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Jose Carlos de Assis

Economista, doutor em Engenharia de Produção pela Coppe-UFRJ,


professor de Economia Internacional da UEPB

A gigantesca pedalada orçamentária de Guedes


Um governo decente deveria atacar também o estoque da dívida, acumulado durante

décadas de expropriação de recursos da sociedade e do Estado sob patrocínio do Banco

Central

8 de setembro de 2019, 04:44 h


A previdência dos militares e o 'sacrifício' de Paulo Guedes (Foto: S…RGIO CASTRO)

Deputados e senadores que aprovaram a reforma da Previdência se convenceram de que


isso era necessário porque o Brasil está quebrado, e por isso precisa equilibrar suas
contas mesmo que com grande sacrifício. Uns poucos deles tem boa fé. Outros, má fé.
Parte é desinformada. Mas um grande número foi na onda do governo, que inventou o
número mágico de um trilhão de reais como sendo o déficit previdenciário que é preciso
que seja coberto em dez anos.

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Esse dinheiro sairá do bolso de quem já está aposentado ou obtendo pensões, e dos que

ainda vão se aposentar ou se tornar pensionistas, além de outros beneficiários da

Seguridade. Em síntese, será uma expropriação de trabalhadores mais pobres e mais

necessitados, na sua fase final de vida. Mas não quero tratar disso do ponto de vista

moral. Quero tratar do ponto de vista estritamente técnico, financeiro, a partir dos

grandes números do orçamento federal.

Primeiro precisamos distinguir entre orçamento nominal e orçamento primário. O

orçamento nominal, que é o orçamento global, inclui todas as contas do governo, tudo

aquilo que o governo recebe e paga num ano por conta da compra de bens e serviços, e

do pagamento do serviço da dívida pública (juros e amortização). Já o orçamento

primário apresenta os pagamentos e recebimentos do governo, porém sem incluir o

serviço da dívida pública.

Observa que já nisso tem uma malandragem. Por que separar o orçamento primário do

orçamento nominal? Essa separação remonta aos anos 80, em plena crise da dívida

externa. Por força de juros externos astronômicos, nossa conta de juros e amortização

tornou-se impagável. Se o serviço da dívida fosse apresentado junto com o orçamento

primário, ficaria evidente que não tínhamos como pagar, independentemente de ajuste

fiscal. O conceito de orçamento primário ajudou o governo a escolher onde cortar na

hora do ajuste fiscal.

A novela da dívida externa seguiu um curso tortuoso: virtual quebra em 1982,

embromação altamente onerosa durante 12 anos, acordo em 1994 com um desconto de

30 a 40%. Aí pudemos começar a pagá-la com saldos comerciais (dólares). Acontece


que ao longo do processo de acumulação da dívida externa o Banco Central fez uma

dívida interna paralela para “controlar” a inflação. Nesse caso não houve acordo. E o

BC tem pago religiosamente.

Vamos em números agora, para avaliar se os parlamentares que votaram na reforma

previdenciária porque é preciso tirar o Brasil da condição de quebrado tem razão. O

orçamento geral da União em 2018 foi de R$ 2,6 trilhões. A principal responsabilidade

que o Estado tem com a cidadania é atender a suas demandas sociais mais

fundamentais, a saber, previdência, saúde e assistência, englobadas no conceito de

seguridade social.

A conta da seguridade, em 2018, chegou a R$ 816 bilhões. Alta?, certamente que não.

Nem em termos absolutos, nem em termos relativos. É que temos um país gigantesco

com 211 milhões de habitantes, a maioria pobre, dependente dos sistemas de saúde,

previdência e assistência; e um PIB de cerca de R$ 8 trilhões. Mas ao lado disso,

inacreditavelmente, estamos pagando no mesmo ano a esmagadora quantia de R$ 1

trilhão 651 bilhões de juros e de rolagem de amortização, praticamente o dobro da

despesa de seguridade. Acaso este é um país quebrado?

Considerando que o governo, como regra, não paga amortização da dívida, mas rola,

não há muito o que preocupar com o estoque dela, a não ser no contexto de uma

auditoria. Isso significa que o maior impacto do endividamento é em relação aos juros.

Se a taxa de juros for reduzida para níveis internacionais, a conta cairia drasticamente,

arrastando para baixo o serviço da dívida e abrindo espaço para financiamento decente

da seguridade sem o achaque do trilhão. E tudo isso sem apelar para a pedalada fiscal

preventiva de R$ 248 bilhões que Paulo Guedes impôs ao Congresso a título de

autorização de aumento da dívida.


Mas um governo decente deveria atacar também o estoque da dívida, acumulado

durante décadas de expropriação de recursos da sociedade e do Estado sob patrocínio do

Banco Central privatizado: seguiria as recomendações dos especialistas em dívida

pública Maria Lucia Fatorelli e Paulo Lindsey, grandes heróis nessa empreitada, e

realizaria imediatamente uma auditoria da dívida pública interna.

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