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28/05/2019 O que perdemos - 28/05/2019 - Opinião - Folha

OPINIÃO APARECIDA VILAÇA

O que perdemos
Conquistas indígenas voltam a ser ameaçadas

Índia do povo ianomâmi, em Roraima, descansa em rede - Eduardo Kanpp -


11.dez.15/Folhapress

28.mai.2019 às 2h00

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2019/05/28/)

Aparecida Vilaça

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Como em um pesadelo, vejo o mundo que me constitui ameaçado por todos


os lados, sem exceção. Professora e cientista da área de humanas, formada
na UFRJ com o auxílio de bolsas de estudo e pesquisas, dediquei a minha vida
ao estudo e à defesa das populações indígenas amazônicas. Soma-se a isso o
fato de o Museu Nacional (https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2019/01/o-que-o-museu-nacional-
incendiado-em-2018-fara-com-r-85-milhoes-previstos-para-recuperacao.shtml?

utm_source=folha&utm_medium=site&utm_campaign=topicos), meu local de trabalho, além da mais


longeva instituição de pesquisa e mais importante museu de ciências do
Brasil, ter sido destruído por um fogo que poderia ter sido evitado se as
verbas públicas tão solicitadas por nós tivessem chegado a tempo. 

Naquela instituição aprendi a importância e a seriedade do trabalho de


pesquisa em antropologia, uma ciência humana, radicalmente humana.
Vivemos por longos períodos em aldeias, vilas e bairros distantes de nossas
casas, aprendendo outras línguas e convivendo com pessoas que nos
ensinam sobre suas vidas e o seu mundo. E voltamos para contar o que
aprendemos, colaborando para enriquecer as mais diversas áreas de
conhecimento, que incluem as chamadas “ciências duras”. Somos tradutores
de conhecimentos, pontes entre culturas. 

Há 30 anos trabalho com os Wari’, povo indígena de Rondônia


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/01/artistas-buscam-inspiracao-no-universo-indigena-e-criam-nova-utopia-

politica.shtml).
Lá conheci Paletó, sábio e líder que me adotou como filha —e aos
meus filhos, como netos. Paletó era movido pela mesma curiosidade e
generosidade com o conhecimento que constitui os grandes cientistas e
pensadores. A sua pedagogia envolvia o interesse constante pelos meus
saberes e a busca do diálogo entre diferentes modos de se conhecer. 

Esse pensador brilhante havia, nos anos 1950, perdido muitos familiares em
um massacre perpetrado por seringalistas invasores. A muito custo
conseguira sobreviver e retomar a sua vida graças, dentre outras coisas, às
políticas de demarcação das terras indígenas executadas pela Funai e
consolidadas no artigo 231 da Constituição. Hoje, as conquistas dos Wari’ e
dos demais povos indígenas estão ameaçadas com a retomada dos

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assassinatos e invasões de suas terras por pessoas e grupos que se sentem


legitimados para descumprir a lei graças ao tom anti-indígena da retórica
governamental.

A voz de Paletó calou-se em 2017, mas suas ideias e ideais ecoam entre outros
líderes indígenas, do passado e do presente, que como ele sofreram todo tipo
de perdas radicais e certamente experimentaram a angústia que hoje faz
parte de nossas vidas. Ailton Krenak, Davi
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/invasao-em-terra-indigena-chega-a-20-mil-garimpeiros-diz-lider-

ianomami.shtml)Kopenawa (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/invasao-em-terra-indigena-chega-a-20-

mil-garimpeiros-diz-lider-ianomami.shtml) e Raoni (https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/05/macron-recebe-


lider-indigena-raoni-e-oferece-apoio-para-proteger-o-xingu.shtml)Mentuktire

(https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/05/macron-recebe-lider-indigena-raoni-e-oferece-apoio-para-proteger-o-

xingu.shtml) são alguns desses líderes que, com inteligência e coragem, vêm
incansavelmente nos ensinando sobre a riqueza e a sofisticação de suas
culturas, assim como sobre a importância dos recursos naturais preservados
em suas terras para a sobrevivência de nosso planeta. Na semana passada, ao
abrir o jornal e ver que Davi Kopenawa estava na Universidade de Harvard
(EUA), sendo ouvido e respeitado por estudantes e professores, e que Raoni
encontrava-se na Europa, recebido pelo presidente francês e outros líderes,
senti um lampejo de esperança.

Uma das mais recentes conquistas da antropologia foi trazer os nossos


parceiros de pesquisa para dentro da universidade, treinando-os na
linguagem das ciências para tornarem-se eles mesmos os porta-vozes de seus
saberes no ambiente acadêmico, estabelecendo assim um diálogo mais
simétrico entre conhecimentos. Essa nova forma de diálogo se vê ameaçada
hoje pelos cortes de bolsas estudantis e verbas para a pesquisa, que afetam
as políticas de inclusão de povos e segmentos minoritários, tão duramente
construídas.

Crer que se trata de um favor a esses segmentos, de uma concessão bondosa


aos menos favorecidos, é desconhecer o avanço que essa política representa:
os alunos cotistas, negros e indígenas de nosso programa de pós-graduação
em antropologia social muito nos têm ensinado, aprimorando o nosso

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conhecimento sobre outras formas de ciência (muitas vezes mais


sofisticadas do que a nossa), outras línguas, músicas, artes, poéticas. Somos
nós que nos tornaremos mais pobres se fecharmos as portas para eles.

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