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Teoria das fundações morais:

o nativismo moral em Jonathan Haidt

Moral foundations theory: Haidt’s Moral Nativism


Resumo Jonathan Haidt propôs uma das versões mais conhecidas de na-
tivismo moral, na qual ele defende a existência de certas fundações mo-
rais. Neste artigo, examino as principais críticas feitas a essa teoria, em
especial a) a de que Haidt estaria comprometido com uma tese bastan-
te questionável acerca da mente humana; e b) a de que a descrição de
Haidt seria incompleta, em razão de não fornecer uma explicação para
as etapas mentais prévias ao desencadeamento das intuições. Quanto à
primeira crítica, ao aceitar a tese da modularidade massiva, Haidt de fato
se compromete com uma visão a respeito da mente humana que não é
consiliente com os resultados de pesquisas neurocientíficas. No entan-
to, em razão de ter ciência dessa objeção, ele propõe para os críticos
da modularidade massiva uma versão mais amena de sua teoria. Com Roger Valério Vargas Rex
de
relação à segunda crítica, a teoria de Haidt é realmente incompleta, pois Universidade
ignora que só é possível que uma ação produza determinada intuição de Brasília – UNB
após aquele que a percebe ter formado algum tipo de representação.
A partir da análise dessas críticas, concluo que a teoria das fundações
morais, em sua versão amena, oferece uma explicação plausível para os
julgamentos morais, mas falha ao não oferecer uma explicação acerca
do papel que inferências sobre os estados mentais do autor da ação de-
sempenham no desencadeamento das intuições morais.
Palavras-chave: Inatismo. Moralidade. Fundações Morais. Modular-
idade da Mente. Intuicionismo.

Abstract Jonathan Haidt proposed one of the most well-known ver-


sions of moral nativism, in which he defends the existence of certain
moral foundations. In this paper, I examine the main criticisms of this
theory, especially a) the claim that it implies a questionable thesis about
the human mind; and b) that Haidt’s description is incomplete inasmuch
as it does not provide an explanation for the mental steps prior to the
triggering of intuitions. As for the first criticism, in accepting the thesis of
massive modularity, Haidt commits himself to a view of the human mind
that is not consilient with the results of neuroscientific research. Never-
theless, since he is aware of this objection, he proposes a milder version
of his theory to counter the critics of massive modularity. Regarding the
second criticism, Haidt’s theory is, in fact, incomplete; for it ignores that
it is only possible that an action provokes an intuition after the observer
has formed some kind of representation. From the analysis of these criti-
cisms, I conclude that the Moral Foundations Theory, in its mild version,
offers an apparently plausible explanation for moral judgments. Notwi-
thstanding, Haidt’s theory fails in some measure. It does not explain the
role that assumptions about the mental states of the author of an action
play in triggering moral intuitions.
Key-words: Innatism. Morality. Moral Foundations. Modularity of
Mind. Intuitionism.
Introdução Em conformidade com essa tendência,
há alguns anos filósofos e cientistas retoma-

N
a tradição filosófica ocidental, discus- ram o debate sobre o papel de estruturas ina-
sões sobre a existência de conheci- tas na moralidade. Esse debate adota como
mentos inatos já ocorrem, pelo me- ponto de partida a observação de que os se-
nos, desde Platão. No diálogo Mênon, por res humanos de diversas culturas classificam
exemplo, ele sustenta a doutrina nativista da características comportamentais a partir de
anamnese, ou seja, a ideia de que todo apren- normas e valores morais. A questão que, en-
dizado é apenas uma forma de recordação tão, se coloca e em torno da qual o debate se
de algo que já estava em nós antes mesmo desenvolve é: de onde vem essa forma nor-
de recebermos qualquer ensinamento (2005, mativa de pensar?
p. 112-137). No entanto, o debate nativista re- Neste artigo, analiso a resposta nativista
almente acirrou-se com o ataque de Locke que Jonathan Haidt oferece para essa ques-
(1995), nos primeiros capítulos de seu En- tão. Haidt defende a existência de certas fun-
saio sobre o Entendimento Humano, àqueles dações morais. De acordo com essa hipótese,
que defendiam a existência de princípios ou apesar das grandes variações existentes en-
ideias inatas. A posição de Locke, apesar de tre as normas presentes nas diversas culturas,
criticada por filósofos como Leibniz, acabou haveria certas intuições morais derivadas do
triunfando: as ciências modernas se desenvol- conjunto das emoções inerentes aos seres hu-
veram à luz de um empirismo antinativista; e manos. Essas intuições, produzidas a partir de
a doutrina das ideias inatas passou a ser vista módulos mentais específicos, favoreceriam o
como retrógrada, não-científica, inextricável surgimento de normas morais sobre determi-
de outras doutrinas metafísicas e teológicas nados temas como reciprocidade, equidade,
que caíram em descrédito, e incompatível cooperação, condutas lesivas etc. Após expor
com uma abordagem naturalista acerca da brevemente a teoria proposta por Haidt para
natureza humana (SAMET, 2008). explicar a aquisição da moralidade, examino
Entretanto, esse quadro começou a so- as principais críticas feitas a essa teoria.
frer grande alteração em razão dos trabalhos
publicados pelo linguista Noam Chomsky,
a partir dos anos de 1950 (1965; 1975; 1986). O papel das fundações morais na
Chomsky defendeu que a melhor explicação aquisição da moralidade
para a aquisição da linguagem era a existên-
cia de um conjunto de conhecimentos inatos, A moralidade existe em todas as socie-
chamado de “Gramática Universal”, que tor- dades humanas de que temos conhecimento
naria possível o aprendizado da linguagem, e em praticamente todo indivíduo, desen-
mesmo diante da pobreza de estímulos. Após volve-se sem instrução formal e sem esforço
as pesquisas de Chomsky, cientistas cogniti- deliberado (JOYCE, 2006; AYALA, 2010, p. 2).
vos passaram a aderir a explicações nativistas Jonathan Haidt elaborou a sua Teoria das Fun-
sobre o desenvolvimento das capacidades dações Morais (TFM), a partir dessa constata-
cognitivas — rejeitando a teoria da tabula ção. Haidt analisou listas de virtudes existen-
rasa de Locke — e a defender que conteúdos tes ao redor do mundo e percebeu algumas
mentais estão presentes desde o nascimento. semelhanças e superposições. Em diferentes
Hoje, afirmam, por exemplo, que mecanismos culturas, os indivíduos apresentam alguns dos
inatos desempenham importantes papéis nas mesmos tipos de reações automáticas e emo-
nossas habilidades para explicar e prever o cionais às interações sociais (EKMAN et al.,
movimento de objetos físicos de tamanho 1969). Com base nisso, psicólogos e antropó-
médio (SPELKE, 1988) e para classificar ani- logos culturais já haviam proposto que os sis-
mais e plantas (ATRAN, 1998). temas morais são ancorados em um pequeno

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conjunto de valores morais universais (e.g., possíveis de cozinha, mas deixa bastante es-
ROZIN et al., 1999; SHWEDER et al., 1997). paço aberto à criatividade. A ideia de Haidt é
Haidt, então, começou a se perguntar que haveria algo semelhante no domínio da
se não haveria, no âmbito da moral, algo se- moral, ou seja, existiria um pequeno conjunto
melhante aos receptores que temos para per- de intuições morais sob a grande diversida-
ceber os sabores. Ele ilustra essa analogia da de de sistemas de normas morais (HAIDT &
seguinte forma: na grande maioria das cultu- BJORKLUND, 2008, p. 201-2). Tanto a mora-
ras há um ou mais tipos de bebidas doces que lidade quanto as diferentes cozinhas seriam
são largamente consumidas, normalmente construções culturais, influenciadas por di-
derivadas de frutas locais ou, nos países in- versos fatores históricos e ambientais, mas
dustrializados, de açúcar e aromatizantes. Se- não seriam completamente flexíveis. Não po-
ria absurdo imaginar que temos diferentes re- demos ter um tipo de cozinha ancorada em
ceptores para suco de manga, suco de maça e cascas de árvores ou predominantemente em
Coca-Cola. Há no caso em questão apenas um sabores amargos, pois, para que uma culiná-
tipo de receptor capaz de identificar sabores ria se estabeleça, ela precisa agradar línguas
adocicados, mas cada cultura inventa diferen- equipadas com uma variedade limitada de
tes formas de acioná-lo. papilas gustativas. De modo semelhante, uma
No âmbito da moral, apesar da variação matriz moral precisa ser compatível com men-
cultural de normas e práticas, haveria um pe- tes equipadas com determinados tipos de re-
queno conjunto de intuições morais facilmen- ceptores sociais (HAIDT, 2012, cap. 6).
te encontráveis em todas as sociedades, mas Haidt e Joseph (2004) procuraram iden-
que poderiam ser desencadeadas de diversas tificar, a partir de cinco pesquisas sobre ca-
formas, conforme as variações culturais. As racterísticas universais (BROWN, 1991; FISKE,
nossas mentes têm o potencial para incluir as 1992; SCHWARTZ & BILSKY, 1990; SHWEDER
mais diversas práticas nos domínios da moral. et al., 1997; de WAAL, 1996), princípios co-
No entanto, apenas algumas dessas práticas, muns da moralidade humana. Após tentarem
a partir de nossas experiências culturais, se- listar todas as coisas que humanos e chimpan-
rão incluídas, ao longo de nossa infância, na- zés pareciam valorar no comportamento dos
quilo que compreendemos por moralidade. outros, eles as dividiram em cinco categorias:
Outras tantas práticas permanecerão desco- a) sensibilidade ou aversão a sinais de dor e
nectadas daquilo que forma a rede de valores sofrimento em outros (harm/care); b) respos-
e sentidos compartilhados que compõem a tas negativas àqueles que falham em retribuir
nossa matriz moral (HAIDT, 2012, cap. 5). favores (fairness/reciprocity); c) raiva contra
As cozinhas são produtos da cultura e aqueles que falham em demonstrar sinais
cada uma é única e possui um conjunto de de deferência e respeito (authority/respect);
ingredientes principais. No entanto, elas são d) emoções relacionadas a nojo e repulsa,
construídas a partir de um sistema sensorial necessárias para explicar regras morais so-
que inclui apenas cinco tipos de receptores bre comida, sexo, menstruação e manuseio
para os gostos e de um sistema olfativo mais de cadáveres (purity/sanctity); e) atitudes
complexo. Os tipos de papilas gustativas tra- em relação às fronteiras entre os grupos (in-
zem óbvios benefícios adaptativos: o sabor -group/out-group).1 Esses cinco grupos de in-
doce é útil para reconhecer frutas e indicar tuições seriam as bases da moralidade (HAIDT
que o alimento é seguro; o sabor amargo & BJORKLUND, 2008, p. 202-203) e cada um
indica a presença de toxinas e alerta para deles representaria um módulo mental e se
o perigo; o receptor de glutamato indica a relacionaria a diferentes famílias de emoções.
presença de carne e assim por diante. A es- O sofrimento provoca empatia e compaixão;
trutura da nossa língua, de nosso nariz e do
nosso cérebro estabelece restrições aos tipos 1
Em alguns trabalhos Haidt designa esse domínio
“Loyalty/Betrayal Foundation” (HAIDT, 2012).

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desrespeito à hierarquia provoca ressenti- certos temas. Ou seja, ainda que possa haver
mento; violação da reciprocidade provoca rai- controvérsias significativas a respeito da ori-
va e culpa; violações relacionadas ao domínio gem dessas fundações, da melhor forma de
da pureza provocam nojo. Essas fundações categorizá-los e dos limites que os separam, é
seriam universais, mas cada cultura poderia muito difícil negar que as normas morais exis-
determinar os conteúdos específicos de cada tentes se agrupam em torno de certos temas.
uma delas (HAIDT & JOSEPH, 2004). Segundo Haidt, o agrupamento das
Ao elaborar a sua teoria, Haidt procurou normas morais seria o resultado de predis-
identificar as conexões entre as virtudes exis- posições inatas que facilitariam o aprendiza-
tentes e as teorias evolutivas bem estabele- do de certas normas. Na área da psicologia,
cidas (HAIDT, 2012, cap. 6). Ele buscou iden- é universalmente aceito que algumas coisas
tificar os desafios adaptativos da vida social são mais fáceis de aprender do que outras.
de nossos ancestrais e conectá-los às virtudes É extremamente difícil moldar uma criança
presentes de alguma forma em diversas cul- quando o esforço é feito em sentido contrá-
turas. Para cada uma das emoções e intuições rio ao que elas gostam naturalmente. Não
associadas a essas virtudes, ele traçou uma exige muito trabalho, por exemplo, fazer uma
história evolutiva que procura explicar quais criança preferir balas a brócolis, a simpatia
eram as circunstâncias que as desencadea- de outras crianças à aprovação de adultos,
vam e, assim, estabelecer uma ligação entre ou revidar uma agressão ao invés de amar os
as observações antropológicas e a Teoria Evo- inimigos (HAIDT & BJORKLUND, 2008, p. 201-
lutiva, embora reconheça que as explicações 2). A ideia central desse tipo de modelo é que
por ele propostas para a origem das emoções os seres humanos possuem fortes predispo-
sejam apenas “educated guesses”.2 sições para desenvolver certas reações e pre-
A tentativa de Haidt de explicar o surgi- ferências que exercem um papel causal sobre
mento das fundações morais a partir de uma aquilo que consideramos permissível, proibi-
perspectiva evolucionista enfrenta muitos de- do ou obrigatório no âmbito moral (GIROUX,
safios. As evidências que temos a respeito dos 2011, p. 292-3).
ambientes nos quais ocorreu a maior parte do A hipótese de que os seres huma-
processo de evolução de nossa espécie são nos possuem determinadas predisposições
bastante limitadas. Dessa maneira, é possível (preparedness) para o aprendizado moral é
propor múltiplas histórias que sejam em al- reforçada por experiências que indicam o
guma medida compatíveis com as evidências desenvolvimento precoce das percepções
empíricas existentes, e a tarefa de avaliar qual envolvidas nos julgamentos morais. Nas pri-
dessas histórias é mais plausível envolve um meiras horas de vida, os recém-nascidos cho-
grau elevado de especulação. Para os propó- ram ao escutar outras crianças chorarem. Isso
sitos do presente artigo, basta destacar que, poderia indicar que elas nascem prontas para
ainda que as histórias propostas por Haidt experimentar uma forma rudimentar de em-
não tenham um embasamento empírico tão patia (EISENBERG et al., 2003, p. 789). Antes
robusto quanto desejaríamos acerca da ori- de caminhar, crianças já são capazes de reco-
gem das fundações morais, há inúmeras pes- nhecer e de valorar condutas como ajudar ou
quisas conduzidas por antropólogos e psicó- machucar terceiros. Hamlin, Wynn e Bloom
logos que dão suporte à hipótese de que as (2007) mostraram a crianças com idades en-
normas morais existentes nas mais variadas tre 6 e 10 meses uma encenação com fanto-
culturas tendem a se agrupar em torno de ches na qual um desses tentava subir uma
encosta. Em algumas das apresentações, o
Para um estudo mais detalhado sobre as histórias
2
fantoche era ajudado por outro que o empur-
evolutivas propostas por Haidt e a respeito das
pesquisas científicas que lhe dão suporte, ver REX rava para cima. Em outras, um terceiro fanto-
(2016a, cap. 5). che aparecia em cima da encosta e golpeava

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o fantoche que subia, impedindo-o de chegar são universais? 2) Elas podem ser aprendidas?
ao topo. Após essas exibições, o fantoche que 3) Elas são essencialmente morais? (PRINZ,
ajudava e o que atrapalhava eram postos em 2008, p. 381). No que diz respeito à primeira
frente às crianças, e elas demonstravam uma pergunta, ele salienta que Haidt admite a va-
forte preferência pelo primeiro. Segundo Hai- riação de ênfase em diferentes culturas em
dt e Kesebir, essa experiência pode indicar a relação às fundações. Isso traz a possibilida-
existência de um sistema de percepção capaz de de que alguma delas não seja concebida
de criar emoções positivas em relação a quem como moralmente significativa em todas as
ajuda, e emoções negativas em relação a culturas (PRINZ, 2008, p. 381).
quem prejudica terceiros3 (HAIDT & KESEBIR, Prinz, no entanto, não apresenta evidên-
2010, p. 804). cias antropológicas significativas contrárias à
afirmação da universalidade. Ele menciona
Críticas à teoria das fundações apenas o caso dos Gahuku Gama, de Papua-
morais -Nova Guiné. Para esse povo, não seria imo-
ral causar danos a outras pessoas, a menos
Os críticos da TFM costumam questio- que elas fizessem parte do grupo. De acordo
nar a universalidade das supostas fundações com uma das interpretações possíveis, eles
morais. Jesse Prinz, e.g., contrariamente à não moralizariam o sofrimento enquanto tal,
ideia da universalidade da proibição de causar mas apenas a hierarquia e a reciprocidade. Os
dano (harm), menciona vários casos envol- Gahuku Gama acreditam que eles têm respon-
vendo torturas, guerras e punições corporais sabilidades para com as pessoas que depen-
(PRINZ, 2008, p. 373). Esse tipo de argumento dem deles e das quais eles dependem (PRINZ,
não parece relevante contra o modelo defen- 2008, p. 381-2).
dido por Haidt, pois uma aversão a condutas Ainda que ele apresentasse algum caso
que causam danos não implica uma proibição específico mais forte contra a ideia das funda-
a toda e qualquer conduta que cause danos. ções morais, isso não invalidaria a teoria de
Nós não gostamos de ver outras pes- Haidt. Essas fundações agem em um nível ge-
soas em situações de aflição e sofrimento; ral influenciando a conduta e estabelecendo
vê-las em tais situações nos causa descon- vieses. Nada impede que a cultura atue con-
forto, o que demonstra uma predisposição a trabalanceando alguma dessas fundações.
nos opormos a condutas lesivas. No entanto, Nas grandes cidades ocidentais, por exemplo,
Prinz acredita que esse tipo de predisposição acaba havendo uma ênfase em apenas duas
não é moral. Ele destaca o valor comunicativo fundações, a relacionada a danos e sofrimen-
do grito de um membro da mesma espécie. O to e a relacionada à reciprocidade.
sofrimento dos outros nos alerta para o peri- Prinz analisa também a questão do
go, é um sinal de que há problema por perto. aprendizado. Segundo ele, nós somos do-
Por essa razão, não surpreende que ele nos tados de emoções como empatia, respeito,
provoque estresse (PRINZ, 2008, p. 374). Esse raiva, nojo etc. Essas emoções seriam sufi-
tipo de desconforto, ainda que possa estimu- cientes para explicar como os domínios (ou
lar o comportamento pró-social, não seria fundações) morais emergem ao longo do de-
propriamente moral. senvolvimento. Quando uma sociedade, em
Segundo Prinz, haveria três questões a razão de sentimentos de nojo ou repulsa, mo-
serem perguntadas: 1) As fundações morais raliza certos comportamentos, podemos afir-
mar que seus membros possuem um domínio
de pureza em sua psicologia moral. Contudo,
3
Há outras experiências similares acerca da existência
esse domínio seria apenas uma extensão
de uma base inata para o comportamento social: ver
KINZLER et al. (2007) e WARNEKEN & TOMASELLO aprendida de emoções não morais (PRINZ,
(2006). 2008, p. 382).

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Por fim, Prinz entende que as fundações mesmo em ambientes muito distintos, ou seja,
não são morais. Elas brotariam de emoções em grande medida ele adota uma concepção
universais que teriam evoluído por diferentes desenvolvimental de inato. Portanto, as críti-
razões e que não teriam sido selecionadas cas de Prinz não atingem alguns dos aspectos
por favorecerem a ocorrência de julgamentos centrais da teoria elaborada por Haidt.
morais. Cada uma dessas emoções teria algu- Defensores da Teoria da Gramática Mo-
ma aplicação não moral. Nós, por exemplo, ral Universal (GMU) costumam tecer outro
sentimos empatia pelos doentes, mas não fa- tipo de crítica à TFM.4 Eles tendem a reconhe-
zemos julgamentos morais sobre eles (PRINZ, cer a existência de vieses e a importância das
2008, p. 382). Segundo Prinz, emoções negati- emoções, mas classificam esses fatores como
vas adquirem significado moral apenas quan- meras perturbações na faculdade moral.
do aquele que as possui apresenta emoções Hauser, e.g., reconhece que há um viés para
de culpa contra si mesmo ou contra terceiros favorecer membros do grupo e que ele pode
(PRINZ, 2008, p. 382-3). funcionar como uma restrição às possíveis
De maneira geral, todas as críticas de conformações das diversas moralidades. Ele
Prinz à TFM procuram demonstrar que as admite que é difícil imaginar o surgimento de
capacidades e características envolvidas nos normas morais que privilegiem pessoas estra-
julgamentos morais não são adaptações es- nhas ao grupo em detrimento de membros do
pecíficas à moralidade. Entretanto, esse tipo grupo. No entanto, ele tenta afastar esse viés,
de argumento é relevante para a refutação como se fosse um empecilho a uma teoria ge-
do nativismo moral apenas quando se tem ral da moralidade (HAUSER, 2007, p. 133).
em mente uma concepção evolutiva de inato. Chomsky, ao elaborar a sua teoria linguís-
As definições de inato utilizadas no tica, preocupou-se em identificar as regras em-
debate sobre o nativismo moral costumam pregadas por um falante ideal em uma comuni-
agrupar-se em dois grupos principais: concep- dade linguística completamente homogênea,
ção evolutiva e concepção desenvolvimental i.e., por alguém que não seja afetado por con-
(JOYCE, 2013, p. 532-33). De acordo com o dições gramaticalmente irrelevantes, como
primeiro grupo, “nativismo moral” equivale à limitações de memória, distrações e erros
afirmação de que a moralidade é uma adap- (CHOMSKY, 1965, p. 3). A partir daí, surge a dis-
tação no sentido darwiniano. Por sua vez, tinção entre competência, i.e., o conhecimen-
aqueles que adotam a concepção desenvol- to que o falante-ouvinte tem de sua língua, e
vimental consideram um traço inato quando performance, i.e., o uso real da língua em situa-
o seu surgimento está protegido (canalizado) ções concretas (CHOMSKY, 1965, p. 4).
contra variações no ambiente onde ocorre o De modo similar, Mikhail e Hauser pro-
desenvolvimento do organismo. curam aplicar a distinção entre competência
Haidt procura explicar a partir de uma e performance em relação à faculdade moral.
perspectiva evolucionista o surgimento das Para eles certas limitações psicológicas, infor-
emoções relacionadas à moral e ele certa- mações prejudiciais, erros de performance e
mente considera que essas emoções surgiram outros fatores distorceriam os julgamentos
como adaptações. Possivelmente, ele acredite morais. A solução seria isolar esses fatores e
que a capacidade para fazer julgamentos mo- identificar aqueles julgamentos morais que
rais também seja uma adaptação, mas esse refletem a operação ideal da faculdade mo-
não é o aspecto mais relevante de seu mode- ral (MIKHAIL, 2011, p. 103). Os proponentes
lo de nativismo moral. A teoria de Haidt indi- da GMU imaginam uma pessoa idealizada,
ca que características humanas canalizadas, capaz de empregar a sua faculdade moral
sejam elas adaptações ou efeitos secundários
de adaptações, garantem que a moralidade se 4
Sobre a Teoria da Gramática Moral, ver REX (2016b) e
desenvolva e conserve certas características REX & ABRANTES (2016).

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sem interferências de outras circunstâncias tendências psicopáticas, e.g., interfere no
estranhas a essa faculdade. Em razão disso, desenvolvimento moral (BLAIR et al., 2006,
Hauser, Mikhail e Dwyer, sob a influência de 1997; DUPOUX & JACOB, 2007, p. 376).
Rawls, buscam alcançar em seus experimen- Embora os teóricos da GMU pretendam
tos uma posição neutra, capaz de possibilitar realizar uma abordagem descritiva da realiza-
julgamentos morais que demonstrem a utili- ção dos julgamentos morais, eles incluem em
zação plena da faculdade moral (RAWLS, 1971; suas descrições certa visão normativa. Eles
MIKHAIL, 2011, p. 110). têm uma visão sobre qual deveria ser a moral
No âmbito da linguagem, a separação vigente — essencialmente uma destinada a
entre faculdade linguística e fatores como a evitar injustiças (unfairness) e a produção de
limitação imposta pela memória mostrou-se danos e sofrimento (harm) — e descartam as
útil e esclarecedora do ponto de vista teóri- outras dimensões envolvidas nos julgamen-
co (ROEDDER & HARMAN, 2016, p. 4-5). No tos morais como se fossem interferências in-
entanto, essa separação é problemática no devidas.
caso da moral, pois não está claro se aquilo Outra crítica enfrentada por Haidt diz
que eles consideram interferência não é na respeito à classificação proposta por ele para
verdade constitutivo da moralidade. Por que as fundações morais. Suhler e Churchland
deveríamos considerar que a moralidade se apontam para outros candidatos, como a
restringe a questões de justiça como eles pa- modéstia, e.g., que seriam tão qualificados
recem propor? para assumir a posição de “domínio” ou “fun-
Há uma dificuldade em combinar a ideia dação” da moral quanto aqueles admitidos
de que os julgamentos morais obedecem a por Haidt. Os mais diversos grupos humanos
uma estrutura gramatical com a ideia de que possuem normas que restringem as ocasiões
as emoções desempenham um papel causal em que alguém pode vangloriar-se de suas
na produção das intuições morais. Mikhail, conquistas e de sua posição social — aqueles
Hauser e Dwyer, embora reconheçam a exis- que costumam gabar-se de seus feitos aca-
tência de uma interface importante entre bam sendo desprezados e rejeitados pelos
cognição e emoção, optam por defender que seus pares (SUHLER & CHURCHLAND, 2011, p.
julgamentos morais causam emoções e não 2107). No entanto, o próprio Haidt admite que
o contrário. Diante de evidências empíricas pode haver outras fundações da moral, além
de que podemos manipular os julgamentos daquelas que ele propõe. Em trabalhos mais
morais por meio da manipulação de emoções recentes (HAIDT, 2012), ele adotou uma nova
com a utilização de hipnose e de alterações classificação que divide a moralidade em seis
ambientais (WHEATLEY & HAIDT, 2005; SCH- fundações, em vez de cinco, e ele não exclui
NALL et al., 2008), eles procuram preservar a possibilidade de reconhecer novas funda-
as suas teorias por meio da distinção entre ções. Assim, esse tipo de crítica poderia servir
competência e performance: as emoções afe- mais como uma forma de aprimoramento da
tariam apenas a performance moral, mas não teoria de Haidt do que como uma forma de
seriam constitutivas da faculdade moral. Os refutação.
processos emocionais desencadeados antes Há, contudo, outras falhas que parecem
dos processos computacionais necessários à mais relevantes na TFM. Uma delas diz res-
produção de julgamentos morais poderiam peito à vinculação que Haidt faz entre cada
afetar os últimos e motivar a prática de certas uma dessas fundações com certas emoções.
ações, mas não seriam necessários (DWYER, Ele associa, e.g., a emoção de raiva à funda-
HUEBNER & HAUSER, 2010, p. 495). Há, no ção da reciprocidade. Mas a emoção de raiva
entanto, evidências de que respostas emocio- pode ser despertada também pela violação
nais são necessárias à formação da moralida- de normas pertencentes a outras fundações:
de. A ausência de empatia em crianças com quando uma mãe enxerga alguém causando

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sofrimento a um de seus filhos (harm/care), (Figura 1): ainda que estejamos convencidos
há uma forte reação de hostilidade motivada de que as duas linhas centrais possuem o mes-
também pela emoção de raiva. De forma aná- mo tamanho, em razão de as termos medido,
loga, as outras emoções, como ressentimen- continuamos a enxergar uma das linhas maior
to, nojo, repulsa, culpa, podem ser recrutadas do que a outra em razão do encapsulamento
em favor da imposição de normas pertencen- de nosso sistema de percepção visual.
tes a domínios diversos. Portanto, não há uma
justificativa plausível para associar, de modo
isolado, um pequeno grupo de emoções a Figura 1: Ilusão de Müller-Lyer (ROBBINS, 2015).
cada uma das fundações morais (SUHLER &
CHURCHLAND, 2011, p. 2107).
Por fim, analisarei, nas seções seguintes,
as duas críticas que parecem mais pertinentes
em relação à teoria elaborada por Haidt: o
fato de ela estar comprometida com uma vi-
são modular acerca da mente humana; e a sua
incompletude, em razão de não fornecer uma
explicação para as etapas mentais prévias ao
desencadeamento das intuições.

Modularidade da mente Já para aqueles que defendem a mo-


dularidade massiva, o encapsulamento não
O conceito de modularidade ganhou bas- é uma característica necessária dos módulos
tante notoriedade na Filosofia e na Psicologia (ROBBINS, 2015). De fato, eles não poderiam
desde que Fodor publicou o livro The Modula- adotar o mesmo conceito de modularidade
rity of Mind (1983). Nesse livro, ele defendeu defendido por Fodor, pois não há como de-
que muitos sistemas subjacentes à percepção fender de maneira consistente que os siste-
e à linguagem são modulares (low-level sys- mas cognitivos centrais sejam encapsulados,
tems, input systems). Por sua vez, adeptos pois a fixação de crenças e as atividades de
da psicologia evolucionista (SPERBER, 2002; planejamento envolvem a utilização de in-
COSMIDES & TOOBY, 1992; PINKER, 2009) formações dos mais diversos tipos. Por essa
elaboraram a tese de que a mente humana razão, até mesmo defensores do modelo de
seria massivamente modular; ou seja, os sis- modularidade massiva, e.g. Peter Carruthers
temas cognitivos mais complexos (high-level (2006, p. 12), admitem a incompatibilidade
cognition, central systems), responsáveis por desse modelo com o conceito de módulo em-
funções como a solução de problemas, a fixa- pregado por Fodor.
ção de crenças e planejamento também se- Dessa forma, os psicólogos evolucionis-
riam modulares (ROBBINS, 2015). tas procuram enfatizar a existência de domí-
No entanto, o conceito de modularidade nios específicos, em vez de encapsulamento.
tem significados distintos na teoria de Fodor Afirmar que um sistema qualquer é responsá-
e nas teorias dos psicólogos evolucionistas. vel por um domínio específico significa dizer
Para Fodor, o encapsulamento das informa- que ele é dedicado exclusivamente ao proces-
ções é uma característica indispensável dos samento de uma matéria específica (SPERBER,
módulos (FODOR, 2001). Isto é, um módulo, 2005, p. 55-6). Nativistas, em geral, costumam
enquanto sistema cognitivo encapsulado, não invocar mecanismos de domínio específico
pode ter acesso a informações armazenadas para explicar a lacuna entre as informações
fora do módulo. A ilusão de Müller-Lyer ofe- fornecidas pela experiência e as ideias ou cren-
rece o exemplo clássico dessa propriedade ças que adquirimos a respeito do domínio ao

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qual pertencem essas informações (NICHOLS, Sperber emprega uma analogia com
2005, p. 354-5). Mecanismos de domínio es- a distribuição de funções no corpo humano
pecífico normalmente mencionados incluem para defender a tese de que a mente huma-
aqueles dedicados à linguagem, ao reconheci- na é massivamente modular. A necessidade
mento de faces, à leitura de mentes e ao de- de enfrentar uma série de desafios ao longo
senvolvimento de um senso comum nas áreas da evolução levou os organismos complexos
de física e biologia (HAUSER, 2007, p. 170s.; a desenvolverem subsistemas, como os dife-
GELMAN, 1990; PREMACK, 1990). rentes órgãos do corpo humano, responsá-
Psicólogos evolucionistas, como regra, veis por executar funções específicas. Segun-
consideram que a nossa arquitetura cogniti- do Sperber, algo semelhante teria ocorrido
va é composta por uma série de módulos que no nosso cérebro, ou seja, as estruturas que
teriam evoluído para solucionar os problemas o compõem foram se diferenciando em mó-
enfrentados pelos hominíneos ao longo do dulos ao longo do tempo em razão de favo-
processo de evolução.5 A adoção da modu- recerem a solução de problemas específicos
laridade é motivada pela observação de que enfrentados pelos hominíneos. Como esses
nós resolvemos muitos de nossos problemas módulos apresentam muitas diferenças entre
diários de maneira eficiente, sem a necessida- si, em virtude de sua história evolutiva, seria
de de refletirmos ou de empregarmos gran- inviável elaborar um conceito rígido de módu-
des esforços, e essa eficiência cognitiva de- lo (SPERBER, 2005, p. 54).
manda algum tipo de explicação. Psicólogos Haidt adota um modelo semelhante ao
evolucionistas consideram que o ambiente da modularidade massiva proposta por Sper-
no qual nossos ancestrais viviam apresentava ber (2005), que inclui a existência de módulos
uma série de desafios cognitivos recorrentes, de aprendizado capazes de produzir outros
mas que eram quase independentes uns dos módulos mais específicos durante o desen-
outros. Cada um dos agentes de uma tribo volvimento do indivíduo (HAIDT & JOSEPH
precisava, e.g., identificar as ações que viola- 2007, p. 379-80). Ou seja, haveria um módulo
vam as normas de seu grupo. Esse problema é de aprendizado anterior a qualquer experi-
desafiador, pois as regularidades nos compor- ência para cada domínio moral — módulo de
tamentos não são suficientes para resolvê-lo. primeira ordem. Cada um desses módulos, a
É impraticável identificar o que é proibido sim- partir da experiência adquirida pelo indiví-
plesmente observando o que as outras pesso- duo, produziria outros módulos de trabalho
as do grupo não fazem. Dessa maneira, havia responsáveis por gerar as intuições morais
grande pressão seletiva no sentido de favo- perante situações específicas — módulos de
recer os indivíduos que tivessem adaptações segunda ordem.6
específicas capazes de auxiliá-los nessa tare- Os módulos de primeira ordem seriam
fa. Logo, módulos teriam surgido para auxiliar adaptações para uma variedade de fenôme-
a resolver cada um dos diferentes tipos de nos, ameaças e oportunidades presentes por
problemas (um módulo para detectar cobras, longos períodos no ambiente de nossos an-
outro módulo para reconhecer faces etc.). As- cestrais, que teriam como função processar
sim, o aprendizado para solucionar cada um um tipo específico de entrada (input). Eles
desses desafios seria canalizado e moldado seriam responsáveis por atrair a atenção das
por informações pré-instaladas pertencentes pessoas para certos eventos — como de-
a domínios específicos (STERELNY, 2012). monstrações de crueldade e desrespeito —,
e desencadeariam, a partir dos módulos de

5
A descrição do modelo de modularidade feita a 6
Essa nomenclatura (second-order modules) é
seguir é ancorada em grande medida na descrição de empregada por SUHLER & CHURCHLAND (2011, p.
STERELNY (2012). 2.104).

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segunda ordem, reações intuitivas e emo- cinco módulos especializados dedicados à
ções específicas: empatia, raiva etc. As varia- moralidade (GIROUX, 2011, p. 294-5).
ções culturais ocorreriam porque as culturas O raciocínio empregado por Haidt para
seriam capazes de restringir ou expandir os concluir que os supostos módulos dedica-
mecanismos que desencadeiam a atividade dos à moralidade são dedicados a domínios
de cada um dos módulos de segunda ordem específicos segue um modelo de psicologia
(HAIDT, 2012, cap. 6). da “caixa-preta”, na medida em que ele leva
Um dos principais motivos que levam em consideração apenas relações de entrada
Haidt a acreditar na modularidade da mente (input) e saída (output). Haidt identifica um
humana é o fenômeno do moral dumbfoun- padrão de entradas e saídas — estímulos e
ding. Ele utilizou essa expressão para desig- comportamentos — e conclui que as saídas
nar as inúmeras situações que ocorreram em são o resultado do processamento de um
suas pesquisas, nas quais as pessoas conde- módulo e que esse conjunto de entradas e
navam moralmente uma conduta — praticar saídas compõe o domínio ao qual esse mó-
incesto utilizando dois métodos contracep- dulo é dedicado (SUHLER & CHURCHLAND,
tivos, masturbar-se com uma galinha morta 2011, p. 2.106). Um dos problemas desse tipo
etc. —, mas não conseguiam encontrar qual- de raciocínio é que ele não tem grande poder
quer razão para justificar o julgamento, ape- explicativo (ainda que esses módulos existis-
nas o sentimento de que algo estava errado sem, isso não nos diria muita coisa acerca de
(2001). como eles funcionam) e pode ser utilizado
Em inúmeros casos, os julgamentos de forma indiscriminada para qualquer pro-
morais permanecem inalterados apesar de cesso cognitivo (basta identificar um padrão
serem apresentadas novas informações que de entradas e saídas e concluir pela existên-
invalidam as justificativas empregadas para cia de mais um domínio específico). Embora
sustentá-los. Haidt acredita que a explicação Haidt esteja certo ao afirmar que algumas
para esse fato é que os sistemas que produ- coisas são mais fáceis de aprender do que
zem esses julgamentos são “em alguma medi- outras, esse fato não justifica a inferência de
da encapsulados”, i.e., ao contrário de Fodor, que essa facilidade de aprendizado seja fruto
Haidt admite que os módulos tenham acesso da existência de um módulo de aprendizado
a informações armazenadas em outros locais, dedicado a um domínio específico. Poderiam
mas de maneira limitada. Além disso, seguin- ser elaboradas outras hipóteses que fossem
do a posição normalmente adotada por psi- mais consilientes com os resultados de estu-
cólogos evolucionistas, Haidt acredita que os dos empíricos de outras áreas, como aque-
módulos dedicados à moralidade pertencem les realizados em neurociência (SUHLER &
a domínios específicos. CHURCHLAND, 2011, p. 2.106).
Giroux chama a atenção para o fato de A ideia de que a mente humana seja
que não está muito claro como Haidt chegou composta por diversos mecanismos especia-
à conclusão de que cada uma das cinco fun- lizados para a solução de tipos particulares
dações da moral corresponde a um módulo de problemas enfrenta forte oposição. Até
mental diferente (GIROUX, 2011, p. 294-5). O mesmo Sperber reconhece que apenas uma
simples fato de sermos capazes de classificar minoria dos cientistas cognitivos acredita que
as intuições sobre a moral em cinco catego- a mente seja massivamente modular. Para a
rias, não justifica a crença de que cada uma maioria deles, a mente é em grande medida
delas seja implementada de forma indepen- não modular. Ainda que admitam a existência
dente ou por um mecanismo computacional de alguns módulos relacionados à percepção,
discreto (MALLON, 2008, p. 151). As funda- poucos defendem que os sistemas centrais de
ções propostas por Haidt podem talvez ser processamento sejam modulares (SPERBER,
universais, mas isso não significa que existam 2005, p. 53).

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Sterelny, e.g., acredita que uma mente conjunto limitado de módulos de aprendiza-
massivamente modular não seria capaz de do presentes desde o nascimento propiciaria
lidar com as grandes variações ambientais o surgimento de um número muito maior de
enfrentadas pelos hominíneos. Ele chama a módulos de trabalho encarregado de desem-
atenção para a instabilidade física, biológica e penhar as competências cognitivas. O surgi-
social dos ambientes nos quais eles evoluíram. mento desses diferentes módulos de segunda
O tamanho dos grupos, o tipo de divisão de ordem dependeria das condições ambientais:
trabalho, a extensão das hierarquias sociais, diferentes condições provocariam o surgimen-
as interações com outros grupos e espécies, to de módulos diferentes. Assim, a mente hu-
os desafios ecológicos, nenhum desses fatores mana teria a capacidade de se moldar, ao lon-
teria permanecido estável. Se a mente huma- go de seu desenvolvimento, aos mais variados
na fosse preponderantemente um conjunto ambientes (SPERBER, 2005, p. 57-9).
de módulos pré-programados, seria muito di- No entanto, não há consiliência entre
fícil explicar a grande plasticidade fenotípica o modelo de modularidade proposto por
demonstrada pelos hominíneos ao lidar com Sperber e adotado por Haidt e os resultados
essas diferenças. A nossa mente se desenvol- empíricos de pesquisas neurocientíficas. Se
ve de formas diferentes, adquirindo diversas a mente humana fosse composta por módu-
habilidades e capacidades, dependendo do los, deveríamos esperar que a organização
ambiente no qual estamos inseridos. As expe- do cérebro fosse ao menos compatível com a
riências culturais canalizam as nossas emoções existência desses módulos (SUHLER & CHUR-
de várias formas. Basta ver a diferença com a CHLAND, 2011, p. 2.109). No entanto, a anato-
qual os insultos são percebidos em diferentes mia do nosso sistema nervoso central faz que
povos (NISBETT & COHEN, 1996). as ideias de encapsulamento informacional e
Sterelny reconhece a alta carga cogniti- de especificidade de domínios sejam pouco
va dos desafios enfrentados no dia a dia dos plausíveis.
hominíneos, mas contesta a premissa de que Embora as conexões locais presentes
esses desafios eram estáveis e relativamente no córtex cerebral sejam densas, enquanto
independentes. Ele destaca como nós erra- as conexões neurais que abrangem distâncias
mos algumas vezes, mesmo que tenhamos maiores são mais esparsas — “small world”
sido expostos a uma série de exemplos; mas architecture —, apenas algumas sinapses se-
em outras circunstâncias somos capazes de param determinado neurônio de qualquer
responder com competência a novos proble- outro neurônio presente em nosso cérebro
mas que demandam grande atividade cogni- (SUHLER & CHURCHLAND, 2011, p. 2.109).
tiva. Ele questiona como modelos modula- Esse padrão estaria presente até mesmo no
res seriam capazes de explicar as respostas córtex visual primário (V1), a área responsável
competentes aos problemas novos, pois, à por receber as entradas da retina por meio do
medida que um modelo procura explicar as núcleo geniculado lateral (NGL). Mais de 80%
competências com base em informações pré- dos contatos sinápticos presentes em V1 não
-instaladas, ele perde poder explicativo em re- seriam oriundos do NGL, mas de outras regi-
lação à competência demonstrada em face de ões do cérebro (SUHLER & CHURCHLAND,
novos desafios (STERELNY, 2012). 2011, p. 2.109). Em razão disso, o funcionamen-
Sperber tenta responder a críticas desse to de V1 depende de diversos fatores. Niell e
tipo defendendo que o seu sistema de modula- Stryker, e.g., demonstraram a influência que o
ridade em dois níveis permitiria a flexibilidade sistema de locomoção exerce no córtex visu-
necessária para lidar com as variações ambien- al primário de ratos: as taxas de disparo dos
tais. Embora Sperber sustente que a mente é neurônios de V1 dos animais quando eles es-
massivamente modular, a maioria desses mó- tavam correndo era mais do que o dobro da
dulos não seria anterior à aprendizagem. Um taxa apresentada quando eles estavam em

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repouso (2010, p. 472). McCauley e Henrich, de tal modo que as crianças aprendem com
por sua vez, demonstram como as influências grande facilidade a se preocupar com a produ-
culturais alteram a percepção da ilusão de ção de danos a terceiros (harm), com a justiça
Müller-Lyer (2006). Resultados como esses (fairness), com a preservação dos membros
desafiam a ideia de que as informações visu- de seus respectivos grupos (in-group), com
ais estariam isoladas das informações presen- a preservação da autoridade e com questões
tes em partes distantes do cérebro. de pureza; no entanto, isso não significa que
A ideia de que os módulos seriam res- elas tenham qualquer conhecimento moral
ponsáveis por domínios específicos também anterior à experiência, apenas que estão pre-
enfrenta desafios semelhantes. Prinz, e.g., paradas para adquirir certas crenças morais e
procura demonstrar que os exemplos normal- para resistir a outras (HAIDT & BJORKLUND,
mente mencionados de módulos não corres- 2008, p. 204).
pondem a domínios específicos. Ele aponta a O que resta da teoria de Haidt, abandona-
dependência que a leitura de mentes tem em da a ideia da modularidade, diz em suma que
relação à memória de trabalho (PRINZ, 2006, 1) temos mais facilidade em aprender algumas
p. 28). Prinz menciona a pesquisa conduzida coisas do que outras; e 2) as nossas emoções
por Mckinnon e Moscovitch, que demons- desempenham um importante papel na de-
traram que o desempenho dos sujeitos cuja terminação daquilo que temos mais facilidade
memória de trabalho era mantida ocupada de aprender. Essas afirmações não são muito
era prejudicado em tarefas relacionadas à controversas, pois é difícil imaginar como dis-
atribuição de crenças (MCKINNON & MOS- posições como as nossas emoções básicas —
COVITCH, 2007). Prinz destaca ainda como tristeza, raiva, nojo, medo etc. — não interfe-
os estudos com neuroimagem mostram que ririam no aprendizado e no desenvolvimento
a leitura de mentes envolve a utilização de das normas sociais (GIROUX, 2011, p. 289). To-
diversas regiões do cérebro, sendo que cada davia, esse tipo de afirmação não é suficiente
uma dessas regiões contribui também para para esclarecer muitas das nossas dúvidas a
muitas outras capacidades, ou seja, não são respeito do nativismo moral: Haidt afirma que
específicas. Da mesma forma, os julgamentos a mente humana é preparada para aprender
morais recrutam diversas áreas do cérebro, certas coisas, mas não oferece detalhes a res-
inclusive aqueles centros normalmente asso- peito do que constitui essa organização que
ciados às emoções (PRINZ, 2006, p. 29-30). favorece o aprendizado. Ele não explica (no
Além dos estudos mencionados por Prinz, há nível da psicologia cognitiva, da psicologia do
outros que indicam que até regiões normal- desenvolvimento, da neurociência etc.) de que
mente empregadas na percepção podem ser maneira os seres humanos são preparados
utilizadas para outras funções. V1, por exem- para a aquisição de normas morais (SUHLER &
plo, pode servir para decodificar uma língua, CHURCHLAND, 2011, p. 2.105). Haidt reafirma
solucionar problemas ou realizar simulações algo que já está implícito em diversas pesqui-
mentais (KOSSLYN, GANIS & THOMPSON, sas empíricas sobre o comportamento huma-
2001; MELLET et al., 2000). no, mas não desvenda os detalhes de como os
Haidt tem consciência das críticas dire- processos cognitivos de nossa mente resultam
cionadas à modularidade. Em virtude disso, na produção de juízos morais. Como veremos
ele procura demonstrar que a existência de a seguir, a TFM não dá a devida atenção a
módulos não é um aspecto central de sua elementos cognitivos prévios ao desencadea-
TFM. As fundações que ele propõe poderiam mento das emoções e intuições.
ser explicadas mais genericamente em ter- Antes de passarmos para essa etapa se-
mos de preparedness. A versão mais amena guinte, destaco apenas que, de forma geral,
da teoria proposta por Haidt seria a seguinte: as críticas apresentadas nesta seção servem
a mente humana foi moldada pela evolução também para a teoria da GMU, pois ela tam-

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bém está comprometida com a ideia de que a Representação mental da ação e
mente humana é modular. No entanto, ainda teoria da mente
que eventualmente a mente humana seja em
certa medida modular e, em especial, que a Mikhail e Hauser criticam Haidt por não
nossa capacidade linguística seja o resultado incluir em seu modelo social-intuicionista uma
do funcionamento de algum módulo, existem etapa cognitiva prévia ao desencadeamento
diferenças entre a moral e a linguagem que de emoções. Nenhuma criatura poderia sim-
tornam pouco plausível a tese de que nossa plesmente ter uma emoção sem que algo no
capacidade moral seja fruto da operação de cérebro houvesse reconhecido que aquela
determinados módulos. situação era digna de emoção. Haveria uma
A presença de reflexividade a partir de análise prévia, ainda que inconsciente, res-
processos cognitivos conscientes com con- ponsável por identificar as causas e conse-
sequente alteração das intuições morais con- quências da ação e desencadear uma reação
traria a noção de “módulos morais”. Uma emocional. Todo esse processo ocorreria de
das evidências a respeito da modularidade maneira muito rápida, como quando os nos-
da competência gramatical seria a indepen- sos cílios detectam a pressão de um objeto, e
dência dos julgamentos acerca da gramatica- o nosso cérebro comanda o fechamento das
lidade das sentenças em relação às crenças pálpebras (HAUSER, 2007, p. 8). Eles desta-
metalinguísticas (DUPOUX & JACOB, 2007, p. cam que ações muito parecidas ocasionam re-
374-5). A descoberta do moral dumbfounding ações emocionais completamente diversas a
foi utilizada com o propósito de sustentar que depender de como elas são representadas ou
algo semelhante ocorreria nos julgamentos percebidas por quem as assiste. Dependendo,
morais. O fato de haver uma grande dissocia- por exemplo, das intenções que atribuímos
ção entre os julgamentos morais intuitivos e ao autor, teremos reações distintas.
os processos deliberativos foi interpretado Essa crítica é em certa medida injusta,
como favorecendo a hipótese de existência pois Haidt deixa claro que para ele a distinção
de um sistema computacional encapsulado relevante é aquela entre dois tipos de cog-
subjacente aos julgamentos morais feitos pe- nição — uma rápida (intuitiva) e outra lenta
las pessoas em geral (DWYER, HUEBNER & (raciocínio consciente) —, não entre emoção
HAUSER, 2010, p. 499). e cognição, pois as emoções envolvem as-
Contudo, os processos de justifica- pectos cognitivos. De qualquer forma, é ne-
ção moral também pertencem à capacida- cessário esclarecer quais processos ocorrem
de moral humana — não há uma separação em nossas mentes desde o momento que
tão grande quanto ocorre na linguagem. A percebemos uma ação até o momento em
presença do moral dumbfounding não exclui que formamos um julgamento moral sobre
a possibilidade de que pelo menos alguns ela. Hauser e Mikhail parecem estar certos em
julgamentos morais dependam das crenças afirmar que só é possível que uma ação pro-
explícitas que uma pessoa possui sobre a duza determinada emoção após aquele que a
moralidade. É possível que alguém supere percebe ter formado algum tipo de represen-
a intuição inicial que o leva a favorecer um tação. Portanto, devemos buscar compreen-
membro do próprio grupo em nome de uma der como essa representação, as emoções e
preferência explícita pela imparcialidade. outros processos cognitivos mais lentos inte-
Se os julgamentos morais podem sofrer a ragem. Uma explicação completa sobre como
influência de crenças explícitas e de processos ocorrem os julgamentos morais deve escla-
conscientes de reflexão, não pode haver um recer quais são as estruturas computacionais
claro isolamento entre a capacidade moral responsáveis por analisar o cenário em que a
e as crenças morais explícitas (DUPOUX & ação a ser julgada ocorre (DWYER, HUEBNER
JACOB, 2007, p. 374-5). & HAUSER, 2010, p. 494).

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Mikhail critica a passagem que Haidt faz mente para oferecer uma racionalização à de-
em seu modelo social-intuicionista dos estímu- cisão previamente tomada. Hauser defende
los presentes em determinada situação para as que antes que as nossas emoções ou algum
intuições despertadas. O problema levantado tipo de raciocínio consciente possam desem-
por Mikhail é que os julgamentos morais não penhar algum papel nos julgamentos morais,
dependem apenas das propriedades superfi- deve haver uma etapa prévia de análise estru-
ciais de uma ação. Eles dependem também de tural e avaliação das causas e consequências
um processo avaliativo prévio que determina da ação — modelo da dita criatura “rawlsia-
a forma como essa ação é representada men- na” (HAUSER, 2007, p. 156).
talmente, pois o cérebro gera representações Quando julgamos moralmente, em-
da ação que vão além da informação dada (MI- pregamos uma série de inferências sobre as
KHAIL, 2011, p. 38, 116 e 309-10). intenções e os estados mentais do autor da
Mikhail reconhece que as emoções es- ação. Entretanto, a capacidade para fazer
tão claramente ligadas às intuições morais. essas inferências não pertence apenas ao
No entanto, ele considera que o ponto rele- campo da moral. Nós a empregamos quando
vante é fazer uma adequada caracterização interpretamos qualquer ação, por exemplo,
do sistema de avaliação que essas intuições quando vemos alguém cortando um limão e
pressupõem (MIKHAIL, 2011, p. 122). Ape- interpretamos que ele está fazendo uma limo-
nas emoções não poderiam explicar por que nada. A interpretação que fazemos de deter-
uma ação é considerada errada em um con- minada ação pode provocar um sentimento
texto, mas correta em outro. Para que uma de aversão ou de atração. Esse sentimento
emoção surja, algo deve provocá-la, algum motiva a adoção de determinada reação e
sistema deve reconhecer uma ação, separá- explica em boa parte como chegamos a um
-la em partes e avaliá-la (HAUSER, 2007, p. julgamento moral.
52-3). Esse processo avaliativo que desen- No entanto, a simples reação (e.g., aver-
cadeia as emoções seria a primeira etapa da são) a determinada circunstância não depen-
análise moral e poderia ser a etapa em que os de da existência de um julgamento moral.
julgamentos morais são formados, ou seja, a Até mesmo uma ameba é capaz de identificar
parte de nossa mente responsável por avaliar certas características do ambiente onde se
as intenções, ações e consequências poderia encontra — concentração de íons — e rea-
ser o centro no qual ocorrem as deliberações gir aproximando-se ou se afastando. Quando
morais, a parte de nossa psicologia que julga nos deparamos com determinado ambiente
inicialmente se um comportamento é permis- ou com determinada ação também reagimos,
sível, obrigatório ou proibido. De acordo com afastando-nos ou nos aproximando, confor-
essa visão, as emoções seriam desencadea- me as características que identificamos. Con-
das por esses julgamentos morais feitos de tudo, a simples reação emocional a determi-
maneira inconsciente. Elas não produziriam nada conduta não explica completamente o
os julgamentos morais, apenas nos motiva- julgamento moral, pois esse envolve um ele-
riam a agir de determinada forma (HAUSER, mento cognitivo diverso, uma crença a respei-
2007, p. 30-1). to do valor da ação interpretada.7
Segundo Hauser, Haidt explica o fenô- Em suma, a TFM, em sua versão amena,
meno do moral dumbfounding, apelando para oferece uma explicação plausível para os jul-
a chamada “criatura humeana”. Esse fenô- gamentos morais, mas falha ao não oferecer
meno ocorreria porque quando resolvemos uma explicação detalhada. Todavia, talvez a
dilemas morais não estaríamos raciocinando, explicação desses julgamentos não envolva
mas manifestando intuições decorrentes de
emoções. A criatura humeana falaria primeiro 7
Sobre a relação entre julgamentos morais e crenças,
e a criatura “kantiana” viria a seguir, simples- ver REX (2017).

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muitos detalhes específicos à moralidade; i.e., No entanto, ela também é vulnerável a críti-
talvez essa capacidade envolva basicamente cas importantes. Em primeiro lugar, ao acei-
uma capacidade geral para reconhecer pa- tar a tese da modularidade massiva, Haidt se
drões, o que possibilitaria ao indivíduo iden- compromete com uma visão a respeito da
tificar as normas de seu grupo, conjugada mente humana que não é consiliente com
com uma tendência a moralizar determinados os resultados de pesquisas neurocientíficas.
tipos de comportamento. Haveria uma ten- Apesar disso, Haidt busca deixar claro que
dência de certos tipos de normas se estabe- esse não é o aspecto mais relevante do seu
lecerem nas sociedades em razão de predis- modelo de nativismo.
posições emocionais tipicamente humanas e Em razão de ter ciência das críticas à mo-
uma vez estabelecidas essas normas, os no- dularidade massiva, ele propõe subsidiaria-
vos indivíduos seriam capazes de aprendê-las mente uma versão mais amena de sua teoria.
por mecanismos gerais de aprendizado. Conforme essa versão, as fundações morais
poderiam ser explicadas mais genericamen-
Considerações finais te em termos de preparação (preparedness).
Haidt sustenta que características humanas
A capacidade para fazer julgamentos canalizadas garantem que a moralidade se
morais surge muito cedo e de forma robus- desenvolva e conserve certas características
ta em diversos ambientes. Essa facilidade de mesmo em diferentes ambientes.
aprendizado sugere que o cérebro humano A teoria de Haidt sofre ainda críticas em
está de alguma forma preparado para apren- razão de sua incompletude. Ela não fornece
der normas morais. Além disso, as normas uma explicação para as etapas mentais pré-
morais existentes nas diferentes comunida- vias ao desencadeamento das intuições e,
des que conhecemos se agrupam em torno nesse sentido, parece ignorar que só é possí-
dos mesmos temas. Esses fatos constituem vel que uma ação produza determinada intui-
indícios fortes em favor da existência de uma ção após aquele que a percebe ter formado
base biológica responsável por produzir cer- algum tipo de representação. Portanto, em
tos vieses no aprendizado moral. sua versão amena, a TFM oferece uma expli-
A TFM, proposta por Haidt, tem o méri- cação plausível para os julgamentos morais,
to de incluir certas características psicológicas mas falha ao não oferecer uma explicação a
típicas da espécie humanas, como as nossas respeito do papel que inferências a respeito
disposições emocionais, na explicação sobre das intenções e dos estados mentais do autor
a nossa capacidade para julgar moralmente. da ação desempenham no desencadeamento
das intuições morais.

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SOBRE O AUTOR

Roger Valério de Vargas Rex


Mestre em Filosofia pela Universidade de Brasília (2016). Especialista em Direito Constitucional.
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011).
Ex-Professor voluntário da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e integrante do
Grupo de Pesquisa Mente, Linguagem e Evolução.
E-mail: rogervargasrex@gmail.com

Recebido em: 25/09/2017


Aprovado em: 30/01/2018

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