Você está na página 1de 4

Nos dias anteriores a 5 de Abril de 2018 não se verificou qualquer tipo de presságio.

Ninguém “levantou a mão esquerda, que ardeu e se queimou como vinte tochas juntas” –
tendo a mão saído intacta. Não foi noticiado que um leão “olhou fixamente, e passou
enfurecido, sem me molestar” ou que um “ajuntamento de cem mulheres horríveis,
desfiguradas pelo medo, [...] juraram ter visto homens em chamas, subindo e descendo as
ruas.”. O pássaro da noite não “pousou na praça, piando e guinchando”, alertando para a
ira dos deuses. Não ocorreu nenhuma tormenta tão ao gosto de Shakespeare, daquelas
que “achata a espessa rotundidade do mundo, racha os moldes da natureza, derrama de
uma vez todos os germes que criam o ingrato homem”, como pedia Lear, ou daquelas
que, em “Júlio César”, são sinal de que “há guerra civil nos céus, ou o mundo, atrevido
com os deuses, os incensa para que mandem a destruição.”. Nada da ordem do
sobrenatural, portanto, deixava antever que o dia 5 de Abril marcasse o ponto sem retorno
para Bruno de Carvalho, o “condottiero” que espalhou, durante alguns anos, o terror pelo
futebol nacional. Na noite do dia 5, depois de um jogo normal e de uma derrota mais do
que normal frente ao Atlético de Madrid, uma breve publicação chegou para fazer cair o
manto do infortúnio sobre o intranquilo reinado de Bruno de Carvalho. “It will rain
tonight. – Then let the rain come down”. E a queda, de tal forma abrupta e vertiginosa,
libertou todas as forças do inferno.
Esta figura no limiar do verosímil conseguiu, num curto espaço de tempo, saltar do
mundo do futebol – já de si exposto a uma visibilidade ilimitada – para um plano que
talvez nem Marcelo Rebelo de Sousa ocupa. Não houve ninguém, por mais afastado que
estivesse do universo futebolístico, por mais que vivesse barricado no ermo mais
recôndito do país, que não ouvisse falar deste nome, tal foi a torrente diluviana de notícias,
comentários, conferências de imprensa, movimentações mais ou menos obscuras,
pequenos golpes de Estado e conluios que engoliu o pequeno país durante meses. Todos
os dias, e a quase toda a hora, uma bateria imparável de comentadores dissecou de todas
as formas possíveis e imagináveis todas as notícias, inventadas ou não, que sorviam o
espaço público, todos os aspectos, privados ou públicos, desta figura sem igual. Tirano,
ditador, louco, perigoso, incendiário ou lunático – alguns dos adjectivos com que foi
apodado ao longo dos meses em que não saiu da mira do mundo –, este pequeno Macbeth
que espalhou o terror entre as suas próprias hostes conseguiu o impossível: ser de tal
forma odioso que a segunda figura do Estado, em plena Assembleia da República, o
culpou, de forma indirecta, pelo “ódio, violência, fanatismo e corrupção do futebol
português”.
É particularmente difícil encontrar uma personagem que se lhe assemelhe e, nos
últimos decénios, nem a literatura, com a sua placidez rendilhada, conseguiu construir
uma figura tão excessiva como o ex-presidente do Sporting. Zé do Telhado ou João
Brandão, o “terror das Beiras”, essas lendas negras e hoje caídas em esquecimento, não
conseguiram atingir o patamar que Bruno de Carvalho alcançou ao gerar o pânico no
universo sportinguista, fazendo-o tremer a cada post. Nem Pinto da Costa, com a sua
guerra de décadas ao Benfica, a sua divisão do país em Norte e Sul, conseguiu atrair esse
misto de curiosidade e repulsa que fez com que todos os aspectos da vida de Bruno de
Carvalho fossem expostos e dissecados até à exaustão: nada houve que escapasse a um
escrutínio que teve tanto de excessivo como o excesso desta personagem sem par.
É com este tipo de figura que a literatura se cruza com o real, de tal forma que a
feroz impetuosidade que Bruno de Carvalho demonstrou em todos os momentos do seu
curto reinado só em certas obras literárias, só em certas figuras que adquiriram, com o
tempo, um estatuto semi-mitológico, encontra igual. Ele lembra, sem dúvida, um Lear
enraivecido, investindo sem dó nem piedade contra quem quer que demonstre o mínimo
de dúvida – mesmo quando são figuras consensuais, como Manuel Fernandes, ou quando
são pessoas outrora próximas, como Elsa Judas. Nada nem ninguém, nem mesmo os
jogadores da sua equipa, conseguiu escapar incólume aos diversos momentos de fúrias
sem razão, como se ele pedisse um Homero que lhe cantasse a cólera incontida. Da
mesma forma que se pode ver nele alguém saído de uma qualquer peça de Shakespeare,
um colérico que vê sinais conspirativos em todos os lados – a última dessas conspirações
envolve Jorge Jesus, dois candidatos à presidência do Sporting e, claro, o Benfica – ou
um furioso que não se importa de insultar tudo e todos, também podemos descobrir-lhe
antecedentes numa daquelas personagens históricas que a Itália produziu nos séculos XIV
e XV, arrastando até hoje um lastro de grandeza, excessiva crueldade e cálculo político.
Auto-intitulando o Sporting Clube de Portugal de “maior potência desportiva nacional”,
reescrevendo a história de forma a que o clube passasse de 18 para 22 títulos de campeão
nacional ou tentando fazer com que Peyroteo fosse considerado o “maior goleador de
sempre” do futebol mundial – segundo o jornal oficial do clube –, Bruno de Carvalho
poderia inscrever o seu nome junto de Agnelo de Pisa, que assomava à janela “apoiado
em tapetes e coxins de brocados”, ou de Gingaleazzo, com o seu gosto pelo colossal. Tal
como estes, a pomposidade excessiva com que o ex-presidente do Sporting se revestiu ao
longo do seu consulado – ao, por exemplo, inscrever uma frase sua numa estátua ou na
famosa volta olímpica, aclamatória, ao estádio – servia menos para satisfazer uma
qualquer vaidade do que como forma de aviso aos inimigos internos, reais ou inventados.
A história da ascensão e queda de Bruno de Carvalho lembra, de facto, aquele
período conturbado de Itália em que chefes de facção, mais ou menos cruéis, mais ou
menos excessivos, conseguiram criar um conjunto de pequenos corpos políticos caóticos
e ilegítimos. Sobre estes, Burckhardt, historiador alemão do século XIX, forneceu-nos
uma imagem bastante impressiva:
“Quando Roberto Malatesta e Frederico de Urbino morreram no mesmo dia, [...]
aconteceu que cada um deles, ao morrer, recomendava os seus estados ao outro. Tudo
parecia lícito contra uma gente que se permitia todas as coisas. Muito jovem ainda,
Francisco Sforza casara com uma rica herdeira da Calábria, Polixena Ruffa, condessa de
Montalto que lhe deu uma filha. Uma tia envenenou a mulher e a filha e apoderou-se da
sucessão”.
Não houve, certamente, nenhuma morte macabra nem nenhuma matança geral
como a que envolveu os Baglioni e os Oddi na Perugia do século XV, mas o mesmo
problema que levou à desordem caótica da Itália encontra-se no consulado de Bruno de
Carvalho: a ilegitimidade, a fragilidade e a insegurança que espreita a cada esquina, sob
a forma de traições familiares. É certo que ganhou eleições – uma delas com mais de
90%. Porém, a esta legitimidade formal poderia ser contraposta uma ilegitimidade de
fundo que foi corroendo aos poucos a sua curta e tumultuosa vigência, que culminou
numa multiplicação de processos em tribunal e numa situação em que não se percebia já
quem detinha legitimamente o poder. Comportando-se como um destes “condottiero” de
que fala Burckhardt, a estratégia de divisão dentro das suas próprias hostes começa cedo,
com os processos instaurados aos antigos dirigentes, a distinção entre “sportinguistas” e
“sportingados”, as múltiplas insinuações que foi fazendo contra adeptos que estariam de
conluio com o Benfica e, antes de mais, com o próprio lugar que pretendeu ocupar dentro
da história do clube. Múltiplas foram as vezes em que foi acusado de pretender que o
Sporting começou com ele. De facto, há qualquer coisa nesta acusação que arrasta
consigo uma sombra de verdade, na medida em que Bruno de Carvalho sempre foi um
corpo estranho dentro da história do clube: tanto o mais legítimo dos presidentes, ao
resgatá-lo das mãos de quem não estaria à altura da grandeza do clube, como, seguindo o
mesmo raciocínio, o grande usurpador.
Desta ilegitimidade de fundo só poderia advir, como em Macbeth, a multiplicação
das divisões, a sucessão de traições reais ou imaginárias. Sentado sozinho no seu gabinete,
cada vez mais isolado, Bruno de Carvalho foi libertando uma cólera sem fim, investindo
com fúria contra tudo e contra todos, rebelando-se contra o mundo, os deuses e a
fatalidade que o arrastava para uma queda sem salvação e sem saída. Quando entra no
Altice Arena, no fatídico dia da Assembleia Geral de destituição e depois de ter afirmado
que não estaria presente, é alvo de aclamação: gritam as hostes o seu nome e o do seu
clube, como se Júlio César viesse pôr cobro à traição daqueles que outrora foram seus
íntimos, entrando no reino para de novo reclamar o seu lugar. O destino, no entanto,
estava traçado: como um general italiano que, regressado vitorioso de uma batalha, foi
morto pelo seu próprio povo, horas depois da aclamação pelas suas hostes Bruno de
Carvalho conhecia o veredicto implacável que a sua família, que meses antes o coroava
imperador incontestado de Alvalade, lhe reservava: a demissão inglória. Fosse Bruno de
Carvalho dado a matérias literárias e poderia ter escrito no Facebook uma das últimas
falas de Macbeth, antes do destino se cumprir sem misericórdia: “Apaga-te, minúscula
candeia! A vida é uma sombra que caminha: pobre actor que em pleno palco breve
instante se contorce e pavoneia, para nunca mais se ouvir; é uma história contada por um
parvo, toda ela som e fúria, mas que nada significa”. Começa, então, a comédia.

Você também pode gostar