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Jornal do Commercio

Recife - 18.01.2001
Quinta-feira

CINEMA
A grande aventura legendada

Tradutores brasileiros contam como é a saga de verter para o português, em até 34 caracteres por
linha, os roteiros dos filmes estrangeiros

POR LUIZ JOAQUIM

Especial para o JC

Em determinada seqüência do filme em cartaz Outono em Nova Iorque, Richard Gere caminha ao
lado de Anthony LaPaglia pelas calçadas de Manhattan e confessa que transou com a ex-namorada
no sótão da casa do amigo, enquanto Winona Ryder, a atual namorada, o aguardava na sala de
baixo. LaPaglia vira-se para Gere e diz cristalinamente: “I’m sorry about what you did”. Quem já
folheou qualquer cartilha de inglês no 2º grau entende que o amigo de Gere quer dizer: “Sinto muito
pelo que você fez”; mas o que espectador desavisado lê nas legendas é: “Quem mandou você fazer
isso?”

Esse é apenas um exemplo entre os infindáveis casos da legendagem no cinema que faz o público
um pouco mais atento questionar o porquê de profissionais de tradução derraparem na
nacionalização de produções estrangeiras. O caso específico de Outono em Nova Iorque não é tão
cabeludo a ponto de interferir na lógica do enredo, mas certas pérolas são tão incoerentes que não
respeitam o mínimo bom senso. Algumas são clássicas como a do filme Tomates Verdes Fritos, no
qual aparece um jornal estampando a manchete: “Wife kills husband and sells his body parts to
aliens”. Mesmo com a ilustração de um disco voador ao lado das palavras, o tradutor escreve “Mulher
mata marido e vende pedaços do seu corpo para o estrangeiro”.

Há 10 anos trabalhando nesse ramo, Monika Pecegueiro do Amaral, explica que são vários os
motivos pelos quais algumas legendas não se atêm às traduções literais ou, simplesmente, saem
erradas. Uma das razões encontra resposta nas limitações de caracteres por cada linha de legenda
(34 para o cinema. 30 para o vídeo). “É preciso um poder de síntese bastante afiado, o que muito
aproxima meu trabalho com o ato de fazer poesia – minha paixão maior”.

“Por vezes, somos obrigados a resumir a idéia com uma construção oracional diferente da original,
mas sem mudar sua essência, para que ela encaixe em 68 toques divididos por duas linhas”, diz.
Entre os gêneros de sua predileção para trabalhar, Monika ressalta os desenhos da Disney
justamente por desafiá-la a combinar métricas e rimas. “Muitas palavras precisam carregar um
sentido triplo”, brinca.

Heloísa Martins Costa, que junto a Monika Pecegueiro e Paulo Frederico Costa formam a tríade mais
respeitada dessa área no País, diz que outro detalhe que entrava a precisa tradução são os roteiros
defasados que vêm acompanhando as fitas de serviço do filme a ser nacionalizado. “Alguns roteiros,
de 50, 60 páginas, ainda indicam o primeiro tratamento que a história recebeu, antes de ser rodada.
Quando acompanhamos a narrativa assistindo o filme, escutamos um personagem dizendo que vai
encontrar outro às 10h, e não às 9h, como está no papel. O mesmo acontece com quantias. O roteiro
diz um valor e acontece de o ator falar outro. É preciso atenção para o erro não resvalar na legenda”.

TRAUMAS – Trabalhando, atualmente, com os filmes das distribuidoras Europa e Lumière, Heloísa
ficou conhecida, no início da carreira, por traduzir muitos filmes europeus. Ela conta que a primeira
experiência foi traumática. Em 1988, quando chegou do Velho Mundo, onde havia concluído sua pós-
graduação na Universidade Paris – Sorbonne, Heloísa se apresentou ao Consulado Francês, no Rio
de Janeiro, disposta a trabalhar como tradutora. O serviço que lhe deram foi nacionalizar os filmes de
Jean-Luc Godard do acervo do consulado. E ela começou logo pelo verborrágico A Chinesa. “Tinha
um detalhe complicador. Os filmes eram em 16mm, o que reduzia a quantidade de caracteres de 34
para 23 por linha. Levei um mês para fazer o serviço e pensei em nunca mais trabalhar com isso”,
recorda.

Outra experiência nada agradável aconteceu com Rapsódia em Agosto, de Akira Kurosawa. O filme,
falado em japonês, estava chegando para o antigo FestRio, em 1991, e Heloísa tinha menos de três
dias para traduzi-lo a partir de um tosco roteiro em inglês. Debruçada sobre o script por mais de 12
horas ininterruptas, a tradutora trabalhou sem ver nenhuma imagem do filme. Heloísa lembra que não
podia identificar qual o sexo dos atores apenas pelo nome dos personagens. O resulto é que, na
projeção, enquanto parte do elenco masculino falava, a legenda mostrava coisas do tipo: “Eu estou
cansada”.

Para não cometer gafes, Monika Pecegueiro (fluente em inglês, espanhol e italiano) não hesita em
procurar sua “rede de consultores” ao encarar filmes de idiomas “exóticos” como o chinês, tailandês
ou o mandarim. “Com um decente roteiro-guia em inglês, como o que acompanhava O Caminho para
Casa, do chinês Zhang Yimou, a tradução saiu tranqüila. Isso não aconteceu com o alemão Corra
Lola, Corra. Como tradução de tradução é uma coisa horrível (no caso, do alemão para o inglês, e do
inglês para português), me vi na necessidade de convidar um amigo com proficiência em alemão para
ajudar”, revelou.

Já que o detalhamento técnico de muitos filmes modernos requer uma linguagem peculiar, Monika
também apela para profissionais de áreas específicas para aplicar o jargão que cada um costuma
usar. “Essa adequação é o que diferencia uma tradução apenas correta para uma outra mais
caprichada”. Em Maré Vermelha, por exemplo, ela trabalhou assessorada por um comandante da
Marinha do Brasil.

Apesar da pós-graduação na Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, Monika não se sentiu à


vontade para nacionalizar, sozinha, a versão contemporânea de Hamlet (filme de Michael Almereyda,
com Ethan Hawke). “Mesmo transcorrendo nos dias de hoje, o filme e falado num inglês arcaico, que
requer extremo conhecimento da escrita de Shakespeare”.

Para fazer o serviço, a tradutora exigiu da distribuidora a colaboração de Márcia Martins, doutorando
em traduções de Hamlet para o português. “O resultado ficou lindo”, diz orgulhosa.

Já Heloísa, sofreu na hora de transcrever para nosso idioma as falas do iraniano Filhos do Paraíso,
de Majid Majidi. “O filme era falado no dialeto mais praticado no Irã, o farsi; e o roteiro em inglês só
trazia frases sem nexo. A solução foi ‘casar’ o sentido das falas observando a expressão dos atores”,
recorda. Na contra-mão das dificuldades, a tradutora diz que filmes de ação, como os monossilábicos
de Schwarzenegger, são os mais rápidos de traduzir. “Os diálogos são poucos e o barulho é muito”.

QUALIFICAÇÃO – Além dos desenhos da Disney (distribuídas pela Buena Vista), Mônica Pecegueiro
do Amaral nacionaliza os filmes da Columbia/TriStar, Lumière, Fox/Warner e as produções da
brasileira Conspiração (de Eu, Tu, Eles). Foi ela, por exemplo, quem colocou frases em espanhol nas
imagens do documentário Pierre Verger – Mensageiro de Dois Mundos, de Lula Buarque de Holanda,
para concorrer no Festival de Cuba.

Lecionando aulas de tradução para cinema na Pós-graduação da PUC-SP, Pecegueiro insiste que
para obter o sucesso nessa função, uma boa formação em literatura e um rico conhecimento em
teoria lingüística são imprescindíveis. “Além desses instrumentos fundamentais, o tradutor precisa de
fluência na escrita. Somos como escritores que precisam contar uma bela história em português, e
fazer jus aos grandes roteiristas como Woody Allen, Scorsese e tanto outros”, conclui.
CINEMA II
Uma boa tradução requer cultura e educação

O tempo ideal para uma tradução é de 20 dias, mas às vezes ela é realizada em apenas cinco. A
maioria dos profissionais do setor é mal remunerada

A condição ideal para o tradutor nacionalizar uma produção estrangeira reza que o filme venha
acompanhado por uma fita em VHS e um roteiro-guia em inglês, devidamente marcado com a
‘pietagem’. Este último termo se refere às indicações das partes pelo qual o rolo de um filme é
dividido. Enquanto numa cópia de serviço de vídeo o time-cod situa a extensão da história pela
contagem do tempo, no roteiro, o filme é dividido em feet (pé), facilitando a localização dos diálogos
para o tradutor.

Para entender como esse indicador ajuda o profissional, basta saber que o longa Snatch – Porcos e
Diamantes, de 97 minutos, tem a pietagem de 9.208 pés. O filme, dirigido por Guy Richards (com
indecifráveis diálogos de Brad Pitt), está recebendo 1.446 legendas por Monika Pecegueiro do
Amaral, para ser lançado em maio pela Columbia. “90% dos filmes nos chegam com essa condição
de trabalho, o que nos possibilita trabalhar com poucas margens de erro”, diz a tradutora, que hoje se
ocupa com Beatles – Os Reis do Iê Iê Iê. O filme, rodado por Richard Lester em 1964, será relançado
pela Lumière no dia próximo dia 26, em cópia nova e som remasterizado.

Para Heloisa Martins Costa, “num mundo perfeito, teríamos 20 dias para traduzir um filme. Mas a
realidade não é bem assim. Muitas vezes a cópia fica presa na alfândega e ela nos chega a cinco
dias da estréia em todo o País”. Depois do serviço feito, ela gosta de colocar o filme para ‘dormir’ por
24 ou 48 horas. Ou seja, depois de dois dias de distanciamento, Heloísa torna a ver o filme de uma só
vez para consertar possíveis incongruências da própria tradução. Atualmente, a profissional investe
seu talento em Mansfield Park, de Patricia Rozema; e Malena (estréia 2 de março), nova produção de
Giuseppe Tornatore, que concorre ao Globo de Ouro 2001 de filme estrangeiro.

DINHEIRO – A frenética labuta dos tradutores de cinema no Brasil revela uma profissão mal-
remunerada em vista da demanda de especialização que o serviço requer. “Traduzir exige
investimento em pesquisa, educação e profundo domínio da língua”, diz Pecegueiro.

Em conformidade com a tabela do sindicato dos tradutores, a remuneração para cada parte de 10
minutos traduzidos em um filme para cinema é de R$ 80. Considerando a duração padrão de um
longa em 100 minutos, o tradutor embolsa R$ 800 por filme. “Hoje, me dou o luxo de só trabalhar com
uma média de 10 ou 12 filmes por ano. Prezo pela qualidade do serviço”, diz Heloísa que, como a
colega Pecegueiro, completa a renda mensal com outras atividades ligadas à tradução.
CINEMA III
Festivais exigem trabalho em ritmo mais acelerado

Depois de os tradutores escreverem a versão nacional dos diálogos de filmes estrangeiros, os textos
seguem para os laboratórios que efetuam a legendagem. Duas empresas fazem o serviço no Brasil: a
Labo Cine, no Rio de Janeiro, e a Curt-Alex, em São Paulo. Havia uma terceira no Rio, a Titra, que
está retirando seus serviços do mercado. Por mais de trinta anos, a Titra legendava os fotogramas,
um de cada vez, por um antigo sistema de carimbo ácido que retirava a gelatina do filme. Dessa
maneira, as palavras apareciam na tela em forma de transparência.

A consolidada Labo Cine, com mais de 46 anos de experiência, e a Curt-Alex (atuando há 17 anos)
utilizam um processo ótico, sem queimar a cópia original. As legendas são fotografadas em uma
película à parte, para depois uni-la a outras duas: a do filme original e a sonora. “Da união dessas três
películas, sai uma banda positiva. Essa matriz vai servir para fazermos quantas cópias nacionalizadas
for preciso”, explica o gerente comercial da Curt-Alex, Sílvio Porto.

O que já é normalmente caótico fica insano nos casos dos festivais internacionais, cujo acervo de
filmes estrangeiros pode chegar a mais de 300 títulos exibidos em poucos dias. Na última edição da
Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (Mostra-SP), 190 longas e cerca de 90 curtas
precisaram receber legendas.

Nesses, casos, o processo de legendagem precisa ser veloz e acontecer simultaneamente à projeção
do filme. No Brasil, a marca Subtitling Online, da empresa Running S/C, está em boa parte destes
festivais (Mostra-SP; Brasília; Fica - GO; Anima Mundi - Rio/SP; Jean Rousch -SP; Festival Japonês
-SP).

Marina Mariz, da Subtitling, diz que a solução para a instantaneidade veio com a criação de um
software (sugestivamente chamado de Transpotting) desenvolvido pela empresa. “Cada sala é
equipada com um projetor de vídeo e um computador levando nosso programa que, além de ter o
modo de exibição de legendas em cinema, também pode ser usado pelos tradutores para editar os
textos”, conta Marina.

A projeção dos diálogos (previamente traduzidos), aparece no roda-pé da tela, em conformidade com
a situação que ali aparece. Para trabalhar na Mostra-SP 2000, a Subtitling arregimentou 12 tradutores
fluentes em inglês, francês, espanhol, alemão e russo. Além disso, mais 25 profissionais ficaram
responsáveis pelo apoio técnico e liberação das legendas durante as exibições.

Se na legendagem padronizada o período ideal para ‘nacionalizar’ um longa é de 20 dias, Marina


salienta que na legendagem dos festivais, três dias já seria maravilhoso, mas nem sempre sua equipe
dispõe desse tempo. “Na Mostra-SP, recebi um filme às 14h, e ele seria exibido às 20h do mesmo dia.
Foram quase duas mil legendas. Até hoje eu me espanto por ter conseguido. Acho que é o pique de
Mostra, a energia muito positiva que rola, para que tudo dê certo”, encerra.(L.J.)

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