisas,
comandadas pela lógica monetária.
Desta forma, o espaço urbano/industrial se constitui, pouco a pouco, em imagem
privilegiada do sistema capitalista, Para compreendê-lo não se deve tomar como referência à
produção no sentido restrito dos economistas - quer dizer, o processo da produção das coisas e
de seu consumo - mas a reprodução das relações sociais nele contidas. A sua transformação
em espaço paradigmático do capitalismo consolida as classes sociais deste sistema e lhes dá
legitimidade histórica: assim, se existe um ponto de vista classista, como é impossível
(metodologicamente falando) partir dele; deve-se chegar a ele (Lefebvre,1976).
Por outro lado, os lugares de construção de identidade social se diluem num cotidiano
complexo que se guia por diferentes lógicas, algumas delas absolutamente descoladas do
mundo do trabalho. Seria, portanto, quase que óbvia a consideração de que o cerne da questão
de classes neste fim de milênio estaria na relação entre o mundo do trabalho e o mundo do não
trabalho Ambas dimensões da vida desempenham funções estratégicas na determinação do
lugar social do indivíduo dentro da organização societária.
As representações simbólicas adquirem no meio urbano a sua mais clara manifestação.
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Há um grau de autonomia no interior das representações sociais onde, certamente, as


características dos indivíduos se expressariam com maior facilidade. Isto é possível
principalmente pela banalizaçao do discurso psicanalítico que permite a cada um rescrever sua
história suplantando os traumas e valorizando os aspectos positivos da vida. Ao lado, a
generalização do “politicamente correto” se agrega neste movimento redefinindo as categorias
sociais (gênero, etnias, sexualidade, etc).
Sobretudo nas metrópoles o setor terciário toma espaço nas ocupações, trazendo à
tona elementos de um individualismo difícil de ser experimentado nas tradicionais unidades
industriais. Nestas, a divisão técnica do trabalho pressupõe a complementaridade de funções e
estas são rigidamente determinadas. Podemos supor comparativamente que as
personalidades individuais que se formam nos espaços urbanos do industrialismo são
imutáveis, exigindo um indivíduo com um perfil sólido, com maiores possibilidades de se
agregar a um coletivo e, portanto exercitar práticas de classe que lhes conduziria a uma
consciência do seu lugar no social. Ao contrário, a recente flexibilização dos processos de
trabalho, sobretudo a terceirização, traz em sua lógica a sensação de vulnerabilidade e,
contraditoriamente, de maiores possibilidades de autonomia, e em decorrência a sensação
também de maior flexibilidade no cotidiano. Podemos levantar a hipótese de que aquele
indivíduo blasé do Simmel é um típico trabalhador do terciário. A autonomia que lhe garante um
distanciamento do coletivo estaria diretamente vinculada às suas possibilidades de se inserir
em diferentes modalidades de emprego, assumindo uma flexibilidade de caráter que decorre
daquela própria estrutura flexível do mercado de trabalho.

SOCIEDADE E SOCIABILIDADE

Vale a pena lembrar que o mundo hoje não é o mesmo dauele onde se construiu a
teoria das classes. Naquele momento, a inserção do individuo num coletivo se fazia sobretudo
via “trabalho” e a sociedade se constituía a partir deste dado: toda linguagem social e política
se fazia a partir dessa categoria e expressões rotineiras davam conta da primazia desta
categoria: crianças trabalham na escola, mulheres entrama em trabalho de parto, ações
filantrópicas são trabalho social, etc. De fato, o conceito de classe se referia a uma das
possibilidades de utilização desta categoria trabalho, exatamente aquela que indicava produção
material.
Por outro lado, a sociedade atual estabelece uma relação ambígua entre indivíduo e
sociedade. De um lado, centra nos valores individuais o essencial da identidade, com o risco
permanente de generalização de um narcisismo exacerbado construído na imagem do “self-
17

made man” caricaturado na figura do yuppie bem sucedido na vida material; por outro, cria uma
sensação de estar acima do indivíduo, sobretudo pela dificuldade de inserção que se tem no
social face as novas configurações da vida cultural e econômica. A perda de importância da
categoria trabalho para definir identidades sociais e as decorrentes sociabilidades (Clauss Offe,
1989) termina por dar a sensação de que uma “mão invisível” controla o destino dos indivíduos,
os quais se sentem impotentes frente a ela.
Mesmo neste quadro, pensar um mundo sem o trabalho, nos parece inimaginável, pois
basta lembrar as evidentes desestruturações de identidades individuais simbolizadas no
estigma das categorias identitárias de desempregado, subempregado, ou empregado a tempo
parcial, responsáveis em grande parte pelos aumentos vertiginoso do grau de desestruturação
e violência que caracteriza hoje as sociedades urbanas. A crise na qual se encontra a
categoria trabalho repercute na transmissão e na construção de valores morais e éticos,
sobretudo para as novas e futuras gerações.
A categoria “classe” dentro do arcabouço intelectual explicativo das identidades sociais
deve ser revista à luz desta crise. Em se tratando de um conceito que retirava seu significado
nas relações de produção encontrava aí o seu respaldo ou a sua legitimidade. As
transformações que se firmaram como freqüentes no mundo, entretanto, recolocam a questão
sobre novas bases. O conceito é claro e preciso e se liga, ao menos nos clássicos, ä esfera
econômica, especialmente com respaldo nas atividades produtivas de bens materiais.
Conforme detalhamos ao longo do texto as diferentes tentativas de se adequar o conceito äs
novas realidades que a produção material de bens vai promovendo exigiu um esforço no
sentido de captar a complexidade do real. Entretanto, a realidade vai se modificando com uma
incontrolavel rapidez o que nos deixa esta impressão desatualizada do conceito. Ao mesmo
tempo, não se consegue obscurecer o fato de que a sociedade é dividida hierarquicamente e
esta estratificação tem de encontrar uma explicação teórica.
l.A valorização da honra e do prestigio social coloca uma nova dimensão no existir
socialmente e os indivíduos procuram adequa-las äs suas trajetórias de vida, norteando suas
ações a partir de pressupostos ditados por ambos valores. Pode-se avançar a hipótese de que
tínhamos personalidades individuais que se casavam perfeitamente com dimensões sociais da
vida. A fragmentação do mercado de trabalho e a generalização dos métodos flexíveis na
esfera produtiva colocam estas certezas em questão. Aos indivíduos integrados de antes, com
perfis de personalidades sólidas , hoje este perfil é mais flexível. O que se tem agora é a
necessidade de indivíduos adaptáveis a situações transitórias, instáveis. Bauman(1998) vai
nos falar de “homens dóceis de serem reformados” como metáfora para explicar que a crise das
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referencias está implicando na reconstrução de uma nova sociedade.


Classe social no debate clássico tinha o conflito como pressuposto, fosse ele antagônico
ou não. O paradigma socialista se sustentava na “igualdade” como o seu principal suporte, o
que finalmente se mostrou ineficaz tanto nas experiências concretas quanto nos cenários de
futuro. Na verdade ele teve desempenho negativo face a “igualdade e liberdade” os dois pilares
da sociedade de mercado. Talvez por isso as classes hierarquicamente inferiores tenham
pecado mortalmente pois não souberam colocar no devido lugar, em novas bases, os dois
pilares que apesar de tudo ainda continuam sendo fetiches insubstituíveis.
Assim, as diferenças hierarquizadas permanecem, as redes de segurança tecidas pela
família, pela vizinhança estão fortemente enfraquecidas, o trabalho também se enfraquece
como espaço identitario, levando a predominância do estilo simmeliano do indivíduo “blasé”
fechado em sua moradia frente ao seu computador ou a sua TV, com contatos intensos, porem
virtuais.
A diversidade inesgotável de modos de vida urbano coloca assim de frente os limites em
se querer construir um mundo coeso, coerente, sob medida. Em todos os momentos onde se
tentou levar aos extremos o controle e o planejamento, seja a nível local seja no nacional ou
nas esferas intermediárias, as conseqüências foram desastrosas. A burocratizaçáo da vida, a
violência do Estado, a tecnoestrutura para citar apenas alguns problemas contemporâneos só
se desenvolveram atrelados em idéias ou pensamentos “críticos” ou institucionais que
sonhavam com um mundo que “deveria ser” mais do que um mundo que existia. O resultado foi
a cada vez maior distancia entre a sociedade e a sociabilidade. Talvez pudéssemos parafrasear
Giddens (1996,23) e insistir no fato de que “a política de vida é uma política não de
oportunidades de vida, mas de estilo de vida. Ela estaria relacionada a disputas e contendas
sobre a maneira pela qual nós (enquanto indivíduos e enquanto humanidade coletiva)
deveríamos viver em um mundo onde aquilo que costumava ser fixado pela natureza ou pela
tradição está atualmente sujeito a decisões humanas” . Há pistas nesta direção, espalhadas
pelas inúmeras experiências alternativas de solidariedade que até o momento aparecem como
balão de ensaio de potenciais alternativas, latentes no social.

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