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A geopolítica do Golpe de 64

Antecedentes

         Desde que James Monroe, em 1822 proclamou a Doutrina clássica que levaria o seu nome e
nortearia a administração estadunidense por muitos anos face ao colonialismo da Europa, “A América
(inteira) para os Americanos (dos EUA)”, com profunda agudização no final da Segunda Guerra Mundial os
EUA buscam exercer diretamente a sua hegemonia sobre todas as Nações, muito particularmente as do
que consideram “seu quintal”, a América Latina. A onda nacionalista das primeiras décadas do século XX
em nosso hemisfério (Perón na Argentina, Vargas no Brasil, etc.) contrariava os interesses do
empresariado internacional representado pelo governo estadunidense que, desde sempre, fez carga contra
tais políticas.

            Getúlio Vargas conseguiu, com um único tiro no próprio peito em agosto de 1954, acertar a um só
tempo a oposição a ele (local, mas com raízes profundas em Washington) e retardar o golpe militar no
Brasil por 10 anos. Isso, além da melhor legislação trabalhista e previdenciária que o país já teve, a ele
devemos em que pesem eventuais desavenças que possamos ter com aquele importante líder latino-
americano.

            Seu sucessor, Juscelino Kubitschek começou a inserir o Brasil no contexto do que mais tarde se
chamaria de “globalização”: trouxe montadoras de automóveis para o Brasil – dando um incentivo
insignificante à indústria nacional, tão insignificante que durou menos de uma década. Em que pese a
propaganda tão ufanista quanto vazia, depois da falência da Romiiseta e da Gurgel, não temos indústria
automobilística no Brasil. Tudo o que temos são montadoras de automóveis de marcas estrangeiras.
Juscelino promoveu crescimento e avanço ao Brasil, concedamos, dentro dos marcos do capitalismo
ampliando o endividamento externo e deixando aberta a porteira da corrupção.

            No quadro externo, a Guerra Fria entre o capitalismo estadunidense e o socialismo (em verdade
uma espécie de capitalismo de Estado) de corte soviético esquentava cada vez mais. Em janeiro de 1959
Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e outros idealistas entravam vitoriosos em Havana,
colocando para correr a ditadura pró-estadunidense de Fulgêncio Batista. Cuba fica a cerca de 160 milhas
náuticas de distância da Flórida. Quando, em 1961, Fidel Castro anunciou que a Revolução Cubana
seguiria na direção do Socialismo foi uma calamidade para os estadunidenses. Tanto pela proximidade do
inimigo “em seu quintal” quanto pelo exemplo que potencialmente trazia a outras Nações colocadas sob a
órbita de influência estadunidense desde a “Doutrina Monroe”.

            De fato, cresciam e se fortaleciam após anos de exceção nacionalista burguesa, os partidos e
movimentos de esquerda na América Latina: os Montoneros no Uruguai, os Tupamaros no Peru, o
Partidão no Brasil, o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionária) chileno, etc. Todos seduzidos pelo
exemplo de um grupo idealista capaz de mobilizar as massas a expulsar o invasor estrangeiro fosse na
forma de capital, fosse na forma de sua presença física mesma. Surgia no Cone Sul a polarização entre a
direita (que, desde sempre, defende o Capital e a manutenção da Ordem colocada e benéfica a poucos
banqueiros, empresários e latifundiários) e a esquerda (que, desde sempre, defende os direitos do Ser
Humano contra o Capital – que o Capital seja colocado a serviço do Humano ao invés do Humano a
serviço do Capital, lutando uma Nova Ordem).

O War College e seus clones, as Escolas Superiores de Guerra impõem a Ideologia


da Soberania Nacional

            Fazendo face a esta situação, os EUA criaram o War College e ofertaram bolsas de estudos com
vultuosos estipêndios para que os oficiais superiores e generais de toda a América Latina freqüentassem a
seus cursos. Regressando da Metrópole, pulularam em todas as colônias “Escolas Superiores de Guerra”:
no Panamá, Argentina, Chile, Paraguai, Brasil, Peru, Venezuela, etc. O eixo era monocórdio: como hoje a
política externa estadunidense volta-se ao “combate ao terrorismo e ao narcotráfico” naquela ocasião o
mote era “combater o comunismo”. Tão irracional este quanto aquele, todo o comportamento minimamente
desviante era considerado “simpatizante do comunismo” e se começaram a criar organismos de
informação e segurança nos quartéis para dar combate ao “inimigo interno”, criando-se fichas de supostos
simpatizantes do comunismo. Nos EUA, era a época do Macarthismo, que instaurou a delação obrigatória
no meio artístico e trouxe grave dano à produção cinematográfica de Hollywood. No Chile, Paraguai, Brasil,
Argentina, etc. eram os quartéis vigiando os políticos para que não ocorresse qualquer desvio na direção
do socialismo.

            Diante de tal situação o eleitorado brasileiro optou, nas eleições de 1960, por conduzir o Collor de
Mello daquela época, conhecido como Jânio Quadros, com sua política moralizante, voltada meramente a
combater a corrupção com o discurso, sem suporte partidário que lhe desse sustentação, à Presidência da
República mas, sabiamente, elegeu para a Vice-Presidência o varguista João Goulart (na legislação
vigente desde a redemocratização de 1946 até o golpe de 1964 era possível votar para Presidente por um
Partido e para Vice-Presidente por outro diferente). Depois de tomar algumas e outras, além de medidas
“moralizantes” altamente discutíveis como proibir rinhas de galo e desfiles de moda em trajes de banho (o
que, na melhor das hipóteses, poderia ser iniciativa de um Ministro da Justiça. De um Presidente da
República se esperava algo mais profundo, mais sério) Jânio se disse acossado por “Forças Ocultas” que
jamais nomeou e renunciou tomando o cuidado de levar consigo a Faixa Presidencial. Ansiava regressar
ao poder “nos braços do povo” e exercer seu autoritarismo em sua plenitude, antigo e recorrente sonho de
todos os governantes que passam pelo Palácio Governamental Brasileiro. O povo, contudo, aplaudiu sua
decisão de renunciar e ninguém se mobilizou para que retornasse. João Goulart estava justamente em
visita à China Socialista governada por Mao Tsé-Tung em agosto de 1961 quando da renúncia do
Presidente. Os militares se articularam com o Congresso Nacional: não era considerado possível deixar
um “simpatizante do comunismo esquerdizante” assumir a presidência da República no Brasil. A ideologia
da Segurança Nacional da Escola Superior de Guerra brasileira não o admitiria. Jango faz uma viagem
longa, tortuosa, tomando a rota do Pacífico, mais longa, até chegar de volta ao Brasil. Chegando de
regresso ao Brasil, Jango encontra um quadro pronto: o Congresso Nacional, com as bênçãos das Forças
Armadas, promulgou a vigência do Parlamentarismo – sempre é bom recordar o segundo dos “Primeiros
Ministros” deste período parlamentarista brasileiro, Tancredo Neves, homem de confiança dos militares...

            Parêntese: em setembro de 2005 recebi um e-mail, idêntico ao de setembro de 2004 e com a
mesma esperança embutida para agosto de 2006: “o mês de agosto no Brasil é marcado por tragédias: em
agosto Vargas se suicidou, em agosto Jânio renunciou. Em agosto passado Lula não se suicidou nem
renunciou.”

            Em 1962 o povo brasileiro foi convidado às urnas. Plebiscito: “Você é favor do parlamentarismo no
Brasil?”. Quem votasse “sim” desejava a continuidade da excressência montada pelos militares em
articulação com o parlamento; quem votasse “não” desejava o retorno da Ordem Institucional de 1946. O
voto “não” foi maciçamente vencedor mas João Goulart jamais obteve o apoio necessário a fazer uma
política de esquerda coerente. Houve avanços, mas a própria limitação de sua consciência possível e o
quadro de propaganda maciça anticomunista do período tornaram suas propostas e medidas mais
decisivas absolutamente inócuas.

            A virada do ano de 1963 para 64 encontra generais conspiradores em todos os quartéis do país e
até na Esplanada dos Ministérios em Brasília. O golpe se articulava. Era necessário evitar que João
Goulart tomasse as medidas “esquerdizantes” de decretar a Reforma Agrária de terras devolutas às
margens das Rodovias Federais e limitar a remessa de divisas ao exterior. Para isso se mobilizou, em
vários pontos do país, conservadores de todos os matizes contra João Goulart e a favor da ditadura
ansiada pelos EUA para o Brasil.

            Jango reagiu convocando o povo para um Comício histórico na Central do Brasil, Rio de Janeiro, na
sexta-feira 13 de março de 1964. A Central do Brasil, além de ser o ponto de chegada e partida do maior
número de trabalhadores do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense, fica exatamente ao lado do antigo
prédio do Ministério do Exército, o que foi considerado uma afronta direta aos militares que optaram por
não responder naquele instante. No Comício da Central do Brasil Jango anunciou a expropriação de terras
devolutas às margens das rodovias e a nova lei limitando a remessa de lucros ao exterior

            A Máquina de Guerra do Exército Brasileiro aumenta sua movimentação com deslocamentos de
tropas e exercícios “de rotina” os mais diversos pelo país afora. Além disso, propagandistas das Forças
Armadas Brasileiras aliados aos EUA e à Igreja Católica orientam grandes contingentes populares a
protestar contra o processo de esquerdização do Brasil que João Goulart estaria protagonizando. Pipocam
em vários pontos do país, com ênfase para a cidade de São Paulo, as “Marchas da Família com Deus e
Pela Liberdade” ou seja, marchas contra João Goulart, contra a Democracia e a favor da Ditadura, das
Forças Armadas Brasileiras e dos EUA. Infelizmente, aqui no Brasil, como já ocorrera na Alemanha nazista
e se repetiria em vários outros países-satélite dos EUA, o povo foi às ruas pedindo a Ditadura, a
intervenção das Forças Armadas contra a Democracia embora, naturalmente, utilizassem um linguajar
mais apropriado ao tempo em que viviam.

O 1º de Abril de 1964

         Sem contar com o apoio popular esperado, menos ainda com qualquer tipo de apoio dos auto-
proclamados “representantes do povo”, Jango retira-se melancólico para sua terra natal, São Borja, e
aguarda os desdobramentos dos acontecimentos. Presidindo a Câmara dos Deputados no dia 1º de Abril
de 1964, Auro de Moura Andrade, ecoando no Congresso Nacional a voz dos quartéis, declara vaga a
Presidência da República com o Presidente em território nacional. Sob vaias dos poucos representantes
genuínos do povo brasileiro e da democracia, Moura Andrade transfere a Presidência da República para o
Presidente efetivo da Câmara dos Deputados, Paschoal Ranieri Mazilli que, tão logo os militares se
instalam nos postos de comando da Nação, transfere a Presidência ao general Castello Branco, que
governará o Brasil até 1967, quando foi substituído pelo também general Costa e Silva. O começo do golpe
contou com o apoio de todo o conservadorismo brasileiro e contou ainda com a apatia simpática de todos
os que estufavam o peito e se diziam “apolíticos”, como se essa expressão tivesse algum significado no
mundo humano – “O homem é um animal político”, zoon politikon, segundo Aristóteles. Quem se
proclama apolítico está assinando um atestado público de ignorância e incompetência para o exercício da
cidadania.

            A primeira e mais notória medida de Castello Branco, por sinal, é revogar as leis que limitavam a
remessa de lucros ao exterior e aquela que decretava a Reforma Agrária de terras devolutas às margens
das rodovias federais.

            Aos poucos vai ficando claro que os militares não vieram para mudar absolutamente nada e,
inesperadamente, buscam perpetuar-se no poder ao contrário do que imaginavam aqueles que lhes deram
sustentação no início.

AI-5, o Golpe dentro do Golpe

         Quando a demência sobe ao poder o povo sofre. Todas as grandes tragédias da humanidade têm um
início medíocre, fundado em alguma forma de mal-entendido que se constitui meramente na gota d’água
que faltava para a deflagração de um evento maior que já estava em gestação há muito tempo. Em 1968
foi um protesto jocoso do Deputado Federal pelo Rio de Janeiro Márcio Moreira Alves, sugerindo que as
moças que estavam se formando na Escola Normal da Tijuca se recusassem a ir ao tradicional baile dos
Cadetes da Marinha. O general Costa e Silva pediu ao Congresso autorização para processar o Deputado
Márcio Moreira Alves. Pedido negado, o que parecia uma brincadeira foi se transformando numa bola de
neve sem fim que descamba no que se chama até hoje de “golpe dentro do golpe”, a decretação do Ato
Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968. Com AI-5, fechava-se o Congresso Nacional e o
Presidente-general passava a ter amplos poderes para decretar estado de sítio, intervenção nos Estados,
cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos além de subordinar o Judiciário e o Legislativo ao
Executivo e suspendia o efeito de habeas corpus para crimes considerados atentatórios à “segurança
nacional”.

            Com o AI-5 começou o período mais negro da Ditadura: milhares de pessoas foram aprisionadas
entre intelectuais, artistas, cientistas, estudantes, trabalhadores, políticos... Todos identificados como
“inimigos do povo brasileiro”. Seguiram-se mais prisões, torturas, assassinatos e “desaparecimento” de
presos políticos foram praticados em nome da segurança nacional...

            O mesmo acontece, sob rigorosa orientação e controle estadunidense no Chile, Paraguai,
Argentina, Uruguai, Venezuela, Panamá, etc. As décadas de 1960 a 80 do século XX ficaram marcadas
pelas ditaduras militares na América Latina.

Os EUA decretam o final das ditaduras militares

Somente a ascenção dos democratas ao poder nos EUA e sua política de “respeito aos direitos
humanos” com vistas a dar combate aos regimes socialistas do Leste Europeu faz com que a sede de
todas as ditaduras ordene que seus generais fantoches promovam aberturas “lentas, graduais e seguras”
rumo à democracia, sendo caninamente obedecidos pelos militares brasileiros, chilenos, paraguaios,
argentinos, etc. A resistência dos Tupamaros no Peru, dos Montoneros no Uruguai, do MIR chileno, dos
movimentos guerrilheiros no Brasil não deve ser olvidada. Menos ainda a atuação parlamentar quando os
militares permitiram a reabertura do Congresso com dois partidos, o MDB, Movimento Democrático
Brasileiro, também conhecido como “Partido do Sim” e ARENA, Aliança Renovadora Nacional, conhecida
como “Partido do Sim, Senhor!” – o  “Não” estava proibido, atuava na clandestinidade...

            Mesmo sem olvidar estes processos de resistência à Ditadura, seja pela via parlamentar, seja pela
via revolucionária, somos obrigados a constatar que somente após a política agressiva dos EUA contra os
países que praticassem crimes contra os direitos humanos a abertura efetivamente começou a acontecer.
Os EUA precisavam conter regimes socialistas autoritários que torturavam, degredavam, matavam e
perseguiam seres humanos, mas para evitar o dissabor de serem contraditados na ONU a esse respeito,
decidiram-se por fazer uma faxina em seu próprio quintal, a América Latina. A espinha dorsal da
resistência aos interesses estadunidenses estava morta, exilada, sepultada, esquecida ou domesticada.
Era a hora de “abrir”. Depois de um número elevadíssimo, embora talvez jamais se saiba corretamente, de
mortes e do desespero generalizado de todo o continente, os generais do Cone Sul se viram forçados
pelos interesses estadunidenses a transferir o poder aos civis. Em alguns casos, como o brasileiro,
tomando o cuidado de evitar “revanchismos”, em outros, como no argentino, que desesperadamente tentou
uma guerra contra a Inglaterra para conquistar alguma popularidade e conseguiu justamente o oposto:
humilhados pelo adversário estrangeiro, tiveram de se haver com a crítica interna contundente de serem
mais eficientes em matar seus próprios concidadãos do que efetivamente enfrentar inimigos da Nação
Argentina – por lá, um número significativo de militares torturadores e assassinos foi mais ou menos
punido. De todo o modo, em todo o Cone Sul, ocorreram raríssimos casos de punição, muita “auto-anistia”,
o regresso dos exilados mas a hegemonia estadunidense já estava colocada com raízes profundas na
economia, na educação e mesmo na cultura dos povos da América Latina tornando desnecessária a
Ditadura como forma de encaminhamento dos interesses estadunidenses por aqui. Ocorreram eleições
nos moldes estadunidenses que repetiram regimes políticos e econômicos nos mesmos moldes da matriz
e chegamos ao século XXI constatando entre estarrecidos e anestesiados que até mesmo conceitos
outrora relevantes na América Latina como “Nacionalismo”, “Patriotismo”, “Interesse Nacional”, etc. estão
decompostos. A prática não mais existe há muito tempo: os militares começaram a decompor estes
conceitos. Como amar uma pátria que tortura, mata, persegue, cala, silencia e impede as pessoas de
serem livres e terem bons costumes? Até o conceito de patriotismo encontra-se esvaziado. Em nosso país
há alguns bolsões, grupos isolados nos quais expressões como “amor à pátria”, “nacionalismo”,
“brasilidade” ainda fazem sentido e mesmo o Hino Nacional Brasileiro é ouvido entre frêmitos de emoção –
e não estou falando em jogos desportivos ou coisa parecida –, mas isso constitui exceção quando deveria
ser regra... Há um longo caminho à frente e não será entregando nossas riquezas aos interesses privados
de grupos estrangeiros entre escândalos de corrupção que haveremos de cantar com orgulho a nossa
liberdade e independência, ainda por acontecer.

Lázaro Curvêlo Chaves – 23/03/2006

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