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uma articulação ético-político – a que chamo

ecosofia – entre os três registros ecológicos (o do


meio ambiente, o das relações sociais e o da
AS TRÊS ECOLOGIAS subjetividade humana ) é que poderia esclarecer
conveniente tais questões.
O que está em questão é a maneira de
Félix Guattari viver daqui em diante sobre esse planeta, no
contexto da aceleração das mutações técnico-
científicas e do considerável crescimento
Existe uma ecologia das idéias danosas, assim demográfico. Em função do contínuo
como existe uma ecologia das ervas daninhas. desenvolvimento do trabalho maquínico
Gregory Bateson redobrado pela revolução informática, as forças
produtivas vão tornar disponível uma quantidade
cada vez maior do tempo de atividade humana
potencial. Mas com que finalidade?
O planeta Terra vive um período de A do desemprego, da marginalidade
intensas transformações técnico-cientifícas, em opressiva, da solidão, da ociosidade, da angústia,
contrapartida das quais engendram-se fenômenos da neurose, ou a da cultura, da criação,da
de desequilíbrios ecológicos que, se não forem pesquisa, da re-invenção do meio ambiente, do
remediados, no limite, ameaçam a implantação enriquecimento dos modos de vida e de
da vida em superfície. Paralelamente a tais sensibilidade? No Terceiro Mundo, como no
perturbações, os modos de vida humanos mundo desenvolvido, são blocos inteiros da
individuais e coletivos evoluem no sentido de subjetividade coletiva que se afundam ou se
uma progressiva deterioração.As redes de encarquilham em arcaísmos, como é o caso, por
parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a exemplo, da assustadora exacerbação dos
vida doméstica vem sendo gangrenada pelo fenômenos de integrismo religioso.
consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se
encontra freqüentemente “ossificada” por uma Não haverá verdadeira resposta à crise
espécie de padronização dos comportamentos, as ecológica a não ser em escala planetária e com a
relações de vizinhança estão reduzidas a sua mais condição de que se opere uma autêntica
pobre expressão... revolução política, social e cultural reorientando
os objetivos da produção de bens materiais e
É a relação da subjetividade com sua imateriais. Esta revolução deverá concernir,
exterioridade – seja ela social, animal, vegetal, portanto, não só às relações de força visíveis em
cósmico – que se encontra assim comprometida grande escala mas também aos domínios
numa espécie de movimento geral de implosão e moleculares de sensibilidade, de inteligência e
infantilização regressiva. A alteridade tende a de desejo. Uma finalidade do trabalho social
perder toda aspereza. O turismo, por exemplo, regulada de maneira unívoca por uma economia
se resume quase sempre a uma viagem sem sair de lucro e por relações de poder só pode, no
do lugar, no seio das mesmas redundâncias de momento, levar a dramáticos impasses – o que
imagens e de comportamento. fica manifesto no absurdo das tutelas econômicas
As formações políticas e as instâncias que pesam sobre o Terceiro Mundo e conduzem
executivas parecem totalmente incapazes de algumas de suas regiões a uma pauperização
apreender essa problemática no conjunto de suas absoluta e irreversível; fica igualmente evidente
implicações. Apesar de estarem começando a em países como a França, onde a proliferação de
tomar uma consciência parcial dos perigos mais centrais nucleares faz pesar o risco das possíveis
evidentes que ameaçam o meio ambiente natural conseqüências de acidentes do tipo Chernobyl
de nossas sociedades que ameaçam o meio sobre uma grande parte da Europa. Sem falar do
ambiente natural de nossas sociedades, elas caráter quase delirante da estocagem de
geralmente se contentam em abordar o campo milhares de ogivas nucleares que, à menor falha
dos danos industriais e, ainda assim, unicamente técnica ou humana, poderiam mecanicamente
numa perspectiva tecnocrática, ao passo que só conduzir a um extermínio coletivo. Através de

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cada um desses exemplos, encontra-se o heterogêneos como os que surgem no mundo
mesmo questionamento dos muçulmano.) Os países ditos socialistas , por sua
vez, também introjetaram os sistemas de valor
modos dominantes de valorização das
“unidimensionalizantes” do Ocidente . O antigo
atividades humanas, a saber ;
igualitarismo de fachada do mundo comunista
1. o do império de um mercado mundial dá lugar, assim, ao serialismo de mídia (mesmo
que lamina os sistemas particulares de valor , ideal de status, mesmas modas, mesmo rock
que coloca num mesmo plano de equivalência os etc).
bens materiais , os bens culturais, as áreas
No que concerne ao eixo Norte-Sul
naturais etc;
dificilmente pode-se imaginar que a situação
2. o que coloca o conjunto das relações melhore de maneira considerável . Certamente
sociais e das relações internacionais sob a é concebível que a progressão das técnicas agro-
direção das máquinas policiais e militares. alimentares acabem por permitir a modificação
dos dados teóricos do drama da fome no mundo.
Os Estados ,entre essas duas pinças
Mas na prática, enquanto isso, seria totalmente
,vêem seu tradicional papel de mediação reduzir-
ilusório pensar que a ajuda internacional, da
se cada vez mais e se colocam, na maioria das
maneira como é hoje concebida e dispensada,
vezes, ao serviço conjugado das instâncias do
resolva duradouramente qualquer problema que
mercado mundial e dos complexos militar-
seja! A instauração a longo prazo de imensas
industriais.
zonas de miséria, fome e morte parece daqui em
Essa situação é ainda mais paradoxal diante fazer parte integrante do monstruoso
quando vemos que estão chegando ao fim os sistema de “estimulação” do Capitalismo Mundial
tempos em que o mundo encontrava-se sob a Integrado. Em todo caso, é sobre tal instauração
égide do antagonismo Leste-Oeste, projeção que repousa a implantação das Novas Potências
amplamente imaginária da oposição classe Industriais, centros de hiperexploração tais como
operária /burguesia no seio dos paises Hong Kong, Taiwan, Coréia do sul etc.
capitalistas.Será que isso quer dizer que as
No seio dos países desenvolvidos
novas problemáticas multipolares das três
reencontramos esse mesmo princípio de tensão
ecologias virão pura e simplesmente substituir
social e de “estimulação” pelo desespero, com
as antigas lutas de classe e seus mitos de
instaurações de regiões crônicas de desemprego
referência ? Certamente tal substituição não será
e marginalização de uma parcela cada vez maior
tão mecânica assim ! Entretanto parece
de populações de jovens, de pessoas idosas, de
provável que essas problemáticas , que
trabalhadores “assalariados”, desvalorizados etc.
correspondem a uma complexificação extrema
dos contextos sociais , econômicos e Assim, para onde quer que voltemos,
internacionais , tentarão a se deslocar cada vez reencontramos esse mesmo paradoxo lancinante:
mais para o primeiro plano. de um lado, o desenvolvimento contínuo de
novos meios técnico-científicos potencialmente
Os antagonismos de classe herdados do
capazes de resolver as problemáticas ecológicas
século XIX contribuíram inicialmente para forjar
dominantes e determinar o reequilíbrio das
campos homogêneos bipolarizados de
atividades socialmente úteis sobre a superfície
subjetividade. Mais tarde, durante a segunda
do planeta e, de outro lado, a incapacidade das
metade do século XX, através da sociedade de
forças sociais organizadas e das formações
consumo , do welfare , da mídia ..., a
subjetivas constituídas de se apropriar desses
subjetividade operária linha dura se desfez.
meios para torná-los operativos.
Ainda que as segregações e as hierarquias
jamais tenham sido tão intensamente vividas , No entanto podemos nos perguntar se
uma mesma camada imaginária se encontra essa fase paroxística de laminagem das
agora chapada sobre o conjunto das posições subjetividades, dos bens e do meio ambiente não
subjetivas. Um mesmo sentimento difuso de está sendo levada a entrar num período de
pertinência social descontraiu as antigas declínio.Por toda parte surgem reivindicações de
consciências de classe . (Deixo aqui de lado a singularidade; os sinais mais evidentes a esse
constituição de pólos subjetivos violentamente respeito residem na multiplicação das

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reivindicações nacionalitárias, ontem ainda A juventude, embora esmagada nas
marginais, que ocupam cada vez mais o primeiro relações econômicas dominante que lhe
plano das cenas políticas.(Ressaltemos, na conferem um lugar cada vez mais precário , e
Córsega e nos países bálticos, a conjunção das mentalmente manipulada pela produção de
reivindicações ecológicas com as autonomistas.) subjetividade coletiva da mídia , nem por isso
No limite, esse acúmulo de questões deixa de desenvolver suas próprias distâncias de
nacionalitárias provavelmente levará a sigularização com relação à subjetividade
modificações profundas das relações Leste-Oeste normalizada.A esse respeito, o caráter
e, em particular, da configuração da Europa, transnacional da cultura rock e absolutamente
cujo centro de gravidade poderia derivar significativo: ela desempenha o papel de uma
decisivamente em direção a um Leste neutro. espécie de culto iniciático que confere uma
pseudo – identidade cultural a massas
As oposições dualistas tradicionais que
consideráveis de jovens , permitindo-lhes
guiaram o pensamento social e as cartografias
constituir um mínimo de Territórios existenciais.
geopolíticas chegaram ao fim. Os conflitos
permanecem mas engajam sistemas multipolares É nesse contexto de ruptura, de
incompatíveis com adesões a bandeiras desncentramento, de multiplicação dos
ideológicas maniqueístas. Por exemplo, a antagonismos e de processos de singularizacão
oposição entre Terceiro Mundo e o mundo que surgem as novas problemáticas ecológicas .
desenvolvido explode por todo o lado. Vimos isto Entendamo-nos bem: não pretendo de maneira
com essas Novas Potências Industriais, cuja alguma que estas novas problemáticas ecológicas
produtividade tornou-se incomparável a dos tenham que “encabeçar” as outras linhas de
tradicionais bastiões industriais do Oeste, mas fraturas moleculares , mas parece-me que ela
sendo esse fenômeno acompanhado de uma evocam uma problematização que se torna
espécie de terceiro-mundização interna nos transversal a essas outras linhas de fratura.
países desenvolvidos, reforçada ainda por cima
Se não se trata mais – como nos períodos
por uma exacerbação das questões relativas à
anteriores de luta de classe ou de defesa da
imigração e ao racismo. Não nos enganemos: a
“pátria do socialismo” - de fazer funcionar uma
grande agitação em torno da unificação
ideologia de maneira unívoca, é concebível em
econômica da Comunidade Européia em nada
compensação que a nova referência ecosófica
refreará essa terceiro-mundização de zonas
indique linhas de recomposição das práxis
consideráveis da Europa.
humanas nos mais variados domínios. Em todas as
Um outro antagonismo transversal ao de escalas individuais e coletivas, naquilo que con-
lutas de classe continua a ser o das relações cerne tanto à vida cotidiana quanto à reinvenção
homem-mulher. Em escala global, a condição da democracia - no registro do urbanismo, da
feminina está longe de ter melhorado. A criação artístíca, do esporte etc - trata-se, a
exploração do trabalho feminino, correlativa à do cada vez, de se debruçar sobre o que poderiam
trabalho das crianças, nada tem a invejar os ser os dispositivos de produção de subjetividade,
piores períodos do século XIX! E no entanto uma indo no sentido de uma re-singularização
revolução subjetiva ascendente não parou de individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido
trabalhar a condição feminina durante essas duas de uma usinagem pela mídia, sinônimo de deso-
últimas décadas. Ainda que a independência lação e desespero. Perspectiva que não exclui
sexual das mulheres, relacionada com a totalmente a definição de objetivos unificadores
disponibilidade dos meios de contracepção e tais como a luta contra a fome no mundo, o fim
aborto, tenha crescido de forma bastante do desilorestamento ou da proliferação cega das
irregular, ainda que o crescimento dos indústrias nucleares. Só que não mais tratar-se-ia
integrismos religiosos não cesse de gerar uma de palavras de ordem estereotipadas,
minoração de seu estado, alguns indícios levam a reducionistas, expropriadoras de outras proble-
pensar que transformações de longa duração- no máticas mais singulares resultando na promoção
sentido de Fernand Braudel - estão de fato em de líderes carismáticos.
curso (designação de mulheres para chefia de
Uma mesma perspectiva ético-política
Estado , reivinacão de paridade homem –mulher
atravessa as questões do racismo, do
nas instâncias representativas etc).
falocentrismo, dos desastres legados por um

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urbanismo que se queria moderno, de uma Tentemos , agora , cercar mais de perto
criação artística libertada do sistema de as implicações de uma perspectiva ecosófica
mercado, de uma pedagogia capaz de inventar desse tipo sobre a concepção da subjetividade .
seus mediadores sociais etc. Tal problemática, no
O sujeito não é evidente : não basta
fim das contas, é a da produção de existência
pensar para ser , como o proclamava Descartes ,
humana em novos contextos históricos.
já que inúmeras outras maneiras de existir se
A ecosofia social consistirá, portanto, em instauram fora de consciência , ao passo que o
desenvolver práticas específicas que tendam a sujeito advém no momento em que o
modificar e a reinventar maneiras de ser no seio pensamento se obstina em apreender a si mesmo
do casal, da família, do contexto urbano, do e se põe a girar como um pião enlouquecido ,
trabalho etc. Certamente seria inconcebível sem enganchar em nada dos Territórios reais da
pretende retornar a fórmulas anteriores , existência , os quais por sua vez derivam uns em
correspondentes a períodos nos quais , ao mesmo relação aos outros, como placas tectônicas sob a
tempo , a densidade demográfica era mais fraca superfície dos continentes. Ao invés de sujeito ,
e a densidade das relações sociais mais forte que talvez fosse melhor falar em componentes de
hoje . A questão será literalmente reconstruir o subjetivação trabalhando , cada um, mais ou
conjunto das modalidades do ser- em- grupo . E menos por conta própria . Isso conduziria
não somente pelas intervenções necessariamente a reexaminar a relação entre o
“comunicacionais” mas também por mutações indivíduo e a subjetividade e, antes de mais
existenciais que dizem respeito á essência da nada, a separar nitidamente esses conceitos .
subjetividade . Nesse domínio , não nos Esses vetores de subjetivação não passam
ateríamos ás recomendações gerais mas faríamos necessariamente pelo indivíduo , o qual , na
funcionar práticas efetivas de experimentação realidade , se encontra em posição de “terminal”
tanto nos níveis micro-sociais quanto em escalas com respeito aos processos que implicam grupos
institucionais maiores. humanos , conjuntos sócio – econômicos ,
máquina informacionais etc. Assim ,a
A ecosofia mental , por sua vez , será
interioridade se instaura no cruzamento de
levada a reinventar a relação do sujeito com o
múltiplos componentes relativamente autônomos
corpo , com o fantasma * , com o tempo que
uns em relação aos outros e, se for o caso,
passa , com os “mistérios” da vida e da morte .
francamente discordantes.
Ela será levada a procurar antídotos para a
uniformização midiática e telemática , o Sei que um argumento desse tipo ainda
conformismo das modas , as manipulações da permanece difícil de ser entendido, sobretudo
opinião pela publicidade , pelas sondagens etc. em contextos onde continua a reinar uma
Sua maneira de operar aproximar-se-á mais suspeita, e mesmo uma rejeição de princípio,
daquela do artista do que a dos profissionais com relação a toda referência específica à
“psi”, sempre assombrados por ideal caduco de subjetividade. Em nome do primado das
cientificidade . infra-estruturas, das estruturas ou dos sistemas,
a subjetividade não está bem cotada, e aqueles
Nada nesses domínios está sendo tratada
que dela se ocupam na prática ou na teoria em
em nome da história , em nome de
geral só a abordam usando luvas, tomando
determinismos infra-estruturais ! A possibilidade
infinitas precauções, cuidando para nunca
de uma implosão bárbara não está de jeito
afastá-la demais dos paradigmas
nenhum excluída. E se não houver tal retomada
pseudocientíficos tomados de empréstimo, de
ecosófica (seja qual for o nome que se lhe dê ) ,
preferência, às ciências duras: a termodinâmica,
se não houver uma rearticulação dos três
a topologia. a teoria da informação, a teoria dos
registros fundamentais da ecologia , podemos
sistemas, a lingüística etc. Tudo se passa como se
infelizmente pressagiar a escalada de todos os
um superego cientista exigisse reificar as
perigos : os do racismo , do fanatismo religioso ,
entidades psíquicas e impusesse que só fossem
dos cismas nacionalitários caindo em
apreendidas através de coordenadas extrínsecas.
fechamentos reacionários , os da exploração do
Em tais condições, não é de se espantar que as
trabalho das crianças, da opressão das
ciências humanas e as ciências sociais tenham se
mulheres ...
condenado por si mesmas a deixar escapar as

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dimensões intrinsecamente evolutivas, criativas e da forma de expressão. Somente nessas
autoposicionantes dos processos de subjetivação. condições podem ser gerados e regenerados os
0 que quer que seja, parece-me urgente Universos de referência incorporais que pontuam
desfazer-se de todas as referências e metáforas de acontecimentos singulares o desenrolar da
cientistas para forjar novos paradigmas que historicidade individual e coletiva.
serão, de preferência, de inspiração
Assim como em outras épocas o teatro
ético-estéticas. Aliás, as melhores cartografias da
grego, o amor cortês ou o romance de cavalaria
psique ou, se quisermos, as melhores psicanálises
se impuseram como modelos ou, antes, como
não foram elas à maneira de Goethe, Proust,
módulos de subjetivação, hoje o freudismo
Joyce, Artaud e Becket, mais do que de Freud,
continua a obcecar nossas maneiras de sustentar
Jung, Lacan? A parte literária na obra desses
a existência da sexualidade, da infância, da
últimos constitui, de resto, o que de melhor
neurose... Portanto não se visa, aqui, a
subsiste (por exemplo, aTraumdeutung de Freud
“ultrapassar” ou a apagar para sempre da
pode ser considerada um extraordinário romance
memória o fato freudiano mas a re-orientar seus
moderno!).
conceitos e suas práticas para fazer deles outro
Nosso questionamento acerca da uso, para desenraizá-los de seus vínculos pré-
psicanálise, a partir da criação estética e de estruturalistas com uma subjetividade
implicações éticas, nem por isso pressupõe uma totalmente ancorada no passado individual e
“reabilitação” da análise fenomenológica, a coletivo. O que estará daqui em diante na ordem
qual, em nossa perspectiva, encontra-se do dia é o resgate de campos de virtualidade
prejudicada por um “reducionismo” sistemático “futuristas” e “construtivistas”. O inconsciente
que a leva a encolher seus objetos ao ponto de se permanece agarrado em fixações arcaicas apenas
tornarem pura transparência intencional. Quanto enquanto nenhum engajamento o faz projetar-se
a mim, hoje considero que a apreensão de um para o futuro. Essa tensão existencial operar-se-á
fato psíquico é inseparável do Agenciamento de por intermédio de temporalidades humanas e
enunciação que lhe faz tomar corpo, como fato e não-humanas. Entendo por estas últimas o
como processo expressivo. Uma espécie de delineamento ou, se quisermos, o desdobramento
relação de incerteza se estabelece entre a de devires animais, vegetais, cósmicos, assim
apreensão do objeto e a apreensão do sujeito, a como de devires maquínicos, correlativos da
qual, para articulá-los, impõe que não se possa aceleração das revoluções tecnológicas e
prescindir de um desvio pseudonarrativo, por informáticas (é assim que vemos desenvolver-se a
intermédio de mitos de referência, de rituais de olhos vistos a expansão prodigiosa de uma
toda natureza, de descrições com pretensão subjetividade assistida por computador). A isso
científica, que terão como finalidade acrescentemos que convém não esquecer as
circunscrever uma encenação dis-posicional, um dimensões institucionais e de classe social que
dar a existir, autorizando em “segundo” lugar presidem a formação e a “teleguiagem” dos
uma inteligibilidade discursiva. Aqui a questão indivíduos e grupos humanos.
não é a de uma retomada da distinção pascaliana
Em suma, os engodos fantasmáticos e
entre “espírito de geometria" e “espírito da
míticos da psicanálise devem ser desempenhados
finesa”.
e desmascarados e não cultivados e cuidados
como jardins à francesa! Infelizmente, os
psicanalistas de hoje, mais ainda que os de
Esses dois modos de apreensão - seja
ontem, se entrincheiram no que se pode chamar
pelo conceito, seja pelo afeto e pelo percepto -
de uma “estruturalização” dos complexos
são, com efeito, absolutamente complementares.
inconscientes. Em sua teorização, isso conduz a
Através deste desvio pseudonarrativo trata-se
um ressecamento e a um dogmatismo
apenas de configurar uma repetição suporte de
insuportável e, em sua prática, a um
existência, através de ritmos e ritornelos* de
empobrecimento de suas intervenções, a
uma infinita variedade. 0 discurso, ou qualquer
estereótipos que os tornam impermeáveis á
cadeia discursiva, se faz assim portador de uma
alteridade singular de seus pacientes.
não-discursividade que, tal como um rastro
estroboscópico, anula os jogos de oposição Invocando paradigmas éticos, gostaria
distintiva tanto no nível do conteúdo quanto no principalmente de sublinhar a responsabilidade e

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o necessário “engajamento” não somente dos Paradoxalmente, talvez seja do lado das
operadores “psi”, mas de todos aqueles que ciências “duras” que convém esperar a
estão em posição de intervir nas instâncias reviravolta mais espetacular com respeito aos
psíquicas individuais e coletivas ( através da processos de subjetivação. Não é significativo,
educação, saúde, cultura, esporte, arte, mídia, por exemplo, que em seu último livro Prigogine e
moda etc). É eticamente insustentável se Stengers invoquem a necessidade de introduzir
abrigar, como tão freqüentemente fazem tais na física um “elemento narrativo”,
operadores, atrás de uma neutralidade indispensável, segundo eles, para teorizar a
transferencial pretensamente fundada sobre um evolução em termos de irreversibilidade* ? Sendo
controle do inconsciente e um corpus científico. assim, tenho a convicção de que a questão da
De fato, o conjunto dos campos “psi” se instaura enunciação subjetiva colocar-se-á mais e mais à
no prolongamento e em interface aos campos medida que se desenvolverem as máquinas
estéticos. produtoras de signos, de imagens, de sintaxe, de
inteligência artificial . . . Disso decorrerá uma
Insistindo nos paradigmas estéticos,
recomposição das práticas sociais e individuais
gostaria de sublinhar que, especialmente no
que agrupo segundo três rubricas
registro das práticas “psi”, tudo deveria ser
complementares - a ecologia social, a ecologia
sempre reinventado, retomado do zero, do
mental, e a ecologia ambiental - sob a égide
contrário os processos se congelam numa
ético-estética de uma ecosofia.
mortífera repetição. A condição prévia a todo
novo impulso da análise – por exemplo, a As relações da humanidade com o socius,
esquizoanàlise- consiste em admitir que, em com a psique e com a “natureza” tendem, com
geral, e por pouco que nos apliquemos a efeito, a se deteriorar cada vez mais, não só em
trabalhá-los, os Agenciamento subjetivos razão de nocividades e poluições objetivas mas
individuais e coletivos são potencialmente também pela existência de fato de um
capazes de se desenvolver e proliferar longe de desconhecimento e de uma passividade fatalista
seus equilíbrios ordinários. Suas cartografias dos indivíduos e dos poderes com relação a essas
analíticas transbordam pois, por essência, os questões consideradas em seu conjunto.
Territórios existências aos quais são ligadas. Com Catastróficas ou não, as evoluções negativas são
tais cartografias deveria suceder como na pintura aceitas tais como são. 0 estruturalismo - e depois
ou na literatura, domínios no seio dos quais cada o pós-modernismo - acostumou-nos a uma visão
desempenho concreto tem a vocação de evoluir, de mundo que elimina a pertinência das
inovar, inaugurar aberturas prospectivas, sem intervenções humanas que se encarnam em
que seus autores possam se fazer valer de políticas e micropolíticas concretas. Explicar este
fundamentos teóricos assegurados pela perecimento das práxis sociais pela morte das
autoridade de um grupo, de uma escola, de um ideologias e pelo retorno aos valores universais
conservatório ou de uma academia...Work in me parece pouco satisfatório. Na realidade, o
progress! Fim dos catecismos psicanalíticos, que convém incriminar, principalmente, é a
comportamentalistas ou sistemistas. O povo inadaptação das práxis sociais e psicológicas e
“psi”, para convergir nessa perspectiva com o também a cegueira quanto ao caráter falacioso
mundo da arte, se vê intimando a se desfazer de da compartimentação de alguns domínios do
seus aventais brancos, a começar por aqueles real. Não é justo separar a ação sobre a psique
invisíveis que carrega na cabeça, em sua daquela -sobre o socius e o ambiente. A recusa a
linguagem e em suas maneiras de ser ( um pintor olhar de frente as degradações desses três
não tem por ideal repetir indefinidamente a domínios, tal como isto é alimentado pela mídia,
mesma obra - com exceção da personagem de confina num empreendimento de infantilização
Titorelli, no Processo de Kafka, que pinta sempre da opinião e de neutralização destrutiva da
e identicamente o mesmo juiz!) . Da mesma democracia. Para se desintoxicar do discurso
maneira, cada instituição de atentimento sedativo que as televisões em particular
médico, de assistência, de educação, cada destilam, conviria, daqui para a frente,
tratamento individual deveria ter como apreender o mundo através dos três vasos
preocupação permanente fazer evoluir sua comunicantes que constituem nossos três pontos
prática tanto quanto suas bases teóricas. de vista ecológicos.

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homens como Donald Trump que se apodera de
bairros inteiros de Nova Iorque, de Atlantic City
Chernobyl e a Aids nos revelaram
etc, para “renová-los”, aumentar os aluguéis e,
brutalmente os limites dos poderes
ao mesmo tempo, rechaçar dezenas de milhares
técnico-científicos da humanidade e as
de famílias pobres, cuja maior parte é condenada
“marchas-à-ré” que a “natureza” nos pode
a se tornar “homeless"*, o equivalente dos peixes
reservar. É evidente que uma responsabilidade e
mortos da ecologia ambiental. Seria preciso
uma gestão mais coletiva se impõem para
também falar da desterritorialização selvagem do
orientar as ciências e as técnicas em direção a
Terceiro Mundo, que afeta concomitantemente a
finalidades mais humanas. Não podemos nos
textura cultural das populações, o habitat, as
deixar guiar cegamente pelos tecnocratas dos
defesas imunológicas, o clima etc. Outro desastre
aparelhos de Estado para controlar as evoluções
da ecologia social: o trabalho das crianças, que
e conjurar os riscos nesses domínios, regidos no
se tornou mais importante do que o foi no século
essencial pelos princípios da economia de lucro.
XIX! Como retomar o controle de tal situação que
Certamente seria absurdo querer voltar atrás
nos faz constantemente resvalar em catástrofes
para tentar reconstituir as antigas maneiras de
de autodestruição? As organizações
viver. Jamais o trabalho humano ou o habitat
internacionais têm muito pouco controle desses
voltarão a ser o que eram há poucas décadas,
fenômenos que exigem uma mudança
depois das revoluções informáticas, robóticas,
fundamental das mentalidades. A solidariedade
depois do desenvolvimento do gênio genético e
internacional é hoje assumida apenas por
depois da mundialização do conjunto dos merca-
associações humanitárias, ao passo que houve um
dos. A aceleração das velocidades de transporte
tempo em que ela concernia em primeiro lugar
e de comunicação, a interdependência dos
aos sindicatos e aos partidos de esquerda. 0
centros urbanos, estudados por Paul Virilio,
discurso marxista, por sua vez, se desvalorizou.
constituem igualmente um estado de fato
(Não o texto de Marx, que, este sim, conserva um
irreversível que conviria antes de tudo
grande valor.) Aos protagonistas da liberação
reorientar. De uma certa maneira, temos que
social cabe a tarefa de reforjar referências
admitir que será preciso lidar com esse estado de
teóricas que iluminem uma via de saída possível
fato. Mas esse lidar implica uma recomposição
para a história, que atravessamos, a qual é mais
dos objetivos e dos métodos do conjunto do
aterradora do que nunca. Não somente as
movimento social nas condições de hoje. Para
espécies desaparecem, mas também as palavras,
simbolizar essa problemática, que me seja
as frases, os gestos de solidariedade humana.
suficiente evocar a experiência de Alain Bombard
Tudo é feito no sentido de esmagar sob uma
na televisão quando apresentou duas bacias de
camada de silêncio as lutas de emancipação das
vidro: uma, contendo água poluída, como a que
mulheres e dos novos proletários que constituem
podemos recolher no porto de Marselha e na qual
os desempregados, os “marginalizados”, os
evoluía um polvo bem vivo, como que animado
imigrados.
por movimentos de dança; a outra, contendo
água do mar isenta de qualquer poluição. Quando Se é tão importante que, no
ele mergulhou o polvo na água “normal”, após estabelecimento de seus pontos de referência
alguns segundos, vimos o animal se encarquilhar, cartográficos, as três ecologias se desprendam
se abater e morrer. dos paradigmas pseudo-científicos, isso não se
deve unicamente ao grau de complexidade
Mais do que nunca a natureza não pode
das entidades consideradas mas, mais
ser separada da cultura e precisamos aprender a
fundamentalmente, ao fato de que no
pensar “transversalmente” as interações entre
estabelecimento de tais pontos de referência
ecossistemas, mecanosfera e Universos de
está implicada uma lógica diferente daquela
referência sociais e individuais. Tanto quanto
que rege a comunicação ordinária entre
algas mutantes e monstruosas invadem as águas
locutores e auditores e, simultaneamente,
de Veneza, as telas de televisão estão saturadas
diferente da lógica que rege a inteligibilidade
de uma população de imagens e de enunciados
dos conjuntos discursivos e o encaixe
“degenerados”. Uma outra espécie de alga, desta
indefinido dos campos de significação. Essa
vez relativa à ecologia social, consiste nessa
lógica das intensidades, que se aplica aos
liberdade de proliferação que é consentida a
Agenciamentos existenciais auto-referentes e

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que engajam durações irreversiveis, não psicopatológicas). No caso dos Agenciamentos
concerne apenas aos sujeitos humanos processuais, a raptura expressiva a-significante
constituídos em corpos totalizados, mas convoca uma repetição criativa que forje
também a todos os objetos parciais, no objetivos incorporais, Máquinas abstratas e
sentido psicanalítico, os objetos transicionais, Universos de valor impondo-se como se tivessem
no sentido de Winnicott, os objetos sempre estado aí, ainda que totalmente
institucionais (os "grupos-sujeito"), os rostos, tributários do acontecimento existencial que lhes
as paísagens etc. Enquanto que a lógica dos dá nascimento.
conjuntos discursivos se propõe limitar muito
Por outro lado, tais segmentos catalíticos
bem seus objetos, a lógica das intensidades,
existenciais podem continuar sendo portadores
ou a eco- lógica*, leva em conta apenas o
de denotação e de significação. Donde a
movimento, a intensidade dos processos
ambigüidade, por exemplo, de um texto poético
evolutivos. 0 processo, que aqui oponho ao
que a um só tempo pode transmitir uma
sistema ou à estrutura, visa a existência em
mensagem, denotar um referente, funcionando
vias de; ao mesmo tempo, se constituir, se
essencialmente sobre redundâncias de expressão
definir e se desterritorializar. Esses processos
e conteúdo. Proust analisou perfeitamente o
de “se pôr a ser” dizem respeito apenas a
funcionamento desses ritornelos existenciais
certos subconjuntos expressivos que
como lugar catalítico de subjetivação ( a
romperam com seus encaixes totalizantes e se
“pequena frase” de Vinteuil, o movimento dos
puseram a trabalhar por conta própria e a
sinos de Martinville, o sabor da “madeleine” e
subjugar seus conjuntos referencias para se
etc). O que convém sublinhar aqui é que o
manifestar a título de indícios existencias, de
trabalho de demarcação dos ritornelos
linha de fuga processual...
existenciais não concerne apenas à leitura e às
Em cada foco existencial parcial as práxis artes. Também encontramos essa eco-lógia
ecológicas se esforçarão por detectar os vetores operando na vida cotidiana, nos diversos
potencias de subjetivação e de singularização. patamares da vida social e, de forma mais geral,
Em geral trata-se de algo que se coloca a cada vez que está em questão a constituição de
atravessado à ordem “normal” das coisas – uma um Território existencial. Acrescentamos que tais
repetição contrariante, um dado intensivo que Territórios podem estar tão desterritorializados
apela outras intensidades a fim de compor outras quanto se possa imaginar (podem se encarnar na
configurações existenciais. Tais vetores Jerusalém celeste, numa problemática relativa
dissidentes se encontram relativamente ao bem e mal, num engajamento ético-político
destituídos de suas funções de denotação e de etc). O único ponto comum que existe entre
significação, para operar enquanto materiais esses diversos traços existenciais é o de sustentar
existenciais descorporificados. Mas cada uma a produção de existentes singulares ou de
dessas provas de suspensão do sentido representa ressingularizar conjuntos serializados.
um risco, o de uma desterritorialização por
Em todos os lugares e em todas as
demais brutal que destrói o Agenciamento de
épocas, a arte e a religião foram o refúgio de
subjetivação ( exemplo: a implosão do
cartografias existenciais fundadas na assunção de
movimento social na Itália, no início dos anos
certas rupturas de sentido “existencializantes”.
80 ). Ao contrário, uma desterritorialização suave
Mas a época contenporânea,exacerbando a
pode fazer evoluir os Agenciamentos de um modo
produção de bens materiais e imateriais em
processual construtivo. É aí que se encontra o
detrimento da consistência de Territorios
coração de todas as práxis ecológicas: as rupturas
existenciais individuais e de grupo,engendrou um
a-significantes, os catalisadores existencias estão
imenso vazio na subjetividade que tende a se
ao alcance das mãos, mas, na ausência de um
tornar cada vez mais absurda e sem recursos.
Agenciamento de enunciação que lhes dê um
Não só não constatamos nenhuma relação de
suporte expressivo, eles permanecem passi-
causa e efeito entre o crescimento dos recursos
vos e correm o risco de perder sua técnico-scientíficos e o desenvolvimento dos
consistência ( é mais por esse lado que convirá progressos sociais e culturais, como parece
procurar as raízes da angústia, da culpabilidade evidente que assistimos a uma degradação
e, de maneira geral, de todas as reiterações irreversível dos operadores tradicionais de

8
regulação social. Ainda que diante de tal diversas ... );
fenômeno seja artificial apostar numa volta
c) as semióticas técnico-científicas
atrás,numa recomposição das maneiras de ser de
(planos, diagramas, programas, estudos,
nossos antepassados, é exatamente o que
pesquisas ... );
tentam fazer `a sua maneira as formações
capitalistas mais “modernistas”. Vemos Por d) as semiÓticas de subjetivação, das
exemplo que certas estruturas hierárquicas tendo quais algumas coincidem com as que acabam de
perdido uma parte considerável de sua existência ser enumeradas mas conviria acrescentar muitas
considerável de sua eficiência funcional (em outras, tais como aquelas relativas à arquitetura,
razão, particularmente,dos novos meios de ao urbanismo, aos equipamentos coletivos etc.
informação e de concertamento por computador)
Devemos admitir que os modelos que
são o objetivo de um sobreinvestimento
pretendiam fundar uma hierarquia causal entre
imaginário, que confina, às vezes, como no
esses regimes semióticos estão prestes a perder
Japão, numa devoção religiosa e isto tanto nas
todo contato com a realidade. Torna-se cada vez
camadas dirigentes, quanto nos escalões
mais difícil, por exemplo, sustentar que as
inferiores. Na mesma ordem de idéias, assistimos
semióticas econômicas e aquelas que concorrem
a um reforço das atitudes segregativas com
para a produção de bens materiais ocupam uma
relação aos imigrados, às mulheres, aos jovens e
posição infra-estrutural com relação às
até às pessoas idosas. Tal ressurgimento do que
semióticas jurídicas e ideológicas, como
poderíamos chamar de um conservantismo
postulava o marxismo. 0 objeto do CMI é, hoje,
subjetivo não é unicamente imputável ao reforço
num só bloco: produtivo-econômico-subjetivo. E,
da repressão social; diz respeito igualmente a
para voltarmos a antigas categorizações
uma espécie de crispação existencial que envolve
escolásticas, poderíamos dizer que ele resulta ao
o conjunto de atores sociais. 0 capitalismo
mesmo tempo de causas materiais, formais,
pós-industrial que, de minha parte, prefiro
finais e eficientes.
qualificar como Capitalismo Mundial Integrado
(CMI) tende, cada vez mais, a descentrar seus Um dos problemas-chave de análise que a
focos de poder das estruturas de produção de ecologia social e a ecologia mental deveriam
bens e de serviços para as estruturas produtoras encarar é a introjeção do poder repressivo por
de signos, de sintaxe e de subjetividade, por parte dos oprimidos. A maior dificuldade, aqui,
intermédio, especialmente, do controle que reside no fato de que os sindicatos e os partidos,
exerce sobre a mídia, a publicidade, as que lutam em princípio para defender os
sondagens etc. interesses dos trabalhadores e dos oprimidos,
reproduzem em seu seio os mesmos modelos
Há aí uma evolução que deveria nos levar
patogénicos que, em suas fileiras, entravam toda
a refletir sobre o que foram, nesse sentido, as
liberdade de expressão e de inovação. Talvez
formas anteriores do capitalismo, pois elas
seja necessário ainda um bom tempo para que o
também não eram isentas dessa propensão a
movimento operário reconheça que as atividades
capitalizar poder subjetivo, tanto nas fileiras de
de circulação, distribuição, comunicação,
suas elites quanto nas de seus proletários.
enquadramento. . . constituem vetores
Entretanto essa propensão ainda não manifestava
econômico-ecológicos que, do ponto de vista da
plenamente sua verdadeira importância e por
criação da mais-valia, se situam rigorosamente
isso, na ocasião, ela não foi convenientemente
no mesmo plano que o trabalho diretamente
apreciada pelos teóricos do movimento operário.
incorporado na produção de bens materiais. A
Proponho reagrupar em quatro principais esse respeito, um desconhecimento dogmático
regimes semióticos os instrumentos sobre os foi mantido por numerosos teóricos, reforçando
quais repousa o CMI: um obreirismo e um corporatismo que
desnaturalizaram e desfavoreceram profunda-
a) as semiÓticas econômicas
mente os movimentos de emancipação
(instrumentos monetários, financeiros, contábeis,
anticapitalistas dessas últimas décadas.
de decisão ... );
Esperemos que uma recomposição e um
b) as semióticas furídicas (título de
reenquadramento das finalidades das lutas
propriedade, legislação e regulamentações
emancipatórias tornem-se, o quanto antes,

9
correlativas ao desenvolvimento dos três tipos de virilidade dominadora, à star da mídia...
práxis eco-lógicas aqui evocados. E façamos votos Assegurando-se do poder sobre o máximo de
para que no contexto das novas distribuições das ritornelos existenciais para controlálos e
cartas da relação entre o capital e a atividade neutralizá-los, a subjetividade capitalística se
humana, as tomadas de consciência ecológicas, enebria, se anestesia a si mesma, num
feministas, anti-racistas etc estejam mais sentimento coletivo de pseudo-eternidade.
prontas a ter em mira, a título de objetivo
É no conjunto dessas frentes
maior, os modos de produção da subjetividade -
emaranhadas e heterogêneas que, parece-me,
isto é, de conhecimento, cultura, sensibilidade e
deverão articular-se as novas práticas ecológicas,
sociabilidade - que dizem respeito a sistemas de
cujo objetivo será o de tornar processualmente
valor incorporal, os quais a partir daí estarão
ativas singularidades isoladas, recalcadas,
situados na raiz dos novos Agenciamentos pro-
girando em torno de si mesmas. (Exemplo: uma
dutivos.
classe escolar, onde estivessem sendo aplicados
A ecologia social deverá trabalhar na os princípios da escola Freinet, que consistem em
reconstrução das relações humanas em todos os singularizar seu funcionamento global - sistema
níveis,do socius. Ela jamais deverá perder de cooperativo, reuniões de avaliação, jornal,
vista que o poder capitalista se deslocou, se liberdade para os alunos organizarem seus
desterritorializou, ao mesmo tempo em extensão trabalhos, individualmente ou em grupo etc. )
- ampliando seu dominio sobre o conjunto da vida
Nessa mesma perspectiva, dever-se-à
social, econômica e cultural do planeta - e em
considerar os sintomas e incidentes fora das
"intenção" - infiltrando-se no seio dos mais
normas como indices de um trabalho potencial de
inconscientes estratos subjetivos. Assim sendo,
subjetivação. Parece-me essencial que se
não é possível pretender se opor a ele apenas de
organizem assim novas práticas micropolíticas e
fora, através de práticas sindicais e políticas
micro-sociais, novas solidariedades, uma nova
tradicionais. Tornou-se igualmente imperativo
suavidade juntamente com novas práticas
encarar seus efeitos no
estéticas e novas práticas analíticas das
domínio da ecologia mental, no seio da formações do inconsciente. Parece-me que esta é
vida cotidiana individual, doméstica, conjugal, a única via possível para que as práticas sociais e
de vizinhança, de criação e de ética pessoal. políticas saiam dessa situação, quero dizer, para
Longe de buscar um consenso cretinizante e que elas trabalhem para a humanidade e não
infantilizante, a questão será, no futuro, a de mais para um simples reequilíbrio permanente do
cultivar o dissenso e a produção singular de exis- Universo das semióticas capitalísticas. Poderse-ia
tência. A subjetividade capitalística, tal como é objetar que as lutas em grande escala não estão
engendrada por operadores de qualquer natureza necessariamente em sincronia com as práxis
ou tamanho, está manufaturada de modo a ecológicas e as micropolíticas do desejo. Mas aí
premunir a existência contra toda intrusão de está toda a questão: os diversos niveis de prática
acontecimentos suscetíveis de atrapalhar e não só não têm de ser homogeneizados,
perturbar a opinião. Para esse tipo de ajustados uns aos outros sob uma tutela
subjetividade, toda singularidade deveria ou ser transcendente, mas, ao contrário, convém enga-
evitada, ou passar pelo crivo de aparelhos e qua- já-los em processos de heterogênese. Nunca as
dros de referência especializados. Assim, a feministas estarão suficientemente implicadas
subjetividade capitalística se esforça por gerar o num devir-mulher, e não há razão alguma para
mundo da infância, do amor, da arte, bem como pedir aos imigrados que renunciem aos traços
tudo o que é da ordem da angústia, da loucura, culturais colados em seus seres ou a sua
da dor, da morte, do sentimento de estar perdido dependência nacionalitária. Convém deixar que
no cosmos ... É a partir dos dados existenciais se desenvolvam as culturas particulares
mais pessoais - deveríamos dizer mesmo infra- inventando-se, ao mesmo tempo, outros
pessoais - que o CMI constitui seus agregados contratos de cidadania. Convém fazer com que a
subjetivos maciços, agarrados à raça, à nação, ao singularidade, a exceção, a raridade funcionem
corpo profissional, à competição esportiva, à
junto com uma ordem estatal o menos
pesada possível.

10
A eco-lógica não mais impõe "resolver" os Insisto, essa escolha não é mais apenas
contrários, como o queriam as dialéticas entre uma fixação cega às antigas tutelas
hegelianas e marxistas. Em particular no domínio estatal-burocráticas, um welfare generalizado ou
da ecologia social haverá momentos de luta onde um abandono desesperado ou cínico à ideologia
todos e todas serão conduzidos a fixar objetivos dos yuppies.Tudo leva a crer que os ganhos de
comuns e a se comportar "como soldadinhos" - produtividade engendrados pelas revoluções
quero dizer, como bons militantes; mas haverá, tecnológicas atuais se inscreverão numa curva de
ao mesmo tempo, momentos de ressingularização crescimento logarítmico. A questão é, a partir
onde as subjetividades individuais e coletivas daí, a de saber se novos operadores ecológicos e
voltarão a ficar na delas e onde prevalecerá a novos Ageríciamentos ecosóficos de enunciação
expressão criadora enquanto tal, sem mais chegarão ou não a orientá-los por vias menos
nenhuma preocupação com relação às finalidades absurdas e sem saída do que as do CMI.
coletivas. Essa nova lógica ecosófica, volto a
0 princípio comum às três ecologias
sublinhar, se aparenta à do artista que pode ser
consiste, pois, em que os Territórios existenciais
levado a remanejar sua obra a partir da intrusão
com os quais elas nos põem em confronto não se
de um detalhe acidental, de um aconteci-
dão como um em-si, fechado sobre si mesmo,
mento-incidente que repentinamente faz bifurcar
mas como um para-si precário, finito, finitizado,
seu projeto inicial, para fazê-lo derivar longe das
singular, singularizado, capaz de bifurcar em
perspectivas anteriores mais seguras. Um
reiterações estratificadas e mortíferas ou em
provérbio pretende que a "exceção confirme a
abertura processual a partir de práxis que
regra", mas ela pode muito bem dobrá-la ou
permitam torná-lo "habitável" por um projeto
recriá-la.
humano. É essa abertura práxica que constitui a
Em minha opinião, a ecologia ambiental, essência desta arte da "eco" subsumindo todas as
tal como existe hoJe, não fez senão iniciar e maneiras de domesticar* os Territórios
prefigurar a ecologia generalizada que aqui existenciais, sejam eles concernentes a maneiras
preconizo e que terá por finalidade descentrar íntimas de ser, ao corpo, ao meio ambiente ou a
radicalmente as lutas sociais e as maneiras de grandes conjuntos contextuais relativos à etnia,
assumir a própria psique*. Os movimentos à nação ou mesmo aos direitos gerais da
ecológicos atuais têm certamente muitos humanidade. Assim sendo, esclareçamos que não
méritos, mas, penso que na verdade, a questão se trata para nós de erigir regras universais a
ecosófica global éimportante demais para ser título de guia de tais práxis, mas, ao contrário,
deixada a algumas de suas correntes arcaizantes de liberar as antinomias de princípio entre os
e folclorizantes, que às vezes três níveis ecosóficos ou, se preferirmos, entre as
três visões ecológicas, as três lentes discrimi-
optam deliberadamente por recusar todo
nantes aqui em questão.
e qualquer engajamento político em grande
escala. A conotação da ecologia deveria deixar 0 princípio específico da ecologia mental
de ser vinculada à imagem de uma pequena reside no fato de que sua abordagem dos
minoria de amantes da natureza ou de Territórios existenciais depende de uma lógica
especialistas diplornados. Ela põe em causa o prê-objetal e pré-pessoal evocando o que Freud
conjunto da subjetividade e das formações de descreveu como um "processo primário". Lógica
poder capitalísticos - os quais não estão de modo que poderíamos dizer do "terceiro incluso", onde
algum seguros que continuarão a vencê-la, como o branco e o negro são indistintos, onde o belo
foi o caso na última década. coexiste com o feio, o dentro com o fora, o "bom
objeto" com o mau ... No caso particular da
Não apenas a crise permanente atual,
ecologia do fantasma, o que se requer, a cada
financeira e econômica, pode desembocar em
tentativa de levantamento cartográfico, é a
importantes transtornos do status quo social e do
elaboração de um suporte expressivo singular ou,
imaginário da mídia que lhe serve de base, como
mais exatamente, singularizado. Gregory Bateson
também certos temas veiculados pelo
deixou bem claro que o que ele chama de
neo-liberalismo, relativos por exemplo à flexi-
"ecologia das idéias" não pode ser circunscrito ao
bilidade de trabalho, às desregulagens etc,
domínio da psicologia dos indivíduos mas se or-
podem perfeitamente voltar-se contra ele.
ganiza em sistemas ou em "espírito" (minds) cujas

11
fronteiras não mais coincidem com os indivíduos De nossa parte, preconizamos repensar
que deles participam*. Mas onde deixamos de por outra via as diversas tentativas de
segui-lo é quando ele faz da ação e da modelização "psi", do mesmo modo que as
enunciação simples partes do subsistema práticas das seitas religiosas ou os "romances
ecológico chamado contexto. De minha parte, familiares" neuróticos e os delírios psicóticos.
considero que a "tomada de contexto" existencial Tratar-se-á de dar conta dessas práticas menos
depende sempre de uma práxis instaurando-se em termos de verdade científica que em função
em ruptura com o "pretexto" sistêmico. Não de sua eficácia estético-existencial. Que foi
existe hierarquia de conjunto que aloje e localize posto em funcionamento aqui? Quais cenas
num dado nível os componentes de enunciação. existenciais se encontram, bem ou mal,
Estes são compostos de elementos heterogêneos instaladas? 0 objetivo crucial é a apreensão dos
tomando consistência e persistência comum por pontos de ruptura a-significantes - em ruptura de
ocasião de passagens de limiares constitutivos de denotação, de conotação e de significação - a
um mundo em detrimento de um outro. Os ope- partir dos quais algumas cadeias semíióticas se
radores dessa cristalização são fragmentos de porão a trabalhar a serviço de um efeito de
cadeias discursivas a-significantes que Schlegel auto-referência existencial. 0 sintoma repetitivo,
comparava a obras de arte ("Semelhante a uma a oração, o ritual da "sessão", a palavra de
pequena obra de arte, um fragmento deve ser ordem, o emblema, o ritornelo, a cristalização
totalmente destacado do mundo ambiente e rostificadora da star ... entabulam a produção de
fechado sobre si mesmo como um ouriço" '). uma subjetividade parcial; pode-se dizer que são
a base de uma proto-subjetividade. Os
A questão da ecologia mental pode surgir
freudianos já haviam detectado a existência de
a todo momento, em todos os lugares, para além
vetores de subjetivação escapando ao domínio do
dos conjuntos bem constituídos na ordem
ego: subjetividade parcial, complexual,
individual ou coletiva. Para apreender esses
enlaçando-se em torno de objetos em ruptura de
fragmentos catalisadores de bifurcaçoes
sentido tais como o seio materno, as fezes, o
existenciais, Freud inventou os rituais da sessão,
sexo, . . Mas esses objetos, geradores de
da associação livre, da interpretação, em função
subjetividade "dissidente", eles os conceberam
de mitos de referência psicanalíticos. Hoje certas
como permanecendo essencialmente adjacentes
correntes pós-sistêmicas da terapia familiar
às pulsões instintuais e num imaginário
dedicam-se a forjar outras cenas e outras
corporeizado. Outros objetos institucionais,
referências. Tudo isso é ótimo! Mas, ainda assim,
arquiteturais, econômicos, cósmicos, se
trata-se de bases conceituais incapazes de dar
constituem tão legitimamente quanto como
conta das produções de subjetividade "primária",
suporte dessa mesma função de produção
tal como se desenvolvem em escala verdadei-
existencial.
ramente industrial, em particular a partir da
mídia e dos equipamentos coletivos. 0 conjunto Repito, o essencial aqui é o
dos corpus teóricos desse tipo apresenta o corte-bifurcação, impossível de ser representado
inconveniente de ser fechado a uma eventual enquanto tal, que no entanto, vai secretar toda
proliferação criativa. Mito ou teoria, a pretensão uma fantasmática das origens (cena primitiva
científica, a pertinência dos modelos relativos à freudiana, olhar "armado" do sistemista da
ecologia mental deveria ser julgada em função terapia familiar, cerimonial de iniciação, de
de: 1 ) sua capacidade de circunscrever as ca- conjuração etc). A pura auto-referência criativa
deias discursivas em ruptura de sentido; 2) sua é insustentável pela apreensão da existência
possibilidade de operar conceitos autorizando ordinária. Sua representação pode apenas
uma autoconstrutibilidade teórica e prática. 0 mascarar a existência ordinária, travesti-la,
freudismo responde bem ou mal à primeira desfigurá-la, fazê-la transitar por mitos e relatos
exigência mas não à segunda; inversamente, o de referência - aquilo que chamo de uma
pós-sistemismo teria antes tendência a responder meta-modelização. Corolário: não poderíamos ter
à segunda, ao mesmo tempo em que subesti- acesso a tais focos de subjetivação criativa em
maria a primeira; já no campo político-social, os estado nascente senão pelo desvio de uma
meios “alternativos” geralmente desconhecem o economia fantasmática se desenvolvendo sob
conjunto das problemáticas relativas à ecologia forma desviada. Assim, ninguém está dispensado
mental. de jogar o jogo da ecologia do imaginário!

12
Seja na vida individual ou na vida Vê-se isso hoje, por exemplo, na
coletiva, o impacto de urna ecologia mental não exploração comercial intensiva das histórias em
pressupõe uma importação de conceitos e de quadrinhos escatológicas destinadas à infância .
práticas a partir de um domínio “psi” Vê-se isso, no entanto, de modo muito mais
especializado. Fazer face à lógica da inquietante sob a forma de um caolho ao mesmo
ambivalência desejante, onde quer que ela se tçmpo repugnante e fascinante que, melhor que
perfile - na cultura, na vida cotidiana, no ninguém, sabe impor o implícito racista e nazi de
trabalho, no esporte etc -, reapreciar a seu discurso no cenário da mídia, assim como no
finalidade do trabalho e das atividades humanas seio das relações de forças políticas. É preferível
em função de critérios diferentes daqueles do não tapar os olhos: a potência desse tipo de
rendimento e do lucro: tais imperativos da personagem vem do fato de que ele consegue se
ecologia mental convocam uma mobilização fazer de intérprete de montagens pulsionais que
apropriada do conjunto dos indivíduos e dos assombram, de fato, o conjunto do socius.
segmentos sociais. Que lugar dar, por exemplo,
aos fantasmas de agressão, de assassinato, de
violação, de racismo no mundo da infância e da Não sou tão ingênuo e utopista para
vida adulta regressiva? Ao invés de acionar pretender que existiria uma metodologia
incansavelmente procedimentos de censura e de analítica segura que erradicasse em profundidade
contenção, em nome de grandes princípios todos os fantasmas que conduzem a reificar a
morais, melhor conviria promover uma mulher, o imigrado, o louco etc, e eliminasse as
verdadeira ecologia do fantasma, que tivesse instituições penitenciárias, psiquiátricas etc. Mas
como objeto transferências, translações, recon- parece-me que uma generalização das expe-
versões de suas matérias de expressão. É riências de análise institucional (no hospital, na
obviamente legítimo que uma repressão se escola, no meio urbano. . . ) poderia modificar
exerça com relação às “passagens ao ato”! Mas profundamente os dados desse problema. Uma
antes disso, é necessário que se arranjem modos imensa reconstrução das engrenagens sociais é
de expressão adequados às fantasmagorias necessária para fazer face aos destroços do CMI.
negativistas e destrutivas, de modo que elas Só que essa reconstrução passa menos por
possam, como no tratamento da psicose, reformas de cúpula, leis, decretos, programas
ab-reagir de maneira a recolar Territórios burocráticos do que pela promoção de práticas
existenciais que estão à deriva. Tal inovadoras, pela disseminação de experiências
"transversalização" da violência implica que não alternativas, centradas no respeito à
se pressuponha a existência incontornável de singularidade e no trabalho permanente de
uma pulsão de morte intrapsíquica, produção de subjetividade, que vai adquirindo
constantemente à espreita, pronta a tudo autonomia e ao mesmo tempo se articulando ao
devastar a sua passagem no momento em que os resto da sociedade. Dar lugar para as brutais des-
Territórios do Ego perdem sua consistência e sua territorializações da psique e do socius, em que
vigilância. A violência e a negatividade resultam consistem os fantasmas de violência, pode
sempre de Agenciamentos subjetivos complexos: conduzir não a uma sublimação mirapulosa, mas
elas não estão intrinsecamente inscritas na a reconversões de Agenciamentos que
essência da espécie humana, são construídas e transbordam por todos os lados o corpo, o Ego, o
sustentadas por múltiplos Agenciamentos de indivíduo. 0 Super-ego punitivo e a culpabilização
enunciação. Sade e Céline esforçaram-se, com mortífera não podem ser atingidos pelos meios
maior ou menor felicidade, por tornar quase ordinários da educação e do "viver bem". Fora o
barrocos seus fantasmas negativos. Por essa ra- Islão, as grandes religiões têm cada vez menos
zão, eles deveriam ser considerados como acesso à psique, ao mesmo tempo em que vemos
autores chave de uma ecologia mental. Na falta florescer, aqui e ali por todo o mundo, uma
de uma tolerância e de uma inventívidade espécie de retorno ao totemismo e ao animismo.
permanente para "imaginarizar" os diversos As comunidades humanas imersas na tormenta
avatares da violência, a sociedade corre o risco tendem a se curvar sobre si mesmas, deixando
de fazê-los cristalizar-se no real. nas mãos dos políticos profissionais o cuidado de
reger a organização social, enquanto que os

13
sindicatos estão ultrapassados pelas mutações de hábitos estruturalistas. 0 que caracteriza um tra-
uma sociedade que, por toda parte, encontra-se ço diagramático, com relação a um ícone, é seu
em crise latente ou manifesta. grau de desterritorialização, sua capacidade de
sair de si mesmo para constituir cadeias
discursivas conectadas com o referente. Por
0 princípio particular à ecologia social diz exemplo, podemos distinguir a imitação
respeito à promoção de um investimento afetivo identificatória de um aluno pianista com relação
e pragmático em grupos humanos de diversos a seu mestre de uma transferência de estilo, sus-
tamanhos. Esse "Eros de grupo" não se apresenta cetível de bifurcar numa via singular. De um
como uma quantidade abstrata mas corresponde modo geral, distinguiremos os agregados
a uma reconversão qualitativamente específica imaginários de massa dos Agenciamentos
da subjetividade primária, da alçada da ecologia coletivos de enunciação implicando tanto traços
mental. Duas opções se apresentam aqui: seja a pré-pessoais quanto sistemas sociais ou
triangulação personológica da subjetividade, componentes maquínicos. (Oporemos aqui os ma-
segundo o modo Eu-Tu-Ele, pai-mãe-filho ... seja quinismos vivos "autopoiéticos" aos mecanismos
a constituição de grupos- sujeito auto-referentes de repetição vazia).
se abrindo amplamente ao socius e ao cosmos.
Ainda assim, as oposições entre essas
No primeiro caso, o eu e o outro são construídos
duas modalidades não são tão nítidas: uma
a partir de um jogo de identificações e de
multidão pode estar habitada por grupos
imitações padrão que levam a grupos primários
desempenhando a função de líder de opinião, e
voltados para o pai, o chefe, a star de mídia. É,
grupos-sujeito podem recair no estado amorfo e
com efeito, no sentido dessa psicologia de
alienante. As sociedades capitalísticas - ex-
massas maleáveis que trabalha a grande mídia.
pressão sob a qual agrupo, ao lado das potências
No segundo caso, no lugar de sistemas identifica-
do Oeste e do Japão, os países ditos do
tórios, passam a operar traços de eficiência
socialismo real e as Novas Potências Industriais
diagramáticos. Escapa-se aqui, ao menos
do Terceiro Mundo - fabricam hoje em dia, para
parcialmente, das semiologias da modelização
colocá-las a seu serviço, três tipos de
icônica em proveito de semióticas processuais, as
subjetividade: uma subjetividade serial cor-
quais tomaria o cuidado de não chamar de
respondendo às classes salariais, uma outra à
simbólicas para não recair nos inveterados
imensa
massa dos "não-garantidos" e, enfim, uma pela mídia não depende de nenhuma necessidade
subjetividade elitista correspondendo às camadas intrínseca. Nesse campo, a visão fatalista das
dirigentes. A acelerada mídiatização do conjunto coisas me parece corresponder ao
das sociedades tende assim a criar um hiato cada desconhecimento de vários fatores:
vez mais pronunciado entre essas diversas
a) as bruscas tomadas de consciência das
categorias de população. Do lado das elites, são
massas que continuam sempre possíveis;
colocados suficientemente à disposição bens
materiais, meios de cultura, uma prática mínima b) o desabamento progressivo do
da leitura e da escrita e um sentimento de stalinismo e de seus avatares, o que dá lugar a
competência e de legitimidade decisionais. Do outros Agenciamentos de transformação das lutas
lado das classes sujeitadas, encontramos, sociais;
bastante freqüentemente, um abandono à ordem
c) a evolução tecnológica da mídia, em
das coisas, uma perda de esperança de dar um
particular sua miniaturização, a diminuição de
sentido à vida. Um ponto programático
seu custo, sua possível utilização para fins não
primordial da ecologia social seria o de fazer
capitalísticos;
transitar essas sociedades capitalísticas da era da
mídia em direção a uma era pós- mídia, assim
entendida como uma reapropriação da mídia por
uma multidão de grupos-sujeito, capazes de
geri-la numa via de ressingularização. Tal pers-
pectiva pode hoje parecer fora de alcance, mas a
situação atual de uma maximização de alienação

14
d) a recomposição dos processos de etc) e de uma subjetividade pós-industrial.
trabalho sobre os escombros dos sistemas de Podemos, aliás, nos perguntar se esse tipo de
produção industriais do início do século, o que Novas Potências Industriais, no momento lo-
reclama uma crescente produção de calizado principalmente ao longo do mar da
subjetividade "criacionista", tanto no plano China, não vai igualmente eclodir às margens do
individual quanto no plano coletivo. (Através da Mediterrâneo e da África Atlântica. Se assim
formação permanente, o incremento de fosse, veríamos toda uma série de regiões da
mão-de-obra, as transferências de competência Europa submetidas a rudes tensões, pelo fato de
etc.) um questionamento radical de suas fontes de
renda e de seu estatuto de pertinência às
grandes potências brancas.
É às primeiras formas de sociedade
Nesses vários domínios, as problemáticas
industrial que coube laminar e serializar a
ecológicas se entremeiam. Deixada a si mesma, a
subjetividade das classes trabalhadoras. Hoje, a
eclosão dos neo-arcaísmos sociais e mentais pode
especialização internacional do trabalho
conduzir tanto ao melhor quanto ao pior!
exportou para o Terceiro Mundo os métodos de
Trata-se aí de uma questão assustadora: o
trabalho em série. Na era das revoluções
fascismo dos Ayatollahs, não o esqueçamos, só
informáticas, do surgimento das biotecnologias,
pode se instaurar baseado numa profunda
da criação acelerada, de novos materiais e de
revolução popular no Irã. As recentes revoltas de
uma "maquinização" cada vez mais fina do
jovens, na Argélia, promoveram uma dupla
tempo, novas modalidades de subjetivação estão
simbiose entre as maneiras de viver no Ocidente
prestes a surgir. Um apelo maior se fará à
e as diversas versões de integrismo. A ecologia
inteligência e à iniciativa e, em contrapartida,
social espontânea trabalha na constituição de
ter-se-à um cuidado maior com a codificação e o
Territórios existenciais que, bem ou mal, suprem
controle da vida doméstica do casal conjugal e
os antigos esquadrinhamentos rituais e religiosos
da família nuclear. Em resumo,
do socius. Parece óbvio que, nesse domínio,
reterritorializando a família em grande escala
enquanto práxis coletivas politicamente coe-
(pela mídia, os serviços de assistência, os salários
rentes não vieram assumi-lo, acabarão sempre
indiretos. . . ), tentar-se-á aburguesar ao máximo
vencendo os empreendimentos nacionalistas
a subjetividade operária.
reacionários, opressivos para as mulheres, as
As operações de reivindicação e de crianças, os marginais, e hostis a toda inovação.
"familiarização" não têm o mesmo efeito quando Não se trata aqui de propor um modelo de
se dirigem a um terreno de subjetividade sociedade pronto para usar mas tão somente de
coletiva devastada pela era industríal do século assumir o conjunto de componentes ecosóficos
XIX e da primeira metade do século XX, ou cujo objetivo será, em particular, a instauração
quando se dirigem a terrenos onde foram man- de novos sistemas de valorização.
tidos certos traços arcaicos herdados da era
Já sublinhei que é cada vez menos
precapitalista. Nesse sentido, o exemplo do
legítimo que as retribuições financeiras e de
Japão e da Itália parecem significativos, já que
prestígio das atividades humanas socialmente
são países que conseguiram enxertar indústrias
reconhecidas sejam reguladas apenas por um
de ponta numa subjetividade coletiva que guarda
mercado fundado no lucro. Outros sistemas de
vínculos com um passado às vezes muito recuado
valor deveriam ser levados em conta (a “ren-
(remontando ao shinto-budismo no Japão e às
tabilidade” social, estética, os valores de desejo
épocas patriarcais na Itália). Nesses dois países, a
etc). Somente o Estado, até o momento, está em
reconversão pós-industrial se efetuou por tran-
posição de arbitrar em campos de valor não
sições relativamente menos brutais que na
decorrente do lucro capitalista (exemplo: a
França, onde regiões inteiras saíram por um
apreciação do campo do patrimônio). Parece
longo período da vida econômica ativa.
necessário insistir sobre o fato de que novos
Em alguns países do Terceiro Mundo, substitutos sociais, tais como fundações reconhe-
assistimos igualmente à superposição de uma cidas como sendo de utilidade social, deveriam
subjetividade medieval (relação de submissão ao poder flexibilizar e ampliar o financiamento do
clã, alienação total das mulheres e das crianças Terceiro Setor - nem privado, nem público - que
será constantemente levado a crescer à medida político, por exemplo nas Filipinas ou no Chile,
que o trabalho humano der lugar ao trabalho seja no plano nacionalitário, na URSS, onde mil
maquínico. Para além de uma renda mínima revoluções dos sistemas de valor se infiltram
garantida para todos - reconhecida como díreito progressivamente. Cabe aos novos componentes
e não a título de contrato dito de re-inserção -, a ecológicos polarizá-los e afirmar seus respectivos
questão se perfila de serem colocados à pesos nas relações de forças políticas e sociais.
disposição meios de levar avante
0 princípio particular à ecologia
empreendimentos individuais e coletivos, indo no
ambiental é o de que tudo é possível, tanto as
sentido de uma ecologia da ressingularização. A
piores catástrofes quanto as evoluções flexíveis.
procura de um Território ou de uma pátria
Cada vez mais, os equilíbrios naturais
existencial não passa necessariamente pela de
dependerão das intervenções humanas. Um
uma terra natal ou de uma filiação de origem
tempo virá em que será necessário empreender
longínqua. Os movimentos nacionalitários (de
imensos programas para regular as relações entre
tipo basco, Irlanda), muito freqüentemente se
o oxigênio, o ozônio e o gás carbônico na
dobram sobre si mesmos, por causa de
atmosfera terrestre. Poderíamos perfeitamente
antagonismos exteriores, deixando de lado as
requalificar a ecologia ambiental de ecologia
outras revoluções moleculares relativas à
maquínica já que, tanto do lado do cosmos
liberação da mulher, à ecologia ambiental etc.
quanto das práxis humanas, a questão é sempre a
Toda espécie de "nacionalidades"
de máquinas - e eu ousaria até dizer de máquinas
desterritorializadas são concebíveis, tais como a
de guerra. Desde sempre a "natureza" esteve em
música, a poesia ... 0 que condena o sistema de
guerra contra a vida! Mas a aceleração dos
valorização capitalístico é seu caráter de
"progressos" técnico-científicos conjugada ao
equivalente geral, que aplaina todos os outros
enorme crescimento demográfico faz com que se
modos de valorização, os quais ficam assim
deva empreender, sem tardar, uma espécie de
alienados à sua hegemonia. A isso conviria senão
corrida para dominar a mecanosfera.
opor ao menos superpor instrumentos de
valorização fundados nas produções existenciais No futuro a questão não será apenas a da
que não podem ser determinadas em função uni- defesa da natureza, mas a de uma ofensiva para
camente de um tempo de trabalho abstrato, nem reparar o pulmão amazônico, para fazer
de um lucro capitalista esperado. Novas "bolsas" reflorescer o Saara. A criação de novas espécie
de valores, novas deliberações coletivas dando vivas, vegetais e animais, está inelutavelmente
chance aos empreendimentos os mais individuais, em nosso horizonte e torna urgente não apenas a
os mais singulares, os mais dissensuais, são adoção de uma ética ecosófica adaptada a essa
convocados a emergir - se apoiando. situação, ao mesmo tempo terrificante e
particularmente, em meios de concertamento fascinante, mas também de uma política
telemáticos e informáticos. A noção de interesse focalizada no destino da humanidade.
coletivo deveria ser ampliada a
0 relato da gênese bíblica está sendo
empreendimentos que a curto prazo não trazem
substituído pelos novos relatos da re-criação
"proveito" a ninguém, mas a longo prazo são
permanente do mundo. Aqui, nada melhor do que
portadores de enriquecimento processual para o
citar Walter Benjamin condenando o
conjunto da humanidade. É o conjunto do futuro
reducionismo correlativo do primado da infor-
da pesquisa fundamental e da arte que está aqui
mação: "Quando a informação se substitui à
em causa.
antiga relação, quando ela própria cede lugar à
Essa promoção de valores existenciais e sensação, esse duplo processo reflete uma
de valores de desejo não se apresentará, crescente degradação da experiência. Todas
sublinho, como uma alternativa global, essas formas, cada uma a sua maneira, se
constituída de uma vez por todas. Ela resultará destacam do relato, que é uma das mais antigas
de um deslocamento generalizado dos atuais formas de comunicação. À diferença da
sistemas de valor e da aparição de novos pólos de informação, o relato não se preocupa em
valorização. A esse respeito é significativo que, transmitir o puro em si do acontecimento, ele o
nos últimos períodos, as mais espetaculares incorpora na própria vida daquele que conta,
mudanças sociais se deram pelo fato desse tipo para comunicá-lo como sua própria experiência
de deslizamento a longo prazo: seja no plano àquele que escuta. Dessa maneira o narrador
nele deixa seu traço, como a mão do artesão no
vaso de argila".
como o estranho: todo um programa que
Fazer emergir outros mundos diferentes parecerá bem distante das urgências do
daquele da pura informação abstrata; engendrar momento! E, no entanto, é exatamente na
Universos de referência e Territórios existenciais, articulação: da subjetividade em estado
onde a singularidade e a finitude sejam levadas nascente, do socius em estado mutante, do meio
em conta pela lógica multivalente das ecologias ambiente no ponto em que pode ser reinventado,
mentais e pelo princípio de Eros de grupo da que estará em jogo a saída das crises maiores de
ecologia social e afrontar o face-a-face nossa época.
vertiginoso com o Cosmos para submetê-lo a uma
Concluindo, as três ecologias deveriam
vida possível - tais são as vias embaralhadas da
ser concebidas como sendo da alçada de uma
tripla visão ecológica.
disciplina comum ético-estética e, ao mesmo
Uma ecosofia de um tipo novo, ao mesmo tempo, como distintas uma das outras do ponto
tempo prática e especulativa, ético-política e de vista das práticas que as caracterizam. Seus
estética, deve a meu ver substituir as antigas registros são da alçada do que chamei
formas de engajamento religioso, político, heterogênese, isto é, processo contínuo de re-
associativo. . . Ela não será nem uma disciplina singularização. Os indivíduos devem se tornar a
de recolhimento na interioridade, nem uma um só tempo solidários e cada vez mais
simples renovação das antigas formas de diferentes. (0 mesmo se passa com a
"militantismo". Tratar-se-á antes de um re-singularização das escolas, das prefeituras, do
movimento de múltiplas faces dando lugar a urbanismo etc).
instâncias e dispositivos ao mesmo tempo
A subjetividade, através de chaves
analíticos e produtores de subjetividade. Subjeti-
transversais, se instaura ao mesmo tempo no
vidade tanto individual quanto coletiva,
mundo do meio ambiente, dos grandes
transbordando por todos os lados as
Agenciamentos sociais e institucionais e,
circunscrições individuais, "egoisadas",
simetricamente, no seio das paisagens e dos
enclausuradas em identificações, e abrindo-se
fantasmas que habitam as mais íntimas esferas
em todas as direções: do lado do socius, mas
do indivíduo. A reconquista de um grau de
também dos Phylum maquínicos, dos Universos
autonomia criativa num campo particular invoca
de referência técnico-científicos, dos mundos
outras reconquistas em outros campos. Assim,
estéticos, e ainda do lado de novas apreensões
toda uma catálise da retomada de confiança da
"pré-pessoais" do tempo, do corpo, do sexo ...
humanidade em si mesma está para ser forjada
Subjetividade da ressingularização capaz de
passo a passo e, às vezes, a partir dos meios os
receber cara-a-cara o encontro com a finitude
mais minúsculos. Tal como esse ensaio que
sob a forma do desejo, da dor, da morte. . .
quereria. por pouco que fosse tolher a falta de
Todo um rumor me diz que nada disso se dá por
graça e a passividade ambiente.
si mesmo! Por todos os lados impõem-se espécies
de invólucros neurolépticos para evitar
precisamente qualquer singularidade intrusiva. É
preciso, mais uma vez, invocar a História! No
mínimo pelo fato de que corremos o risco de não
mais haver história humana se a humanidade não
reassumir a si mesma radicalmente. Por todos os
meios possíveis, trata-se de conjurar o cresci-
rnento entrópico da subjetividade dominante. Ao
invés de ficar perpetuamente ao sabor da
eficácia falaciosa de "challenges" econômicos,
trata-se de se reapropriar de Universos de valor
no seio dos quais processos de singuralização
poderão reencontrar consistência. Novas práticas
sociais, novas práticas estéticas, novas práticas
de si na relação com o outro, com o estrangeiro,
http://www.ufrrj.br/editora/Rch.mil/Vol23%20
n2/10%2001h04.pdf
http://umfocosubjetivo.blogspot.com.br/2010/
03/resenha-do-livro-as-tres-ecologias-de.html
http://umfocosubjetivo.blogspot.com.br/2010/
03/resenha-do-livro-as-tres-ecologias-de.html

http://www.pangea.org.br/FINEP_MTUR_PA
NGEA_Turismo_Inclusao_Diagnostico_Divulgacao.pd
f pibic

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