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Alcionir Urcino Aires Ferreira

A CONSTITUCIONALIDADE DO NOVO
REGULAMENTO DISCIPLINAR DO EXÉRCITO

Curriculum do autor:
Alcionir Urcino Aires Ferreira é Bacharel em Direito e em Economia pela
Universidade Católica de Brasília, especialista em Direito Penal e Direito Militar. É
Subtenente do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal. Foi instrutor de Direito
e Legislação no Centro de Formação, Aperfeiçoamento e Especialização de Praça
do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal. É membro fundador da
Associação dos Militares Bacharéis em Direito (AMBD) e do Fórum Nacional
Permanente de Praças dos Corpos de Bombeiros e Polícias Militares do Brasil
(FONAP).

1 – Introdução

Apesar de ser uma justiça especializada, a justiça militar,


diferentemente das demais, tem sido negligenciada pelas cadeiras universitárias.
Isto tem, sem dúvida, gerado consequências negativas ao conhecimento e à
abordagem técnica pelos operadores de direito nesta seara, levando, não
raramente, a interpretações parcas ou equivocadas das normas castrenses.
A hierarquia e a disciplina, bases das instituições militares, previstas
nos artigos 42 (forças militares estaduais e do Distrito Federal) e 142 (Forças
Armadas) criam deveres e obrigações aos seus integrantes, além da aplicação de
sanções aos seus infratores, aí incluindo desde uma simples advertência verbal a
uma prisão. O Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), instrumento utilizado para
manutenção dessas bases teve recentemente questionada sua constitucionalidade
junto ao Pretório Excelso. A Corte Suprema, por sua vez, declarou constitucional
seus preceitos.
Frisa-se, nestas primeiras linhas, que anterior ao texto constitucional
vigente, existia o RDE editado por meio do Decreto Presidencial nº 90.608, de 08 de
dezembro de 1984, cujo tema restou recepcionado pela Carta, adquirindo status de
lei ordinária. O atual Regulamento, a seu turno, foi editado por meio Decreto
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Presidencial nº 4.346, de 26 de agosto de 2002, portanto, posterior à Constituição da


República.
A discussão que se levantou deu-se em razão dos princípios da
legalidade e da reserva legal, princípios estes insculpidos no texto constitucional.
Aos defensores do indigitado Regulamento comporta a ideia de que as
Forças Armadas, baseadas na hierarquia e na Disciplina, estão subordinadas
diretamente ao Presidente da República, destarte, com poderes para criar normas
internas para a manutenção da ordem castrense.
Outro grupo de juristas, a seu turno, notadamente magistrados de
primeira instância, afirmam que não poderia o Chefe do Poder Executivo criar norma
mesmo para a manutenção da ordem interna da caserna, posto que tal competência
seria do Poder Legislativo, em respeito ao princípio da legalidade e ao da reserva
legal.
Então onde reside a razão? O novo decreto fere o texto constitucional
ou foi por ele recepcionado? Pode o chefe do Poder Executivo editar “normas” que
impliquem em cerceamento do direito do ir e vir, mesmo no âmbito militar,
considerando que é o comandante supremo das Forças Armadas, sendo estas
baseadas na hierarquia e na disciplina?

2 – Recepção dos regulamentos anteriores à Constituição

Antes de adentrar o mérito da constitucionalidade do Regulamento


Disciplinar do Exército, necessária se faz uma discussão acerca da recepção dos
regulamentos pretéritos à Constituição Federal.
O fenômeno da recepção de norma anterior a 1988 é amplamente
discutido pelos juristas e doutrinadores e avaliada, como última ratio, pelo Supremo
Tribunal Federal, guardião da Lei Maior. As normas pretéritas à Constituição
Federal, que com esta não estivessem em consonância, não seriam recepcionadas.
Veja-se que não se fala, neste ponto, em revogação, mas em recepção de norma
previamente existente à Carta Magna, pois aquelas que não estiverem em
conformidade com a Constituição nova, sequer existiriam.
Algumas normas, que possuíam determinada designação, por
questões de adequação técnica, após a Carta Política de 1988, passaram a ter
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status de outra norma, como o que ocorreu com o Código Penal Militar editado por
meio do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969, passou a figurar como lei
ordinária, dentre tantas outras normas que sofreram o mesmo processo.
O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, em seu
artigo 25, preconiza o seguinte: “Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da
promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os
dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo
competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no
que tange a: I - ação normativa;”
Como se afere do dispositivo supra, a Constituição impede o Poder
Executivo de criar leis (esta em sentido estrito), recaindo exclusivamente sobre o
Congresso Nacional tal competência.
Os decretos presidenciais, tais quais os regulamentos disciplinares,
que não contrariaram o texto constitucional, passaram a ter força de lei ordinária por
estarem em consonância com os ditames da Constituição nova.
O artigo 74 do Regulamento Disciplinar do Exército, instituído por meio
do Decreto Presidencial nº 4.346, de 26 de agosto de 2002, ao revés do preconizado
pela Carta Magna, revogou o Regulamento anterior (Decreto 90.608/84). Observa-se
que o caminho correto a ser utilizado seria a edição de lei ordinária, com as
formalidades impostas pelo texto constitucional para sua elaboração.

3 – Revogação ou represtinação do RDE anterior à CF/88

O imbróglio que se instalou após a possível revogação ou declaração


de inconstitucionalidade do RDE diz respeito à inexistência de norma que
fundamentassem a base do militarismo – a disciplina e a hierarquia. Faz-se mister
observar que, houvesse sido declarada a inconstitucionalidade do novo RDE,
poderia ocorrer um lapso temporal sem outro regulamento que fundamentassem
essa base.
Para Jorge César de Assis, v.g., “Ao declarar-se a inconstitucionalidade
do referido decreto, seja pela via difusa ou concentrada do controle de
constitucionalidade, inevitavelmente estará se desarmando a Força, que poderá ficar
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submetida a um lapso temporal indeterminado sem qualquer tipo de controle sobre


seus integrantes, e com isso, a inexorável derrocada da disciplina e da hierarquia”.
Entende-se revogada a norma que teve sua vigência solucionada por
outra norma de mesma denominação. Por represtinação, entende-se o retorno da
vigência de norma revogada. Mister se faz esclarecer neste ponto que, em respeito
à Lei de Introdução ao Código Civil, o fenômeno da represtinação não é admitido no
Brasil.
Entretanto, considerando o equívoco quanto ao meio utilizado para a
instituição do novo Regulamento Disciplinar do Exército, não há que se cogitar no
fenômeno, seja o da represtinação seja o da revogação. Há que se falar em
inexistência do ato revogador e instituidor de deveres e das respectivas punições no
regime disciplinar militar, imposto pelo Chefe do Executivo Federal por meio do
Decreto 4.346/2002.

4 – Os regulamentos disciplinares militares em sede dos


princípios da legalidade e da reserva legal

Em termos penais, a Constituição Federal de 1988, considerada a mais


popular e democrática de todas, protege as garantias fundamentais previstas pelo
princípio da Reserva Legal em seu art. 5º, inciso XXXIX estabelecendo que “Não
haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Conhecido na doutrina penal como princípio da legalidade, inscrito no
dispositivo acima reproduzido, tal dispositivo estabelece que para todo crime, ou sua
pena, deve haver uma previsão “legal” (pré-existência da lei ao fato concreto), lei,
portanto, em seu sentido estrito, o que impede outro poder que não o legislativo de
elaborar normas que criem crimes e suas respectivas penas.
Também, no inciso II do mesmo dispositivo, a Constituição consagrou o
Princípio da Legalidade nos seguintes termos: “ninguém será obrigado a fazer ou a
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Faz-se mister aclarar o que diferencia uma norma legislativa de um ato
administrativo. A norma legislativa tem sua matéria e formalidade estabelecida no
texto constitucional e obriga-se, para sua elaboração, um processo legislativo rígido,
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obedecendo a quóruns estabelecidos para cada norma. Já os atos administrativos,


nestes incluído o decreto do Executivo, têm a capacidade de regulamentar normas
(leis) editadas, já existentes na seara jurídica, para dar funcionalidade a essas
normas ou, ainda, para manter, organizar, criar e extinguir cargos da administração
pública, nos termos do artigo 84, inciso VI, da Carta Suprema.
Em termos de alteração ou revogação de lei (em sentido estrito), como
leciona Jorge César de Assis, “O poder de revogar uma lei, elaborada na forma da
Constituição prevê o devido processo legislativo. Já o poder de revogar decretos é
do Chefe do Executivo”. Como o RDE, após a vigência da Carta Maior, tomou força
de lei, uma revogação ou alteração somente poderia ser perpetrada pela mesma
norma legislativa, por meio de processo legislativo, cabendo, destarte ao Congresso
Nacional esta competência, não ao Presidente da República.
Nesta mesma senda, seguem as palavras do doutrinador Paulo Tadeu
Rodrigues Rosa ao tratar do Decreto 4.717/96, que institui o Regulamento
Disciplinar da Polícia Militar do Estado de Goiás, preconizando que tal regulamento,
uma vez conferido o status de lei ordinária, deveria ser revogado por esta
formalidade legislativa (2007, p. 65).
Ainda, AlgacirMalakovski e Robson Alves (2009, p. 21) acentuam que
Após discussão doutrinária e jurisprudencial, com respeitáveis
divergências, e amparo na Constituição Federal de 1988,
conclui-se que os regulamentos disciplinares das Forças
Armadas, decretos expedidos pelo Poder Executivo, foram
recepcionados, somente podendo ser alterados por meio de lei,
sob pena de nulidade, que poderá abranger, inclusive, as
penalidades impostas advindas de tais disposições.
Observa-se, destarte, que os autores tratam de alteração, não de
revogação (ainda mais agravante como ocorreu com o RDE), considerando nulos os
atos perpetrados que não por meio de lei (em seu sentido estrito).
Em matéria de Direito Administrativo Disciplinar Militar, estudando o
tema, Eliezer Pereira Martins (1986, p. 41) assevera que “(...) a matéria disciplinar
deve ser disposta pelo Poder Legislativo, delegando-se poderes às autoridades
militares para que apliquem as penas militares”. Assim, no dizeres do renomado
autor, ao Poder Executivo cabe apenas a aplicação das normas criadas pelo Poder
Legislativo. Segue o autor na mesma obra (p. 45) acentuando que
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(...) o direito disciplinar, e assim também o militar, passa a


refletir uma tendência liberalizante que encontra concretude,
por exemplo, naquilo que os doutrinadores passaram a
denominar jurisdicionanalização do processo administrativo
disciplinar, ao que preferimos a expressão do fenômeno como
processualização do direito administrativo disciplinar, como
tendência de aplicação das garantias e direitos do indivíduo na
órbita disciplinar militar.
Igualmente, para Elbert da Cruz Heuseler (2011, p. 33) “Na
transgressão disciplinar, o militar está sujeito a perder sua liberdade, e, portanto,
esta consequência somente poderá ser aplicada e considerada válida se respeitar o
princípio da reserva legal e o artigo 5º, inciso LIV, da CF”.
Como visto, malgrado vozes se levantem a favor da criação de normas
disciplinares por parte do Poder Executivo (como Jorge César de Assis), para o
Elbert da Cruz Heuseler, como se afere do trecho transcrito, toda norma que
implique direitos e garantias do indivíduo, mesmo no âmbito castrense, deve ser
submetida ao processo legislativo para sua aprovação.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão bastante controvertida acerca
do tema, frente à ADI 3.340-9/DF, julgada em 03 de novembro de 2005, não
conheceu da Ação e considerou constitucional o Regulamento. Nos termos da
decisão por maioria dos votos dos ministros, a referida norma seria de competência
do Poder Executivo, posto ser ato do seu Chefe.
Controvertido, ainda, afirmar a Corte que deveria indicar o Procurador
qual parte do Decreto que seria considerado inconstitucional. Conforme discorrido
acima, mesmo afastado princípio da reserva legal para o caso das transgressões
disciplinares militares, ainda assim restaria prejudicada a formalidade da lei, em
tese, para a elaboração da norma disciplinar ou sua revogação.

4 – Conclusão

Por todo exposto, olvidando-se do conteúdo material do Regulamento


Disciplinar do Exército vigente, instituído por meio do Decreto 4.346, de 26 de
agosto de 2002, pode-se asseverar que ele fere a Carta Magna por não haver
transcorrido as formalidades impostas para sua elaboração, considerando que o
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anterior adquiriu força de lei ordinária, portanto, somente podendo ser revogado ou
alterado com a mesma norma.
Mesmo no direito administrativo disciplinar militar vigem os princípios
da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e da eficiência, além dos
demais que circunscrevem o direito administrativo em geral.
Criar ou extinguir direito por meio de ato administrativo, como
perpetrado pelo decreto em debate, fere o princípio da legalidade. Não é demais
relembrar a teoria de Montesquieu acerca da tripartição dos poderes (embora uno),
teoria esta esposada pela Constituição Pátria, tendo como principal característica o
equilíbrio e a segregação de cada poder da União, com suas funções e
características peculiares.
Não há, portanto, supedâneo jurídico, na legislação moderna, fundada
na Constituição Federativa, para que o Chefe do Poder Executivo, em qualquer das
esferas, que possa criar ou extinguir direitos ou obrigações por meio de decreto.
Toda norma deve observar os princípios constitucionais. Estando, portanto, em
dissonância com a Carta Magna, in caso com os princípios da legalidade e da
reserva legal, não há que prosperar o Decreto 4.346/2002. Assim, entende-se que o
Decreto 90.608/84 não sofreu (nem pode sofrer) alteração por meio de ato do Chefe
do Poder Executivo, conforme preceitos e interpretações constitucionais.
Equivocada, portanto, a decisão da Corte Suprema ao ponderar pela
constitucionalidade do Decreto Presidencial que estabeleceu o novo Regulamento
Disciplinar do Exército.

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar: comentários, doutrina,
jurisprudência dos tribunais militares e tribunais superiores. 6. ed. Curitiba: Joruá,
2010.

Idem. Curso de direito disciplinar militar: da simples transgressão ao processo


administrativo. 3. ed . Curitiba: Juruá, 2012.
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Idem. Os regulamentos disciplinares militares e sua conformidade com a


Constituição Federal. Disponível em www.jusmilitares.com.br; Acesso em 30 de julho
de 2012, às 20h10.

BRASIL, Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969).

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BRASIL, Lei de Organização Judiciária do Distrito Federal e dos Territórios (Lei nº


11.697, de 13 de junho de 2008).

BRASIL, Regulamento Disciplinar do Exército (Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de


2002).

BRASIL, Regulamento Disciplinar do Exército (Decreto nº 90.608, de 04 de


dezembro de 1984) (Revogado).

HEUSELER, Elbert da Cruz. Processo administrativo disciplinar comum e miltar à luz


dos princípios constituicionais e da Lei n. 9.784 de 1999. 2. ed.Rio de Janeiro:
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MIKALOVSKI, Algacir, ALVES, Robson. Manual de processos administrativos


disciplinares militares. Curitiba: Juruá, 2009.

ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Direito administrativo militar: Teoria e Prática. 3. ed.
Rio de Janeiro: Líder, 2007.
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