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O eu fragmentado

Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?

Minha alma procura-me


Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.

Ser um é cadeia,
Não sei quantas almas tenho.
Ser eu não é ser.
Cada momento mudei.
Viverei fugindo Continuamente me estranho.
Mas vivo a valer. Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Viajar! Perder países! Atento ao que eu sou e vejo,


Ser outro constantemente, Torno-me eles e não eu.
Por a alma não ter raízes Cada meu sonho ou desejo
De viver de ver somente! É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Não pertencer nem a mim! Diverso, móbil e só,
Ir em frente, ir a seguir
Não sei sentir-me onde estou.
A ausência de ter um fim,
E a ânsia de o conseguir! Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue prevendo,
Viajar assim é viagem. O que passou a esquecer.
Mas faço-o sem ter de meu Noto à margem do que li
Mais que o sonho da passagem.
O que julguei que senti.
O resto é só terra e céu.
Releio e digo: "Fui eu"?
Deus sabe, porque o escreveu.
A dor de pensar e a solidao de ser

Cansa sentir quando se pensa.


No ar da noite a madrugar Não sei ser triste a valer
Há uma solidão imensa Nem ser alegre deveras.
Que tem por corpo o frio do ar. Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Neste momento insone e triste Assim também, sem saber?
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe Ah, ante a ficção da alma
Na noite antes de amanhecer. E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Tudo isto me parece tudo. Ver uma flor sem razão
E é uma noite a ter um fim Florir sem ter coração!
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim. Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
(Tudo isto me parece tudo. Sem querer a gente pensa.
Mas noite, frio, negror sem fim, O que nela é florescer
Mundo mudo, silêncio mudo - Em nós é ter consciência.
Ah, nada é isto, nada é assim!)
Depois, a nós como a ela,
Se estou só, quero não estar,
Se não estou, quero estar só,
Quando o Fado a faz passar,
Enfim, quero sempre estar Surgem as patas dos deuses
Da maneira que não estou. E ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm


Ser feliz é ser aquele. Vamos florir ou pensar.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.

A gente faz o que quer


Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.

Sonho. Não sei quem sou neste momento.


Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo


Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,


Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.
Sonhar? Viver?

Não sei se é sonho, se realidade,


Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade Contemplo o lago mudo
Que na ilha extrema do sul se olvida. Que uma brisa estremece.
É a que ansiamos. Ali, ali Não sei se penso em tudo
A vida é jovem e o amor sorri. Ou se tudo me esquece.

Talvez palmares inexistentes, O lago nada me diz,


Áleas longínquas sem poder ser, Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Sombra ou sossego deem aos crentes
Nem se desejo sê-lo.
De que essa terra se pode ter
Felizes, nós? Ali, talvez, talvez,
Trêmulos vincos risonhos
Naquela terra, daquela vez. Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
Mas já sonhada se desvirtua, A minha única vida?
Só de pensá-la cansou pensar;
Sob os palmares, à luz da lua,
Sente-se o frio de haver luar
Ah, nesta terra também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,


Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.
Saltar o muro
Não sei, ama, onde era,
Nunca o saberei...
Sei que era Primavera
E o jardim do rei...
(Filha, quem o soubera!...).
Que azul tão azul tinha
Ali o azul do céu!
Se eu não era a rainha,
Porque era tudo meu?
(Filha, quem o adivinha?).
E o jardim tinha flores
De que não me sei lembrar...
Flores de tantas cores... Contemplo o que não vejo.
Penso e fico a chorar... É tarde, é quase escuro.
(Filha, os sonhos são dores...). E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.
Qualquer dia viria
Qualquer coisa a fazer Por cima o céu é grande;
Toda aquela alegria Sinto árvores além;
Mais alegria nascer Embora o vento abrande,
(Filha, o resto é morrer...). Há folhas em vaivém.
Conta-me contos, ama...
Todos os contos são Tudo é do outro lado,
Esse dia, e jardim e a dama No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que eu fui nessa solidão...
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe


Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.

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