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Elaboração de um diagnóstico sobre os problemas de gênero: tendências e bloqueios

emancipatórios

Fazer um diagnóstico sobre os problemas de gênero atualmente não é tarefa fácil. Ao mesmo tempo
em que desejos e esperanças emancipatórias podem nos levar a análises por demais otimistas, a
realidade objetiva e a conjuntura política atual podem nos levar a um erro no sentido oposto, ou
seja, ao de subestimar tendências reais de emancipação. A vitória de discursos eleitorais que
desmerecem, ou mesmo atacam diretamente, a luta pela emancipação de gênero, bem como o
próprio desmoronamento desse sistema eleitoral (especialmente no caso do Brasil, no ano de 2016),
pode ser um desses fatores que nos conduziriam a uma análise pessimista. Esperança e desejo,
observação do real e desilusões, bem como uma certa agressividade de um campo político
conservador nos últimos anos, não podem servir como os condutores principais desse tipo de
análise, sob pena de ela ser por demais pessimista.

Para realizar um diagnóstico que identifique mais propriamente as tendências e os bloqueios de


modo a orientar uma ação política do sentido da emancipação, cabe um certo distanciamento que
consiga detectar as movimentações que se escondem por trás da realidade aparente. A questão do
método para a realização desse diagnóstico é especialmente importante em uma realidade que nos
conduz ao pessimismo, para que as tendências de emancipação não fiquem ocultas numa análise
apenas dos dados da realidade momentânea. É preciso que uma luz conceitual, depurada da
realidade (ao menos de modo provisório, metodológico), seja aplicada para que esses tendências
consigam emergir de uma realidade que parece pouco propor. O conceito agirá então como uma
lupa, que pode intensificar esse ou aquele aspecto, ou mesmo direcionar o olhar para que
determinada tendência ou bloqueio seja identificado por trás dos dados sensíveis.

Fraser trabalha de uma maneira parecida ao pensar as questões de reconhecimento e redistribuição.


Este trabalho tentará discutir as tendências emancipatórias em relação a gênero de uma maneira
mais afastada e conceitual, parecida com o método utilizado por ela. Diz a pensadora norte-
americana:

“Finalmente, uma palavra sobre o método. No que segue, proporei uma série de distinções
analíticas – por exemplo, injustiças culturais e injustiças econômicas, reconhecimento e
redistribuição. No mundo real, cultura e economia política estão sempre imbricados e virtualmente
toda luta contra injustiça, quando corretamente entendida, implica demandas por redistribuição e
reconhecimento. (…) Só por meio de abstrações das complexidades do mundo real é possível
elaborar esquemas conceituais que podem iluminá-las”1.
É importante notar o que Fraser também diz sobre o conceito de injustiça. Ela estabelece, conceitual
e metodologicamente, que a luta contra injustiças deve-se dar tanto no campo do reconhecimento
(cultura) quanto no campo da redistribuição (economia política). Mas isso não é apenas
metodológico, pois a própria autora deixa claro que esse é um entendimento correto da luta contra
injustiças. Neste trabalho, entenderemos injustiça de maneira parecida, mas com uma ênfase na
efetividade da luta e, portanto, com um olhar para as tendências reais de emancipação. Por isso,
haverá o uso de termos como “conceito unitário” ao fazer referência a um conceito de mulher, sem
entrar na problemática do sujeito e enfatizando mais o caráter unificador desse conceito
(entendendo que a unificação é um fator importante para que uma luta tenha efetividade e
possibilidades reais de sucesso).

Antes de se trabalhar os conceitos que vão nos ajudar mais diretamente a enfrentar a questão de um
diagnóstico, com os seus bloqueios e tendências, primeiro é preciso pensar o que seria a
emancipação da mulher. Não cabe, neste caso, falar de uma emancipação do homem, pois é
pressuposto do diagnóstico que a opressão de gênero se dá em um sentido negativo para a mulher e
não num sentido negativo para o homem. Não é necessário o aprofundamento dessa questão, pois é
de conhecimento comum e evidente que esta opressão é em um sentido negativo para a mulher.
Falar de “opressão de gênero” é, neste caso, falar de opressão à mulher – ainda que, em alguns
casos, os homens também sofram com esse tipo de opressão, o que não será tratado aqui, por
questões de espaço e também de relevância (ao que parece, esse tipo de opressão que afeta o gênero
masculino é, em termos proporcionais, muito menor e menos importante quando comparado ao que
sofre o gênero feminino).

A questão de gênero, portanto, tem como foco enfrentar as questões relativas à opressão da mulher.
Mas ao se falar em opressão da mulher, outra questão emerge de maneira inevitável: existe, de fato,
a mulher? Ao pensar as tendências emancipatórias em relação a uma realidade de opressão da
mulher, já de início emerge a questão sobre se, de fato, essa mulher da formulação acima é uma
realidade ou se não estamos apenas pressupondo-o sem base alguma. Pensar o que seria essa
emancipação não pode fugir, portanto, do pensar sobre o que seria, e se realmente “seria” (em um
sentido ontológico), a mulher; e, principalmente, se este “ser” da mulher colabora à sua própria
emancipação.

Mulher como um “conceito unitário”: prós e contras em emancipação


A vantagem mais óbvia na noção de “mulher” como um conceito unitário está na força numérica e
material que esse conceito adquire quando ajuda a formar uma consciência também unitária. Para
compreender essa tendência emancipatória, é preciso fazer uma comparação com o que o marxismo
clássico passou a denominar como uma consciência de classe. Sendo a classe explorada (para o
marxismo, num sentido econômico) a maior numericamente, a sua emancipação está associada a
uma tomada de consciência de que, de fato, pertence-se a essa classe explorada. De maneira
análoga, consciência semelhante parece se formar no que diz respeito a uma categoria denominada
mulher. Essa consciência, formada de maneira principalmente simbólica e cultural, pode ter
consequências materiais e práticas importantes (consequências emancipatórias do ponto de vista
econômico, no ordenamento jurídico, na cultura e comportamento cotidianos etc), desde que
utilizada para exercer pressão sobre os sistemas de poder.

Para que essa tendência seja ainda melhor compreendida, é preciso também pensar os ganhos em
um contexto de luta, semelhante à “luta de classes” do marxismo. Sem entrar em grandes detalhes
nessa analogia, o ponto importante é o de que as mulheres percebam-se como categoria dotada de
uma unidade (formada na opressão, mas entendida aqui de uma maneira mais conceitual) e saibam
que estão enfrentando um outro polo, com interesses opostos aos dela. Sem essa consciência, parece
difícil a realização de progressos, já que o poder é dominado por homens que estão, direta ou
indiretamente, interessados na manutenção de um sistema que os privilegia.

Aqui é preciso problematizar um pouco a analogia com o marxismo. No marxismo clássico, temos
uma classe proletária lutando contra os privilégios de uma minoria burguesa. Nessa luta contra a
opressão de gênero, é difícil dizer se o campo oposto ao da emancipação das mulheres é de fato o
conjunto dos homens. Não se trata de uma minoria aqui; os gêneros são mais ou menos divididos de
maneira igual (com ligeira superioridade numérica das mulheres); e nem todos os homens
consideram justa a opressão de gênero. Apesar disso, e como a opressão de gênero encontra-se
muito arraigada na sociedade, o próprio homem pode não perceber as suas preferências e ações em
favor da opressão e isso também tem sido combatido de maneira bastante positiva. Sem esses dois
polos de luta para sustentar essa analogia com o marxismo, para formar a nossa “luta de classes
numa versão de gênero”, a própria analogia parece sofrer de uma profunda deficiência.

A analogia acima, no entanto, parece bastante produtiva no sentido de pensar a emancipação sempre
como uma luta de caráter coletivo. E para que uma luta seja bem sucedida, é preciso enfrentar
interesses que vão numa linha oposta e que são inconciliáveis em uma boa medida com os
interesses daqueles que são oprimidos. A opressão se dá sempre a favor de alguém (um grupo, uma
categoria etc). Se essa opressão tem se mantido, é porque o poder que o sustenta está, de alguma
maneira, bem organizado e não tem encontrado resistência significativa ou eficiente (eficiente a
ponto de mudar o cenário de opressão). Essa organização pode ser econômica, cultural, militar,
ideológica etc. No caso da opressão de gênero, as dimensões de dominação parecem atuar de
maneira conjunta e complexa, com um maior destaque para as dimensões econômica e cultural.

O conceito unitário de mulher, no entanto, guarda em si algumas contradições no que diz respeito às
tendências emancipatórias. Da mesma maneira que ele tem um potencial de unir as mulheres em
torno da luta contra a opressão de gênero, ele pode afastar muitas mulheres que não se veem
identificadas com o conceito unitário. Isso também aponta para um problema metodológico. A
proposição de conceitos para auxiliar tendências emancipatórias pode, num sentido mais amplo e
geral, tornar distante o indivíduo real de uma adesão à luta por não se ver contemplado pelo
conceito. Isso parece ser um problema estrutural, já que o conceito, por definição, está fora da
realidade e é algo genérico, e isso inclue um conceito genérico e unitário do que seria a mulher.

O conceito de mulher como algo de uma precedência ontológica tem, então, dentro de si, tanto
tendências quanto bloqueios emancipatórios. Daqui, é possível pensar num conceito inicial do que
seria, de fato, a emancipação de gênero. Como as demais emancipações – social, étnica, econômica
etc; em última análise, a emancipação humana propriamente – ela não é uma postura individual mas
sim uma luta coletiva. Para essa luta coletiva ter efetividade, e considerando que a opressão tem de
fato a figura do opressor (seja esse opressor um grupo, um sistema, sempre sendo, de toda a
maneira, algo a se lutar contra) e não é apenas um funcionamento desinteressado de um sistema de
poder (sendo, portanto, o opressor beneficiado e interessado em que não haja emancipação), ela
precisa adquirir volume, organização e grau de consciência suficientes para, de fato, haver chances
reais de emancipação. As tendências de emancipação, portanto, podem ser pensadas nesse eixo de
efetividade, como uma função do grau de consciência, volume de adesão e organização das pessoas
interessadas na emancipação.

Essencialização da mulher: um bloqueio emancipatório

A questão sobre se há uma “essência” de mulher pode ser estendida para se há, de fato, uma
essência do ser humano. Para Sartre:

“O que significa, aqui, dizer que a existência precede a essência? Significa que, em primeira
instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O
homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de definição porque, de início, não é
nada; só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo”2.

Sartre, portanto, coloca a responsabilidade pelas próprias ações no cerne do humanismo. O ser
humano faz a si próprio, em ato livre. Isso, no entanto, não parece ser suficiente para um esforço
emancipatório do gênero feminino. De fato, se todos já são livres por definição, as questões
emancipatórias estariam imensamente facilitadas. Emancipar-se é, em boa medida, libertar-se; e o
existencialismo sartriano já aponta para uma condição de liberdade como definidora do próprio ser
humano. Por outro lado, a ideia de uma essência humana independente das ações pode inibir a ação
livre, já que o indivíduo pode sempre se esforçar por pertencer a essa categoria de coisas que se
denomina “humano”, sem de fato oferecer a sua própria contribuição original livre (contribuição
para si mesmo, no sentido de se definir pela ação; e contribuição ao mundo, ajudando a definir o
próprio gênero humano).

É preciso, pois, separar a ideia de um conceito unificador de mulher de um conceito essencializador


de mulher. Cotidianamente, ideias essencializadoras são comuns e, muitas vezes, tão arraigadas que
sequer são criticadas ou notadas. Um exemplo muito claro é como crianças de diferentes sexos são
tratadas. Existe a brincadeira de mulher, a roupa de mulher, assim como a brincadeira e a roupa do
homem. Isso reproduz uma visão de mundo, social e histórica; homem mexe com engenhocas
mecânicas (brinca de “carrinho”, por exemplo), enquanto a mulher é cuidadora, mexe com
utensílios domésticos (brinca de “casinha”). Mas além de uma visão social e histórica, essa visão
também revela um raciocínio essencializador sobre os gêneros. Essa essencialização, ao que parece,
recai de maneira muito mais enfática sobre o gênero feminino.

Mais grave que a essencialização na vida cotidiana é a que acontece dentro dos movimentos de luta
por emancipação da mulher. Butler aponta para o problema de uma maneira crítica. Diz:

“Além das ficções 'fundacionistas' que sustentam a noção de sujeito, há o problema político que o
feminismo encontra na suposição de que o termo 'mulheres' denote uma identidade em comum. Ao
invés de um significante estável a comandar o consentimento daquelas a quem pretende descrever e
representar, 'mulheres' – mesmo no plural – tornou-se um termo problemático, um ponto de
contestação, uma causa de ansiedade”.3

Dentro do eixo que foi anteriormente traçado (o de a emancipação estar ligada à adesão ao
feminismo de maneira organizada, consciente e coletiva), a inexistência de uma identidade comum
de mulher cria um problema para que essa adesão ocorra. Mais ainda, movimentos feministas que
buscam representação e visibilidade e, portanto, um reforço da identidade, parecem ainda dificultar
mais a identificação com essa noção de mulher e, portanto, dificultar a adesão ao feminismo, já que
essa identidade não é correspondente às individualidades das mulheres ou aos seus diversos grupos
e identidades a que pertencem de maneira múltipla e diversa.

Mais do que isso, a essencialização é um bloqueio emancipatório pois retira da mulher a liberdade
de fazer a si própria. Esse problema se mantém se aquilo que é atribuído essencialmente à mulher é
positivo, pois a lógica essencialista que está por trás se mantém e se reforça; além disso, o que é
atribuído como positivo à mulher é visto socialmente como negativo, sendo portanto um elogio de
tipo hipócrita ou ingênuo. Um exemplo é o de valorizar o papel da mulher como “cuidadora” (de
terceiros; como marido, filho etc, ou mesmo em profissões que valorizam o cuidado, como a
enfermagem), sendo que de fato cuidar de outro ser humano parece ser algo positivo; no entanto, de
um ponto de vista social, quase sempre esse papel de cuidado é dotado de menor prestígio (basta
comparar os salários de uma enfermeira com os de um médico; aliás, este último em muitas
ocasiões parece ter um trato pessoal mais frio), é um papel que acaba gerando jornadas duplas ou
triplas (mulheres que trabalham fora e dentro de casa, sem que o parceiro divida com ela as tarefas
domésticas) etc.

Considerações finais; saldo dos bloqueios e tendências na atualidade

Primeiramente, procurou-se dissociar a análise dos bloqueios e tendências de emancipação de uma


análise pura dos dados objetivos e da realidade política atual. Aponta-se como um “estímulo ao
pessimismo”, por assim dizer, um determinado resultado eleitoral no ano de 2016 (Trump, nos
Estados Unidos; Crivella, no Rio de Janeiro, podem ser dois exemplos ilustrativos; um golpe
parlamentar, sem armas, a retirar uma presidenta democraticamente eleita no Brasil também é um
dado de grande importância) bem como a crise política e econômica, que afeta todo o cenário e
estimula o recrudescimento de discursos de intolerância. O movimento de afastamento, seguindo o
exemplo de Fraser, tem como função o trabalho conceitual que possa iluminar a realidade e, através
desses conceitos criados, eles próprios ajudarem a enxergar tendências ocultas na própria realidade.
Trata-se, portanto, de um movimento duplo, de afastamento e aproximação. Antes de ser um
movimento apenas descritivo, é um movimento engajado, já que tem como objetivo declarado a
emancipação e o combate a injustiças.

Em segundo lugar, foi traçado um paralelo com o marxismo e com a luta de classes que este propõe,
apontando também os problemas e limites que esse paralelo possui. A partir dessa comparação entre
feminismo e marxismo/luta de classes, foi criado um entendimento de que a emancipação se dá
coletivamente e na luta contra estruturas e agentes de opressão. Ela não pode se dar
individualmente, pois apenas progressos superficiais são atingidos através de mudanças em posturas
pessoais, distanciadas da política. Então, pensando na efetividade de uma luta de classes, pensa-se
na criação de uma “consciência de classe do tipo feminista”, que criaria unidade e organização para
que progressos fossem atingidos.

A partir da ideia de que somente uma luta coletiva de grande volume pode realmente levar a
progressos emancipatórios, procurou-se analisar o conceito de essência e como ele pode ser
repensado para colaborar com a emancipação. Desse modo, buscou-se separar a ideia mais forte de
essência (limitadora da liberdade, como explica Sartre) de uma ideia coletiva de mulher (um
conceito de caráter unitário e unificador), essa última dotada de potencial emancipatório, pois
criadora de uma consciência de que se pertence a uma categoria oprimida e, portanto, aumentando
de maneira potencial a adesão a uma luta de caráter coletivo.

Tratou-se, portanto, de uma construção comparativa e conceitual. Pensando a sociedade atual, é


possível notar um aumento da consciência feminista, mas com um nível de consciência coletiva
talvez insuficiente. Falta, às lutas feministas, um entendimento coletivo de si próprias, bem como
um entendimento mais amplo de sociedade que não abarque necessariamente as pautas feministas
de maneira mais imediatista, mas que acabam por ter impacto indireto na emancipação da mulher. O
saldo final entre as tendências e bloqueios é um de caráter misto, que aponta para grande potencial
emancipatório no crescimento da consciência de que a mulher é oprimida, mas sem os elementos
unitários e coletivos que são indispensáveis à tarefa difícil de uma luta por emancipação.

Bibliografia
1. FRASER, Nancy, Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista. In:
SOUZA, Jessé (Org), Democracia hoje. Brasília, UnB, 2001, pgs 247/248.
2. SARTRE, Jean-Paul, O existencialismo é um humanismo, São Paulo, Nova Cultural, 1987, pgs. 5/6.
3. BUTLER, Judith, Problemas de Gênero. Feminismo e subversão da identidade, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2003, pg. 20.

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