A tradição racionalista que se desenvolveu no ocidente tradicionalmente reservou ao mito uma posição pouco digna entre os tipos de conhecimento que a humanidade produziu. O mito fora considerado ora como um erro de raciocínio, próprio de povos ainda não iluminados pela forma de pensamento sistemática e objetiva consagrada na filosofia, ora como forma de expressão alegórica, fazendo referência a coisas que lhe são externas. Foi necessário um longo percurso intelectual até que o mito fosse reabilitado, na reflexão ocidental, como uma forma específica de lógica tão sofisticada quanto a lógica filosófica do ocidente. Como destaca Jean-Pierre Vernant, inicialmente o termo mythos d esigna o discurso e possui proximidade semântica com o termo lógos, mas o desenvolvimento do pensamento grego, em que a constituição da escrita teve importante papel, acabará por opor os dois termos de modo a torná-los inconciliáveis. A oposição entre ambos assumirá o significado de oposição entre o verdadeiro e o falso, o discurso racional e o discurso emocional. Segundo essa concepção, ao lógos se associará o método de discurso baseado na busca da verdade através da investigação metódica da realidade, do encadeamento lógico da argumentação em que a um grupo de premissas seguem-se conclusões necessárias. É um discurso que se expõe ao público, para ser analisado e questionado, exigindo novas faculdades da língua: o discurso filosófico. Ao mythos se associará um método de discurso tido por irracional, cuja base se assentaria em técnicas de performance emotiva e sedutora que se comunicam diretamente com as emoções do espectador, afastando-o da frieza analítica exigida por uma argumentação que busca separar o verdadeiro do falso. Por seu conteúdo emotivo e fantasioso, a visão de mundo apresentada pelo discurso mítico seria ilusória, de modo a corresponder a uma visão distorcida da realidade. O desenvolvimento da ciência dos mitos assistiu ao prosseguimento dessa tradição de separação entre lógos e mythos. No século XIX três escolas surgiram para dar conta das questões colocadas pelo paradoxo encontrado na civilização grega, ao mesmo tempo berço da racionalidade ocidental e produtora de uma rica tradição mítica, e pelos estudos etnológicos, debruçados sobre sociedades contemporâneas que manifestavam seu pensamento por meio de mitos. São elas a escola de mitologia comparada, a escola histórica alemã e a escola antropológica inglesa. Refletia-se sobre a conexão entre os mitos gregos e aqueles das sociedades ditas primitivas, tendo em comum um mesmo princípio de inteligibilidade dos mitos: estes deveriam ser entendidos não a partir de si mesmos, pois tratavam-se de narrativas absurdas, mas a partir de algo externo a eles. Baseando-se nos estudos de Marcel Detienne, Vernant resumirá a perspectiva das três escolas da seguinte forma: a escola de mitologia comparada postula que o mito expressa um desvio linguístico de reflexões mais objetivas sobre os fenômenos naturais, de modo que para cada mito há uma história de distorção de sentidos originais sobre a natureza, cabendo ao mitólogo desembaraçar tais sentidos originários por meio de estudos da evolução da linguagem. A escola filológica alemã estabelecerá o mito como forma de expressão fantasiosa de fatos e personagens históricos reais, preocupando-se em seus estudos em estabelecer cronologicamente e geograficamente a origem do mito. A narrativa mítica traduziria acontecimentos reais vividos por um povo e distorcidos pela imaginação, não havendo relação estrutural entre mitos, cuja reunião ocorreria de forma arbitrária por coincidências históricas. Os temas dos mitos, como as entidades que protagonizam as narrativas, devem ser tratados de forma independente como que não possuindo relações entre si. Por fim, para a escola antropológica inglesa os mitos representam uma etapa do pensamento humano, atrasada em relação à filosofia e à ciência. Se o pensamento mítico pôde conviver com o pensamento filosófico na Grécia do período clássico, isso se deveu, segundo essa escola, às sobrevivências de elementos antigos numa civilização que já possuía formas superiores de pensamento. A proximidade que é possível estabelecer entre o pensamento mítico grego antigo e o pensamento mítico dos povos ditos primitivos explica-se pela situação de atraso ao qual esses povos estão submetidos. Ainda encontram-se numa etapa de pensamento já superada pelo ocidente. Seja qual for a explicação, o princípio de inteligibilidade dos mitos é colocado fora deles, como se não expressassem um fenômeno humano específico, a ser compreendido em si mesmo. Dessa forma, “não aparece a ideia de que religião e mitos formam um sistema organizado cuja coerência e as múltiplas articulações é preciso aprender. Cada mito, cada versão cada divindade é estudado isoladamente.” (1999, VERNANT, p. 198-199) Apesar de outras escolas avançarem o projeto de desembaraçar o mito de preconceitos ocidentais, de noções que o associam ao absurdo, destacando a importância e a rede de relações que o mito estabelecesse nas sociedades que dele se valem, a compreensão do mito ainda foi buscada em esferas externas a ele. Na antropologia, um avanço significativo no estudo do mito deu-se a partir de Marcel Mauss. De acordo com Vernant, Mauss combate a visão de Wundt, para quem o mito carece da mesma objetividade que a língua, podendo ser reduzido aos afetos do populares (1999, p. 206). Mauss, ao contrário, destaca a objetividade do mito como veículo de expressão, aproximando-o da linguagem. O mito nada teria a ver com as emoções populares, tratando-se, na verdade, de um mecanismo intelectual através do qual a realidade de um povo é por ele pensada. Ele fornece à comunidade, tanto quanto a língua, os próprios critérios de pensamento com a qual o povo opera: as regras de classificação da experiência, os valores relativos dos conceitos, etc. De modo que o “conjunto de normas classificatórias, de categorias mentais postas em ação no mito forma uma espécie de atmosfera intelectual geral das sociedades arcaicas e regulamenta tão bem sua ética ou economia quanto suas práticas propriamente religiosas” (idem). A partir dessa mudança de paradigma em relação ao mito ocorre uma renovação de seu estudo científico, transformando a atitude do pesquisador. O mito é agora compreendido como uma forma de pensamento e não uma falha, que permite aos povos que dele se valem a produção de conhecimento sistemático sobre sua realidade. O mito é agora seu próprio princípio de inteligibilidade e sua relação com as outras esferas da vida é pensada não como redução (do mito à outras esferas da vida), mas como associação: o mito se relaciona com outras esferas a partir de sua autonomia como uma esfera específica da vida social. Tal renovação teórica abriu caminho para novos desdobramentos no estudo do mito que, na primeira metade do século XX, desembocarão no estruturalismo de Lévi-Strauss. Crítico das concepções de mito baseadas na oposição entre lógos e mythos e que dominaram a orientação dos estudos por muito tempo, o autor francês prosseguirá seu exercício intelectual pelo caminho aberto por Mauss na antropologia através da aproximação entre mito e linguagem. Lévi-Strauss radicalizará essa concepção, tendo os métodos da linguística estrutural como paradigma para a pesquisa dos mitos. Para ele, a linguística estrutural, inaugurada por Saussure, havia proporcionado um avanço tal para os estudos da linguagem que efetivamente constituiu a linguística como disciplina científica. Antes de Saussure, os estudiosos da língua enfrentavam embaraços análogos aos enfrentados pelos mitólogos, sendo necessário proporcionar ao estudo dos mitos avanço idêntico que permitisse sua análise científica. Portanto, tratar os mitos como uma linguagem que se necessita decifrar significa atribuir a eles características pertencentes à linguagem. Como a linguagem, mito poderia ser pensado em dois níveis diferentes, o nível paradigmático e o sintagmático. Saussure destacava que a linguagem, na análise, deve ser separada em seu nível de língua e em seu nível de fala. O primeiro dizendo respeito às regras estruturais que determinam as relações e os valores dos elementos linguísticos, pertencentes a um tempo reversível. O segundo dizendo respeito ao processo de encadeamento linear da linguagem, quando os sons são concretamente combinados no ato da fala segundo as regras do primeiro nível. O segundo nível pertence a um tempo irreversível. Lévi-Strauss aplica a mesma divisão, acrescentando ainda um terceiro nível que coloca o mito para além dos limites da linguagem, pois, segundo o autor, “se queremos perceber os caracteres específicos do pensamento mítico, devemos pois demonstrar que o mito está, simultaneamente, na linguagem e além dela” (1993, STRAUSS, p. 240). O mito pode ser dividido no nível sintagmático, quando organizado a partir de sua narrativa linear, isto é, a sequência de acontecimentos que seguem uma cronologia e ocorrem num tempo determinado. Contudo, a análise do mito deve se ater ao fato de que a sequência de acontecimentos forma uma estrutura regular, que segue determinadas regras de composição e lhe concede sua forma lógica, sendo este seu eixo paradigmático. O terceiro nível é formado pela simultaneidade no mito entre o tempo histórico do eixo sintagmático e o tempo a-histórico do eixo paradigmático, formando uma linguagem globalizante que relaciona o passado ao presente, atualizando assim sua estrutura. Se a análise do mito, como afirma Lévi-Strauss, deve buscar a forma lógica que ele ecoa, a análise deve abstrair as técnicas propriamente narrativas que se encontram em sua superfície. O sentido do mito transcende o fundamento linguístico de onde ele se origina, de modo que as considerações de estilo e sintaxe, importantes para uma análise de linguagem, são pouco relevantes para a análise estrutural do mito. Na análise do autor, isso determina o caráter universal do mito, pois as diferenças linguísticas tornam-se irrelevantes para que a estrutura do mito ecoe: a estrutura se mantém a despeito de uma má tradução. O que permite ao mito uma capacidade particular de circulação. Assim, a análise estrutural resolve o antigo problema que embaraçava os analistas que se aventuravam na busca da versão mais autêntica de um mito: como compreender as variações míticas? Por muito tempo consideradas arbitrariedades da imaginação de diferentes grupos, as variações que um mito sofre ao longo do tempo e entre grupos diferentes deixam de ser um problema quando a análise está centrada na estrutura lógica do mito. Uma vez que as variações sempre ecoarão a mesma estrutura, a coleta de quantidade significativa de variações de um mesmo mito permite fortalecer a análise, ao invés de embaraçá-la. O sentido de um mito é melhor percebido se se comparam suas diversas versões. O método estruturalista, portanto, aborda o mito como um fenômeno intelectual, que nada tem de arbitrário e não pode ser reduzido ao jogo irracional dos afetos, nem representa uma forma equívoca de raciocínio que deveria ser substituída por formas mais evoluídas de pensamento. O mito é uma dentre outras formas de reflexão possíveis, que os diversos povos mobilizam para pensar a sua realidade e agir sobre ela de acordo com as avaliações que fazem do mundo. Por isso, essa forma de pensamento não poderia ser considerada menos dinâmica do que outras formas de reflexão, mas sim dotada de uma dinâmica própria e uma capacidade de reflexão sobre si mesma comparável ao pensamento filosófico. A dinâmica da reflexão mítica é atestada na Grécia antiga, na medida em que os poetas se valiam da mesma fonte comum mitológica “porém, fazendo dos temas míticos matéria literária, eles os utilizam livremente para transformá-los segundo suas necessidades; às vezes até mesmo para criticá-los em nome de um novo ideal ético ou religioso” (1999, VERNANT, p. 179). Com efeito, reconhecendo a potência reflexiva do pensamento mítico, Lévi-Strauss encerra a exposição de seu método estrutural com o argumento seguinte: “Talvez descobriremos um dia que a mesma lógica se produz no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem pensou sempre do mesmo modo. O progresso - se é que então se possa aplicar o termo - não teria tido a consciência por palco, mas o mundo, onde uma humanidade dotada de faculdades constantes ter-se-ia encontrado, no decorrer de sua longa história, continuamente às voltas com novos objetos” (1993, STRAUSS, p. 265). Como expressão da forma de pensamento de um povo, os mitos aparecem como fonte privilegiada para a compreensão de sua organização social e instituições, dando conta dos significados, formas de classificação e valores que estão em jogo em uma sociedade. Assim, os estudos do mito permitem discernir diferentes formas de raciocínio associadas a diferentes contextos sociais. Marcel Detienne, em seu estudo sobre o desenvolvimento do conceito de verdade na Grécia Antiga (no livro “Os mestres da verdade na grécia arcaica”) põe em prática um tipo de análise que permite identificar, através do mito, o jogo de oposições lógicas que baseia o raciocínio e prática social correspondente. Demonstra a importância da ideia de verdade para o raciocínio mítico grego e seu desdobramento posterior no conceito de verdade filosófica. Personagem importante no conceito mítico de verdade é o poeta, provido da palavra cantada. Esta adquire sua eficácia por sua relação com potências divinas que se opõem em suas características: a Memória que se opõe ao Esquecimento. As divindade Memória e Esquecimento formam, juntamente com outras divindades relacionadas, pares opositivos que exigem formas de mediação. Ambos adquirem sua significação pela relação opositiva que estabelecem, refletindo a percepção do pensamento mítico de uma contradição no seu mundo. Ao mesmo tempo, a reflexão mítica tende para a mediação dos opostos para solucionar a contradição, no caso grego através da palavra cantada, que atribui a cada extremo o seu sentido no sistema. A Memória, que concede existência aos feitos dos homens, só adquire sua significação em relação ao Esquecimento, que apresenta a possibilidade da não-existência. Essa forma de raciocínio se aplica ao contexto social de guerreiros aristocratas, diante do qual o poeta ocupa a função de legitimar e dar sentido ao sistema de relações entre os guerreiros: nesta sociedade os guerreiros aristocráticos não se reconhecem em seus próprios atos. Suas façanhas são atribuídas ao favor dos deuses. A palavra cantada representa, aqui, uma reflexão sobre os valores e as relações de importância para aquela sociedade. Os valores que são mobilizados e as representações desses valores articulados no pensamento mítico apresentam variações significativas entre os povos, levando à compreensão da pluralidade existente no pensamento mítico. A tradição indo-européia, por exemplo, deixa transparecer em seus mitos preocupações diferentes e modalidades de reflexão diferentes, mesmo sobre temas iguais, em relação à tradição dos povos ameríndios, estudados por Lévi-Strauss. Fato que se explica pela diferença nas estruturas sociais. Émile Benveniste, ao estudar o vocabulário indo-europeu, identifica formas de organização social semelhantes entre os povos herdeiros dos indo-europeus, baseadas na distinção entre três classes, que correspondem a três funções diferentes: a classe dos religiosos, responsável pela saúde espiritual; a classe dos guerreiros, responsável pela defesa do território; a classe dos camponeses, responsável pela produção. Tal divisão social corresponderá a certas formas de reflexão sobre o poder: “trata-se, notadamente, da ideia de que o rei é o autor e o garantidor da prosperidade para seu povo, se seguir as regras da justiça e os mandamentos divinos” (1995, BENVENISTE, p. 26). Essa concepção se reflete no mito através da atribuição aos deuses de potências relacionada à prosperidade das funções de cada classe. Como a forma de organização social indp-européia levou ao desenvolvimento do poder centralizado do soberano, esse desenvolvimento refletiu-se de maneira específica na concepção das potências divinas: delas emana a palavra eficaz e infalível e tudo provém do um, ou seja, de uma potência centralizada. Assim começa a criação do mundo, segundo Hesíodo: “Sim bem primeiro nasceu o Caos, depois também/ Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,/ dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado” (1995, HESÍODO, p. 111). A concepção do poder de tradição indo-européia, e refletida em seus mitos, pode ser contrastada com a concepção dos Tsimshian, cuja reflexão mítica é analisada por Lévi-Strauss em seu artigo “A gesta de asdiwal”. Nele, Lévi-Strauss demonstra que um dos elementos relevantes da vida dos Tsimshian que são objeto de sua reflexão mítica são as relações de parentesco. Estas implicam casamentos preferenciais. Tratando-se de uma sociedade matrilinear e patrilocal, o ego herda os bens da linhagem a partir de seu tio materno e tem no casamento com a prima matrilateral um ideal. O mito apresenta uma reversão em tais relações, de modo que o herói se vê na primeira parte da narrativa envolvido em casamentos matrilocais, fato que engendra uma série de conflitos com os irmãos de suas esposas, sendo revertido na segunda parte da narrativa, quando o patrilocalismo é reestabelecido. Para os Tsimshian, as relações de parentesco possuem uma importância e um significado específico, que o tornam um objeto preferencial da reflexão mítica. Quando pensado em termos da distribuição do poder, as relações de parentesco assumem um papel que não possui de maneira tão determinante nas sociedades de tradição indo-européia, apresentando reflexões míticas diferenciadas. A troca de mulheres, através de casamentos, entre os Tsimshian se dá na forma da dádiva, o que implica em disputas entre diferentes grupos de linhagens, pois aquele que recebe as mulheres de um grupo, torna-se obrigado em relação a ele. A circulação de mulheres entre os grupos determina a circulação de bens. Lévi-Strauss afirma: “Todas as antinomias concebidas pelo pensamento indígena sobre os mais diversos fatos (geográficos, econômicos, sociológicos e até mesmo cosmológicos) são, afinal, semelhantes à antinomia, menos evidente, mas extremamente real, que o casamento com uma prima matrilateral procura resolver (...)” (1989, STRAUSS, p. 179). Parte das contradições inerentes a essa realidade são objeto de reflexão do mito, revelando a potência da reflexão mítica como o conhecimento que esses povos produzem sobre si mesmos. Referências bibliográficas:
-Benveniste, Émile. O vocabulário das instituições indo-européias. Campinas, Editora
Unicamp, 1995. Vol. I. _______________. O vocabulário das instituições indo-européias. Campinas, Editora Unicamp, 1995. Vol. II. -Detienne, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia arcaica. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. -Hesíodo. Teogonia. São Paulo, Iluminuras, 1995. Trad. Jaa Torrano. -Lévi-Strauss, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro, Tempo brasileiro, 4ª edição, 1993. _______________. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro, Tempo brasileiro, 3ª edição, 1989. -Vernant, Jean-Pierre. Mito e sociedade na grécia antiga. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998.