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CAPÍTULO 2

A Bíblia no sistema calvinista


Escrito por H. Henry Meeter1

Se Deus, segundo o ensino calvinista, é quem controla tudo, seria natural que o calvinista veja
todas as coisas como Deus as vê, e deseje fazer em todas as coisas a sua vontade. Então, segue que para
ele a Bíblia ocupará um lugar primordial, tanto em seu sistema como em sua vida. O calvinista fará da
Palavra de Deus o seu cânon, ou seja, a regra de toda a sua vida: a regra de fé que guiará o seu intelecto;
e a regra de conduta que regulará a sua obrigação moral.

A NATUREZA COMO REVELAÇÃO DIVINA

Na realidade Deus nos deu livros, duas revelações de si mesmo: o livro da natureza e o das
Escrituras Sagradas. Ainda que ambos seja revelação de Deus, tal como veremos, ainda assim não são
idênticos; contudo, é um importante princípio calvinista afirmar que tanto a natureza como as Escrituras
são revelação de Deus. Para alguns a natureza é o único livro de Deus e dispensa a Bíblia como
revelação especial; para outros, que caem no oposto extremo, a natureza não envolve nenhuma
revelação de Deus. Todavia, o calvinista aceita a ambas revelações. Há outros, como os católicos
romanos e os quakers, que apresentam certa predisposição a acrescentar algo à Bíblia como revelação
especial, ora dogmas eclesiásticos, encíclicas papais ou outras revelações.2
Por livro da natureza o calvinista entende algo mais do que os minerais, flora, fauna ou mesmo
os homens. Estes objetos naturais, apesar de serem criados por Deus, são também dirigidos por Ele em
todo o suceder da história. Consequentemente, tanto a história natural como humana nos revelam
muitos aspectos de Deus e nos mostram o operar de sua mão. Acrescenta-se à natureza e à história
também a natureza que nos oferece o próprio homem; o salmista diz: “Tu formaste o meu interior ..., te
louvarei porque formidáveis e maravilhosas são as tuas obras” (Sl 139:14). O homem por ser criado à
imagem de Deus nos revela muito sobre o ser do Criador.
O livro da natureza nos fala do mundo e dos objetos e a história; mas, além disso, vem a ser
cenário em que o calvinista descobre algo das ideias, vontade e majestade de Deus. Assim, considera ser
sua obrigação ler este livro da natureza e estudá-lo e, deste modo, poder assimilar algo dos
pensamentos que envolvem Deus. Sendo isto necessário porquanto tais pensamentos não estão
arranjados e estruturados para serem lidos como um livro, senão que estão, por assim dizer, imersos na
natureza. Deus quer que as suas criaturas descubram estas ideias, encontrem a sua unidade e harmonia,
e discirnam o seu propósito e natureza essencial. Assim, pode-se perceber o quão amplo é o enfoque
que o calvinista dá à vida. Ele considera ser sua obrigação investigar toda a forma de vida, não somente
para aumentar a sua cultura intelectual, mas também, para desenvolver estas ideias implícitas na
natureza e poder organizar e explicá-las num todo harmonioso para o serviço de seu Deus. Se Deus lhe
deu o livro da natureza para o campo de estudo, é do calvinista o dever de desenvolver uma concepção
total do mundo e da vida. A natureza e inclusive a vida se convertem para ele no recinto sagrado de
onde há de honrar a D

A BÍBLIA COMO REVELAÇÃO DE DEUS

1
H. Henry Meeter, Doutor em Teologia, foi presidente durante 30 anos do Departamento Bíblico do Calvin College,
Grand Rapids, MI. Nota do tradutor.
2
Neste caso também se incluem os pentecostais e carismáticos em geral.
Entretanto, Deus possui outro livro: a Bíblia. No princípio existia somente um livro, uma só
revelação de Deus: a natureza. E no mundo vindouro de novo não haverá mais do que um livro: a nova
natureza, na qual o homem verá a Deus e a sua vontade revelada. Os redimidos na eternidade, do
mesmo que Adão, terão clara revelação da vontade de Deus em seus corações e da natureza que os
cerca, e não terão, consequentemente, nenhuma necessidade de uma revelação especial como é a
Bíblia.
Há um fato que explica o motivo da necessidade deste segundo livro: a Bíblia, ou revelação
especial de Deus; este livro foi necessário por causa do pecado. Quando o homem caiu, tanto ele como
a natureza mudou. A mente do homem chegou a entenebrecer-se de tal maneira, que não era capaz de
ver as coisas tal como eram; e a natureza se viu alterada como parece deduzir-se da expressão:
“produzirá também cardos e abrolhos” que encontramos no livro de Gênesis (Gn 3:18). Contudo, ainda
hoje a natureza é um espelho em que se reflete a glória de Deus. Todavia, por causa do pecado pode-se
dizer que este espelho esteja deformado. Como é sabido, um espelho torto reflete as coisas de uma
forma grotesca e diferente de como realmente são. Como pode o homem agora com sua mente
entenebrecida e numa natureza transtornada, descobrir a Deus de modo correto, ou chegar a conhecer
a sua verdadeira natureza e propósito de sua existência? Estas se tornam as três perguntas
fundamentais que o calvinista terá presente em sua cosmovisão.
Sob tais condições como pode o homem obter uma concepção adequada da realidade? A única
solução seria se Deus desse outro livro: a Bíblia. Na Bíblia Deus revela ao homem de uma maneira clara
e infalível a verdade sobre estes problemas, iluminando ao mesmo tempo com a luz do Espírito Santo a
sua mente entenebrecida para que seja capaz de compreender as verdades bíblicas. Assim, podemos
ver a relação que existe entre a Bíblia e o livro da natureza. A Bíblia não está no mesmo nível da
natureza como revelação de Deus, senão que é um corretivo das ideias deformadas que possa dar-nos a
natureza em seu estado decaído. Apresenta-nos uma revelação sobre Deus e o universo que a natureza
não pode proporcionar de maneira adequada. Como disse Calvino, devemos olhar para a natureza
através das lentes da Bíblia. Assim, pois, ainda que duas sejam as revelações que Deus deu as suas
criaturas, a Bíblia constitui a máxima autoridade para uma cosmovisão. O cristão para interpretar
corretamente a natureza e o mundo circundante necessita do enfoque bíblico.
Todavia, a Bíblia é mais do que um mero intérprete da natureza, já que ela contém uma
revelação especial para a salvação do pecador. Esta informação tão importante não pode vir da natureza
pela simples razão de que a natureza foi criada antes que se abrisse um caminho de salvação aos
pecadores. Assim, como poderia a natureza informar-nos sobre isto? Contudo, ainda que a salvação do
homem é na realidade o tema central da Bíblia, esta revelação está estreitamente vinculada a visão
geral do universo e da vida humana.
Interpretaríamos mal o propósito da Bíblia se crêssemos que se trata de um mero livro de texto
sobre diferentes conhecimentos. Não se trata disto. O estudante nos diferentes campos de investigação
– natureza, história, psicologia, etc. – acumula evidência. Quando procede a interpretação ou de
organizar esta evidência e a relacionar as verdades de alguma ciência em particular numa estrutura
geral de conhecimentos, necessitará de interpretação unificadora das Escrituras. Não podemos ter uma
concepção correta de Deus, do universo, do homem, ou da história sem a Bíblia.
Consequentemente, este livro além de mostrar-nos o caminho da salvação nos proporciona
aqueles princípios que condicionarão toda a nossa vida, incluindo os nossos pensamentos e a nossa
conduta moral. Não somente a ciência e a arte, senão que também a nossa vida familiar, os nossos
negócios, os nossos problemas políticos e sociais devem estar processados e estruturados à luz e
direção das verdades da Escritura.
Isto é assim, inclusive na filosofia. Pode-se supor que pelo fato da filosofia ser a ciência dos
princípios, então que a filosofia cristã em última instância terá que fundamentar-se na razão e, tratará
de todos os problemas da filosofia sobre uma base puramente racionalista, desprezando a Bíblia como
autoridade final. Mas ainda aqui o calvinista não fundamenta a sua aceitação das verdades bíblicas em
sua filosofia, pelo contrário, inicia com as verdades básicas da Bíblia para fundamentar a filosofia. A sua
filosofia se fundamenta especificamente sobre a revelação. Da mesma maneira que todos os sistemas
filosóficos partem de pressuposições básicas não provadas – hipóteses – assim, o cristão parte das
verdades da revelação como pressupostos básicos. O proceder do calvinista não consiste em
fundamentar a Bíblia na filosofia, senão que estrutura a sua filosofia cristã sobre a Bíblia.
Os princípios de fé e conduta que a Bíblia contém, do mesmo modo que as verdades do caminho
da salvação surgem dentro de um contexto histórico vinculado aos acontecimentos dos homens e das
nações. Consequentemente não se pode esperar que tudo o que a Bíblia ensina tenha o mesmo valor, e
possa ser considerado como norma da vida para nossa conduta. Ela menciona alguns atos que na
realidade são totalmente contrários a uma norma da vida padrão como, por exemplo, quando Absalão
traiu de forma vergonhosa a seu pai Davi. Outras porções da Escritura contêm normas que não são para
todas as épocas, senão que uma vigência específica num período ou ocasião determinada. Assim,
Calvino nota que várias das leis civis de Moisés não eram para o nosso tempo, senão que encerram uma
significação meramente transitória. Contudo, a Bíblia nos apresenta diretrizes básicas, ou princípios
eternos à luz dos quais julga os atos históricos que contém, e nos insta a que também moldemos as
nossas vidas. Estes princípios eternos se encontram não somente no Novo como também no Antigo
Testamento.

A BÍBLIA COMO CÂNON

O calvinista sustenta que a autoridade da Bíblia é absoluta. Não considera a Bíblia simplesmente
como um livro de bons conselhos que o homem pode adotar livremente, se assim o considera
conveniente, ou rejeitar se assim lhe parece mais oportuno. A Bíblia é para o calvinista uma norma
absoluta à que deve submeter-se totalmente. A Bíblia lhe dita o que deve crer e o que deve fazer; fala
com força imperativa. Calvino era muito enfático neste ponto. Se a Bíblia fala, somente há uma
alternativa: obedecer.
A razão que explica este alto conceito da Bíblia procede, naturalmente, do que é a Palavra de
Deus. Tendo Deus falado e em sua revelação nos mostrou a sua vontade para as nossas vidas,
consequentemente, devemos obedecê-la. Para o calvinista ao contrário do modernista, a Bíblia não é
uma mera interpretação pessoal da religião e a vida dada em diferentes modelos religiosos, senão que
detrás dos escritores da Bíblia descobre a infalível mão de Deus. Quando pensa na maneira como estes
homens escreveram a Bíblia, o calvinista insiste no fato de que estes foram organicamente – não
mecanicamente – inspirados; significando com isto que Deus serviu-se destes homens e de seus dons
para dar-nos a sua revelação; e de tal maneira, isto foi assim, que o que escreveram era nada menos do
que os pensamentos de Deus. Quando o calvinista contempla o conteúdo da Bíblia mantém que esta foi
verbalmente e realmente inspirada; e, quando pensa no propósito que moveu Deus a impulsionar a
estes homens a escrever, o calvinista descobre uma inspiração plena, ou seja, uma inspiração que inclui
de um modo completo tudo o que Deus havia proposto revelar.
Aqui surge uma importante pergunta: como sabe o calvinista que a Bíblia é a Palavra de Deus?
Sobre que base se apoia para afirmar que a Bíblia é um livro divino? Esta é uma pergunta muito
importante e que a consideraremos no próximo capítulo.

Extraído de H. Henry Meeter, La Iglesia y el Estado (Grand Rapids, TELL, 1963), pp. 25-32. Este livro
originalmente foi publicado sob o título de THE BASIC IDEAS OF CALVINISM.

Traduzido por Rev. Ewerton B. Tokashiki


14 de Abril de 2012.

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