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(Este é o último de uma série de três textos sobre os três principais elementos

de uma obra literária: Texto, Contexto e Subtexto.)

Continuando com a série de textos sobre a Santíssima Trindade Literária,


abordemos agora a parte mais complexa e delicada da Interpretação Textual: o
Subtexto. Contudo, como é de praxe, vamos recapitular o que entendemos por
Contexto:

O Contexto é a conjuntura que dá razão a um autor para usar certos temas,


palavras, expressões, gêneros, etc. O Texto contém a história, mas é o
Contexto quem a situa. Considerando que todo autor está inserido em um
momento histórico em que alguns temas são mais relevantes que outros,
somos apresentados à visão que ele dá, a essa percepção que ele tem de algo
que ele acredita ser importante passar pra frente. Na história humana, há
temas que são recorrentes (Violência, Religião, Política, Descaso Social, etc.),
temas que diversos autores vão se debruçar e dar sua opinião sobre o assunto.
No entanto, há vezes em que o autor não expressa claramente sua opinião,
esperando que o leitor a capte nas entrelinhas, ou que identifique sobre aquela
situação algo que o próprio leitor experimentou – e aí encontramos o famoso
Subtexto.

Logo no primeiro parágrafo, deixei claro que o Subtexto é algo complexo e


delicado. Dou a esse elemento tais qualidades porque 1) envolve a experiência
do autor; 2) envolve a experiência do leitor; 3) envolve o choque dessas
experiências e o que sobra; e 4) nem sempre podemos estar certos sobre o
que identificamos no final. Neste texto, vou procurar tornar isso mais “fácil” e
dizer como não cair nas armadilhas.

Prontos? Então vamos lá. Peguemos mais um conto de Hemingway.

De novo?

De novo. Mas esse é mais simples.

“A garota olhou para as colinas.

“- São belas colinas, ela disse. – Não se parecem com elefantes brancos.
Quero dizer, a cor de sua pele vista através das árvores.

“- Podemos beber mais um?


“- Tudo bem.

“O vento quente soprou a cortina de contas contra a mesa.

“- A cerveja é gostosa e gelada, disse o homem.

“- É belo, a garota disse.

“- É uma cirurgia muito simples, de verdade, Jig, disse o homem. Não chega
nem a ser uma cirurgia.

“A garota olhou para o chão onde as pernas da mesa estavam colocadas.

“- Sabia que você não se importaria, Jig, disse o homem. Isso é apenas para
deixar o ar entrar.

“A garota não disse nada.

“- Irei e ficarei com você o tempo todo. Eles apenas deixam o ar entrar e então
e, bem, é perfeitamente natural.

“- E o que ocorrerá a nós depois?

“- Ficaremos bem depois. Como antes.

“- O que faz pensar assim?

“- É a única coisa que nos incomoda. É a única coisa que nos faz infeliz.”

(Ernest Hemingway, Colinas como Elefantes Brancos, tradução própria).

Alguém se dispõe a dizer do que se trata o trecho acima?

É muito óbvio, nem foi um desafio na verdade.

Foi, né? Mas e aí? O que faz você achar que seja “isso”?

Bom, ele fala em “cirurgia”, diz que “é a única coisa que nos faz infeliz”. Olha,
essa foi fácil de matar.

Não vou discordar de você. Considerando que o tema é um dos mais delicados
mesmo em nossos dias, é até fácil entender do que se trata o conto. Contudo,
você repara que a única coisa que ele menciona é “cirurgia”, certo?

Certo.

Por que não seria outra coisa? Um defeito congênito, uma…

Esquece, é isso mesmo.


Não discordo, trata-se disso mesmo. Neste exato momento em que você está
lendo este texto, vai reparar que toda vez que menciono o tema coloco um
pronome demonstrativo (disso, isso). No mais, você está dando à palavra um
significado, formando uma ideia do que realmente existe no texto. Por conta do
nosso momento atual, você está mais capacitado a compreender o assunto e
discuti-lo abertamente sem risco de cometer um erro. Contudo, se
considerarmos que o público de Hemingway quando ele escreveu esse conto
(foi em 1927) ainda tinha problemas para aceitar certos assuntos, o jogo para
com os leitores daquela época devia ser mais emocionante – pense só: ele usa
“garota”, e não “mulher”. Isso indica algo, principalmente porque ele é o
“homem”, não o “garoto” – década de 1920, pessoal. Não que hoje em dia não
vejamos isso acontecendo, mas naquela época era mais complexo – leia a
parte II do conto “Homenagem à Suíça”, também de Hemingway, para entender
do que se trata o “Assunto”. Além disso, “elefante branco” em inglês (white
elephant) tem o mesmo sentido: um ônus, um peso do qual devemos nos livrar.
Assim sendo, acabamos de fazer um exercício em que colocamos a nossa
experiência e o Contexto em que foi escrito para formar uma ideia geral do
texto – isso é o Subtexto. Mas estou deixando isso muito fácil. Vamos em
frente.

Quem aqui leu “A Revolução dos Bichos”? Quem não tiver lido, resumirei: é um
romance onde um grupo de animais toma o controle de uma fazenda com o fim
de criar um regime político onde todos sejam iguais. Lembra alguma coisa, né?
Infelizmente, lembra, sim. Justamente por remeter a algo que conhecemos,
sabemos que a história não termina bem. E sem frescura de spoilers,
comparemos os trechos a seguir:

“[Diz o Velho Major:] Por que então continuamos nesta situação miserável?
Porque quase tudo que produzimos com nosso trabalho é roubado de nós
pelos seres humanos. Aí está, camaradas, a resposta para todos os nossos
problemas. Resume-se a uma simples palavra: Homem. O Homem é o único
inimigo verdadeiro que temos. Tire o Homem de cena e a causa-raiz da fome e
do trabalho excessivo será abolido para sempre.”

No final:

“As criaturas do lado de fora olhavam do porco para o homem, e do homem


para o porco, e do porco para o homem novamente. A essa altura, era
impossível distinguir quem era o que.”

(George Orwell, A Revolução dos Bichos, tradução própria).

Conhecendo o Contexto em que o romance foi escrito, sabemos que Orwell


estava decepcionado com os rumos do Comunismo como aplicado na União
Soviética. Apesar de nunca ter abandonado a esperança, ele acreditava que as
ideias de Lênin haviam sido totalmente desvirtuadas por Stálin. O romance,
então, é uma sátira que não “dá nomes aos bois”, nem aos porcos, nem aos
cavalos, mas cada uma das criaturas representa uma instituição ou autoridade
importante no regime soviético. Contudo, além do Subtexto óbvio que
captamos pela experiência do autor – e que poucos de nós vivenciamos -,
temos mais uma lição no romance: por melhores que sejam as ideias,
precisamos tomar cuidado com os rumos que qualquer revolução tome. Para
os animais da fazenda, os Homens apenas haviam sido trocados pelos Porcos
– no final, apenas uma troca de criaturas, nada demais.

Então, até o momento vimos a experiência do leitor e a experiência do autor –


e eu deixei claro o choque que ocorre entre ambos. E quando há a dúvida?
Vide o seguintes trechos de “Fahrenheit 451”:

“‘Você lê algum dos livros que queima?’”

“Ele riu. ‘Isso é contra a lei!’

“‘Ah, é claro.’”

“Se você não quer que um homem seja infeliz politicamente, não dê a ele dois
lados para questionar – dê apenas um. Melhor ainda, não dê nenhum. Deixe-o
esquecer que existe algo como a guerra.”

“Isso não veio do Governo. Não houve edito, declaração, censura para
começar – oh, não! Tecnologia, exploração em massa, a pressão das minorias
– por Deus, foi isso que aconteceu. Hoje, graças a eles, você pode ser feliz o
tempo todo, ler quadrinhos, as boas e velhas confissões, ou os jornais
mercantis.”

(Ray Bradbury, Fahrenheit 451, tradução própria).

Vamos lá, do que se trata o romance Fahrenheit 451?

De cens…

PLEIM. Errou.

Como assim errei?

Na verdade, não posso nem dizer que você errou.

Mas então… por que você falou que eu errei?

Você leu todos os trechos acima?


Sim, bem como o livro.

De fato, e eu também. O romance trata de um futuro onde a sociedade contrata


“bombeiros” (firemen, pra vocês entenderem a ironia) para queimar livros e
obras de arte. Um desses “bombeiros”, Guy Montag, acaba pegando um livro
de curiosidade. E depois. E outro. E mais outro. Ele é casado com uma mulher
que vive para assistir/participar de “novelas interativas”. Digamos que as coisas
começam a sair dos eixos com esse ato de Montag.

Tá, mas e do que se trata o romance então?

E eu é que sei?

Mas… você disse….

Eu disse, né? Esse é o problema: foi EU quem disse. No caso dos exemplos
acima, o Subtexto fica claro pelo exame do Contexto das obras, seja pela
experiência de Hemingway (uma sociedade conservadora) ou de Orwell (a
decepção com o regime soviético). Você pode verificar isso. Mas no caso
de Fahrenheit 451? Bem, as respostas são diversas. Veja o que o autor mesmo
tem a dizer:

“Ao escrever o romance curto Fahrenheit 451, pensei estar descrevendo um


mundo que poderia surgir dentro de quatro ou cinco décadas. Mas há poucas
semanas, em Beverly Hills, uma noite vi passar por mim um casal que estava
andando com seu cachorro. Fiquei olhando para eles, totalmente chocado. A
mulher mantinha em uma das mãos um rádio do tomando de uma caixa de
cigarros, com uma antena aparecendo. Dessa caixa saía pequenos fios de
cobre que terminavam em um cone plugado no ouvido direito dela. Lá estava
ela, sem prestar atenção para o marido e para o cachorro, ouvindo ventos
distantes e sopros e gritos de uma novela, em transe sonâmbulo, auxiliada pra
cima e pra baixo por um marido que poderia muito bem não estar lá. Isso não
era ficção.”

(Ray Bradbury, citado por Kingley Amis em New Maps of Hell: A Survey of
Science Fiction, tradução própria).

Ah, então a resposta certa é “cultura de massa”?

Bradbury diria que sim. Mas e o que você diria? Durante uma palestra na UCLA
– alma mater de Bradbury -, o autor saiu batendo o pé quando os alunos não
concordaram com ele sobre essa resposta. Eu mesmo diria que ambas as
alternativas estavam certas, afinal, o romance deixa transparecer ambos – e
essa é uma das belezas da literatura: a possibilidade de que nem mesmo o
autor saiba do que está falando, de quantos sentidos ele criou, sem querer,
para um mesmo texto.
Portanto, para captarmos o Subtexto, precisamos ter em mente 1) a época em
que o texto foi escrito; 2) as experiências do autor; 3) prestar atenção no que
aparece no Texto em si, as palavras e símbolos; 4) pensar na possibilidade de
que há algo no texto que é recorrente mesmo em nossos dias; 5) e procurar
adquirir mais e mais conteúdo, porque muito do que os autores dizem pode ter
a ver com as influências que sofreram – a saber, o que leram, que autores
admiravam, no que acreditavam.

Então, encerrando essa trilogia de textos, digamos que o Subtexto representa


as próprias fundações da ponte – aquilo que veremos desmontando-a.
Também podemos dizer que é aquilo que a ponte nos traz à lembrança, o que
ela representa para nós – mas mesmo isso tem algum fundamento na
realidade, seja no passado ou no presente. Logo, aquilo que não está exposto,
o não-declarado – mas implícito -, constitui o Subtexto. Mais uma dica final
para vocês: saiba ser moderado e esteja certo daquilo que você entendeu.

Espero que as dicas acima tenham sido úteis a vocês. O próximo texto será
uma aplicação mais clara de como identificar todos a Trindade de uma vez.

Obs.: Em todos os três textos eu inseri uma imagem e não expliquei do que se
trata – bem como mencionei coisas e não as esclareci. Acreditem, foi
proposital. Os textos explicam, a imagem resume – confio no intelecto de
vocês. Lembrem-se: quem detém o “poder” da interpretação é o leitor; logo,
procure ter certeza daquilo que você entende em um texto – e se preciso for,
prove por A + B que você está certo. Literatura é uma via de mão dupla:
esperando que o autor tenha feito a parte dele, fazemos a nossa. Nada mais
justo.

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