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O tempo das canhoneiras:

organização e atuação dos navios


de guerra nos rios amazônicos*
The time of the gunboats: organization and actions
of the warships in the amazonic rivers

Pablo Nunes Pereira


Doutorando em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro do Grupo
de Pesquisas Militares Poder e Sociedade na Amazônia.

Joana D’Arc Moreira da Silva


Graduada em Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Membro
do Grupo de Pesquisas Militares, Poder e Sociedade na Amazônia.

RESUMO ABSTRACT
O presente trabalho tem por propósito refletir
sobre a organização dos navios de guerra na This work intends to discuss about the organiza-
Flotilha do Amazonas e sua atuação entre a tion of the warships in the Amazon Flotilla and
segunda metade do século XIX e as primeiras the actings of those ships between the second
décadas do século XX. Propõe para tanto con- half of the nineteenth century and the first dec-
siderar três gerações de navios incorporados ades of the twentieth century. We propose to con-
para a região: os excedentes da Guerra do Pa- sider three generations of warships designated
raguai (décadas de 1850 e 1860), os construí- to the region: the gunboats used in the War of
dos após a Guerra (décadas de 1870 a 1890) e Paraguai (decades of 1850 and 1860), those build
as canhoneiras fluviais frutos das discussões after the War (decades of 1870 to 1890) and the
de modernização no âmbito dos Programas fluvial gunboats of the modernization process
Navais de 1904 e 1906. Com relação à atuação, discussed by the naval programs of 1904 and
discute a questão dos calados das embarca- 1906. About the acting of those ships, we discuss
ções e sua relação com problemas envolvendo the hull question of the boats and the relations
os telégrafos e as comissões desempenhadas with problems involving the telegraphs and also
utilizando como exemplo a Canhoneira Gua- the operations executed using as an example
rany na questão do Amapá. the Guarany gunboat at the Amapá question.

PALAVRAS-CHAVE: Flotilha do Amazonas; Ca- KEYWORDS: Amazon Flotilla; Gunboats; Navi-


nhoneiras; Navegação gation

* Artigo recebido em 30 de setembro de 2018 e aprovado para publicação em 10 de outubro de 2018.

Navigator: subsídios para a história marítima do Brasil. Rio de Janeiro, V. 14, no 28, p. 28-40 – 2018.
Navigator 28 O tempo das canhoneiras: organização e atuação dos navios de guerra nos rios amazônicos

INTRODUÇÃO ções de combate, explorando o potencial de


fontes para a reflexão sobre o cotidiano dos
O presente artigo é fruto das pesquisas navios na região. De modo específico, ana-
realizadas pelo Grupo de Pesquisas Milita- lisamos a questão do calado das embarca-
res, Poder e Sociedade na Amazônia, que ções e de comissões desempenhadas pela
desde 2013 tem se ocupado a levantar fon- Canhoneira Guarany.
tes, discutir e divulgar pesquisas sobre a
Marinha de Guerra na Amazônia. Tem por A LÓGICA DAS CANHONEIRAS E A
objetivo discutir o processo de formação e FLOTILHA DO AMAZONAS
atuação dos navios de guerra da Flotilha do
Amazonas, chamando atenção às canho- A criação da Flotilha do Amazonas, em
neiras, navios de guerra assim denomina- 1868, e o consequente processo de organi-
dos no período e cuja característica mais zação e aparelhamento com os meios de
marcante era a busca de adaptação à nave- guerra até as primeiras décadas do sécu-
gabilidade e defesa nos meandros dos rios lo XX, coincidiu com a realidade da qual
da bacia hidrográfica do Rio Amazonas. Rosa Elizabeth Acevedo Marin denominou
Enquanto recorte temporal, o tempo das “civilização do rio”, isto é, ao auge do pe-
canhoneiras proposto é um processo pensa- ríodo em que os rios representaram a du-
do desde a criação da Flotilha do Amazonas, pla perspectiva de espaço de convivência e
em 1868, no contexto da Guerra do Para- de circulação através do qual a ocupação
guai, onde as canhoneiras já assumiram um e a dinâmica da região amazônica podem
papel importante, até as primeiras décadas ser explicadas (MARIN, 2004). Da mesma
do século XX, onde a incorporação desses forma, a introdução da navegação a vapor
navios praticamente terminou. As canho- alterou consideravelmente o tempo de via-
neiras do século XIX e início do XX, possivel- gem e o volume de circulação de mercado-
mente foram sucedidas pelas corvetas das rias, pessoas e ideias. As embarcações a
décadas de 1940 a 1960 e pelos navios de vapor e as companhias como a The Ama-
patrulha fluviais a partir da década de 1970, zon Steam Navigation Company também
embora esses períodos não façam parte de construíram ou demandaram uma infraes-
nossa escala de análise. trutura que esteve, em grande medida, no
Na primeira parte, analisamos o plane- bojo de diversos discursos e debates de
jamento e consolidação da presença de ca- modernização da região.
nhoneiras como parte da Esquadra no Rio Segundo o relatório ministerial da Ma-
de Janeiro e como essência dos navios de rinha apresentado pelo Barão de Cotegipe,
combate da Flotilha do Amazonas, pensan- João Maurício Wanderley, a criação da Flo-
do a incorporação desses navios em, pelo tilha do Amazonas, a qual fora feita um ano
menos, três gerações distintas: a primeira, após a organização do 3o Distrito Naval, com
como sobra de material flutuante da for- sede no Pará, teve “o fim de policiar a fron-
ça em operações na Guerra do Paraguai; teira naval com as republicas visinhas”, ao
a segunda, enquanto geração de navios que Levy Scavarda considerou como parte
construídos após a Guerra do Paraguai e das preocupações do governo brasileiro ad-
a terceira, já no século XX, como fruto das vindas da Guerra do Paraguai (SCAVARDA,
discussões de modernização do início do sé- 1968). A criação da Flotilha representou um
culo XX. A terceira geração já foi trabalhada, marco simbólico, já que antes do referido
inclusive, na produção do Grupo de Pesqui- ano, embarcações armadas da Marinha de
sas (PEREIRA, 2017). Guerra já atuavam nos rios amazônicos e o
Na segunda parte do artigo, buscamos Arsenal de Marinha do Pará já existia desde
analisar dimensões da atuação das canho- o final do século XVIII, no entanto, a Flotilha
neiras e dos problemas relacionados à na- significou a necessidade de aparelhar em-
vegação nos rios da Amazônia, dando des- barcações que atuassem de forma perma-
taque à necessidade de pensar a atuação nente na região e não apenas destacamen-
de navios de guerra para além das situa- tos navais da Esquadra.

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Pablo Nunes Pereira & Joana D’Arc Moreira da Silva

A designação de um conjunto de navios náuticas cada e autonomia de combustível


de guerra aptos à navegação dos rios não foi, de cinco a seis dias. A terceira categoria,
no entanto, uma realidade desde a criação de velocidade menor para servir nos rios e
da unidade. Aliás, é preciso considerar que defesa dos portos, deveria ser formada por
mesmo a Esquadra do Rio de Janeiro não 16 canhoneiras encouraçadas de 2a clas-
tinha uma organização tão consolidada no se, oito canhoneiras não encouraçadas de
momento. O decreto no 667, de 26 de janeiro 2a classe, 16 transportes fluviais a rodas e
de 1850, determinou um plano de organiza- um número indeterminado de baterias flu-
ção da Força Naval que incluía a construção tuantes, tendo esses navios marcha varian-
de embarcações para a Esquadra em tem- do entre seis milhas para os primeiros, oito
pos de paz, composta de duas fragatas a para os segundos e nove para os terceiros,
vela; duas corvetas de bateria coberta; oito além de, respectivamente, 25 horas para as
corvetas de bateria descoberta; 12 brigues canhoneiras encouraçadas e três dias para
e brigues-barcas; 16 canhoneiras; quatro os demais. A quarta categoria deveria ser
fragatas a vapor de 300 cavalos de potência; formada por navios a roda para transporte
seis corvetas a vapor de 220 cavalos; quatro de tropas e lanchas a hélice para transporte
vapores de 100 a 160 cavalos; seis vapores de e policiamento dos rios, sendo formada por
48 cavalos além de “lanchões” armados em quatro transportes a rodas e 36 lanchas a
número indeterminado. O plano, segundo o hélices, com marcha de 12 e 8 milhas e au-
Ministro Affonso Celso de Assis Figueiredo, tonomia de oito dias e 24 horas respectiva-
no Relatório Ministerial de 1867, nunca fora mente. Os transportes da quarta categoria
implementado, ao que fora organizada uma deveriam ter capacidade para transporte de
comissão em 25 de outubro de 1866 para in- 500 praças e as lanchas, tripulação de 60
dicação de navios, movidos somente a vapor soldados armados, desde que não aumen-
ou de tração mista, considerando os navios tassem o calado delas.
a vela já obsoletos, feitos de madeira ou en- Há duas questões essenciais para con-
couraçados e que fossem organizados em sideração sobre os planos apresentados em
três categorias: de maior velocidade, para 1850 e 1868. Em primeiro lugar, do ponto de
navegação oceânica; de velocidade média, vista tecnológico, é perceptível que a navega-
para navegação na costa e grandes rios e ção a vapor assumiu paulatinamente lugar
de velocidade pequena, em “condições es- de destaque nas preocupações das Mari-
peciais”, para navegação de rios de pouca nhas pelo mundo. O impacto do vapor foi tão
profundidade e defesa deles e dos portos. significativo que, quando o Almirante ameri-
Nesse sentido, o Decreto no 4.182, de cano Alfred Thayer Mahan propôs a ideia do
13 de maio de 1868, estabeleceu o plano Poder Naval, onde o controle do mar seria o
de construção de navios para a Armada aspecto fundamental para o desenvolvimen-
Nacional. A primeira categoria deveria ser to das nações, na obra The influence of sea
composta de navios de maior velocidade power upon history, de 1890, também consi-
para navegação oceânica, formada por derou que as Marinhas autênticas nasceram
uma fragata encouraçada, quatro corvetas com o vapor, uma vez que ele marcou seja
encouraçadas e quatro corvetas não encou- a “vitória” do homem sobre a natureza, tor-
raçadas. Os navios deveriam ter marcha de nando a navegação independente do vento e
15 milhas náuticas, a fragata, e 14, as cor- outros fatores climáticos, seja o nascimento
vetas, além de autonomia para entre quatro de marinheiros dedicados exclusivamente
e cinco dias de navegação a toda força das ao navio e não ao combate.
caldeiras. A segunda categoria, de veloci- Sobre as relações a bordo das embarca-
dade média para navegação do litoral e dos ções, é sintomático também que o vapor alte-
grandes rios, deveria ser formada por seis rou inclusive a lógica da hierarquia militar. Os
canhoneiras encouraçadas de 1a classe, oficiais do Corpo da Armada não dispunham
seis canhoneiras não encouraçadas de 1a de conhecimentos no processo de formação
classe e de uma canhoneira encouraçada que os permitisse conduzir as máquinas das
de 2a classe, tendo como marcha 10 milhas embarcações e nesse sentido, os primeiros

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indivíduos designados ao serviço das máqui- Nessa perspectiva, o Capitão-Tenente


nas não foram formados no âmbito da Força José Marques Guimarães apresentou relató-
Naval, mas contratados junto à Marinha Mer- rio em 1869 intitulado “Considerações sobre
cante. Embora, no entanto, os comandantes a locomoção e governo dos navios encou-
das embarcações tivessem precedência hie- raçados”, analisando a Guerra da Crimeia
rárquica sobre os maquinistas contratados, como o primeiro momento em que navios
punir ou expulsar um maquinista poderia re- blindados atuaram em mares e regiões flu-
sultar na incapacidade temporária de operar viais contra fortificações e considerou que
a embarcação. Nesse sentido, das preocupa- a locomoção a vapor de fragatas, corvetas
ções da Marinha que Castro refletiu sobre o e canhoneiras deveria ser pensada a partir
efeito disciplinar (CASTRO, 2013, p. 35), es- das vantagens específicas do ambiente, in-
tavam incluídas tanto a criação do curso de dicando o uso de lemes duplos para os ma-
máquinas e do Corpo de Maquinistas – cor- res e hélices para os rios.
po de oficiais – formados na Escola Naval, Há, na produção historiográfica, diver-
como o estabelecimento de critérios de ad- sos caminhos apontados nesse sentido.
missão e distribuição em navios de diversas Acerca da Guerra do Paraguai, a Batalha
classes conforme estabelecido no Decreto Naval do Riachuelo e a Rendição de Uru-
no 3.186, de 1863. guaiana, ambas em 1865, já sinalizaram
A segunda questão diz respeito a con- a incapacidade do Paraguai em vencer a
siderar a organização da Marinha tanto guerra contra os aliados, no entanto, os
no sentido mais geral como na Amazônia, cinco anos de conflito devem ser atribuídos
e mesmo das Forças Armadas no Brasil, em grande parte à falta de organização das
como processo em construção e de expe- Forças Armadas aliadas, à falta de adapta-
riências de acordo com a conjuntura e suas ção e conhecimento dos territórios (DORA-
problemáticas. Nesse processo, pelo me- TIOTO, 1999). Da mesma forma, o recruta-
nos dois marcos devem ser considerados mento militar em massa, incluindo libertos,
respectivamente. O ano de 1850 é bastante para a Guerra contrapôs a longa tradição
significativo no que diz respeito ao primei- antimilitarista luso-brasileira (IZECKSOHN,
ro plano naval mencionado, mas também 2015). A Guerra do Paraguai forjou com to-
como ponto de partida das preocupações de das as dificuldades, das noções de organi-
pensar e adaptar uma Força Naval capaz de zação de uma Esquadra adaptada ao com-
atuar nos rios. O referido Ministro Affonso bate marítimo e de divisões para a guerra
de Figueiredo afirmou em 1867 que “A aber- nos rios a própria ideia de mobilização.
tura do Rio Amazonas crêa novas possibi- Forjou grande parte das tradições militares
lidades, que é de mister prover. Entre ellas inclusive sob o ponto de vista das apropria-
figura na primeira plana dar maior desenvol- ções nas comemorações e na construção
vimento ao Arsenal de Marinha do Pará”, ao dos heróis de guerra. As décadas de 1850
que corroborou, no ano seguinte, o Barão de e 1860, portanto, foram significativas da
Cotegipe, considerando ainda que: ausência de um nível de consolidação da
Marinha brasileira e das forças de terra em
Deveis recordar-vos que, ao face das questões que demandaram a rápi-
principiar a guerra, nossas canho- da construção de uma lógica militar/bélica
neiras, construídas á pressa na capaz de nortear as ações.
Europa, quando em 1858 reciamos Nesse sentido, a Flotilha do Amazonas
um rompimento com o Paraguay, começou a ter embarcações designadas
já apresentavam signaes eviden- de forma permanente apenas na década
tes de estragos consideráveis,
de 1870. No relatório ministerial de 1871-2,
como devia esperar-se, desde que,
em lugar de serem applicadas á
apresentado pelo Ministro Joaquim Delfi-
navegação fluvial para que foram no Ribeiro da Luz, o Arsenal de Marinha
encommendadas, empregaram- do Pará fora referido ainda com problemas
-se em um serviço permanente no no que diz respeito à estrutura, no entanto,
oceano, na repressão ao trafico. a partir deste relatório, o volume de obras

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realizadas por ele aumentou consideravel- construídas entre o final da década de 1850
mente, produzindo, inclusive, embarcações. e a década de 1860, caso específico das
Segundo Luz: Canhoneiras Mearim (1876), Moema (1877)
e Pedro Afonso (1876) (SCAVARDA, 1968,
Os seus trabalhos mais notá- p. 48) e também da Henrique Dias (1872),
veis são: uma lancha a vapor para Ivahy (1872) e Felippe Camarão (1872), sen-
exploração dos rios Tocantins e do as citadas por Scavarda em Manaus e as
Araguaya; fabrico e supprimento
três últimas em Belém. Esclarecemos que,
completo ao transporte de guerra
Marcilio Dias e vapor Pará empre-
para esta análise, serão considerados em
gados na commissão de limites especial os navios armados, os quais teriam
com o Perú; oito chalanas para como finalidade principal a defesa do terri-
essa mesma commissão; preparo tório em caso de conflito, já que eventual-
e arranjos no hiete Rio Formozo, mente, alguns navios de transporte tenham
que serve de quartel á companhia servido à região. No caso dessa geração,
de aprendizes marinheiros do destaco que o transporte Rio de Contas, em
Amazonas; construcção de um te- Belém, e o Rio Negro, em Manaus, fizeram
lheiro e picadeiros para uma barca
parte do conjunto de navios. As lanchas ar-
de escavação que ficou prompta
para o serviço da província.
madas não constavam sempre nos relató-
Foi contractada a construcção rios ministeriais, assim como não possuíam
de duas alvarengas de ferro para o nomes específicos, o que torna dificultoso
serviço do arsenal. conseguir ponderar sobre sua atuação e a
realidade embarcada.
Nessa perspectiva, consideramos que há A geração de canhoneiras que participa-
três linhas ou gerações de navios que foram ram das campanhas no Paraguai também
designados para servir na Amazônia, se- evidencia uma questão importante: apesar
diados tanto em Belém como em Manaus. da denominação em comum, as caracterís-
Produzidas no Arsenal de Marinha do Pará ticas técnicas, as tripulações e o armamento
e também oriundas do plano de 1868 como dessas embarcações poderiam variar consi-
embarcações de quarta categoria, a Flotilha deravelmente. A região amazônica não foi a
do Amazonas teve ao todo 12 lanchas de cer- única a receber canhoneiras, mas a região
ca de 15 metros de comprimento ao longo fluvial do Brasil Central (guarnecido pela
da década de 1870. É importante ponderar Flotilha de Mato Grosso), as regiões fron-
um cuidado metodológico: as fontes, em es- teiriças do Rio da Prata (guarnecidas pelas
pecial os relatórios ministeriais do período, Flotilhas do Alto Uruguai e do Rio Grande
por diversas vezes mencionam as embarca- do Sul), a Bahia e o comando da Esquadra
ções da Amazônia distinguindo como per- (sediado no Rio de Janeiro) também possuí-
tencentes à Flotilha do Amazonas as sedia- ram embarcações com essa denominação.
das em Manaus, o que provavelmente levou Alguns navios foram classificados ou re-
estudos como História da Flotilha do Amazo- classificados enquanto tal, como é o caso
nas, de Levy Scavarda, a mencionar apenas da Fragata Amazonas, além de algumas ca-
algumas embarcações, pois há outras não nhoneiras terem sido reclassificadas como
referidas pelo autor que foram sediadas em corvetas, como a Belmonte, a Beberibe e a
Belém, ora mencionadas nas fontes como Magé (MENDONÇA, 2001, p. 60).
embarcações da sede do 3o Distrito Naval, O quadro a seguir foi construído cruzan-
o qual incluía também a Flotilha, embora, do as informações das canhoneiras da pri-
na prática, não houvesse uma distinção tão meira geração que foram designadas à Floti-
clara, já que a movimentação delas entre lha do Amazonas com o mapa de navios que
Manaus e Belém era intensa. serviram durante a Guerra do Paraguai entre
A primeira linha ou geração de embarca- 1865 e 1867, anexo ao Relatório Ministerial
ções destinadas à Amazônia foi basicamen- de 1867 e dados presentes no Repositório de
te composta por navios que serviram duran- Nomes dos Navios da Esquadra Brasileira, de
te a Guerra do Paraguai e, portanto, foram Mario F. Mendonça e Alberto Vasconcelos.

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Data de incorporação à
Nome Guarnição Dimensões e armamento
Marinha
406 toneladas, 44,2 m de com-
Araguahy 10 oficiais e 45 praças 1o de abril de 1862 primento, 2,6 m de calado, duas
peças calibre 32 e duas de 68
Araguahy 16 oficiais e 85 praças 25 de fevereiro de 1865 –
602 toneladas, 51,2 m de
comprimento, 2,7 m de calado.
Belmonte 11 oficiais e 84 praças 18 de setembro de 1863
Quatro canhões calibre 32, dois
de 68 e um canhão 70
1,5 m de calado e quatro ca-
Chuy nove oficiais e 39 praças 7 de outubro de 1865
nhões
135 toneladas, 39,4 m de com-
Felippe
– – primento, 1,3 m de calado, um
Camarão
canhão de calibre 32 e 1 de 3.
163 toneladas, 38,1 m de com-
Greenhalgh 21 oficiais e 119 praças 13 de janeiro de 1866 primento, 1,4 m de calado, duas
peças de calibre 32
135 toneladas, 39,4 m de com-
Henrique Dias – – primento, 1,3 m de calado, um
canhão calibre 32 e um de 3
163 toneladas, 38,1 m de com-
Henrique
11 oficiais e 28 praças 24 de novembro de 1865 primento, 1,5 m de calado. Sem
Martins
informações do armamento
400 toneladas, 44,2 m de com-
Iguatemy 10 oficiais e 85 praças 25 de fevereiro de 1865 primento, 2,6 m de calad, duas
peças calibre 32 e 8 de 68
400 toneladas, 45,7 m de com-
Itajahy 12 oficiais e 99 praças 14 de agosto de 1864 primento, quatro peças calibre
32 e duas de 68
400 toneladas, 44,2 m de com-
Ivahy 12 oficiais e 80 praças 23 de outubro de 1864 primento, 2,6 m de calado, duas
peças calibre 32 e oito de 68
Maracanã 11 oficiais e 49 praças 2 de maio de 1864 Sem informações
415 toneladas, 45,7 m de com-
Mearim 12 oficiais e 93 praças 30 de julho de 1864 primento, quatro peças calibre
32 e duas de 68
602 toneladas, um canhão de
Parnahyba 14 oficiais e 60 praças 30 de julho de 1864 calibre 70, dois de 68 e quatro
de 32
170 toneladas, 39,8 m de com-
Taquary 13 oficiais e 44 praças 27 de abril de 1865 primento, 1,8 m de calado e dois
canhões
Ypiranga 13 oficiais e 44 praças 27 de abril de 1865 Sem informações

Quadro 1 – Comparativo de canhoneiras

Optamos por indicar como características para a navegação nos rios que nortearam
técnicas principais: o deslocamento, o com- grande parte dos debates de modernização
primento e o calado, três aspectos centrais relacionados à Amazônia no final do XIX e

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início do XX (FARIAS; PEREIRA, 2014). Com -Almirante Alexandrino Faria de Alencar, em


relação à força que guarneceu esses navios, um eixo diferente das discussões dos pro-
o efetivo fora indicado para o ano da terceira gramas, que tinham como foco cruzadores
coluna, onde podemos perceber uma varia- e encouraçados para a atuação na Esqua-
ção e 39 para a menor tripulação, da Henri- dra (FARIAS; PEREIRA, 2015). À exceção do
que Martins até 140 para a Greenhalgh. Além Aviso Oyapock, transferido em 1909 do Mato
disso, em termos de deslocamento, há varia- Grosso, até a década de 1920, praticamente
ção de 135 a 602. É conveniente, pois, con- não houve navios incorporados de fato à Flo-
siderar que as dimensões afetaram, dentre tilha com destino à defesa dos rios amazô-
outras questões, a navegabilidade, bem nicos. Em 1917, o relatório ministerial apre-
como a classificação das embarcações, da sentado pelo Almirante Alexandrino Faria de
qual de um modo geral, todas as embar- Alencar apontava que haviam sido incorpo-
cações que encontrei no período aqui tra- rados os Avisos Caiapó, Pindaré e Mearim,
balhado designadas como canhoneiras na embora, na prática, eles não tenham sido
Amazônia foram comandadas por capitães- mais mencionados na documentação pos-
-tenentes, primeiros e segundos-tenentes. terior, tendo sido provavelmente designados
A segunda geração diz respeito a navios para serviço do Arsenal de Marinha do Pará
construídos após a Guerra do Paraguai. Ba- ou das superintendências de Navegação,
sicamente, incluo navios que foram cons- Hidrografia ou Portos e Costas. Na década
truídos no final da década de 1870 até os avi- de 1920, o Aviso Ajuricaba fora incorporado a
sos fluviais construídos em 1891. De todas partir da Marinha Mercante. As canhoneiras
que fizeram parte desta geração, apenas da classe Acre tiveram serviço máximo até a
a Canhoneira Afonso Celso (1884) não foi década de 1940.
construída especificamente para a região
amazônica. Situamos como marco inicial DIMENSÕES DA ATUAÇÃO DAS
desta geração a Canhoneira Manaus (1880), CANHONEIRAS: NAVEGAÇÃO E
primeira construída e armada especifica- COMBATE NOS RIOS
mente para a Flotilha do Amazonas, tendo
sito substituída em 1888 pela Cabedello. As A atuação das canhoneiras na Amazônia
duas canhoneiras irmãs Traripe e Guarany deve ser pensada através de uma multiplici-
foram construídas pelo Arsenal de Marinha dade de aspectos, considerando pelo menos
da Bahia e armadas no Pará, tendo a pri- três circunstâncias distintas. Em primeiro
meira sido desincorporada ainda na década lugar, as discussões em torno das caracte-
de 1880 e a segunda exercendo atividades rísticas técnicas das embarcações, o que
até 1900. Em 1891, foram comissionados os nos ajudam a compreender as limitações
quatro Avisos Fluviais Teffé, Tocantins, Ju- e possibilidades dos navios de diferentes
tahy e Juruena, construídos na Inglaterra. gerações que serviram à Flotilha do Amazo-
Importante destacar que avisos e canho- nas. Nesse sentido, cabe destacar sobretu-
neiras tinham características semelhantes, do a questão dos calados das embarcações,
sendo por vezes indicados pela mesma no- aspecto que ocupou a centralidade dos de-
menclatura. Os avisos fluviais tiveram tem- bates em torno da modernização desses na-
po de serviço diversificado, convivendo com vios, seja conforme os planos apresentados
a geração seguinte, exceto o Juruena, que seja no caso de 1905.
naufragou em 1901. No relatório ministerial de 1902, o Con-
A terceira geração diz respeito essencial- tra-Almirante José Pinto da Luz indicou que
mente às quatro canhoneiras fluviais irmãs havia uma dificuldade considerável aos na-
Acre, Amapá, Juruá e Missões, construídas vios da Flotilha do Amazonas em chegar nas
na Inglaterra pela Yarrow Shipbuilders e regiões de fronteira com o Peru e a Bolívia,
postas em serviço em 1905, fruto das dis- em especial nas vazantes dos rios, já que o
cussões em torno dos programas navais ela- calado das embarcações não era suficiente
borados entre 1904, pelo Contra-Almirante para tal. No mesmo relatório, o ministro in-
Júlio César de Noronha e 1906, pelo Contra- dicara como alternativas utilizar como mo-

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delo ou as canhoneiras francesas da Flotilha Devido a essa circunstância, no dia 5 do


da Indochina, cujo calado era aproximada- mesmo mês, a repartição fechou as portas
mente 1,10 metro ou as inglesas do tipo e, em consequência, os condutores de ma-
Melik. Dentre as embarcações acima men- las do Vapor Napo, o qual partiria de Manaus
cionadas, as canhoneiras fluviais da classe a Iquitos, não puderam receber os telegra-
Acre foram as que tiveram menor calado, mas para transporte até a região. A situação
provavelmente, até em relação às corvetas é interessante pois o rompimento do cabo,
das décadas de 1950-1960 e aos navios de nesse sentido, significou o comprometimen-
patrulha fluvial da década de 1970. Abaixo, to de parte das comunicações com o Peru
apresentamos quadro comparativo dos ca- e, por consequência, de toda a porção de
lados das canhoneiras da segunda e tercei- Manaus, onde situava-se a estação telegrá-
ra gerações da Flotilha do Amazonas: fica, até a foz do Amazonas e os afluentes da
porção ocidental em relação à cidade.
A situação do rompimento dos ca-
Canhoneiras Calado
bos também afetava a imprensa, que
Afonso Celso 2,80 metros recebia e publicava telegramas através
das informações recebidas pelo telé-
Manaus Sem informação grafo de cidades da região amazônica,
Cabedello 1,24 metro outras partes do Brasil e ainda do ex-
terior. Em 28 de julho 1909, o mesmo
Traripe 1,37 metro jornal informou que não publicaria a
Guarany 1,75 metro
seção “Telegrammas” pois “partio-se
novamente o cabo fluvial, desta vez en-
Teffé, Tocantins, Jutahy e Juruena 1,70 metro tre Ramos e Santarem”. Em 27 de de-
zembro do mesmo ano, a The Amazon
Acre, Amapá, Juruá e Missões 0,77 metro
Telegraph Company Limited, respon-
Oiapock 1,90 metro sável pelo serviço, enviou um ofício ao
Chefe de Polícia do Pará, Vicente Epa-
Ajuricaba 0,90 metro minondas Pires dos Reis, informando
que o cabo subfluvial fora cortado em
Quadro 2 – Comparativo de calados das canhoneiras três partes no Igarapé de Murutubinha,
da Flotilha do Amazonas impossibilitando as comunicações te-
legráficas com o Município de Óbidos.
Dos problemas relacionados aos cala- Em 1910, a empresa informou à
dos das embarcações, incluindo os navios imprensa que iniciara os trabalhos de du-
mercantes que circulavam pela Amazônia, plicação do cabo fluvial na região, realizado
uma das questões que mais chama a nossa entre Manaus e Óbidos até abril, já tendo
atenção é o rompimento do cabo telegráfico sido duplicados de Belém a Manaus em
fluvial. Embora de um modo geral, em todas janeiro do mesmo ano. Entre Itacoatiara e
as ocasiões que cabos foram rompidos não Manaus, a duplicação foi concluída no iní-
tivessem sido apurados os responsáveis, é cio de maio, no entanto, no dia 17, o vapor
coerente presumir que foram embarcações inglês Antony o rompeu, levando o serviço
que os romperam, considerando que tais de telegramas a ser realizado por lanchas
incidentes ocorreram submersos aos rios. até o reparo do mesmo.
Identificamos alguns desses episódios. Em relação a comissões desempenha-
Em 9 de junho de 1904, o Jornal do Com- das pelas canhoneiras, é importante desta-
mercio do Amazonas publicou uma carta en- car algumas questões metodológicas para
viada por um funcionário dos correios, José melhor compreensão das formas de atua-
d’Assumpção Santiago, o qual justificava ção. Em primeiro lugar, é necessário cruzar
que devido ao rompimento do cabo fluvial, uma certa variedade de fontes diferentes
não foi possível receber as informações te- produzidas tanto pela Flotilha como pelas
legráficas da mesma repartição do Pará. embarcações e jornais para conseguir obter

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Pablo Nunes Pereira & Joana D’Arc Moreira da Silva

o maior número de informações possível. A Guarany desempenhou diversas funções


Quando iniciamos a análise da documenta- ao longo da comissão, sendo elas a provável
ção da série Marinha do Arquivo Nacional prontidão no caso de um conflito armado,
relativa aos registros de bordo da Canhonei- como quartel estacionado na Vila de Cuna-
ra Guarany no ano de 1900, percebemos que ni, enquanto prisão e dando suporte médico
em praticamente todo o ano, ela esteve es- aos membros da referida comissão. É evi-
tacionada no Arsenal de Marinha de Belém dente que a demarcação das áreas fluviais
em reparos, situação semelhante a que en- também seria uma opção, embora nos livros
contramos em diversos livros de quartos da de quarto ela tenha ficado estacionada até
mesma embarcação, já que a atuação dos sua viagem de volta a Belém.
navios de guerra pelos rios não era cotidia- No dia 15 de maio, a montaria do Ma-
na, mas de um modo geral, em comissões jor José Faustino, comissário, atracou ao
preestabelecidas a partir de órgãos supe- navio, mandando um soldado preso para
riores, como o Quartel-General da Marinha, cumprimento de oito dias de prisão a bordo
reorganizado em Estado-Maior da Armada da canhoneira, “visto em terra não haver a
no âmbito das reformas administrativas fei- segurança sufficiente para este fim”, tendo
tas por Alexandrino Faria de Alencar entre sido solto no dia 18 de maio, com apenas
1905-1908, em comissões específicas desig- três dias de cumprimento da prisão. No dia
nadas pelo comandante da Flotilha do Ama- 16, foi preso o mestre Alipio Pereira, “por
zonas ou ainda em conjunto com a presi- mentir a este Commando” afirmando que
dência das províncias e governos estaduais. uma boia havia afundado, aparentemente
Ocorre que nem nos livros de quartos nem como justificativa para sair do navio, tendo
nas ordens do dia da Flotilha do Amazonas, sido solto no dia 18.
encontramos, sempre onde há comissões, Ao longo da comissão, uma quantidade
as ordens gerais delas. significativa de tripulantes ficou doente, ten-
Em 10 de abril de 1897, os governos do do muitos deles como destino o barracão
Brasil e da França assinaram tratado acerca da Boa Esperança para tratamento sob su-
da questão dos limites entre os dois países pervisão do médico Eduardo Gaillard, cirur-
na fronteira do Amapá com a Guiana France- gião naval da Guarany. No dia 18 de maio, o
sa, incluindo o governo suíço como árbitro e praticante maquinista Alberto Maranhão, o
estabelecendo uma comissão mista, a qual guardião Antonio Henriques e os foguistas
se reuniu em Caiena e definiu como sede contratados Joaquim Barbosa de Sant’Anna
dos trabalhos a região de Cunani. A comis- e Euclides Antonio da Silveira foram desem-
são brasileira foi composta pelo Major José barcados com destino à enfermaria do Arse-
Faustino da Silva (1o comissário), Tenente nal de Marinha do Pará, tendo sido provavel-
Antonio Cavalcanti de Albuquerque (2o co- mente transportados pelo Vapor Cassiporé,
missário substituto) e pelos Segundos-Sar- que estava atracado desde o dia anterior à
gentos João Freire Jucá e Ricardo Barbosa Guarany para repassar a correspondência
(ajudantes). No início de 1899, a Canhoneira e a quantia de 6:286$000 para compra de
Guarany participou da comissão de demar- carvão e mantimentos. No dia 20, foi man-
cação de limites na região de Conany, tendo dado para o barracão o foguista contratado
o Vapor Cassiporé participado no transporte Pessôa Leite, que “precisava de mudança de
de correspondências. ares”, argumento interessante o qual Silvia
Em 28 de fevereiro, foram destacados 20 Capanema de Almeida argumentou que sig-
marinheiros do Rio de Janeiro com a fina- nificou, no contexto do final do XIX e início
lidade de serem incorporados à guarnição do XX, uma das primeiras respostas da Ma-
da canhoneira. Devido à comissão, o Capi- rinha às doenças que eram, a princípio, atri-
tão-Tenente Lobato de Castro foi designado buídas a micróbios, como o caso do beribé-
comandante da embarcação, aportando em ri, doença que mais acometeu marinheiros
Belém, vindo do Rio de Janeiro, no dia 16 até a descoberta das razões alimentares que
de março, tendo a canhoneira partido em a motivam (ALMEIDA, 2012). De fato, no dia
direção ao Norte do Amapá em 16 de abril. seguinte, 21, o foguista Severino da Liberda-

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Navigator 28 O tempo das canhoneiras: organização e atuação dos navios de guerra nos rios amazônicos

de foi transferido pelo 1o escaler para o bar- modo geral, eles eram mantidos seja pe-
racão “atacado de beri-béri”, levando ainda los estabelecimentos terrestres, seja pelas
rações para oito dias. No dia 22, foi para Boa embarcações, para o registro da movimen-
Esperança o Marinheiro José Procópio tam- tação do pessoal embarcado e de terra,
bém acometido de beribéri. No dia 24, foi constando ainda os vencimentos – soldos e
dispensado por doença o Cabo Jacyntho de gratificações – e, eventualmente, punições
Brito e Antonio de Lima, o criado Jorge Neu- recebidas. Nesse sentido, o autor alerta
mann, o cozinheiro dos inferiores e o mestre para a dificuldade de leitura desses livros,
do navio. No dia 25, o escrevente. No dia 26, dentre as quais a falta de uma organização
o Marinheiro Arthur Eduardo e, a partir do direta motivada pelas limitações que os
dia 27, tentou-se realizar a desinfecção do próprios oficiais de fazenda, responsáveis
navio, mandando pela manhã toda a guarni- pelo seu registro, tinham: os livros eram
ção para fora do navio. No dia 29, foi dispen- designados com 200 a 300 páginas e pode-
sado o ajudante maquinista Francisco Filho. riam abranger o período de anos. Portanto,
No dia 16 de maio, às 20h30, o Marinhei- dependendo do número de registros de um
ro Nacional de 1a classe José Caxias faleceu, determinado militar, eventualmente os ofi-
não sendo indicada a causa da morte. O ca- ciais precisavam transferir os dados para o
dáver ficou depositado debaixo da coberta, verso de outras páginas no livro (CASTRO,
sendo colocado no caixão apenas na manhã 2013, p. 32-36).
do dia seguinte. O caixão foi colocado no 2o Nesse sentido, podemos observar no 3o
escaler da Guarany, que baixou tendo como livro de socorros de oficiais da Canhoneira
destino a Vila de Cunani para realização do Guarany uma série de tripulantes destaca-
enterro do marinheiro. A bandeira foi içada a dos em comissões de faróis. Nos primeiros
meio mastro. Foi ainda realizada a arrecada- meses de 1889, foi realizada uma comissão
ção do espólio do marinheiro. de faróis na região de Colares, no Marajó,
A Guarany saiu de Cunani em 30 de nos dias 11, 14 a 16 de abril, 9 a 11 e 15 a 18
maio, chegando poucos dias depois em Be- de maio do referido ano. Dentre os tripulan-
lém. É conveniente destacar que, além do tes da Guarany destacados, estão: o maqui-
Vapor Cassiporé, que transportou os valores nista de 4a classe extranumerário Affonso
para suporte da embarcação e a sua corres- Alberto Corte Real e Silva, o Primeiro-Tenen-
pondência, a Companhia de Navegação do te Manoel Ignacio da Cunha, o Primeiro-
Amazonas fora também contratada para for- -Tenente Manoel Ignacio Belfort Vieira (que
necimento de carvão à canhoneira no porto comandou a embarcação quando da comis-
de Cunani além do valor mencionado, ten- são), o fiel Manoel Sabino de Mendonça, o
do recebido do tesouro do Estado do Pará prático da costa do Norte Amancio de Lima,
400$000. É interessante ressaltar o caráter o maquinista de 2a classe Antonio Corrêa
de representação oficial do Estado brasileiro d’Alfredo (chefe de máquinas durante a co-
na comissão, inclusive porque é menciona- missão). Embora não tenhamos dados dos
da nos livros de quarto a presença de uma trabalhos realizados pela comissão, o Farol
canhoneira francesa no mesmo porto. de Colares foi inaugurado em 15 de maio.
Ainda acerca de comissões desempe- Segundo o jornal O Pará:
nhadas, analisamos que não necessaria-
mente a Canhoneira Guarany se deslocava No dia 15 de maio corrente,
para elas, mas seus tripulantes também foi exhibida de uma das pedras do
poderiam ser designados para tais tare- grupo das de Collares, na margem
direita do rio Amazonas, província
fas, embora não tenhamos verificado isso
do Pará, uma luz branca e fixa illu-
nos livros de quartos, e sim nos livros de minando todo o horizonte.
socorros da embarcação. Pierre Paulo da O apparelho de luz é diptrico
Cunha Castro chamou atenção para a ne- da 6ª ordem e a luz produzida pela
cessidade de se explorar um outro conjun- combustão do óleo mineral.
to documental ainda pouco trabalhado até O plano focal eleva-se 11m,80
o momento: os livros de socorros. De um (33,72 pés) ao nível médio das ma-

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Pablo Nunes Pereira & Joana D’Arc Moreira da Silva

rés, e a luz será visível da distancia Em 1873, conforme o jornal O Liberal do Pará
de 12 milhas, com tempo claro. publicado no dia 24 de agosto, uma das pri-
A columna sobre que assenta meiras linhas subaquáticas fora instalada:
a lanterna e respectivo apparelho
de luz é provida de uma plataforma CABO SUBMARINO – Singrou
semicircular com escada lateral e hontem deste porto, á uma hora
é pintada de branco, assim como a da tarde, a canhoneira da Marinha
casa dos respectivos pharoleiros, de guerra nacional Henrique Dias,
que fica próxima. do commando do sr. 1º tenente
Posição geographica Miguel Joaquim Pederneira, que
Lat. – 00º-53’-00”S. vai pairar na bahia do sól á espera
Long. -5º-5’-50”0. Rio de Janeiro. do vapor Hooper, que conduz o fio
Long. -48º-16’-10”0. Grw. electrico.
Long. 050º-36’-20” 0. Paris. Logo que a canhoneira avistar
Repartições de Pharóes, Rio de no horisonte o dito vapor, dará trez
Janeiro; 16 de Maio de 1889 – Pe- tiros de canhão; a tatuoca repetira
dro Benjamin de Cerqueira Lima, o signal e assim saberemos com
capitão de fragata, director geral. muita antecedência a ocasião em
Conforme. – Capitania do Porto que se deveremos reunir-nos para
do Pará, 3 de julho de 1889. – O se- saudar com toda a expansão de
cretario Turibio Cardoso Marques. jubilo tão faustoso acontecimento.
A Henrique Dias, galharda-
CONSIDERAÇÕES FINAIS mente embandeirada em arco,
fará as honras de companhia ao
Os 150 anos da Flotilha do Amazonas Hooper até o encouradouro.
representam importante marco para a pre-
sença e atuação da Marinha do Brasil na É importante, pois, considerar a importân-
região amazônica. Consideramos da maior cia e os problemas envolvendo a navegação
importância a execução de pesquisas no e a telegrafia como parte de um processo de
campo da história fluvial do País, especial- expansão da “civilização dos rios” e o lugar
mente considerando que há uma variedade das embarcações da Marinha no processo.
considerável de documentos disponíveis É ainda de grande importância pensar o pio-
para a reflexão das diversas dimensões que neirismo da Marinha sobre a telegrafia sem
os navios de guerra tiveram na navegação fio, também citada à época como radiografia
pelos rios da bacia hidrográfica do Amazo- ou radiotelegrafia, da qual em 1913 o Primei-
nas. Dentre as intenções do presente traba- ro-Tenente De Lamare S. Paulo propôs mon-
lho, vislumbramos ampliar as discussões tar estações móveis a bordo dos navios da
existentes no âmbito da Nova História Mi- Marinha para a realização de comissões de
litar Brasileira apresentando também con- exploração pela Amazônia sem os riscos de
juntos de fontes diferentes trabalhadas em interferência, já que as comissões deveriam
perspectiva, como o fizeram Álvaro Pereira ser realizadas a partir dos rios, tendo os na-
do Nascimento, Silvia Capanema de Almei- vios como quartéis e estações.
da e Pierre Paulo da Cunha Castro: livros Acerca ainda das comissões desem-
de quartos, livros de socorros, relatórios penhadas, reconhecemos as dificuldades
ministeriais da Marinha e Relações Exterio- de ordem documental. A variedade de fon-
res, relatórios anexos aos relatórios minis- tes necessárias a uma leitura abrangente,
teriais e o cruzamento de informações com conforme indicamos no caso da comissão
os jornais digitalizados da região e com o da Guarany em Cunani, composta de uma
Repositório de Nomes dos Navios da Esqua- quantidade expressiva de documentos, os
dra Brasileira. quais levantamos, entre livros de quartos,
Atentamos ainda para a importância da livros de socorros e ordens do dia da Flotilha
discussão da telegrafia na região amazô- do Amazonas, desde 2012, volume da ordem
nica no final do século XIX e início do XX, de milhares de páginas. Quantidade expres-
antes das expedições de Cândido Rondon. siva de uma documentação pouco organiza-

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da nas séries do Arquivo Nacional e do qual realizadas pelas diversas canhoneiras em


mencionamos o trabalho de levantamento serviço na Amazônia.
dos documentos da série Marinha realizado Por fim, embora reconheçamos os limites
pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Do- explicativos da ideia do “Tempo das Canho-
cumentação da Marinha (SANTOS, 2016), neiras” pela diversidade de embarcações
o qual deve ser concluído em breve como com essa denominação que pertenceram à
essencial para novas pesquisas. Apesar das Flotilha do Amazonas, esperamos estimular
dificuldades, a experiência de pesquisa e o a reflexão em torno das particularidades da
caminho metodológico traçado no caso da atuação da Marinha nos rios, da arte da guer-
comissão citada devem estimular e coope- ra fluvial e dos impactos, cotidiano e conflitos
rar com a investigação sobre as comissões acerca da vida a bordo na Amazônia.

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