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Gestao Da Monstruosidade Os Corpos Do Ob PDF
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SOCIOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL
NO BRASIL E NA ARGENTINA
2
Maria da Gloria Bonelli
Martha Diaz Villegas de Landa
(Orgs.)
SOCIOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL
NO BRASIL E NA ARGENTINA
3
Copyright © dos autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores.
Maria da Gloria Bonelli & Martha Diaz Villegas de Landa [Orgs.)
Sociologia e mudança social no Brasil e na Argentina. São Carlos:
Compacta Gráfica e Editora, 2013. 340p.
ISBN 978‐85‐88533‐74‐5
1. Sociologia. 2. Mudança Social. 3. Mudança Social no Brasil. 4. Mudança
Social na Argentina. I. Título.
CDD – 300 e 320
Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira
Editor: José Marino
Tradução do espanhol de Beatriz Medeiros de Melo e Deise Mugnaro.
Compacta Gráfica e Editora
São Carlos – SP
2013
4
SUMÁRIO
Apresentação 7
Maria da Gloria Bonelli e Martha Diaz Villegas de Landa
Parte I
Raça, identidade e contingência: esboço para uma reflexão das 19
experiências latino‐americanas
Maximiliano Gaviglio
Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas 33
preliminares sobre a experiência contemporânea brasileira
Valter Roberto Silvério
O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil 61
André Ricardo de Souza, María Candelaria Sgró Ruata e Maximiliano
Campana
Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi 89
María Inés Landa, Jorge Leite Jr. e Andrea Torrano
Parte II
Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes 135
demandas de reconhecimento no Brasil e na Argentina
Richard Miskolci e Maximiliano Campana
A construção de identidades homossexuais na advocacia 161
paulista: uma abordagem sociológica de profissionalismo e
diferença
Dafne Araújo e Maria da Gloria Bonelli
As mulheres na magistratura: comparações entre Argentina e 185
Brasil
Camila de Pieri Benedito e Maria Eugenia Gastiazoro
Participação popular e legitimidade judicial: sobre o julgamento 215
por júri
María Inés Bergoglio
5
Parte III
Políticas urbanas e habitacionais e seus efeitos sociais. 241
Um estudo do Programa “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e
na Argentina
María Alejandra Ciuffolini e Lúcia Zanin Shimbo
A tradução contemporânea das demandas populares 271
(ou do conflito que emerge do universo popular) nos espaços
públicos: o caso do Córdoba, Argentina
Gerardo Avalle
Territórios e populações marginais em tempo de 295
desenvolvimento: modos de gestão do conflito social no Brasil
contemporâneo
Gabriel de Santis Feltran
Por uma sociologia das narrativas sobre o meio ambiente 315
Rodrigo Constante Martins
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Apresentação
Este livro resulta da cooperação internacional promovida pela
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino
Superior) e pela CONEAU (Comisión Nacional de Evaluatión y
Acreditación Universitária), da Argentina, denominada Centros
Associados para o Fortalecimento da Pós‐Graduação, entre o Programa
de Pós‐Graduação em Sociologia, da Universidade Federal de São
Carlos e a Maestria em Sociología, da Universidad Nacional de
Córdoba. Várias missões de trabalho e de estudo foram realizadas entre
2011‐2014 possibilitando o desenvolvimento de análises comparadas e
da consolidação de grupos de pesquisa com participação de docentes e
discentes brasileiros e argentinos.
Essas interlocuções se materializam nos capítulos deste volume,
que abordam sociologicamente as mudanças sociais no Brasil e na
Argentina contemporâneos. São doze trabalhos organizados em três
unidades. A primeira delas “Cultura, diferença e desigualdade” reúne
análises sobre as ressignificações do conceito de raça no contexto latino‐
americano; sobre a biopolítica da monstruosidade e de corpos que
fogem da norma; e sobre o ativismo cristão na Argentina e no Brasil.
A segunda unidade aglutina estudos que abordam as profissões
jurídicas, seja sobre o impacto dessa formação na atuação dos
advogados e do reconhecimento à diferença, seja sobre a participação
das mulheres e da diversidade sexual nas carreiras jurídicas, seja sobre
o sistema de jurado na Argentina, que introduz a participação popular
visando a democratização do funcionamento da justiça.
A terceira parte focaliza os temas de políticas públicas,
conflitualidade, desigualdade social e apropriação mercantilizada de
recursos naturais e sociais. A partir das particularidades desta temática,
os capítulos agrupados nesta parte se caracterizam por compreender a
problemática que a envolve enquanto externalidades da lógica
capitalista, que se revela nos diferentes processos de produção e
reprodução social que têm lugar tanto na Argentina e no Brasil. Discute‐
7
se, desse modo, as políticas de habitação popular no Brasil e na
Argentina, as narrativas sobre a questão ambiental e os problemas
relativos ao uso e acesso à agua, o controle do espaço público e os
conflitos sociais por territórios e espaços urbanos e como tais questões
expressam dinâmicas de inclusão/exclusão, segmentações socioespaciais
e racionalizações próprias da, e compatíveis com a, lógica do mercado.
Abrindo a primeira unidade Maximiliano Gaviglio apresenta a
discussão sobre o conceito de raça e o uso do termo na Argentina, com o
intuito de destacar a complexidade semântica que este adquire no
contexto latino‐americano, enfatizando não só o que há de comum, mas
principalmente as especificidades das representações locais e regionais.
Indo mais além das polêmicas em torno dos significados usuais e
acadêmicos da palavra raça, e das classificações de corpos e sujeitos que
ela produz, o autor soma‐se às abordagens que criticam a
fundamentação genética e essencialista da ideia de raça. Ele entende o
conceito como “uma construção social historicamente contingente cujo uso
deve ser concebido em relação a práticas discursivas e materiais concretas
que, desde o terreno do imaginário e o simbólico, aludem a processos
mais amplos de construção de identidades sociais” (p. 24).
Gaviglio destaca que embora as representações sobre o cadinho
de raças, o crisol de raças, a fábula das três raças nos contextos
argentino e brasileiro pareçam semelhantes, tais fenômenos não são
idênticos e precisam ser interpretados à luz de suas diferenças, já que tal
percepção resulta de discursos hegemônicos de produção de
identidades nacionais.
No segundo capítulo Valter Roberto Silvério detém‐se no debate
sobre racialização com o objetivo de vinculá‐lo às mudanças operadas
na forma como a sociedade brasileira se auto‐representa. Da
representação hegemônica que assimilava as raças pela democracia
racial, a identificação no Brasil comportaria agora a diferença étnico‐
racial. No argumento do autor, esse fenômeno é “decorrente do
processo de luta política pela (res) significação / deslocamento do lugar
do ser negro no processo de racialização de sua experiência coletiva” (p.
49).
Na fundamentação de um conceito que se contraponha ao reino
biológico, Silvério apóia‐se na construção teórica de Winant (1996) sobre
8
a formação racial, enfatizando três determinações sociais no conceito de
raça: a dimensão política, a global comparativa e a histórico‐temporal.
Com esta abordagem, mostra como o movimento negro atuou para que
a visão do Brasil como uma comunidade imaginada homogeneamente
desse lugar a uma comunidade que se imagina diversa culturalmente.
Assim, analisa as políticas públicas de igualdade racial, de educação
étnico‐racial, de relações globais sul ‐ sul e da política externa brasileira
com a diáspora africana.
No terceiro capítulo, André Ricardo de Souza, María Candelária
Sgró Ruata e Maximiliano Campana contrastam a conformação do
campo religioso no Brasil e na Argentina, analisando o ativismo político
cristão. O catolicismo tem peso demográfico e jurídico maior na
Argentina, com 76,5%, preservando vínculos com o Estado, enquanto o
protestantismo fica na casa dos 9%. No Brasil, o catolicismo segue
retraindo sua porcentagem na população, com 64,6% enquanto os
evangélicos crescem em ritmo acelerado representando 22,2%.
Os autores observam que “em ambos os países os segmentos
católicos e evangélicos se posicionam no espaço público, mediante
manifestações organizadas e militância político‐partidária tanto na
defesa de seus interesses como de seus valores doutrinários” (p. 64).
Eles demonstram como as questões de moral sexual estão atualmente
na essência da mobilização do ativismo cristão, de católicos e
evangélicos.
No quarto capítulo, Maria Inés Landa, Jorge Leite Jr. e Andrea
Torrano tratam da biopolítica da monstruosidade sobre os corpos que
se distanciam da normatividade, como aqueles classificados de
obesidade epidêmica, na perspectiva biomédica, ou os zumbis, na
ficção. O texto detalha como cada época engendra seus monstros,
fenômeno que fala sobre as irregularidades imagináveis, expressando as
transgressões da fronteira do propriamente humano. Os autores
querem destacar como a análise do corpo obeso e do zumbi contrastam
com os discursos tradicionais sobre a monstruosidade, que convertiam
o monstro em alteridade absoluta do humano. Esse monstro atual é um
“interior externalizado” do humano, que está en(tre) nós.
9
“O obeso e o zumbi seriam manifestações de corpos que perdem sua
forma humana, no primeiro caso, por descuido, no segundo, por
decomposição; o obeso encarna a enfermidade do corpo constituindo‐se
em um perigo contra os princípios sanitário‐empresariais, enquanto que
o zumbi perde toda possibilidade de redenção, seu corpo evoca um
estigma do corpo corrompido e corruptor” (p. 95).
A obesidade epidêmica indicaria a monstruosidade do corpo
humano e o zumbi representaria a humanidade do monstro, corpo
humano em decomposição borrando as fronteiras entre o humano e o
monstruoso.
O quinto capítulo, que abre a segunda parte do livro, é de
autoria de Richard Miskolci e Maximiliano Campana. Eles analisam o
impacto da formação tradicional em Direito sobre os litígios voltados
para impulsionar mudanças sociais, como a agenda contemporânea
pelo reconhecimento à diferença. O argumento dos autores é que as
práticas que buscam nos tribunais a ampliação de direitos difusos e de
equidade para minorias encontram barreiras nos próprios valores
partilhados na socialização profissional jurídica, que se inicia no curso
superior. Assim, analisam como as motivações por um ideal social e
humanitário de justiça que impulsionam algumas das escolhas
estudantis pela formação em Direito vão, ao longo da faculdade, dando
lugar a uma concepção formal e instrumental de justiça, baseada no
ideário da neutralidade que predomina no profissionalismo.
Neste sentido, destacam a distância entre a atuação e os valores
da base do grupo profissional da advocacia com as decisões dos
tribunais superiores, que têm impulsionado alguns dos direitos que
reconhecem diferenças, como o do casamento homossexual na
Argentina e o princípio constitucional que valida a ação afirmativa na
modalidade cota no Brasil.
Apontando as possibilidades de transformação da formação
acadêmica, voltando‐se a uma perspectiva educacional dialógica e
reflexiva, Miskolci e Campana abordam como o reconhecimento à
diferença amplia essa mudança superando as limitações que
consideram persistir na concepção da diversidade.
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“Distinguir entre diferença e diversidade exige abandonar uma
concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela
para uma concepção horizontalizada de relações em que se afasta o
conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença
é algo incomensurável, mas potencialmente mais democrático e
promissor. Uma perspectiva informada pelas diferenças pode
questionar e até modificar hierarquias, colocar em diálogo os
subalternizados com o hegemônico de forma, quiçá, a mudar a ordem
que mantém e reproduz desigualdades” (p. 155‐156).
No sexto capítulo, Dafne Araújo e Maria da Gloria Bonelli
analisam as continuidades e as mudanças que vêm ocorrendo na
advocacia paulista, no que diz respeito ao profissionalismo e à
diferença. Focalizando a diversidade sexual, abordam situações de
trabalho nas quais as intersecções entre a identidade profissional, de
gênero e sexual se entrecruzam de formas distintas. Contrastam as
experiências de atuação jurídica no Grupo de Advogados pela
Diversidade Sexual com a de advogados gays que exercem a advocacia
em escritórios e sociedades de advogados. No primeiro caso, observam
como a identidade homoafetiva cruza a profissionalização, resultando
em redirecionamento para prática na especialidade dos direitos LGBT.
Segundo elas:
“A força da identificação sexual configura o caminho profissional,
mostrando uma interseção na qual se busca reconhecimento para o
valor de sua expertise, rejeitando a desqualificação de seu saber com a
reconversão de seu capital jurídico para a atuação na especialidade dos
direitos homoafetivos” (p. 182).
No segundo caso, registram como os advogados gays que não
fazem essa reconversão, atuando nos escritórios que lidam com as
demais especialidades jurídicas, sentem o estigma e as pressões dos
pares para manterem a sexualidade invisível.
“Os profissionais gays, envolvidos ou não em lutas contra a
discriminação sexual apagam as marcas dessa diferença ao agirem em
sintonia com esse valor normativo, que coloca em pólos opostos a vida
profissional e a intimidade, mantendo no armário sua
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homossexualidade. Nestes casos, a intersecção entre identidades fica
sujeita ao predomínio do status profissional perante o estigma da
diferença sexual” (p. 182).
No sétimo capítulo, Benedito e Gastiazoro realizam uma análise
comparada da inserção profissional de mulheres na magistratura
brasileira e argentina, e das percepções sobre gênero nessas carreiras do
Judiciário. Elas partem de abordagens teóricas distintas, mas chegam a
conclusões que dialogam entre si, com semelhanças na estratificação
marcada pelo gênero. No caso de Córdoba, embora a segregação
horizontal tenha diminuído em relação ao passado recente, ainda existe
alguma diferença nessa distribuição com maior participação de homens
na área penal, o que diminui na área civil e comercial. Nas
magistraturas estadual e federal paulistas não foram observadas
segmentação de gênero, com juízes e juízas atuando na justiça civil e
criminal. A justiça do trabalho que é mais feminina, não foi analisada
nessa pesquisa.
Quanto à segregação vertical, observou‐se forte estratificação
por gênero no judiciário estadual paulista, mas bem menos acentuada
no judiciário federal de São Paulo. A explicação dada por elas é o maior
insulamento da carreira decorrente da consolidação do profissionalismo
antes do ingresso feminino na magistratura estadual, o que não se
passou na justiça federal. Assim, o fechamento generificado teria sido
maior no Tribunal de Justiça de São Paulo, do que no Tribunal Regional
Federal. Na Argentina, a segregação vertical foi observada em todos os
foros.
As autoras chegam à seguinte conclusão sobre a relação entre
profissionalismo e gênero:
“A implementação de sistemas meritocráticos pode ter efeito positivo
para a redução das desigualdades de gênero, porém tais sistemas são
mais exigentes com as mulheres, inseridas numa sociedade na qual
persiste a divisão sexual do trabalho, o que faz com que as diferenças
de gênero se estanquem no interior de uma profissão na qual a
proporção de graduadas é cada vez maior” (p. 211).
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O oitavo e último capítulo da segunda unidade é um estudo de
Maria Inés Bergoglio sobre a implantação do sistema de júri na
Argentina, com objetivo de ampliar a participação popular na justiça e a
legitimidade judicial. A pergunta que a autora se coloca é se o objetivo
de aumentar o reconhecimento popular de um judiciário marcado pela
baixa confiança da população na justiça, foi alcançado com os
‘Julgamentos por júri’. Para tanto, ela pesquisa a participação leiga em
tribunais mistos, que foram criados em Córdoba, a partir de 2005, na
esfera penal, combinando a atuação profissional com a dos jurados.
Para tanto, ela compara pesquisas de opinião pública realizadas entre
1993 e 2011, analisando as mudanças de atitude em relação aos juízes e
aos jurados.
Em síntese, Bergoglio conclui que:
“Embora já exista evidência de que aqueles que têm atuado como
jurados melhoram sua opinião sobre o funcionamento da justiça, por
enquanto o caráter limitado da experiência cordobesa sugere que seus
efeitos sobre a legitimidade judicial na cidadania geral podem ser
muito fracos ainda.” (p. 215).
A terceira parte do livro começa com uma análise comparativa
das políticas de habitação social implementadas na cidade de Córdoba‐
Argentina e várias áreas urbanas do Brasil, no âmbito do programa
ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, de caráter estadual no primeiro caso, e de
âmbito nacional no segundo. As autoras Maria Alejandra Ciuffolini e
Lúcia Zanin Shimbo esclarecem que, embora os respectivos programas
tenham a mesma denominação em ambos os países, eles diferem no que
respeita aos beneficiários aos quais os programas se dirigem, aos
mecanismos de implementação e à extensão territorial de aplicação. O
Programa “Minha Casa, Minha Vida” foi lançado em 2009 no Brasil,
quase uma década depois do programa homônimo implementado em
Córdoba. O propósito das duas autoras é caracterizar tais programas,
destacando semelhanças e diferenças e, sobretudo, reconhecer o
impacto dessas políticas nas relações sociais e processos de subjetivação
a que dão lugar. Este dado, já observado no caso argentino, por tratar‐se
de um programa mais antigo, poderá replicar em um futuro próximo no
Brasil – em função da própria lógica do programa brasileiro.
13
O texto do capítulo nono está dividido em duas seções: a
primeira sobre o caso de Córdoba‐Argentina, e, a segunda, sobre o caso
brasileiro. Ambas as seções dedicam sua primeira parte à descrição das
políticas habitacionais que incorporam os programas estudados,
enquanto que a segunda parte se ocupa da análise crítica do produto de
tais políticas e de seu impacto urbano e social.
A conclusão mais geral que as autoras destacam para cada caso
se resume nos seguintes parágrafos:
(Programa Córdoba‐Argentina) “... favorece um tratamento ágil e
focalizado dos problemas, em detrimento de uma ação integral que
ofereça soluções ao complexo fenômeno da pobreza. Assim, o PMCMV
atende prontamente a questão da falta de moradia, mas reproduz, em
seu desenho, as formas de exclusão a ela associadas. Nesse sentido,
vale destacar a intensificação da segregação espacial. Isso ocorre
porque o programa opera um deslocamento geográfico dos pobres
para as margens da cidade, agravando outras situações de exclusão,
como as de emprego, de acesso a serviços básicos, como saúde e/ou
transporte, etc. Consequentemente, criam‐se novos ou reforçam‐se
velhos padrões de desigualdade e de acesso e uso da cidade (p. 249).
(Programa‐Brasil) “... não procura constituir propriamente uma
política de habitação, que estaria centrada numa lógica universal dos
direitos e que pautariam o conteúdo normativo da política pública (...).
Trata‐se, genericamente, de “um programa de crédito tanto ao
consumidor quanto ao produtor”, (...). Portanto, os parâmetros
financeiros e a solvabilidade do sistema importam muito mais do que o
conteúdo universalizante da política e a articulação com a produção da
cidade ‐ que requisitaria uma abordagem integrada entre política
habitacional, política urbana, política fundiária e política social.” (p.
261‐262).
Gerardo Avalle introduz o décimo capítulo “A tradução
contemporânea das demandas populares (ou do conflito que emerge do
universo popular) nos espaços públicos: o caso do Córdoba, Argentina”,
sugerindo que essas expressões denunciam o pano de fundo de
inclusão/exclusão que se manifesta em cada sociedade, bem como
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evidenciam as tensões que se escondem nas formas em que as
demandas são processadas pelos dispositivos governamentais.
Através do percurso histórico‐político dos últimos 20 anos, de
processos de demandas populares por emprego, alimentação e moradia
na Argentina e particularmente em Córdoba, recuperado a partir do
relato de atores dos setores populares, Avalle pretende testemunhar a
afirmação de que ʺA gramática popular adverte sobre o avesso de uma
política de (des)igualdade (p. 272)ʺ. Em outros termos, e utilizando
novamente as palavras do autor, ʺa inscrição dos sujeitos nos espaços
públicos e as demandas por maior igualdade enfrentam‐se com um
risco permanente de desativação política e inclusão degradada na
linguagem da cidadaniaʺ. (p. 272)
O capítulo está organizado em três seções. A primeira reconstrói,
a partir da percepção dos setores populares, a dinâmica política
argentina que, impulsionada pelo projeto neoliberal, atravessa os anos
90 para desembocar na crise de 2001. E se debruça, particularmente,
sobre o projeto político emergente a partir de 2003. A segunda seção
aponta para o surgimento de novos atores coletivos como consequência
da crise de 2001. Por fim, analisa a ação do Estado e das organizações
populares, focalizando seus desdobramentos na província de Córdoba.
O autor conclui, fundamentalmente, que, tomadas as políticas
públicas a partir da perspectiva dos setores populares, uma dentre suas
consequências, independentemente do objetivo que tais políticas
perseguem, é a desativação da mobilização e iniciativa popular, já que
estas representam um risco, uma ameaça ao controle que o governo
busca exercer sobre essas populações. Empreende‐se, a partir do Estado,
uma nova técnica de gestão, mais estável, mas que não necessariamente
oferece maiores garantias de direitos.
“O cenário que se apresenta, então, é de uma dupla aprendizagem,
onde o Estado toma as lutas e a organização popular como doutrinas, e
aquelas fazem de sua prática e da relação com o Estado uma caixa de
ferramentas e um estado de coisas que estabelece permanentemente
novos pontos de partida e instâncias de demandas (...) que permitem
(...), escapar à desativação (...) ʺ(p. 291).
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O décimo primeiro capítulo, de autoria de Gabriel de Santis
Feltran, discute a relação paradoxal entre conflitividade social e as
transformações sociais e econômicas induzidas pelo significativo
desenvolvimento econômico ocorrido nas últimas décadas no Brasil. O
objetivo deste ensaio é revelar questões analíticas, teóricas,
metodológicas e políticas implicadas na gestão e compreensão
contemporânea da existência e das práticas das populações marginais
no Brasil urbano. O autor realiza tal discussão partindo de observações
etnográficas de grupos urbanos composto por: i) adolescentes e jovens
inscritos em atividades criminosas, moradores de bairros das periferias
urbanas; ii) moradores de rua; iii) prostitutas localizadas nas cidades de
São Paulo e Rio de Janeiro.
As constatações tomadas de investigações já concluídas, que são
a base do ensaio “Territórios e populações “marginais” em tempos de
desenvolvimento”, e a revisão bibliográfica que as informam, orientam
a revisão crítica dos três eixos tomados pelo estudo, bem como a
observação e a formulação de políticas públicas relacionadas à
marginalidade.
Um primeiro eixo, de caráter teórico‐metodológico, gira em
torno do sentido atribuído às noções de marginalidade, e sua associação
com termos tais como a pobreza, desordem, incivilidade, imoralidade,
violência, marginalidade, criminalidade.
Uma segunda questão “... é aquela que percebe as dinâmicas
sociais e políticas dos setores populares a partir da mudança, da
transformação, registrada empiricamente pelos mais variados métodos –
das pesquisas por questionário ao georreferenciamento, das buscas por
trajetórias individuais às que procuram captar transformações
estruturais no Estado ou na economia” (p. 305‐306).
Por fim, o ensaio problematiza a contradição que gera a própria
presença do Estado nos territórios marginais, a qual contribui para a
construção de uma série de bipolaridades sociais a partir das quais se
reforçam a exclusão, o mascaramento e a reconfiguração da pluralidade
que se expressa nos territórios marginais.
Encerra o conteúdo da terceira parte o trabalho “Por uma
sociologia das narrativas sobre o meio ambienteʺ, de Rodrigo Constante
Martins. O capítulo analisa as narrativas hegemônicas acerca do uso e
16
acesso aos recursos hídricos, num contexto de narrativas em disputa
sobre a explicação e as consequências da atual crise ambiental. O
crescente interesse pela difusão e aplicação de instrumentos econômicos
de gestão ambiental é uma preocupação emergente, nacional e
internacional, por implementar estratégias eficazes para regular o
consumo social da água.
O propósito do capítulo é interpretar criticamente a narrativa
que subjaz e sustenta a confiança nas regulações e disposições contidas
nos instrumentos econômicos de gestão ambiental. Na primeira parte
do texto são descritas experiências nacionais de gestão da água, em
particular a brasileira. Na segunda, se discute os pressupostos teóricos
que justificam as narrativas produzidas pelos especialistas da economia
da água. Aprofundando os aspectos críticos da narrativa hegemônica de
regulação do uso e do acesso à água, baseada nos princípios de uma
economia política fundada no neoclassicismo marginalista, o autor
atenta, nas últimas duas partes do capítulo, para as noções de ʺofertaʺ,
ʺescassezʺ e ʺgestãoʺ do recurso.
Martins conclui sua análise destacando que um dos pontos
cruciais no tocante às orientações que adotam atualmente a gestão da
água é que “... há sempre uma intencionalidade simbólica corporificada
no código de recursos socialmente desejáveis” (p. 335)., e o fato de que a
água, como recurso natural, é também um recurso simbólico no qual se
condensam diversos sentidos – extrapolando sua redução excludente
enquanto bem econômico – que variam de acordo com diferentes
grupos e sociedades.
Os doze trabalhos que compõem este livro mostram como os
diálogos entre o Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da UFSCar
e a Maestria en Sociología da Universidad Nacional de Córdoba
caminham na trilha do mútuo reconhecimento, para a consolidação da
produção acadêmica latino‐americana e das relações institucionais sul –
sul, o que no caso da Sociologia representa a pluralização do modelo
hegemônico da internacionalização norte‐sul.
Outros colegas em São Carlos e em Córdoba participam do
programa “Centros Associados para o Fortalecimento da Pós‐
Graduação”, colaborando para o avanço do conhecimento sociológico
comparado sobre a mudança social no Brasil e na Argentina, mas não
17
puderam participar deste volume. Agradecemos a eles e a elas as
oportunidades de interlocução em outras atividades, como as missões
de trabalho e estudo que resultaram em uma compreensão mais
aprofundada das semelhanças e das especificidades regionais e locais.
Registramos nossos agradecimentos ao acolhimento das
coordenadoras do PPGS e da Maestria en Sociología, bem como ao
apoio das secretarias dessas unidades para que as missões se
viabilizassem. Institucionalmente, a cooperação da Universidade
Federal de São Carlos e da Universidad Nacional de Córdoba tornaram
viável a realização do projeto, que só pode ser executado devido a essa
recepção positiva. Contamos também com a pronta atenção dos técnicos
da CAPES e da CONEAU no atendimento das várias solicitações,
inclusive aquelas que viabilizaram a organização deste livro.
Finalmente, agradecemos aos colegas que contribuíram com suas
pesquisas e análises para dar vida a este volume, e aos profissionais que
nos ajudaram com os trabalhos de tradução, revisão, e edição.
Maria da Gloria Bonelli e Martha Diaz Villegas de Landa
Coordenadoras do CAFP e organizadoras do livro
18
PARTE I
Raça, identidade e contingência:
esboço para uma reflexão das experiências latino‐americanas
Maximiliano Gaviglio1
ʺos animais são divididos em a] pertencentes ao
imperador, b] embalsamados, c] treinados, d] leitões, e]
sereias, f] fabulosos g] cães vadios, h] incluídos nesta
classificação, i] que se agitam como loucos, j] inumeráveis,
k] desenhados com um pincel muito fino de pêlo de
camelo, l] etcétera ʺ, m] que acabaram de quebrar o jarro,
n] que de longe se parecem com moscas”. Jorge Luis
Borges. ʺEl idioma analítico de John Wilkinsʺ, Otras
inquisiciones, 1960.
No prefácio de ʺAs palavras e as coisasʺ Michel Foucault (1995)
admite que foi essa inverossímil e inquietante taxonomia que o inspirou
a refletir sobre as possibilidades do conhecimento humano. Para além
da simpatia que provoca o absurdo (e sem pretender cair nos excessos
de um esteta), esta referência nos resulta verdadeiramente útil para
iniciar uma reflexão sobre o tema que nos ocupamos: a categoria ʺraçaʺ
como uma forma de classificação (de corpos e sujeitos) e suas
representações na América Latina.
1. Introdução
Se tivéssemos que começar com uma pergunta, o mais sensato
seria questionar‐nos a respeito do que falamos quando falamos de
1 Licenciado em Comunicação Social (Escola de Ciências da Informação – Universidade
Nacional de Córdoba); colaborador vinculado às cadeiras de ʺComunicação em
Publicidade e Propagandaʺ e ʺWorkshop de Imagem Institucionalʺ do curso de
Comunicação Social (ECI‐UNC). Atualmente está finalizando um mestrado em
Sociologia no Centro de Estudos Avançados da Universidade Nacional de Córdoba.
19
ʺraçaʺ? E estou seguro que, se a pergunta fosse realizada em um
auditório, surgiria um sem‐número de acordos e desacordos parciais
(ou, talvez, totais). Por evocar um universo de significação amplo, o
termo ʺraçaʺ nos surge como um termo problemático que pode suscitar
um sem‐número de leituras possíveis em relação direta com os
contextos em que ele tem lugar: se trata de uma categoria contingente
que, longe de ser concebida em termos essencialistas, manifesta‐se de
modo distinto em discursos historicamente situados.
Para facilitar o desenvolvimento de meu argumento, abordarei
alguns dos usos do termo, a fim de apresentar de maneira breve uma
série de critérios e definições teóricas que nos permitem definir pautas
(ou nós problemáticos) a partir dos quais seja possível analisar a
complexidade semântica da ideia em questão em relação à experiência
latino‐americana.
Para começar, podemos tomar uma série de definições formalizadas,
tais como as estabelecidas pela Real Academia Espanhola:
Raça (“raza”): (Do lat. *radĭa, de radĭus).
1. f. Casta ou qualidade de origem ou linhagem.
2. f. Cada um dos grupos nos quais se subdividem algumas espécies
biológicas e cujas características diferenciais são perpetuadas por
herança.
3. f. Fenda, rachadura.
4. f. Raio de luz que penetra por uma abertura.
5. f. Rachadura que às vezes se forma na parte superior do capacete
das cavalarias.
6. f. Lista, em pano ou outra tela, em que o tecido está mais claro do
que no resto.
7. f. Qualidade de algumas coisas, em relação a certas características
que as definem2.
Um dos usos ou acepções mais comum ou ao menos mais
reconhecida ‐ a definição número 2 ‐ é aquela que é utilizada pela
biologia para designar grupos nos quais se subdividem algumas
espécies biológicas a partir de uma série de características que são
transmitidas por herança genética. Esta maneira de conceber a “raça”
2 Real Academia Española, http://buscon.rae.es/draeI/. Acessado em: 17/02/13.
20
teve, na esteira das discussões da antropologia física (que tentou definir
os critérios de conhecimento do social a partir do paradigma das
ciências naturais), uma influência notável no pensamento social do
século XIX, dando lugar a um sistema de classificação por meio do qual
se pretendeu ordenar e interpretar as diferenças visíveis ‐ fenotípicas e
socioculturais ‐ da espécie humana. Como conceito analítico, essa ideia de
ʺraçaʺ passou a obscurecer a diversidade cultural (que era diluída,
reduzida ou, diretamente, ignorada) em detrimento das características
biológicas ‐ e sobretudo as fenotípicas ‐, naturalizando a divisão de
grupos sociais diferenciados sobre a base de critérios frequentemente
estigmatizantes que se presumiam como condições invariáveis (como
uma forma de sentença genética).
Se retomamos a ideia de contingência histórica e identificamos a
ciência como uma leitura que emerge no e para o Ocidente, podemos
dizer que a gênese do conceito de ʺraçaʺ, enquanto categoria
socioanalítica, foi determinada pelo choque (encontro/desencontro) e
relação entre o ocidental e o não‐ocidental (como transformação ou
cristalização da tensão que, durante os diferentes períodos de conquista,
se estabeleceu entre o europeu e o não‐europeu). Neste sentido,
podemos definir uma interrogação ‐ Por que eles não são como nós? ‐ como
forma de problematizar a diversidade humana enquanto conflito ou
tensão entre a cultura ocidental e as culturas orientais, médio‐orientais,
africanas e americanas (em toda a sua amplitude)3.
Mas o termo não foi gestado exclusivamente a partir do campo
científico, a problematização da diferença e da diversidade constitui
uma preocupação que vem se erguendo durante séculos. No Antigo
Testamento – e em particular no livro do Gênesis ‐, por exemplo, é
3 Em princípio, esta preocupação teve seu desenvolvimento acadêmico mais acabado
nos denominados países ʺcentraisʺ da Europa (estendendo‐se, posteriormente, para os
Estados Unidos). Ou seja, naqueles países onde a ciência social como tal se gestou e se
consolidou, originaram‐se diferentes tradições teóricas que, à luz de seus próprios
paradigmas, se posicionavam como lugar central ‐ isto é, como espaço preferencial e
legítimo do debate acadêmico científico. Não obstante, à luz de situações posteriores ‐
como os processos de descolonização na África e Ásia, que tiveram lugar em meados
do século XX ‐, a inadequação dos esquemas tradicionais possibilitou que os
progressos acadêmicos sofressem um descentramento que permitiu o posicionamento
de estudos e investigações antes considerados periféricos (Slenes, 2010).
21
atribuída aos três filhos de Noé ‐ Sem, Cam e Jafé – a descendência das
raças branca, negra e amarela4. O conceito de raça, assim entendido, está
vinculado à definição número 1 ‐ ʺcasta ou qualidade da origem ou
linhagemʺ ‐, por meio da qual a comunidade dá forma a uma série de
discursos de origem que permitem afirmar a identidade do coletivo,
assumindo suas raízes comuns e suas diferenças em relação a outras
comunidades. Mas a relação quantidade/qualidade também se
manifesta de maneira explícita na definição número 7 ‐ ʺqualidade de
algumas coisas, em relação a certas características que as definemʺ. Esta
forma de identificar os atributos de raça de acordo com os critérios de
valor (qualidades desejáveis versus qualidades indesejáveis), embora
possa apelar ou não ao recurso de origem, nos permite definir a lógica
de diferenciação tanto como lógica de hierarquização social, quanto
como uma manifestação discursiva do estado de luta que caracteriza
uma determinada ordem social ‐ definida, particularmente, pela
distribuição de agentes posicionados ao redor de capitais e valores
disputados e distribuídos de forma desigual.
Com base nesta discussão, podemos inferir que, para além dos
significados acadêmico‐científicos, ʺraçaʺ é uma ideia cujo uso
generalizado carrega uma série de conotações ‐ e efeitos de sentido que
tem lugar na e pela experiência objetiva – que permitem pensar numa
lógica mais ampla através da qual, a partir do ideológico, certos grupos
pensam a si e aos outros, ou seja: outrificam (Segato, 2007). Será, portanto,
necessário elucidar o significado desta categoria em relação a ordens de
representação determinadas, que não apenas devem pôr em causa as
condições que subjazem e dão suporte aos discursos vernáculos enquanto
fundados na e para a prática5, mas que também deverão problematizar as
categorias socioanalíticas construídas no interior do campo científico,
posto que nenhum esquema de classificação pode ser esvaziado das lutas
4 “E tendo Noé quinhentos anos, gerou a Sem, a Cam e a Jafet”, Gênesis 5:32. A
denominação “semita” evoca a origem hebraica enquanto descendência de Sem.
5 Por ʺcategorias da práticaʺ, na direção de Bourdieu, entendemos algo próximo ao que
outros têm chamado categorias ʺnativasʺ, ʺfolclóricasʺ ou ʺcorrentesʺ: categorias da
experiência social cotidiana, desenvolvidas pelos agentes sociais, e que se diferenciam
das categorias da experiência distante, utilizadas pelos analistas sociais (Brubaker &
Cooper, 2001).
22
materiais e simbólicas que tem lugar entre aqueles que compartilham um
ou outro modo de classificação6.
Figura 1. Classificação das raças utilizadas no Censo dos EUA de 2010,
anexado às ʺNormas para a classificação dos dados federais sobre raça e etniaʺ
emitidas pela OMB7.
6 A frequente invocação da autoridade científica ‐ que permite construir uma ordem de
representações hegemônicas, na medida em que tem a possibilidade de ser
reconhecida como fonte de legitimidade – transforma em realidade e em razão o recorte
arbitrário que pretende impor (Bourdieu, 2006, p. 172). O ato de categorizar, em
relação a seus efeitos performativos, quando é reconhecido enquanto autoridade
passa a exercer poder por si mesmo e institui uma realidade: ʺo ato de magia social
que consiste em produzir a existência da coisa nomeada, em fazê‐la existir no ato
mesmo da enunciaçãoʺ.
23
2. Representação, experiência e história
Temos dito que uma vez rejeitada a ideia de ʺraçaʺ em sua
fundamentação genética ou essencialista, o conceito passa a ser
entendido como construção social historicamente contingente, cujo uso
deve ser concebido em relação a práticas discursivas e materiais concretas
que, a partir do campo do imaginário e do simbólico, aludem a
processos mais amplos de construção de identidades sociais. Como
categoria histórica, é resultado das lutas passadas que conjugam no
presente trajetórias e situações de exclusão prévias que, podendo
atenuar‐se ou radicalizar‐se, atualizam a luta de classes em discursos
culturalmente enraizados. Nas palavras de Segato (2007, p.23.)
“Raça não é necessariamente sinal de povo constituído, de grupo
étnico, de comunidade outra, mas um traço, como rastros no corpo da
marcha de uma história outrificadora que construiu ‘raça’ para
construir ‘Europa’ como uma ideia epistêmica, econômica, tecnológica
e jurídico‐moral, que distribui valor e significado em nosso mundo.”
Por discurso, ao modo que a ele se refere Ernesto Laclau, não
devemos entender algo essencialmente restrito aos âmbitos da fala e da
escrita, mas sim um complexo de elementos no qual as relações passam a
assumir um papel constitutivo que, longe de reduzir os significantes ao
campo da retórica superficial, definem os discursos como manifestação
de uma racionalidade particular (Laclau, 2010).
Enquanto categoria nativa, ou seja, como uma categoria
utilizada pelos sujeitos e cujo significado será associado a seu mundo
prático e efetivo, se trata de um termo disposicional, que designa o que
Brubaker e Cooper, evocando a idéia de ʺsentido práticoʺ de Bourdieu,
chamam de uma ʺsubjetividade situadaʺ, que se assume como auto‐
afirmação ‐ cognitiva e emocional ‐ do sentido de quem somente é
alguém em relação à própria localização social (Brubaker & Cooper,
7 Neste quadro pode‐se notar que a definição de raça ʺbrancaʺ não manifesta sinais de
diversidade, enquanto que as raças ʺnão‐brancasʺ se desdobram em oito categorias
diferentes. Fonte: [http://www.whitehouse.gov/omb/fedreg/1997standards.html
ʺRevisions to the Standards for the Classification of Federal Data on Race and
Ethnicityʺ.
24
2001). Portanto, a noção de raça não apenas passa a ser entendida como
uma categoria que se refere ao âmbito do que é dito, mas também ao
âmbito do vivido como experiência, uma vez que, tal como evidenciado
por Avtar Brah (2011), os discursos que repousam na estigmatização
das diferenças são baseados em relações de opressão que moldam a
experiência dos sujeitos, não apenas na relação com o grupo (enquanto
definições de identidades coletivas aceitas intersubjetivamente), mas
também consigo mesmos (em virtude da influência de esquemas
subjetivos de apropriação do eu).
Em referência às condições objetivas que fazem possível a
emergência destes significantes, a definição de classificações raciais ‐
cuja dinâmica pode ser pensada como um processo de racialização –
traduz, no plano ideológico, algumas das tensões econômicas, políticas
e culturais de dada sociedade8. Neste sentido, podemos perceber uma
dupla dinâmica, onde as condições objetivas dão lugar a manifestações
ideológicas que, mediante a afirmação dos princípios objetivos no plano
simbólico, reproduzem, modelam e cristalizam as oposições estruturais
no plano discursivo. Além disso, retomando as contribuições de Pierre
Bourdieu (2006), a investigação dos critérios ʺobjetivosʺ ‐ marcadores de
diferença suscetíveis de funcionar como indicadores de identidades
sociais (cor, dialeto, gênero, língua, sotaque, práticas étnico‐religiosas,
etc) ‐ deve levar em consideração que na prática social tais critérios são
susceptíveis de se manifestar de duas maneiras: como objetos de
representações mentais, ou seja, de atos de percepção e de apreciação, de
conhecimento e reconhecimento, onde os agentes investem seus
interesses e seus pressupostos; e como representações objetais, de coisas
(emblemas, bandeiras, imagens, etc.) ou atos, estratégias interessadas de
manipulação simbólica, que visam determinar a representação (mental)
que os outros podem construir acerca dessas propriedades e de seus
portadores. Características percebidas e apreciadas (e descritas pelos
8 Se tomamos como exemplo as sociedades escravistas, a segregação racial sustentada
por discursos racistas pode ser entendida como reflexo da ideologia hegemônica que,
por extensão, põe em manifesto as situações de conflito entre as posições diferenciais
que, no político, no econômico e no cultural, caracterizam as posições dos ʺsenhores
brancosʺ e dos ʺescravosʺ.
25
analistas) funcionam como sinais, emblemas ou estigmas. E, tal como
define Segato (2007): a raça passa a ser concebida como signo.
Do mesmo modo como pode se manifestar em discursos
hegemônicos (como é o caso dos discursos que, a partir do Estado,
foram orientados para definir a constituição de uma identidade
nacional), as situações de desigualdade e marginalidade estrutural têm
a capacidade de unificar coletivos que, embora heterogêneos em relação à
raça, cor ou etnia, podem estabelecer laços de solidariedade em torno de
um estado de necessidade – em suma, uma experiência comum – que os
une (Brah, 2011; Segato, 2007). Dito isto, a raça pode surgir associada a
outros marcadores de diferenças, adquirindo um sentido e uma
relevância particular em função do contexto em que ocorrem, o que
implica desafios e riscos tanto para a análise da constituição das
identidades sociais como para a definição de estratégias políticas que
tentam ser articuladas pelos grupos envolvidos9.
3. Crisol de representações
A partir do referido anteriormente é possível entrever que uma
análise das representações de raça na experiência latino‐americana que
tomasse em conta o tratamento adequado das complexidades que ela
supõe poderia resultar excessiva para os limites desse artigo. Mas, além
das limitações evidentes e, a fim de gerar possibilidades interessantes
de definição de questões ou nós problemáticos, tentarei identificar um
9 A raça pode associar‐se distintivamente a outros significantes, sob diferentes
gramáticas (Segato, 2007). Entendidos como o cenário dos processos de construção da
identidade coletiva, um conjunto de significantes tem a capacidade de consolidar um
imaginário compartilhado por meio do qual é possível fortalecer um vínculo de
equivalência que contribui para que se estabeleça a definição de uma comunidade
imaginada. Assim, a partir de uma dinâmica de inclusão/exclusão baseada na
afirmação e negação de elementos particulares que definem o todo, a adoção de
significantes em uma cadeia de equivalências permite instituir o pertencimento de
certos sujeitos ao interior de um grupo, definindo, por consequência, a exclusão de
outros sujeitos que não compartilham de tal vínculo. A ideia de ponto nodal na teoria
de Zizek permite pensar que estes significantes não designam algo positivamente,
mas possibilitam, em termos performativos, a unidade do campo: a palavra enquanto
palavra unifica um campo determinado constituindo sua identidade.
26
conjunto de condicionamentos que podem ser considerados ao se
abordar esse crisol de representações.
Embora os países latino‐americanos compartilhem uma série de
experiências (suas conformações e desenvolvimentos são marcados de
modo particular pela experiência colonial e pela relação de tensão
constante com os centros de poder ocidentais), e tenham alcançado
êxitos no que se refere à integração regional, devemos considerar de
todo modo as diferenças que persistem entre eles, levando em conta:
• A trajetória e constituição dos Estados‐Nação (que define uma
comunidade nacional em seus limites, em função da mobilização
de um discurso hegemônico reconhecido como legítimo);
• As condições geopolíticas e econômicas que marcaram a relação
com as potências coloniais (Espanha, Brasil e Portugal), com as
potências imperialistas do século XIX (Inglaterra, França), as do
século XX (Rússia e EUA) e as relações (por vezes conflitantes e
contraditórias) entre os países da região;
• A presença e o impacto de povos originários ou indígenas (de
composição e características variáveis, impossíveis de serem
reduzidas a um mesmo perfil analítico);
• O impacto da escravidão (que constitui fator essencial da
composição demográfica de países como Brasil e daqueles que
compõe a região do Caribe);
• O fator imigratório (no passado e no presente), a diversidade dos
grupos imigrantes em relação aos países de origem e destino, as
variações no desenvolvimento demográfico e as formas
dissimiles de assentamento e integração populacionais;
• As características dos assentamentos rurais, urbanos e das zonas
de fronteira (onde a coesão ou os limites do nacional podem
parecer difusos, parcial ou totalmente transformados e
resignificados a partir de uma experiência marcada pelo
entrecruzamento);
• O contexto social, econômico e político de cada Estado, etc.
Estas variáveis ‐ que não se pretendem exaustivas, mas que
definem um escopo de análise suficientemente complexo para não ser
subestimado – permitem pensar que um estudo das representações
27
associadas à ideia de ʺraçaʺ deveria partir de uma problematização local
ou regional, posto que os agregados nacionais ou supranacionais podem
colocar problemas no momento de explicar sua diversidade interna. Na
Argentina, por exemplo, as associações entre raça, cor e classe podem
variar de acordo com a região em questão:
• na região metropolitana do corredor Córdoba‐Rosario‐Buenos
Aires, onde a imigração européia (sobretudo de italianos e
espanhóis) teve um impacto notável e onde a hierarquização
social se manifesta na delimitação de áreas de exclusão
específicas, como é o caso das ʺvilas miseriasʺ (eufemisticamente
chamadas de ʺvilas de emergênciaʺ), o racial pode ceder ou
articular‐se com uma leitura de classe que associa a cor ʺnegraʺ
como estigma ou marcador de diferença visível para o indivíduo
de classe mais baixa (marcadores que podem associar distinções
negativas, inclusive, a grupos de imigrantes de países da própria
região, como é o caso das comunidades peruanas e bolivianas);
• em contraste com o caso anterior, no literal argentino a
articulação ʺcor negraʺ ‐ “classe baixa” perde força devido à
presença de descendentes europeus em situação de pobreza;
• nas regiões com presença de povos originários a discussão
sobre as identidades sociais incorpora com mais força o
componente étnico10;
10 De acordo com os relatórios do Instituto Nacional de Assuntos Indígenas (INAI), na
Argentina existem 18 povos indígenas que contabilizam um número estimado de
600.329 pessoas que se reconhecem pertencentes e/ou descendentes de primeira geração.
A maioria da população se encontra na Região Noroeste (NOA), em 13 aldeias
(Atacama, Ava Guarani, Chorote, Chulupi, Diaguita / Diaguita Calchaquí, Kolla,
Omaguaca, Wichí, Quechua, Tapieté, Chané e Maimará), e concentram‐se nas
províncias de Salta e Jujuy, seguindo a costa Nordeste (NEA‐Litoral) com 6 aldeias
(Chulupi, Mbya Guaraní, Mocovi, Pilagá, Toba e Wichí) e nas províncias de Chaco,
Formosa e Santa Fé; na região da Patagônia, com 4 aldeias (Tehuelche, Ona,
Rankulche e Mapuche), concentram‐se nas províncias de Chubut, Santa Cruz e Tierra
del Fuego; e na Região Central, com 5 aldeias (Guarani, Comechingón, Huarpe
Sanavirón e Tupi Guarani) concentram‐se na Cidade de Buenos Aires e na Grande
Buenos Aires.
28
• menção à parte constitui o caso da herança africana: embora
haja destaque para alguns grupos de afrodescendentes ‐
atualmente entre 12.000 e 15.000 descendentes de imigrantes de
Cabo Verde residem em Ensenada, Dock Sud, San Nicolas e
Rosário ‐, a invisibilidade do componente afro na cultura
argentina11 contrasta com a realidade de países vizinhos, como o
caso do Uruguai ou, particularmente, do Brasil.
Estas assertivas evidenciam contextos distintos dentro de um
mesmo país. Embora seja possível e necessário realizar análises que
tomem o Estado como unidade analítica privilegiada (especialmente
quando se trata da análise de políticas e instituições formais), uma
observação regionalizada pode possibilitar contextualizações mais
precisas que permitam identificar as diferentes gramáticas
(dimensionando elementos que não necessariamente estejam em
conformidade com os parâmetros de formalização estatais). Estas
considerações nos permitem argumentar a favor dos estudos
comparativos (seja entre regiões de um mesmo país, entre países ou
regiões supranacionais, seja entre as experiências de grupos específicos
em cada um desses contextos), uma vez que a possibilidade de realizar
uma reflexão abrangente das experiências latino‐americanas dependerá
necessariamente da articulação de estudos dessa natureza.
Para concluir, nos interessa destacar que representações
assumidas como semelhantes, como é o caso das ideias de ʺcrisol de
razasʺ (Argentina), ʺmelting potʺ (EUA), ʺcadinho de raçasʺ ou ʺfábula
das três raçasʺ (como se costuma fazer referência no Brasil), longe de
querer representar fenômenos idênticos devem ser interpretadas à luz
de suas diferenças, uma vez que, com frequência, essas manifestações –
enquanto produções associadas a uma lógica discursiva hegemônica –
recorrem a recursos homogeneizadores que, colocando o foco na
integração das diversidades como componentes de uma identidade
nacional única, permitem, em verdade, sustentar definições
11 No século XIX, a presença afroamericana era reconhecida e abertamente
estigmatizada, ilustração disso encontramos na obra de Martín Fierro (livro
emblemático da literatura argentina): Dos brancos fez Deus /dos mulatos, São Pedro/
dos negros fez o diabo/ para brasa do inferno (Capítulo 7).
29
hierarquizadas na medida em que fazem desaparecer as visões opostas
que muitos coletivos assumem como suas.
De todo modo, merecem atenção aquelas manifestações
discursivas que, insistentemente, reproduzem estereótipos
estigmatizantes, como no caso dos discursos publicitários ‐ que,
fortalecidos por um sistema de produtos e serviços transnacionalizados,
interpelam a um público de consumidores potenciais fomentando
valores de consumo assumidos como globais. Conforme defende Segato
(2007), qualquer análise deve procurar estabelecer uma crítica a um
ʺmapa multicultural limitado e esquemático que projeta uma
diversidade fixa no tempo, reificada em seus conteúdos e despojada das
dialéticas que conferem historicidade, mobilidade e enraizamento local,
regional e nacionalʺ.
4. À guisa de conclusão
A multiplicidade de contextos de uso da ideia de ʺraçaʺ como
termo classificatório pode suscitar confusões ou resultar, em alguma
medida, bastante indeterminado. Mas é necessário considerar que esta
indeterminação, ao invés de simplesmente aludir a uma forma de
pobreza semântica, pode representar o resultado de uma lógica de
significação específica que deve ser analisada em relação a contextos
discursivos particulares.
Retomando aquela categorização impossível desenvolvida por
Borges, podemos nos questionar (novamente ao modo de Foucault)
acerca das condições a partir das quais era e é possível demarcar
identidades fundadas na ʺraçaʺ, levando em consideração critérios de
certeza que permitem assumir tais taxonomias ou gramáticas como algo
pensável (susceptível de ser administrado e delimitado em campos de
conhecimento específicos). Assumindo sua contingência, o
questionamento acerca de um regime de representação exigirá
determinar quais são as condições históricas que fizeram emergir o
conceito enquanto definindo uma ordem, já que ele impõe, sob a forma
de um discurso hegemônico, uma autoridade semântica capaz de tornar
possível vislumbrar a instituição de uma diferença social cristalizada
em situações de exclusão, instituição esta que encontra fundamento
30
numa rede de relações que se estabelecem em um campo social
estruturado e hierarquizado.
A análise discursiva que se articula com o estudo das práticas,
problematiza, a partir do real, a representação do real (ou a luta pelas
representações que buscam definir o real), ou seja: as lutas pelo
monopólio de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e reconhecer,
de impor a visão legítima das divisões do mundo social (Bourdieu,
2006).
O estudo da diversidade de experiências pode enriquecer a
integração real de nossos povos. Tal e como se refere Segato: ʺAfirmar a
diferença das culturas em um sentido profundo é afirmar a
possibilidade de que outros valores e outros fins orientem a convivência
humana.ʺ
Bibliografia
BOURDIEU, Pierre. La identidad y la representación: elementos para una
reflexión crítica de la idea de región. Ecuador Debate, nº 67 , 165‐184, 2006.
BRAH, Avtar. Cartografías de la diáspora. Identidades en cuestión. Madrid:
Traficantes de Sueños, 2011.
BRUBAKER, Roger, & Cooper, Frederick.. Más allá de la identidad. Apuntes de
investigación del CECYP, nº7 , 30‐67, 2001.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo, Editora Martins
Fontes, 1995.
LACLAU, Ernesto. La razón populista. México D.F.: Fondo de Cultura
Económica, 2010.
SEGATO, Rita L. La Nación y sus Otros. Raza, etnicidad y diversidad religiosa en
tiempos de Políticas de la Identidad. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.
SLENES, Robert. A Importância da África para as Ciências Humanas. Historia
Social, nº19, 2010.
31
32
Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas preliminares
sobre a experiência contemporânea brasileira
Valter Roberto Silvério1
“O racismo e o colonialismo deveriam ser entendidos
como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver
nele”. (Frantz Fanon)
1. Introdução
O argumento desenvolvido no presente texto é de que o
deslocamento na forma como a sociedade brasileira se
autorrepresentava é decorrente do processo de luta política pela
(res)significação/deslocamento do lugar do ser negro no processo de
racialização de sua experiência coletiva. Com base nas conquistas do
movimento negro é possível destacar alguns aspectos que permitem
sustentar essa linha de raciocínio, a saber: 1) o tratamento político‐
jurídico da temática da diversidade e da igualdade racial na
Constituição de 1988; 2) a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da
educação brasileira, e as diretrizes que a acompanham, orienta para
uma mudança significativa nos conteúdos curriculares nacionais, ao
prescrever a obrigatoriedade de uma educação que possibilite a
construção de relações étnico‐raciais saudáveis e que inclua a história e
a cultura afro‐brasileira e africana e, também, indígena. E, finalmente, a
interação entre as mudanças internas e o papel que o Brasil passou a
representar transnacionalmente nos últimos anos, não exclusivamente,
mas em especial para os países da comunidade de língua portuguesa do
continente africano.
Uma das preocupações centrais de Fanon foi demonstrar os
efeitos do colonialismo sobre o colonizado, buscando entender as
1 Professor Associado do Departamento e Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Coordenador em exercício do Núcleo
de Estudos Afro‐Brasileiros da mesma universidade.
33
implicações para o desenvolvimento nacional depois do sucesso total da
luta anti‐colonial. Neste sentido, fez um conjunto de comentários acerca
da natureza do racismo em 1956. Três de suas observações têm sido
mais amplamente articuladas recentemente. Na primeira, Fanon
argumentou que racismo não é um fenômeno estático, mas sim
constantemente renovado e transformado. No segundo comentário,
observa que o racismo primitivo se afirmou no terreno da biologia
correspondendo a uma fase do colonialismo, pois estes argumentos
tinham sido desacreditados pelas consequências do fascismo na
Alemanha. Finalmente, afirmou que racismo foi um aspecto central da
dominação colonial, o qual, em conjunto com outros mecanismos,
intencionava transformar a população colonizada em objetos usados
para os propósitos do colonizador (Fanon, 1970: 41‐54).
Na perspectiva de Fanon, o racismo primitivo tem sido
substituído por um racismo cultural que tem como seu objeto não o ser
humano individual, mas uma certa “forma de existência” e que racismo
é somente um elemento de uma vasta e sistematizada totalidade de
opressão de um povo (1970: 43). Tal sugestão tem inspirado um
conjunto de estudos nas sociedades com passado colonial ou sociedades
racialmente estruturadas de acordo com Hall (Hall, 1980).
Esta substituição de um racismo primitivo (biológico) por um
racismo cultural foi retida e tem sido fundamental para a análise dos
desdobramentos da formação racial nos Estados Unidos, por exemplo,
no período pós‐movimento dos direitos civis, na Europa, especialmente
na Inglaterra, na definição do “New Racism”.
A palavra racismo deriva da ideia de que raça determina cultura
e, como consequência, afirma a superioridade racial de alguns povos
em relação a outros. Na atualidade, este significado original do termo
nem sempre fica evidente pelo uso diversificado da palavra. No
entanto, o conceito de racialização2, que foi utilizado pela primeira vez
2 A ideia contemporânea de “racialização” ou “formação de raça” se baseia no
argumento de que a raça é uma construção social e categoria não universal ou
essencial da biologia. Raças não existem fora da representação. Em vez disso, elas são
formadas na e pela simbolização em um processo de luta pelo poder social e político.
O conceito de racialização refere‐se aos casos em que as relações sociais entre as
34
por Frantz Fanon na discussão sobre as dificuldades enfrentadas pelos
intelectuais africanos quando confrontados com os desafios da
construção de uma “nova” cultura no pós‐colonialismo, pode nos
auxiliar a compreender os novos sentidos do termo raça (Fanon, 1967:
170‐1). Para Banton, racialização está relacionada ao caminho através do
qual as teorias científicas construíram tipologias raciais que foram
utilizadas para categorizar populações (Banton, 1977: 18). Reeves
distinguiu entre racialização “ideológica” e racialização “prática”
usando a primeira em referência ao discurso sobre a raça e a última
para se referir à formação de “grupos raciais” (Reeves, 1983: 173‐6).
O conceito de racialização, em Miles, focaliza o processo de
atribuição de significados a características somáticas, isto é, um
processo dialético de significação. Ao imputar uma real ou alegada
característica biológica como meio de definir o Outro, o Eu se define
pelo mesmo critério (Miles, 1989: 73‐7).
Para Webster, nenhuma das concepções sociológicas correntes
de racialização identifica ou desafia seu principal elemento que é a
afirmação de que raça é uma realidade social ou política. Assim, para
Webster, o aspecto científico social da racialização incorpora uma
organização de estudos das relações sociais passadas e presentes, em
torno das classificações raciais que são apresentadas como reais e,
então, justificadas como um objeto de estudo em termos de sua
realidade. Racialização é, por isso, classificação racial construída com
características de autoperpetuação (Webster, 1992: 26).
Omi e Winant usam o conceito de racialização para realçar a
extensão do significado de raça em relações, práticas sociais ou grupais
não classificadas previamente como raciais. Deste modo, racialização é
um processo lógico‐ideal, uma especificidade histórica (Omi e Winant,
1986: 64; Winant, 1996: 59). Para Winant, o exemplo deste processo nos
Estados Unidos foi a consolidação da categoria black para os africanos
que anteriormente se identificavam ou eram identificados como Mande,
Akan, Ovimbundu ou Ibo, paralelamente à evolução do termo white
como uma forma crucial de autoidentidade para os europeus que se
pessoas foram estruturadas pela significação de características biológicas humanas,
de tal modo a definir e construir coletividades sociais diferenciadas.
35
autodenominavam, inicialmente, como cristãos, ingleses e livres
(Winant, 1996: 59).
Pouca concordância há nestes vários usos do termo, entretanto, é
possível identificar ao menos três sentidos distintos em que o conceito
de racialização pode ser apreendido: em um primeiro uso, o conceito
aparece com referência a um processo representacional através do qual
o significado social é atribuído a certas características biológicas
humanas (usualmente fenotípicas) que se constituem na base, a partir
da qual aquelas pessoas que possuem tais características são designadas
como uma coletividade distinta. O segundo uso do conceito se refere
àquelas práticas científicas e político‐institucionais que perpetuam a
competição entre raças e ou etnias. Por último a racialização aparece
como um processo lógico‐ideal constitutivo da própria modernidade.
Nos dois primeiros usos do conceito, aparentemente, a
racialização é uma característica erradicável das sociedades humanas,
mas em seu último uso ela aparece como um processo que está nas
origens da cultura ocidental moderna. As variações do conceito estão
associadas ao modo através do qual os autores concebem raça.
A emergência e utilização da idéia de “raça” é uma fase histórica
central da racialização, em termos de periodização, embora não seja seu
solo de origem. De qualquer forma, desde o século XVIII, a população
mundial tem sido classificada no pensamento europeu em “raças”.
Miles usa o conceito de racialização para se referir ao processo dialético
pelo qual significado é atribuido a características biológicas particulares
dos seres humanos, resultando na possível alocação de indivíduos em
categorias gerais de pessoas as quais reproduzem a si mesmas
biologicamente. Ela é, portanto, um processo ideológico.
De outra perspectiva, Webster está preocupado em identificar e
refutar o que ele chama de “teoria racial geral”. Segundo ele, há mais de
dois séculos, os estudos sociais e as políticas públicas estão dominadas
por esta teoria nos Estados Unidos. Focando menos os grupos ou
pessoas e seus motivos políticos, a origem racial ou os atributos raciais,
as definições de termos, as premissas e as implicações lógicas dos
argumentos científicos presentes no debate, Webster se propõe a refutar
a afirmação básica de que raça tem sido uma força formativa e
propulsora da sociedade norte‐americana (Webster, 1992: 2).
36
Winant, de uma outra perspectiva, argumenta que mais
importante do que negar o estatuto científico da idéia e do conceito de
raça é focalizar a continuidade de sua significância e as mudanças no
seu significado. Neste sentido, este autor procura criticar quatro
tendências presentes na discussão contemporânea em torno do
significado da raça: a primeira tendência tenta demonstrar o caráter
ilusório da natureza da raça; a segunda busca a transcendência da raça;
a terceira assegura a morte do conceito de raça e a última simplesmente
substitui a categoria raça por categorias supostamente mais objetivas,
como etnicidade, nacionalidade ou classe. Para Winant, todas estas
iniciativas são equivocadas e intelectualmente desonestas por
considerarem raça uma construção ideológica ou uma condição objetiva
(Winant, 1996: 14).
Winant observa que mesmo os autores considerados do
mainstream (corrente principal) teorizam raça em termos de sua
exiguidade e flexibilidade e de seu caráter contingente. Isto é, mesmo
aqueles pensadores que inquestionavelmente rejeitam a teoria racial em
seu formato biológico, não conseguem escapar de certo tipo de
objetivismo. Daí, o surgimento de uma explicação modal nos escritos
sobre raça:
“…as circunstâncias sociopolíticas mudam através do tempo
histórico, os grupos racialmente definidos se adaptam ou falham
em se adaptarem às mudanças, adquirem mobilidade ou
permanecem na pobreza. O problema é que nesta lógica não há
espaço para a (re) conceitualização da identidade grupal a partir
das constantes alterações de parâmetros através dos quais raça é
pensada, interesses de grupos são subscritos, status são
atribuídos, agências são criadas e papéis sociais são
desempenhados” (Winant, 1996: 17).
Omi e Winant, afirmam que, nas últimas décadas, nós temos
testemunhado através do espectro político, a tentativa na vida
institucional de, por um lado, definir um significado apropriado para
raça e, por outro lado, estabelecer identidades raciais coerentes
baseadas em tais significados. Na visão destes autores, estes objetivos
foram e continuam a ser impossíveis, principalmente, porque raça é
37
preeminentemente uma construção social que está inerentemente sujeita
à contestação por seu significado intrinsicamente instável.
Assim, eles propõem que, no interior da perspectiva de uma
formação racial, raça deve ser entendida como um complexo de
significados sociais fluídos, instáveis e “descentrados”, constantemente
transformados pelo conflito político (Omi e Winant, 1986).
Deste modo, a raça modela tanto a psique e os relacionamentos
entre indivíduos de “cores” diferentes quanto fornece um componente
irredutível das identidades coletivas e da estrutura social. Assim, é
possível interpretar o significado de raça não em termos de definição,
mas em termos de processos de formação racial. Entre os elementos
principais destes processos está a construção de identidades raciais e os
significados que Winant chama de racialização (Winant, 1996: 58‐59).
O argumento básico é que na sociedade contemporânea existe
uma amplificação do conflito racial em termos globais. Sem assumir a
existência de qualquer uniformidade neste rápido aumento de tensão e
forte consciência em matéria racial, Winant está interessado em focar a
interação entre estrutura social e significação, levando em consideração
a grande variação entre ordens raciais locais. Para Winant, a dinâmica
da significação racial é sempre relacional. Esta afirmação o diferencia de
Miles, para quem um significado sobre o Outro é, aprioristicamente
construído e, no momento posterior, incorporado pelo próprio Outro.
Da mesma forma, o diferencia de Webster para quem o significado de
raça é uma construção científica e política.
As dimensões globais da formação racial podem ser mais
facilmente observadas através de fenômenos tais como o surgimento da
“diáspora” negra, a criação de comunidades “pan‐étnicas”, formadas
por latinos e asiáticos nos países do Reino Unido e nos Estados Unidos,
os quais evidenciam uma derrubada de fronteiras tanto na Europa
quanto na América do Norte. Tudo parece estar se hibridizando, se
transculturando e se racializando nos grupos previamente nacionais,
culturas e identidades. Em razão destas transformações, a comparação
das ordens política e social local, baseadas na raça, se torna
fundamental. Similarmente, pela primeira vez nós começamos a pensar
nas variações na identidade racial, não como desviantes de uma norma
supostamente modal (imperialista), mas como parte flexível de um
38
contexto e repertório específico. Finalmente, a dissolução da
transparência da identidade racial do grupo formalmente dominante, a
crescente racialização dos brancos na Europa e nos Estados Unidos
devem ser também reconhecidas como procedentes da crescente
dimensão globalizada da raça (Winant, 1996: 118).
Desta forma, se raça não é algo natural ou inato ou uma ilusão,
importa saber as razões e condições nas quais o discurso sobre raça é
empregado na tentativa de rotular, constituir, excluir ou incluir
subalternamente coletividades sociais. Segundo Winant, na perspectiva da
formação racial, este percurso pode ser trilhado a partir de três
determinações que devem ser incorporadas teoricamente ao conceito de
raça, de modo a tratar raça como alguma coisa nem fantasmagórica, nem
tangível, nem verdadeira, nem falsa. Tais determinações indicam: a
dimensão política, a global comparativa e a histórico‐temporal. Com a
introdução dessas determinações, o conceito teórico de raça seria removido
definitivamente do reino biológico para ser alocado no reino social.
A dimensão política se refere às novas relações que surgiram,
principalmente, onde alguns poderes contra‐hegemônicos e/ou pós‐
coloniais estão presentes, propiciando a proliferação dos significados e
das articulações políticas com base na raça. Três aspectos se destacam
nesta dimensão: 1) a insuficiência do simples dualismo contido na ideia
da “Europa e seus Outros”, captada pelo debate da ampliação e
amplificação da subjetividade e identidade pós‐colonial, 2) a
possibilidade de perpetuar a dominação racial sem qualquer referência
explícita à raça por meio de significados raciais codificados
subtextualmente ou da simples negação de sua continuidade da
significação, 3) a possibilidade de resistir inteiramente, por novos
caminhos, à dominação racial, particularmente pela limitação do
alcance e penetração do sistema político na vida cotidiana, pela geração
de novas identidades, novas coletividades, novas comunidades
(imaginadas), relativamente menos permeáveis ao sistema hegemônico
(Winant, 1996: 19).
A dimensão global comparativa é aquela referente ao contexto
globalizante no qual raça opera. Isto é, a geografia racial se tornou mais
complexa, tanto em termos do seu alcance imperial, colonial e
migratório, quanto pela globalização do espaço racial que se torna
39
acessível a um novo tipo de análise comparativa. Na perspectiva de
Winant, chegamos a um ponto em que os ex‐sujeitos (neo)coloniais,
agora redefinidos como “imigrantes”, desafiam o status dos grupos
metropolitanos majoritários (os brancos, os europeus, os “americanos”
ou “franceses” etc.). Ao mesmo tempo, surgem fenômenos tais como a
diáspora negra, a criação de uma comunidade latina e de uma
comunidade asiática “pan‐étnica” (no Reino Unido e nos Estados
Unidos). Paralelamente, o fechamento de fronteiras na Europa e na
América do Norte indica prévia racialização de políticas nacionais,
culturas e identidades. O exemplo mais visível é a cultura popular que
mundializa a consciência racial quase instantaneamente como faz o
reggae, rap, samba e vários outros estilos pop africanos que transitam
velozmente de um continente para outro (Winant, 1996: 19‐20).
Para este autor, esta conscientização não é mera reação ou simples
negação do domínio teórico‐cultural “Ocidental”. Noções como
consciência diaspórica ou epistemologias racialmente informadas
ganham mais atenção como um esforço para expressar a globalização
contemporânea do espaço racial e apontam para a construção de novas
identidades raciais ou para a dinâmica da “panetnicidade”, agora,
global. A dissolução da transparência da identidade racial do grupo
formalmente dominante, isto é, a avançada racialização dos brancos na
Europa e nos Estados Unidos deve também ser reconhecida como
conduzindo a uma dimensão globalizada crescente da raça. Dito de
outra forma, a “brancura” se torna uma matéria de ansiedade e
preocupação (Winant, 1996: 20).
Quanto à dimensão histórico‐temporal, Winant observa que
muitos dos escritos pós‐estruturalistas, preocupados com as diferenças
entre os seres humanos, têm feito esforço para explicar o “Ocidente” ou
o tempo colonial como um vasto projeto de demarcação das
“diferenças” humanas ou mais globalmente, argumentando sobre a
formação parcial de identidades coletivas, em termos de “Outros”
externalizados como lembra Todorov (Todorov, 1985).
40
Ao criticar o polêmico trabalho de Wilson3, Winant observa que a
análise ali contida demonstra não a existência de uma subclasse em
uma sociedade em que a significância da raça está em declínio, mas a
continuidade da significância do racismo institucional ou o chamado
“metaracismo”, como lembra Kovel (Kovel, 1984).
A justificativa sociopolítica e legal oferecida para uma política
supostamente neutra do ponto de vista racial é uma reinterpretação
conservadora e individualista das medidas igualitárias propostas pelo
movimento dos direitos civis dos anos 60. Esta é a forma de racismo
apropriada para o atual momento histórico, no qual o estado não
organiza e força a supremacia branca, mas se esconde atrás de uma
política oficial ‐ ou de fachada – de neutralidade racial. Racismo, no
presente, toma a forma de supremacia branca ou metaracismo que tem
consequências de classe.
Brasil, África do Sul e Estados Unidos são países em que a forma
de colonização condicionou a estrutura da formação do Estado e da
sociedade civil, bem como as inter‐relações entre estas duas esferas da
vida social, especificamente, no tratamento da questão racial. Em que
pese às diferenças em relação ao período no qual ocorreram os
processos de conquista, colonização e independência, estes Estados
foram marcados por formas de dominação racial e, atualmente em
proporções diferenciadas e variáveis, comportam uma dinâmica em que
a estrutura social é racialmente organizada o que, aparentemente, tem
impedido a possibilidade do pleno exercício dos direitos fundamentais
de cidadania a todos.
Marx observa que, “nos três casos, a ordem racial certamente
refletiu e acelerou o desenvolvimento econômico, mas de forma
complexa. O apartheid e Jim Crow diluíram a concorrência entre os
brancos que ameaçava a estabilidade e o crescimento, embora o
crescimento e a concorrência não tenham levado à aplicação de tais
políticas no Brasil. O conflito de classe, real ou potencial, nos três casos,
tinha de ser resolvido para assegurar a estabilidade, exigência mais
3 The Declining Significance of Race: Blacks and Changing American Institutions,
University of Chicago Press, 1980.
41
fundamental, tanto para o desenvolvimento econômico, como para a
consolidação do estado nação” (Marx, 1996: 18‐19).
É na reconciliação entre ingleses e africânderes, após a guerra do
Bôeres, que se encontra os termos para a segregação dos negros, que se
tornaria um fator central na construção do Estado sul‐africano. Como
demonstra Marx, através da fala de um alto comissário britânico sir
Alfred Milner, em 1897:
“(…) para vencer os holandeses […] basta sacrificar absolutamente ‘os
negros’ e o jogo fica fácil […] governo autônomo […] e lealdade
colonial […] [exigiriam] o abandono das raças negras” (Lemay, 1965:
11‐2; citado em Marx, 1996: 20).
O caso norte‐americano tem muita similaridade com o sul‐
africano, embora o conflito, na consolidação do Estado Nacional, não
tenha sido entre dois fragmentos de grupos europeus, mas entre grupos
regionais. A população indígena dos Estados Unidos foi quase
totalmente exterminada, mas os escravos continuaram sendo
numerosos e, portanto, o núcleo da discórdia regional. Um fato
relevante indicativo da tensão regional foi a decisão denominada Dred
Scott, de 1857, que considerou que as garantias formais do direito à
igualdade e à cidadania eram inaplicáveis aos negros (Foner, 1970: 292‐
3; Marx, 1996: 21).
Depois da Guerra Civil americana, a nação adotou três emendas
constitucionais: a 13ª, em 1865, extinguia a escravidão; a 14ª, em 1868,
tornava todos os negros cidadãos dos Estados Unidos e proibia leis
estaduais que negassem igual proteção aos negros e a 15ª, em 1870,
proibindo a discriminação racial em votações. No fundamental, a 14ª e a
15ª emendas não eram cumpridas em todo país, mas apresentavam
maior visibilidade no sul.
Esses Estados geraram categorizações raciais distintas. Assim, nos
Estados Unidos e na África do Sul, onde o preconceito enfatiza a
origem, a identidade do indivíduo ou do grupo será construída com
base na origem racial e ou étnica fundada no princípio de
hipodescendência. No Brasil, a ênfase recai sobre marca ou na cor,
combinando a miscigenação e a situação sociocultural dos indivíduos.
42
Essa distinção implicou no desenvolvimento de dois tipos de racismo, o
diferencialista e o assimilacionista.
Munanga, por exemplo, observa que o racismo diferencialista
engendrou o antirracismo diferencialista e o racismo universalista
(assimilacionista) engendrou o antirracismo universalista. “O anti‐
racismo universalista busca a integração na sociedade nacional,
baseando‐se nos valores universais da natureza humana, sem
discriminação de cor, raça, sexo, cultura, religião, classe social, etc. É o
chamado integracionismo fundamentado no indivíduo “universal”. De
modo oposto, “o antirracismo diferencialista busca a construção de uma
sociedade igualitária baseada no respeito das diferenças tidas como
valores positivos e como riqueza da humanidade. Os quais pressupõem a
construção de sociedades plurirraciais e pluriculturais; defende a
coexistência no mesmo espaço geopolítico no mesmo pé de igualdade de
direitos, de comunidades e culturas diversas” (Munanga, 1999: 115‐6).
No Brasil, de acordo com Guimarães, é somente a partir dos anos
1980 que o movimento negro passou a assumir um discurso racialista e
multicultural. Assim, tanto o alvo da Frente Negra Brasileira (FNB), na
década de 30, isto é, a luta contra a segregação e a discriminação racial,
quanto o alvo do Teatro Experimental do Negro (TEN) nos anos 50, isto
é, a luta pela recuperação da autoestima negra, passam a ser
reinterpretadas pelo ideário multiculturalista em que se revaloriza a
herança africana, procurando desvencilhá‐la das adaptações e dos
sincretismos com a cultura nacional brasileira. O autor chama atenção
para dois aspectos fundamentais: primeiro, é a neutralidade da agenda
ou programa delineado nesta mobilização negra, permitindo a aceitação
das mais diferentes tendências ideológicas do movimento negro por meio
de um discurso que evoca o carisma da raça negra visando à formação de
uma identidade racial negra. Os três pontos básicos da agenda são:
“(a) recuperação da autoestima negra através da modificação de valores
estéticos, da reapropriação de valores culturais, da recuperação de seu
papel na história nacional, do avivamento do orgulho racial e cultural; (b)
combate à discriminação racial através da universalização da garantia
dos direitos e das liberdades individuais, incluindo os negros, os
mestiços e os pobres; (c) combate às desigualdades raciais através de
43
políticas públicas é o discurso que evoca o carisma da raça negra visando
à formação de uma identidade racial negra (Guimarães, (1999: 115).
O segundo aspecto observado por Guimarães está relacionado às
dificuldades encontradas pelos grupos e instituições antirracistas para a
mobilização coletiva dos negros. Para esse autor, estas dificuldades têm
recebido dois tipos de diagnósticos: ou se trata o movimento negro
como um movimento de classe média, distante do povo negro; ou se
trata o movimento negro como presa ou vítima da ideologia. Ao
discordar desses diagnósticos, Guimarães conclui que, diferentemente
dos Estados Unidos e da África do Sul onde a identidade racial tem um
efeito cumulativo natural, isto é, não se sobrepõe à família, no Brasil, a
identidade racial continuará sua formação contornando as
solidariedades familiares ou comunitárias. Em outros termos, se nos
Estados Unidos e África do Sul, a identidade racial ou étnica serviu para
a mobilização política, no Brasil tem sido útil, primordialmente, para
reforçar a auto‐estima negra, embora não encontre a necessária
ressonância no plano da mobilização política (Guimarães, 1999: 111).
Munanga observa que as dificuldades da mobilização da
identidade racial negra no Brasil estariam relacionadas à categoria
mestiço. Assim, se é verdade que a mestiçagem não conseguiu resolver
os efeitos da hierarquização dos três grupos de origem e os conflitos de
desigualdades raciais resultantes dessa hierarquização, também, é
verdade que não constituem uma categoria estanque pelo fato de ser de
cor e não de origem; portanto, dependendo do grau de mestiçagem e da
condição socioeconômica, eles podem atravessar a linha de cor e
reclassificar‐se no grupo branco (Munanga, 1999: 121).
Para esse autor, a proposta dos movimentos negros no Brasil
esbarra na mestiçagem cultural, pois o espaço do jogo de todas as
identidades não é nitidamente delimitado. Neste sentido, Munanga
reconhece tanto os esforços dos movimentos negros na redefinição e a
caminho de uma consciência política e uma identidade étnica
mobilizadoras, contrariando a democracia racial, quanto à pequena
efetividade das propostas racialistas que nascem do antirracismo
diferencialista e sustentam as propostas multiculturalistas em um país
de ideologia uniculturalista como o nosso (Munanga, 1999: 125‐126).
44
Quanto aos Estados Unidos, o antirracismo (racialista) se depara com
um discurso semelhante ao discurso sobre a raça existente no Brasil que,
em poucas palavras, nega a persistência do racismo. Ao fazer isso, este
discurso sinaliza para o fim das políticas de ação afirmativa, ao mesmo
tempo, que afirma que as políticas públicas para serem antirracistas
precisam ser universalista e “color blind” (Guimarães, 1999: 112). Em
outros termos, o antirracismo racialista norte‐americano convive,
atualmente, com o nascimento de um discurso universalista que tenta
encobrir e ou esconder as desigualdades que persistem entre brancos e
não‐brancos. Deste modo, ao discutir uma agenda integrada do
antirracismo, Guimarães acredita que o fato do povo sul‐africano
(multiétnico e multirracial) ter optado pela construção de um Estado não‐
racialista pode nos ensinar alguma coisa. No momento de reconstrução da
nação e do Estado, “a África do Sul não pode, por um lado, definir‐se como
um prolongamento da Europa, como o Brasil e Estados Unidos fizeram,
sob pena de alienar a grande maioria da população africana; mas não
poderá também definir‐se segundo as tradições africanas mais
provincianas, ignorando mais de três séculos de contato cultural”
(Guimarães, 1999: 114). Assim, “é a África do Sul que poderá nos indicar
um modelo de nação multicultural, multi‐étnica e não‐racialista para a
agenda anti‐racialista no Brasil e nos Estados Unidos” (Guimarães, 1999:
114).
A agenda antirracista deve ser pensada em três dimensões: o
Estado, a nação, os indivíduos. No plano do Estado, além de todas as
garantias democráticas que já constam nas cartas constitucionais dos
três países, o princípio do não‐racialismo não pode impedir a
elaboração e execução de legislações especiais visando combater formas
duradouras de opressão social. No plano da nação, para Guimarães, o
desafio está na reconstrução das nacionalidades em bases pluriculturais
e pluriétnicas. Os ideais de assimilação e de integração do Estado‐
Nação terão que ser substituídos pela integração ao nível do Estado
(dos direitos) (Guimarães, 1999: 114). Isto, por sua vez, pode conduzir à
superação da equação “do século XIX (um Estado= uma nação= uma
raça= uma cultura)” por uma equação em que teremos: “um Estado=
várias heranças culturais= várias raças= várias etnias. Não que não se
possa desenvolver uma cultura cívica particular, mas tal cultura não
45
pode significar a negação das diversas heranças e tradições culturais
que formam a nação” (Guimarães, 1999: 114).
No plano individual e das identidades grupais, “o antirracismo
deve visar os estigmas raciais (de cor, raça e classe, no Brasil; de raça e cor
nos Estados Unidos e de etnia, na África do Sul)” (Guimarães, 1999: 114).
Convém retomar Mandani e lembrar que a forma de
“tribalização” ocorrida durante o período colonial persistiu após a
queda do apartheid, constituindo‐se em um dos grandes obstáculos à
democratização do país. Isto é, para se tornar multicultural, a África do
Sul, aparentemente, tem que “destribalizar” a sociedade civil,
possibilitando uma convivência democrática plural e criando a
possibilidade de uma cidadania equitativa. A distinção entre
pluricultural e multicultural pode desvendar melhor o que está por trás
da oposição não‐racialismo/racialismo. Uma sociedade pluralista (racial
e etnicamente) universalizante ou uma sociedade com projetos raciais e
étnicos particularizantes em disputa por posições nas diferentes esferas
da vida social. A escolha, entre uma ou outra forma de sociedade,
implica em caminhos distintos rumo à consolidação do processo
democrático em qualquer dos países estudados. Mas, o que se pode ter
certeza é que a racialização do mundo tornou‐se uma realidade global.
2. Desdobramentos contemporâneos na sociedade brasileira
Ao se observar o preâmbulo da Constituição Federal de 1988,
tem‐se a impressão de que a concepção de “democracia racial”
permanece presente. No entanto, ela contém uma série de desencontros
e sinonímias decorrentes da pouca precisão na forma de termos como,
por exemplo, “preconceito”, “prática de racismo”, “diferença de
tratamento” e “discriminação” (Santos, 2010).
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem‐estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a
46
proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do
Brasil.” (Brasil, 1998, Preâmbulo; grifo nosso).
A tensão entre a visão de que somos uma comunidade
imaginada homogênea, fraterna e harmônica está em contradição com o
próprio texto constitucional, e pode ser explicada pela erosão paulatina
do discurso da “democracia racial” e pela emergência de um “novo”
discurso, em tese mais representativo, das aspirações populares em se
ver representada em suas diferenças de origem étnico‐racial, isto é, uma
comunidade que se imagina diversa culturalmente. Do ponto de vista
institucional, a criação, no primeiro governo do Presidente Lula da
SEPPIR4 e da SECAD5, sinalizaram para um avanço na compreensão do
Estado em relação ao problema racial presente na sociedade brasileira e,
também, em relação a possíveis caminhos para equacioná‐lo em
resposta à pressão dos setores organizados da população negra.
Nesse sentido, ao se revisitar o argumento de Anderson (2008) de
que a identidade nacional é uma “comunidade imaginada” em suas
consequências, nem sempre analisadas em nosso país, é possível uma
nova compreensão das mudanças sociais em curso, em especial no que
diz respeito à diversidade étnico‐racial brasileira, como segue: a primeira
é que as culturas nacionais são compostas não somente de instituições
culturais, mas de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um
discurso – uma maneira de construir significados que influenciam e
organizam tanto nossas ações, quanto nossas concepções sobre nós
mesmos; a segunda é que tais culturas nacionais constroem identidades
ao produzirem significados sobre a “nação” com os quais podemos nos
4 A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), criada pelo governo
federal no dia 21 de março de 2003, no Dia Internacional pela Eliminação da
Discriminação Racial, objetiva o reconhecimento das lutas históricas do movimento negro
brasileiro e o estabelecimento de iniciativas contra as desigualdades raciais no país.
5 A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da
Educação (SECAD/MEC), oficialmente criada em julho de 2004, reúne temas como
alfabetização e educação de jovens e adultos, educação do campo, educação
ambiental, educação escolar indígena e diversidade étnico‐racial, temas antes
distribuídos em outras secretarias. A criação da Secad marcou a valorização da
diversidade da população brasileira, por meio da formulação de políticas públicas e
sociais como instrumento de cidadania.
47
identificar. Estes significados estão contidos nas histórias que são contadas
sobre ela, nas memórias que conectam seu presente com seu passado, e
nas imagens que são construídas a propósito delas [nações].
De acordo com Bhabha (2010: 11), “as nações, como narrativas,
perdem suas origens nos mitos do tempo e somente percebem
inteiramente seus horizontes nos olhos da mente”. Daí a importância de
nos perguntarmos: Como a narrativa da cultura nacional é contada?
Segundo Hall, cinco aspectos importantes se destacam, dentre
muitos, para uma resposta compreensível à questão:
1) A narrativa da nação, contada e recontada nas histórias e
literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular, oferece um
conjunto de histórias, imagens, paisagens, cenários, eventos
históricos, símbolos e rituais nacionais que sustentam, ou
representam, as experiências, as tristezas compartilhadas, os
triunfos e desastres que dão sentido à nação;
2) Há ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na
atemporalidade. A identidade nacional é representada como
primordial. O essencial do caráter nacional permanece imutável
através de todas as vicissitudes da história;
3) “(...) a tradição inventada [significa] um conjunto de práticas,
(...) de uma natureza simbólica ou ritual que procuram inculcar
certos valores e normas de comportamento através da repetição
que automaticamente implica a continuidade de um passado
histórico adequado” (Hobsbawn & Ranger, 1983: 1);
4) O mito fundante é uma história que localiza a origem da nação,
as pessoas e suas características nacionais como tão antigas que
elas estão perdidas na névoa do tempo, não “real”, mas mítico;
5) A identidade nacional é também, muitas vezes, baseada
simbolicamente na ideia de um povo ou “folk” puro, original.
Desse modo, uma cultura nacional funciona como uma fonte de
significados culturais, como um foco de identificação e como um
sistema de representação. Em seu famoso ensaio sobre o assunto, Renan
(2010) nos diz que três coisas constituem o princípio da unidade da
nação: a posse comum de um legado de memória (memórias do
passado); o desejo de viver conjuntamente (o desejo de vida em
48
comum); a vontade de perpetuar a herança que se recebeu em uma
forma indivisível (a perpetuação da herança).
Thimothy Brenan nos lembra que a palavra nação refere‐se “tanto
ao Estado nacional moderno quanto a algo mais antigo e nebuloso – a
natio –, uma comunidade local, domicílio, família, condição de pertença”
(Brennan, 2010: 66). As identidades nacionais representavam
precisamente o resultado da junção destas duas metades da equação
nacional – oferecendo tanto a filiação política ao Estado nacional, quanto
a identificação com a cultura nacional: “tornar cultura e política
congruentes” e favorecer “as culturas razoavelmente homogêneas, cada
qual com seu próprio teto político” (Gellner, 1983: 43).
De acordo com Santos, a representação da mestiçagem6
encarnou nos brasileiros, por meio do ideal da democracia racial, o não
reconhecimento da existência e, consequentemente, da relevância das
raças na formação e na dinâmica social brasileira, estas entendidas
como cordiais e assimilacionistas. Este não reconhecimento das raças
resultou na dedução da inexistência do racismo, ou melhor, confiaram
que o antirracialismo promoveria o antirracismo no país. Entretanto,
sorrateiramente, as práticas racistas permaneceram (e permanecem),
marginalizando, simbólica e materialmente, os negros (Santos, 2010).
No entanto, com base na perspectiva de Winant se verifica, a partir da
agência do movimento social negro, a possibilidade de analisar o caso
brasileiro com base na incorporação das três determinações de modo a
tratar raça como alguma coisa nem fantasmagórica, nem tangível, nem
6 O conceito de mestiçagem é uma construção que só adquire sentido quando
considerada em relação com seu par, a noção de raça. Ele nos conduz a um paradoxo
básico da ideia de mestiçagem. Um mestiço se forma a partir de duas ou mais raças.
Assim, o paradigma dominante das ciências biológicas afirma veementemente que
não existem raças, que só existe uma raça humana. De acordo com esta concepção foi
se convencionando a noção de populações humanas como um substituto heurístico
do conceito obsoleto de raça, de modo que nos permite continuar usando a ideia de
mestiçagem. Contudo, a palavra mestiçagem encontra sua maior difusão no sentido
ideológico de caracterizar alguns grupos humanos que se autodefinem
estrategicamente, frente a outros considerados “puros” ou homogêneos racialmente,
como mestiços. Esta ideologia da mestiçagem é especialmente importante na America
Latina que se vê mestiça em oposição aos Estados Unidos da América e a África do
Sul (durante o regime do Apartheid); nações que se definem como segregadas e, em
consequência, não mestiças (Barañano et al., 2007).
49
verdadeira, nem falsa. Tais determinações indicam: a dimensão política,
a global comparativa e a histórico‐temporal.
A nossa hipótese é de que o deslocamento na forma como a
sociedade brasileira se autorrepresentava é decorrente do processo de
luta política pela (res)significação/deslocamento do lugar do ser negro
no processo de racialização de sua experiência coletiva.
No plano político, o questionamento ao ideário da democracia
racial e a demonstração empírica da desigualdade de tratamento de
brancos e não‐brancos no mercado de trabalho têm provocado uma
rediscussão em torno da forma e conteúdo da presença das culturas
africanas na formação social brasileira. É possível destacar alguns
aspectos que permitem sustentar essa linha de raciocínio, a saber: 1) o
tratamento político‐jurídico da temática da diversidade e da igualdade
racial na Constituição de 1988; 2) a alteração da Lei de Diretrizes e Bases
da educação brasileira, e as diretrizes que a acompanham, orienta para
uma mudança significativa nos conteúdos curriculares nacionais, ao
prescrever a obrigatoriedade de uma educação que possibilite a
construção de relações étnico‐raciais saudáveis e que inclua a história e
a cultura afro‐brasileira e africana e, também, indígena.
De acordo com Silva Jr., a Constituição de 1988 representa,
também, um marco no tratamento político‐jurídico da temática da
diversidade e da igualdade racial, como um dos reflexos da atuação
política do movimento negro. Para o autor, alguns aspectos merecem
destaque:
1) A reconsideração do papel da África na formação da
nacionalidade brasileira;
2) O reconhecimento do caráter pluriétnico da sociedade brasileira
como fundamento constitucional do currículo escolar;
3) O direito constitucional à identidade étnica como
fundamento do currículo escolar;
4) A cultura negra como base do processo civilizatório nacional
e como um eixo estruturante do currículo escolar.
Uma leitura possível das diretrizes e de seu plano nacional de
implementação, verifica que estas, em suas questões introdutórias,
procuram oferecer uma resposta na área de educação à demanda da
população afrodescendente por políticas de ação afirmativa, entendida
50
tanto na dimensão reparatória quanto na dimensão do reconhecimento e
valorização de sua história, cultura e identidade. “Trata, ele, [o parecer],
de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais,
antropológicas oriundas da realidade brasileira, com o objetivo explicito
de combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente
os negros” (Diretrizes, 2004: 6). Para tanto, de forma propositiva, as
diretrizes recomendam a divulgação e produção de conhecimentos; a
formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos
orgulhosos de seu pertencimento étnico‐racial; a criação de condições, no
ambiente escolar, para que professores e alunos interajam na construção
de uma nação democrática; e sugerem a consolidação/obtenção de
direitos que garantam a valorização de sua identidade. No que diz
respeito às metas, as diretrizes estabelecem as seguintes:
1) o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional,
manifestarem seus pensamentos com autonomia, individual e
coletiva, e expressarem visões próprias de mundo;
2) o direito dos negros cursarem cada um dos níveis de ensino
das diferentes áreas de conhecimento, com formação para lidar
com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações
sensíveis e capazes de conduzir à reeducação das relações entre
diferentes grupos étnico‐raciais.
Em consonância com o debate sobre políticas de reparação, de
reconhecimento e valorização da população negra e, também, com o
artigo 205 da Constituição Federal de 1988, as diretrizes acentuam o
papel do Estado em promover e incentivar políticas de reparações.
Quanto à educação das relações étnico‐raciais, elas sugerem a
necessidade de reeducá‐las. Assim, as diretrizes enfatizam que, para
reeducar as relações étnico‐raciais, impõe‐se à educação aprendizagens
entre negros e brancos, trocas de conhecimento, quebra de
desconfianças, projetos conjuntos para a construção de uma sociedade
justa, igual, equânime. Para tanto, impõe‐se a necessidade de rever e
atualizar o papel da escola, onde a formação para um tipo de cidadania
regulada tem se tensionado com a construção/preservação da
identidade particular dos afrodescendentes.
Em relação à formação de professores, as diretrizes orientam no
sentido de se desfazer a mentalidade racista e discriminadora secular;
51
para a necessidade de superar o etnocentrismo europeu; para a
desalienação dos processos pedagógicos; para a construção de projetos
pedagógicos, e pedagogias que desvendem os mecanismos racistas e
discriminatórios com o objetivo de reeducar as relações étnico‐raciais.
Nesse sentido, elas arrolam algumas providências a serem tomadas
pelos gestores dos sistemas de ensino e autoridades responsáveis pela
política pública educacional:
1) Ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade
cultural, racial, social e econômica brasileira;
2) A autonomia dos estabelecimentos de ensino para compor os
projetos pedagógicos, no cumprimento ao exigido pelo artigo 26
da Lei n. 9.394/1996, permite que eles se valham da colaboração
das comunidades a que a escola serve, do apoio direto ou
indireto de estudiosos e do movimento negro;
3) Caberá aos sistemas de ensino, às mantenedoras, à coordenação
pedagógica dos estabelecimentos de ensino e aos professores,
com base no Parecer, estabelecer conteúdos de ensino, unidades
de estudos, projetos e programas, abrangendo os diferentes
componentes curriculares;
4) Caberá aos administradores dos sistemas de ensino e das
mantenedoras prover as escolas, seus professores e alunos de
material bibliográfico e de outros materiais didáticos, relativos à
educação das relações étnico‐raciais e do ensino de história e
cultura afro‐brasileira e africana, além de acompanhar os
trabalhos desenvolvidos tanto na formação inicial como
continuada de professores.
52
De acordo com as diretrizes7, bem como o plano nacional de sua
implementação, tais condições são necessárias, tanto para a
(des)racialização de uma sociedade que se utiliza da desvalorização da
cultura de matriz africana e dos aspectos físicos herdados pelos
descendentes de africanos, quanto para o processo de construção da
identidade negra no Brasil, de forma condizente com o legado histórico
das culturas africanas no país.
A História Geral da África (HGA), desde a publicação do primeiro
dos oito volumes, pela Unesco de Paris, passou a inspirar jovens
descendentes de africanos em diferentes regiões do globo e,
especialmente, no Brasil. As denúncias sobre discriminação e racismo e a
demonstração pública do conteúdo de uma leitura recriada das culturas
africanas na diáspora, por exemplo, por meio dos blocos afros tais como o
Olodum e o Ilê Ayê, são aspectos fundamentais do processo da luta
política para construção de uma identidade negra que tem revelado
menos a erosão e mais a resignificação do mito da democracia racial.
A junção entre cultura e política é constitutiva do tipo de ação
das denominadas, por seus próprios membros, entidades ou
organizações negras. Assim, a reivindicação por educação surge em
consonância com o legado das gerações anteriores de militantes da
causa negra, mesmo antes do processo de redemocratização do Estado
brasileiro. A questão, a saber, é a seguinte: Há algo novo a se dizer
sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo? A resposta é sim. E a
novidade é decorrente da centralidade que a política pública
educacional passou a adquirir, para o movimento negro
7 O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico‐Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro‐
Brasileira e Africana é o resultado das solicitações advindas dos anseios regionais,
consubstanciadas pelo documento Contribuições para a Implementação da Lei n.
10.639/2003: Proposta de Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais da Educação das Relações Étnico‐Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro‐Brasileira e Africana, fruto de seis encontros denominados Diálogos Regionais
sobre a Implementação da Lei n. 10.639/03, do conjunto de ações que o MEC
desenvolve, principalmente a partir do surgimento da Secad, em 2004, documentos e
textos legais sobre o assunto. Cabe aqui registrar a participação estratégica do Setor
de Educação da Unesco do Brasil, do movimento negro, além de intelectuais e
ativistas da causa antirracista.
53
contemporâneo, como lugar de disputa da articulação de dois tipos de
demandas que se tenta equacionar em seu interior. A primeira, em
relação à qualidade da educação formal que é vista tanto como um
direito, quanto como a forma por excelência de mobilidade ocupacional
e social. A segunda é a luta política por mais e melhor educação a qual
continua tendo como exigência o resgate da contribuição das culturas
africanas para a formação social brasileira.
Dessa forma, a obrigatoriedade, em todo o sistema de ensino, de
conteúdos que proporcionem o conhecimento de história e cultura afro‐
brasileira e africana, em toda a educação básica, por um lado, exige
mudanças no conteúdo curricular de todos os cursos superiores do país
e, por outro lado, é uma oportunidade de uma ressignificação do país e
de sua história, levando‐se em conta a perspectiva daqueles
considerados como o “outro”.
Nesse aspecto, a comparação com os Estados Unidos e com a
África do Sul é inevitável quando se considera a globalização do espaço
racial; não é mais possível o simples contraste entre preconceito de
origem (EUA e África do Sul) e preconceito de marca (Brasil). Novas
pesquisas poderão desvendar como os movimentos de luta de
libertação no continente africano, o movimento dos direitos civis nos
EUA, a derrocada do apartheid na África do Sul, impactaram nas lutas
dos afro‐brasileiros a partir da percepção de que a diferenciação dos
processos de colonização não impediu que o elemento africano fosse
racializado nos diferentes contextos. Ao mesmo, tais movimentos
geraram novas formas de solidariedade e uma consciência renovada em
termos da dimensão global da discriminação racial e do racismo.
Quando se considera o papel que o Brasil tem desempenhado
como potencial ator global, em especial, na última década, no diálogo
sul‐sul e com atenção à relação com o continente africano, as
expectativas da União Africana em relação à sexta região8 e os sentidos
8 O Protocolo de Emendas ao Ato Constitutivo da União Africana, adotado pela Sessão
Extraordinária da Primeira Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo em Addis
Abeba, Etiópia, em Janeiro de 2003, e em particular o artigo 3º (q), que convida a
diáspora africana a participar como um importante componente na construção da
União Africana. O protocolo insiste na ideia de que os descendentes de africanos, em
especial os residentes no continente americano, formariam a sexta região do continente.
54
da ação do movimento negro brasileiro no que diz respeito à diáspora, é
possível pensar a seguinte questão: o que o discurso sobre a diáspora,
efetivamente, pode articular?
O discurso sobre a diáspora articula, a partir do simbolismo e de
representações que ele emana, expectativas, ações, resultados práticos e
dimensões institucionais distintas, a saber:
1) a União Africana se caracteriza como uma confederação de
Estados nacionais, na qual têm assento 53 chefes de Estado. De
acordo com seu ato constitutivo, foi inspirada nos ideais que
nortearam os fundadores da organização continental e gerações
de pan‐africanistas em sua determinação de promover a
unidade, a solidariedade, coesão e cooperação entre os povos da
África e os Estados africanos; posteriormente, foram
acrescentados no ato constitutivo todos os afrodescendentes
dispersos pelo mundo;
2) a partir da influência das culturas africanas que participaram da
formação social brasileira e da presença de um grande
contingente de população negra, o Estado operacionaliza um
discurso pelo qual molda atitudes, representações e políticas.
Estas se assentam, sobretudo, na crença da ausência de racismo,
na harmonia social brasileira e nas virtudes da brasilidade. A
ideia de diáspora africana, portanto, pode ser pensada como um
dos sustentáculos da política externa brasileira para construção do
país como ator global e como o principal elo comercial e
econômico com os países africanos, além de possibilitar um
discurso intranacional em resposta a setores do movimento negro;
3) o movimento negro não pode mais ser lido como unitário, em
termos de sua perspectiva de ação a partir do conceito de
diáspora; em particular, na perspectiva de Brah (1996), que
propõe a distinção entre o conceito teórico de diáspora e a
experiência de diáspora. Com tal distinção, a autora sugere que
este conceito seja apreendido como “genealogias”
historicamente contingentes, no sentido de Foucault, ou seja,
como um conjunto de tecnologias de pesquisa que constroem a
história das trajetórias das diferentes diásporas e analisam seus
relacionamentos através dos campos sociais, da subjetividade e
55
da identidade. Para a autora, o conceito de diáspora oferece uma
crítica aos discursos que fazem exame preconcebido de
determinadas origens imutáveis, tendo em conta o desejo de
voltar para casa, que não é o mesmo que voltar à “pátria”. A
distinção é importante porque nem todas as diásporas mantêm
uma ideologia de “retorno”; mais ainda, Brah (op. cit.) afirma
que o subtexto “lar”, que compreende o conceito de diáspora,
permite a análise da problemática da posição do sujeito
“autóctone” e sua precária relação com os discursos “nativistas”.
Em relação aos negros brasileiros, se não encontramos uma
ideologia de retorno físico à origem africana, identificamos pelo menos
dois discursos distintos: um que dilui a origem africana na brasilidade;
outro, no qual a origem africana é discursivamente constitutiva da
identidade, daí a utilização recente de expressões como afrodescendente
e afro‐brasileiro. A impossibilidade de voltar para a casa da mãe África
em ambos os discursos permite observar lógicas distintas no uso do
conceito de diáspora: uma que contigencia e restringe a origem africana
a uma dinâmica nacional; outra na qual aquela origem é utilizada como
elemento de crítica da posição do sujeito negro na sua relação com a
sociedade que, ao racializar sua pertença étnica, o hierarquiza, podendo
ele, no entanto, ao recriar sua origem para além da fronteira nacional
numa perspectiva diaspórica, denunciar a forma como a diferença é
transformada em desigualdade social no Brasil, e em vários Estados
nacionais latino‐americanos.
Do ponto de vista de uma nova agenda de pesquisa sobre o negro
no Brasil a dimensão histórico‐temporal, proposta por Winant, pode nos
reorientar para uma aproximação teórica aos escritos pós‐
estruturalistas, preocupados com as diferenças entre os seres humanos
em especial aqueles que têm feito esforços para explicar o “Ocidente”
ou o tempo colonial como um vasto projeto de demarcação das
“diferenças” humanas, ou mais globalmente, argumentando sobre a
formação parcial de identidades coletivas, em termos de “Outros”
externalizados.
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4‐ DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO
DAS RELAÇÕES ÉTNICO‐RACIAIS E PARA O ENSINO DE
HISTÓRIA E CULTURA AFRO‐BRASILEIRA E AFRICANA. O
Conselho Pleno aprova por unanimidade o voto da Relatora. Sala das
Sessões, 10 em março de 2004.
60
O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil
André Ricardo de Souza1
María Candelaria Sgró Ruata2
Maximiliano Campana3
1. Introdução
Este texto apresenta dados e reflexões sobre alguns aspectos do
cristianismo no Brasil e na Argentina4. Em ambos os países os
segmentos católicos e evangélicos se posicionam no espaço público,
mediante manifestações organizadas e militância político‐partidária,
tanto na defesa de seus interesses como de seus valores doutrinários.
Tentam e, às vezes, conseguem pressionar os governos instituídos,
sobretudo através de sua representação parlamentária. Alguns ativistas
cristãos, bastante identificados com as igrejas, chegam inclusive a
ocupar cargos executivos relevantes.
A questão da moral sexual ocupa lugar de destaque em termos de
mobilização de militantes católicos e evangélicos, exercendo influência
também sobre os processos eleitorais. O texto traça um panorama
religioso desses países, destacando a presença cristã e discutindo como
suas instituições e lideranças se articulam em questões controversas.
1 Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo e professor adjunto do
Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos.
2 Licenciada em Comunicação Social pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC‐
Argentina). Mestranda em Sociologia e Doutoranda em Estudos Sociais da América
Latina do Centro de Estudos Avançados (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET‐ CIECS.
3 Advogado. Universidade Nacional de Córdoba. Doutorando em Direito e Ciências
Sociais (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET – CIJS.
4 Por opção metodológica, uma importante vertente cristã foi deixada de lado neste
61
Para isso este trabalho se divide em duas grandes sessões. Na
primeira, são apresentadas algumas dimensões e características
particulares em relação à conformação do campo religioso no Brasil e na
Argentina. Apesar das diferenças entre ambos os países no registro de
dados sobre variáveis religiosas na população, se pretende configurar
um panorama geral que servirá para levantar alguns elementos
comparativos. Na segunda sessão, por meio de exemplos, são
levantados debates sobre políticas de sexualidade e reprodução, em
ambos os contextos, a fim de delinear o ativismo dos setores religiosos
ao redor da busca de definições da moral sexual.
2. O campo religioso
2.1 A demografia religiosa no Brasil
A sociologia da religião no Brasil, assim como em muitos outros
países, têm se debruçado principalmente ao cristianismo,
caracterizando‐se como uma “Sociologia do catolicismo em queda”
(Pierucci, 2004:19), fenômeno que origina uma ainda modesta
diversificação religiosa. Em 1940, os católicos representavam 96,2% no
primeiro censo demográfico em que o Instituto Brasileiro de Geografia
(IBGE) considerou a questão religiosa. Esta cifra chegou em 2010, ano
do último censo com dados disponíveis, a 64,6%. Por outro lado, os
protestantes, tanto os missionários ou históricos como os pentecostais,
formavam naquele primeiro censo 2,6%, passando a compor sete
décadas depois a 22,2% da população total. Mas o contingente que mais
cresceu foi o dos “sem religião”, que de 0,2% passou a 8,0%5.
Os dados mostram que em 1970 os ‘sem religião’ dobraram de
tamanho e na década posterior tiveram um notável crescimento de
quase 200%. Já os anos 90 foram marcados por um grande crescimento
evangélico (73%), devido a uma explosão Pentecostal, provocada
principalmente pela expansão da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), fundada no Rio de Janeiro em 1977. Como consequência disso e
5 Fernandes e Pita (2006:131) apontam um dado curioso sobre os sem religião: 33,2%
deles eram antes pentecostais, enquanto que 23,1% e 11,8%, respectivamente, eram
católicos e protestantes históricos.
62
do também contínuo crescimento dos sem religião, o segmento católico
teve uma redução proporcionalmente maior que o crescimento
evangélico (128%). Conclui‐se que, ao final do século XX, tornou‐se
bastante mais fácil não ser católico e abraçar o protestantismo ou,
inclusive, nenhum credo religioso.
Tabela 1. Religiosidade no Brasil – 1940‐2010.
Outras
Ano Católicos Evangélicos Sem religião
religiões
1940 95,2 2,6 1,9 0,2
1950 93,7 3,4 2,4 0,3
1960 93,1 4,3 2,4 0,5
1970 91,8 5,2 2,3 0,8
1980 89,0 6,6 2,5 1,6
1991 83,3 9,0 2,9 4,7
2000 73,9 15,6 3,5 7,4
2010 64,6 22,2 5,2 8,0
Fonte: IBGE ‐ censos demográficos (% da população nacional).
No universo católico existe certa diversidade, sendo ainda a
distinção básica aquela que se refere ao catolicismo nominal e ao
internalizado. Os católicos nominais abrangem a versão tradicional, tanto
rural como urbana (Camargo, 1973). No âmbito do catolicismo
internalizado, as duas grandes vertentes são: a Renovação Carismática
Católica e a Teologia da Libertação/Comunidades eclesiásticas de base
(CEBs).
Tabela 2. Diversificação dos católicos em 1994.
Vertentes %
Tradicionais ou Nominais 61,4
Identificados com a Renovação Carismática 3,8
Identificados com as Comunidades Eclesiásticas de Base 1,8
Identificados com outros movimentos 7,9
Total 74,9
Fonte: Datafolha (1994) – Pierucci & Prandi (1996).
63
A pesquisa realizada por Pierucci e Prandi (1995), com dados do
Instituto Datafolha sobre as eleições presidenciais de 1994, mostrou que
havia 61,4% de católicos tradicionais ou nominais, 3,8% de católicos
carismáticos, 1,8% de participantes das CEBs e 7,9% vinculados a outros
movimentos internos da igreja. Havia, portanto, 14% de praticantes do
catolicismo internalizado.
Em termos de protestantismo, a divisão básica ocorre entre as
igrejas protestantes históricas ou missionárias e as pentecostais. Entre as
históricas se encontram: a Batista, a Presbiteriana, a Luterana e a
Metodista. No âmbito do pentecostalismo, temos três categorias básicas
de igrejas: pentecostais clássicas, instaladas no Brasil no início do século
XX (Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus), pentecostais
de cura divina, inseridas ou criadas no país entre as décadas de 50 e 60
(Evangelho Quadrangular, Brasil para Cristo e Deus é Amor), e
neopentecostais, formadas a partir da década de 1970. As principais
denominações neopentecostais são: Igreja Universal do Reino de Deus,
Igreja Internacional da Graça de Deus, Sara Nossa Terra, Igreja Mundial
do Poder de Deus e Renascer em Cristo (Souza, 1969; Freston, 1993,
Mariano, 1999). Em termos de tamanho, o pentecostalismo clássico
aparece em primeiro lugar, seguido pelo neopentecostalismo. A IURD
novamente se destaca em função da relação entre seu tamanho e seu
tempo de existência. Enquanto as instituições que possuem mais
adeptos que ela são, no mínimo, centenárias, esta instituição religiosa
tem somente trinta e cinco anos de idade. Ou seja, conta com uma
trajetória de expansão bastante acelerada.
2.2 O campo religioso na Argentina
Na Argentina6 a crença em Deus se encontra amplamente
enraizada, representando 91,1% da população. Entretanto, esta média
varia de acordo com o gênero7, a idade8 e a escolaridade9.
6 Nos censos populacionais realizados na Argentina, somente se revelaram dados
relacionados à religião nos dos anos 1875, 1947 e 1960 (DGEC, 2010) pelo que se sabe
de informações atualizadas provenientes do INDEC (Instituto Nacional de Estatística
e Censos). Para a reconstrução do panorama religioso na Argentina foram usados os
dados coletados pela “Primeira pesquisa sobre crenças e atitudes religiosas na
Argentina” (Mallimaci y Esquivel, 2008).
64
Em relação às filiações religiosas, 76,5% das pessoas se
consideram católicas, 9% evangélicas10, 1,2% testemunhas de Jeová,
0,9% mórmons, 1,2% professa outras religiões e 11,3% se consideram
indiferentes11.
No entanto, embora 90% dos argentinos creiam em Deus, essa
proporção diminui em relação ao ato de frequentar lugares de culto:
quase 76% disseram que raramente ou nunca frequentam tais lugares
(embora no caso dos evangélicos, mais de 60% disseram que
frequentemente estão presentes). Neste sentido, é interessante também
apontar que 86% acham que podem ser bons religiosos sem frequentar a
igreja ou um templo, 76,3% acham que deveria ser permitido o
casamento de padres católicos e 60,3% que deveria ser permitido o
sacerdócio às mulheres.
Estes dados, entretanto, apresentam importantes disparidades
segundo a região argentina tratada. Assim, o noroeste argentino, mais
tradicional e conservador, possui os índices mais altos de católicos,
representando 91,7% do total. A região patagônica, por outro lado, é a
menos católica (61,5%), e a que possui os índices mais altos de
evangélicos, mórmons e testemunhas de Jeová (25,3%). Buenos Aires e
sua área metropolitana, em contrapartida, concentra o maior número de
pessoas indiferentes frente às religiões e crenças religiosas (18%).
7 As mulheres creem mais em Deus que os homens, representando 93,6% e 88,3%,
respectivamente.
8 A porcentagem de pessoas acima de 65 anos que se considera crente é de 96,7%, caindo
progressivamente até a faixa etária que vai dos 18 aos 29 anos, na qual se consideram
crentes 85,1%.
9 Em geral, quanto maior a escolaridade, menor a porcentagem de argentinos que creem
em Deus. Neste sentido, os percentuais se classificam do seguinte modo: pessoas sem
estudos: 95,7%; com nível elementar completo: 93%; com nível médio: 88%; técnico:
83,1% e superior: 84,5%.
10 Entre elas se incluem: Pentecostal, Batista, Luterana, Metodista, Adventista e a Igreja
Universal do Reino de Deus.
11 Neste caso, se incluem agnósticos, ateus e os que não possuem nenhuma religião.
65
Vale destacar que atualmente a Argentina determina12 em sua
constituição nacional (artigo segundo) que “O governo federal apoie o
culto católico apostólico romano” pondo em destaque, desta maneira, um
reconhecimento privilegiado da Igreja católica na ordem jurídica, política e
econômica do país13. Deste modo, o Estado (com suas forças de segurança)
e a Igreja Católica são tomados como fundadores e garantidores da
argentinidade desde as origens da nação. (Mallimaci, 2001).
E, ademais, Esquivel (2010) lembra que
“[a]s iconografias católicas que decoram os organismos oficiais e a
convocação para a realização do Tedeum não estão prescritas na
legislação, mas sua permanência e continuidade denotam com clareza
o indiscutido e naturalizado papel protagonista que a Igreja Católica
detém no cenário público argentino. Se a relação entre o Estado e a
Igreja Católica é regida pelo Acordo de 1966, a Constituição Nacional e
a miríade de leis (…), o vínculo com os credos restantes se canaliza por
meio do Registro Nacional de Cultos. Criado nos tempos da ditadura
militar, em 1978 (Lei N° 21.745), o Registro Nacional de Cultos supõe
que todas as entidades religiosas que exerçam suas atividades de culto
na Argentina, com exceção da Igreja Católica, devem promover sua
inscrição e reconhecimento oficial, como condição prévia para sua
atuação.”
No entanto, a pesar da forte supremacia política e legal da Igreja
católica recém descrita desde a sanção da constituição nacional em 1853
e até à atualidade, o artigo 14 dispõe que “Todos os habitantes da
Confederação gozam dos seguintes direitos: (…) de professar
12 Apesar dos inúmeros processos de reforma constitucional, o artigo segundo de
reconhecimento privilegiado da Igreja católica segue vigente. Vale mencionar que a
constituição argentina foi reformada nos anos 1860, 1866, 1898, 1949 (embora esta
reforma tenha sido anulada), 1957, 1972 e 1994.
13 Apesar de negar a existência de um projeto de nação secular, impulsionado
principalmente durante as presidências de Domingo F. Sarmiento e Júlio A. Roca, “[a]
secularização da sociedade argentina realizada pela burguesia liberal, que importou o
modelo econômico de Londres e o modelo cultural de Paris, estava incompleta. As
leis do ensino laico e do registro civil de nascimentos, matrimônios e mortes
reduziram a influência eclesiástica. Mas, ao contrário de países vizinhos, a dinâmica
das reformas não foi suficiente para separar o Estado da Igreja.ʺ
66
livremente seu culto.” Esta liberdade de cultos data de 1825, quando se
celebrou o tratado de amizade, comércio e navegação com a Coroa
Britânica, que concedia aos imigrantes ingleses a possibilidade de
celebrar seu culto de forma privada, sendo o pontapé inicial para o que
logo constituiria o campo evangélico na Argentina.
Em relação ao denominado “campo religioso evangélico”,
Wynarczyk (2003) adverte que devem se distinguir três movimentos no
tempo: um primeiro, vinculado àqueles herdeiros da Reforma
Protestante do século XVI e chegados à Argentina durante os processos
migratórios impulsionados no fim do século XIX; um segundo formado
por aqueles evangélicos afiliados às ideias da denominada “Reforma
Radical” do século XVI, e que chegaram à Argentina através das
missões conversionistas; e por último, um terceiro movimento, com
características pentecostais, que se estabeleceu principalmente nos
setores populares do país. Durante os anos noventa, os setores
evangélicos começaram a ganhar adeptos e, dessa maneira, chegaram a
se fortalecer como a primeira minoria religiosa do país (Frigerio e
Wynarczyk, 2008).
Atualmente, na Argentina os evangélicos formam a minoria
religiosa mais importante, cujo percentual varia de 5 a 10% da nação.
Isso seria equivalente a uma população de 3,5 a 5 milhões de habitantes.
Neste sentido, um dado interessante é que há divergências associadas
aos níveis socioeconômicos. Em geral, se estima que o percentual de
evangélicos nos setores populares urbanos pode alcançar ‐ e inclusive
superar ‐ 20% da população (principalmente os pentecostais). Os
percentuais diminuem quando se trata de setores com população de
renda média e média alta, onde os evangélicos representam entre 3% e
5%. (Esquivel et al., 2001; Frigerio e Wynarczyk, 2008).
Além de representar a principal minoria religiosa na Argentina,
os evangélicos representam cerca de 75% do total de cultos não católicos
matriculados nos registros da Secretaria de Culto da Nação
(Wynarczyk, 2003), evidenciando que o campo evangélico, longe de ser
um todo homogêneo, se apresenta como um campo complexo e
fragmentado, com grandes igrejas e templos que possuem uma certa
independência e que nem sempre apresentam os mesmos objetivos nem
são regidos pelos mesmos princípios doutrinários.
67
3. Religião e política
3.1. O cristianismo brasileiro e a política partidária
Em termos de engajamento com o mundo político, os católicos
têm um envolvimento histórico através de seus intelectuais e
instituições, tendo exercido uma grande influência sobre os governos da
República Velha e do presidente Getúlio Vargas. Mais tarde, no período
mais difícil da ditadura militar, as pastorais sociais e as CEBs católicas
exerceriam um importante papel na resistência, abrigo e apoio aos
ativistas de esquerda (Mainwaring, 1989). Nos anos noventa, a Teologia
da Libertação perdeu forças, abrindo um grande espaço à Renovação
Carismática Católica, por meio de um processo de despolitização
(Prandi e Souza, 1996). Mais recentemente, os carismáticos católicos têm
escolhido parlamentares que estejam envolvidos com a defesa de causas
particulares do catolicismo (Mianda, 1999; Mariz, 2001; Senna, 2008;
Reis, 2011).
O crescimento demográfico dos evangélicos no Brasil se
traduziu também em uma maior força política desse segmento religioso.
Durante a maior parte do século XX, predominava uma postura
evangélica dupla: aprovação dos governos e rejeição da política
partidária. Consequentemente, a participação do segmento religioso no
Congresso foi relativamente pequena até a primeira metade dos anos
80, contando quase que exclusivamente com alguns parlamentares
adeptos das igrejas protestantes missionárias.
Em 1985, quando o país voltou a ter, com José Sarney, um
presidente civil e viveu a expectativa das eleições de uma Assembleia
Constituinte para o ano seguinte, os evangélicos pentecostais se
lançaram efetivamente em direção a uma política partidária.
Preocupados com um possível aumento de privilégios constitucionais
para a Igreja Católica, eles passaram a reivindicar a liberdade religiosa,
e a perceber também, nas eleições de 1986, uma oportunidade para
aumentar os lucros para as suas igrejas, principalmente na forma de
concessões de emissoras de rádio. (Pierucci, 1989; Freston, 1993).
Enquanto que em 1982 haviam sido eleitos 12 deputados
federais evangélicos, sendo apenas dois pentecostais, nas eleições
68
seguintes foram eleitos 32 parlamentares desse segmento, sendo 18
deles pentecostais. Com este significativo crescimento de 900% de
representação pentecostal, a prevalência foi da Assembleia de Deus,
com 13 deputados eleitos.
A representação evangélica nas eleições seguintes cresceria
ainda mais, atingindo o número de 30 deputados em 1994 e 49
deputados quatro anos depois. Com parlamentares de diferentes
partidos, mas, principalmente, do Partido Social Cristão (PSC), a
Assembleia de Deus perdurou como a igreja com maior representação
parlamentar até 1998. Naquele ano, surgiram a partir dela 12 deputados
federais, sendo superada pela IURD, que ganhou 14 cadeiras. (Freston,
2001; Fonseca, 2002:126).
Os deputados evangélicos têm sido bastante ativos em questões
relacionadas à reprodução humana e à moral sexual, opondo‐se
firmemente às reivindicações homoafetivas. Eles se destacam também
na apresentação de emendas parlamentares do tipo assistencial, sendo
algumas delas algo questionáveis. Desde 2003, existe a Frente
Parlamentar Evangélica (FPE), marcada pela heterogeneidade
partidária e também denominacional, garantindo certa coesão nos
temas que envolvem a moralidade cristã tradicional e nos interesses
institucionais das igrejas.
No Senado, os evangélicos conquistaram duas cadeiras em 1998,
sendo uma delas de Íris Rezende, do PMDB e da Comunidade Cristã
Evangélica. A outra era de uma adepta da Assembleia de Deus e ex‐
militante católica de CEBs e, portanto, do PT (Partido dos
Trabalhadores), Marina Silva. O número de senadores vinculados a esse
segmento religioso, incluindo os suplentes que assumiram o cargo,
chegou a ser de seis, atualmente é de três: Eduardo Lopes (IURD) e os
batistas Walter Pinheiro e Magno Malta. Destaca‐se o evangélico
Marcelo Crivella, atualmente em licença e que será mencionado
posteriormente neste texto.
Embora não seja proporcional ao tamanho de sua população, os
evangélicos têm uma significativa presença também em outros
parlamentos brasileiros. Um levantamento realizado no segundo
semestre de 2012, utilizando portais de internet do PFE, das
Assembleias Legislativas Estaduais, da Câmara do Distrito Federal e
69
das câmaras municipais de todas as capitais brasileiras mostrou que
nesses locais havia 238 parlamentares reconhecidamente evangélicos
(10% do total).
No âmbito do Poder Executivo, os evangélicos também vêm
exercendo uma forte influência, chegando inclusive a ocupar cargos
importantes. O primeiro a se destacar foi Íris Rezende, eleito prefeito da
capital de Goiânia, em 1965. Ao bater a disputa no estado de Goiás, em
1982, Rezende tornou‐se o primeiro governador evangélico. Em 1986,
assumiu o Ministério da Agricultura durante o governo de Sarney.
Também foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso durante
seu primeiro mandato presidencial, entre 1997 e 1998.
Outros governadores evangélicos foram eleitos no Rio de
Janeiro: o casamento de Anthony Garotinho e Rosinha Matheus.
Garotinho chegou a concorrer à presidência da República pelo Partido
Socialista Brasileiro, em 2002. Sem sucesso na disputa presidencial,
conseguiu ao menos que sua esposa Rosinha Matheus se tornasse
governadora do Rio pelo mesmo partido no primeiro turno.
Em 1989, os evangélicos tiveram uma participação significativa
na primeira eleição presidencial direta após a reabertura democrática.
Uma articulação entre pastores, líderes e parlamentares desse segmento
influenciou a disputa eleitoral. Os evangélicos rejeitavam o candidato
Luiz Inácio Lula da Silva, percebendo‐o como um defensor dos
interesses católicos, dada a vinculação entre o Partido dos
Trabalhadores (PT) com as CEBs e as pastorais sociais. O candidato do
PT era visto também como um ʺrepresentante do comunismo ateuʺ, que
deveria ser fortemente combatido. Como resultado desse processo, os
pentecostais votaram em massa em Fernando Collor no segundo turno
a fim de impedir a vitória do PT (Pierucci e Mariano, 1992).
Na eleição de 1994, os evangélicos continuaram posicionando‐se
contra Lula, apoiando enfaticamente o candidato do Partido da Social
Democracia Brasileira (PSBD), Fernando Henrique Cardoso (Pierucci e
Prandi, 1996). Os parlamentares evangélicos também votaram a favor
da mudança constitucional, viabilizando assim a candidatura à
reeleição do presidente do PSBD, chegando a apoiá‐la exitosamente na
segunda campanha.
70
Em 2002, os evangélicos tinham diante de si um quadro eleitoral
mais complexo. O desgaste da gestão de Cardoso fez com que parte
deste segmento religioso não aderisse ao candidato do PSBD, o ex‐
ministro do Planejamento e Saúde do governo, José Serra, apoiado pela
Assembleia de Deus. Além disso, pela primeira vez, havia um
candidato evangélico competitivo na disputa: Anthony Garotinho14. A
transmissão do programa de rádio do então governador do Rio de
Janeiro para outros estados, bem como a sua propagação para as igrejas
de outros estados, foram estratégias adotadas para aumentar sua
popularidade e viabilizar sua candidatura presidencial. (Fonseca, 2002:
207‐214).
Garotinho conseguiu que 51,3% dos evangélicos votassem nele,
sendo, no entanto, rejeitado pelos católicos que lhe deram apenas 6% de
seus votos (Bohn, 2004:323). O presbiteriano terminou em terceiro lugar,
dando um importante apoio no segundo turno ao vencedor ʺLulaʺ, que
finalmente acabou entrando na disputa presidencial com apoio parcial
do eleitorado Pentecostal: a IURD15. Naquela que foi a quarta disputa
presidencial seguida de Lula, houve uma aliança inusitada entre o PT e
o Partido Liberal, fortemente marcada pela influência da IURD.
No primeiro ano da presidência de Lula, houve mais uma
mostra da força política evangélica no país: a participação no processo
de regulamentação do novo Código Civil. Na versão de 1916, as
organizações religiosas tinham privilégios no tratamento legal, mas,
com a legislação aprovada, elas passariam a receber o mesmo controle
estatal exercido sobre organizações laicas sem fins lucrativos. Mais uma
vez, denunciando uma suposta perseguição ideológica,
constitucionalmente proibida, os evangélicos se articularam com
representantes católicos, conseguindo assim aprovar mudanças na
redação de dois artigos da lei 10.406, que instituiu o novo Código Civil.
A sanção presidencial para tal mudança foi destacada por Lula como
um ʺgrande ato em favor da liberdade religiosaʺ (Mariano, 2006).
14 O primeiro presidente protestante do Brasil foi o general luterano Ernesto Geisel,
governante entre 1974 e 1979, e que teve uma vida religiosa bastante discreta.
15 Duas grandes igrejas pentecostais permaneceram sem envolver‐se na política
partidária: a Congregação Cristã do Brasil e “Deus é Amor”.
71
A partir daquela penetração inicial no eleitorado pentecostal,
Lula procurou estreitar relações, participando de eventos evangélicos,
formando comitês, pedindo votos e orações e prometendo parcerias
(Mariano et al., 2006:66). Com esse capital político, ele conseguiu evitar
a candidatura de Garotinho e enfrentou a reeleição.
Outra líder política oriunda do universo evangélico emergia.
Depois de exercer por cinco anos o cargo de Ministra do Meio Ambiente
do governo Lula, Marina Silva volta ao Senado e, em seguida, passou a
atuar no Partido Verde em 2009 para se tornar então candidata
presidencial no ano seguinte. O terceiro lugar na disputa pelo Palácio
do Planalto seria mais uma vez para uma pessoa evangélica. Ainda que
uma missionária da Assembleia de Deus, paradoxalmente, tenha feito a
campanha mais laica entre os principais candidatos, uma vez que a
presença da religião foi realmente muito forte nesta disputa.
Mais uma vez candidato pelo PSBD, José Serra contava com o
forte apoio da Convenção Nacional das Assembleias de Deus
(CONAMAD), a maior agremiação da Assembleia de Deus. Teve
também a adesão de outras igrejas: a Igreja Mundial do Poder de Deus e
a Igreja Bola de Neve. Na frente evangélica pró‐Serra se destacava Silas
Malafaia, líder da Associação Vitória em Cristo (derivação da
Assembleia de Deus). Serra capitalizou a indignação evangélica contra a
terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (NHDP III),
lançado pelo Governo Federal em 2009. Parlamentares evangélicos e
católicos se mobilizaram principalmente contra a proposta de
descriminalização do aborto16. Os pentecostais também se opuseram
firmemente contra o projeto de Lei nº 122 de 2006 (PL 122/2006),
apresentado pela deputada Iara Bernardi (PT de SP) que tornava crime
os atos de homofobia no país. As questões da legalização do aborto e a
criminalização da homofobia acabaram sendo usadas como armas
eleitorais pelo candidato do PSDB.
Por outro lado, já na segunda etapa da disputa, estava a ex‐chefe
da Casa Civil do governo Lula, Dilma Rousseff, que tinha se declarado
16 Em maio de 2010, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se posicionou
firmemente contra a III PNHD em um documento e recomendou aos fiéis que
votassem em ʺpessoas comprometidas com o respeito incondicional à vidaʺ (Gold e
Mariano, 2010:25).
72
agnóstica em uma entrevista concedida à revista Época em 2007, mas
que durante a carreira eleitoral participava de eventos religiosos e
missas para mostrar‐se católica. Líderes e parlamentares evangélicos
determinavam que Dilma se comprometesse em resguardar a liberdade
religiosa e vetar, caso fosse eleita, qualquer projeto ʺcontra a vida e os
valores da famíliaʺ, ou seja, projetos que favorecessem o aborto, a união
civil e adoção de crianças por parte de casais homossexuais, a
regulamentação da atividade para aqueles trabalhadores do sexo e
assuntos relacionados a estas temáticas. A campanha do PT se voltou
fortemente em direção aos eleitores evangélicos, ressaltando que o III
NHDP já estava sendo analisado pelo governo, que a candidata estava “a
favor da vida” e que, portanto, não tomaria nenhuma iniciativa de
mudança na legislação a respeito do aborto, tampouco de questões
relacionadas à família e à liberdade religiosa. (Oro e Mariano, 2010:24‐29).
A campanha do PSBD, por outro lado, continuou com seu tom
religioso conservador, utilizando a mídia religiosa (católicos e
protestantes), as redes sociais e inclusive os cultos nas igrejas para
ʺdefender a vidaʺ e a moral sexual cristã tradicional.
Sua esposa, Mônica Serra, que chegou a acusar Dilma de ser a
favor da ʺmatança de criançasʺ, foi questionada por uma nota publicada
no jornal Folha de S. Paulo de 16 de outubro daquele ano. O jornal
apresentava o relato de uma ex‐aluna da Sra. Serra, da Universidade
Estadual de Campinas, a quem ela tinha confessado ter feito um aborto,
o que foi confirmado por outra ex‐aluna. Devido a esses
acontecimentos, José Serra acabou ganhando a antipatia da classe média
e de setores intelectuais e liberais da população, perdendo assim sua
segunda eleição presidencial.
3.2 Liderança política e moral sexual
Sobrinho do fundador e líder da IURD, Edir Macedo, o Bispo
Marcelo Crivella ganhou popularidade no meio evangélico com seus
sucessos como cantor gospel. Crivella conquistou uma cadeira no
Senado em 2002, sendo reeleito oito anos depois. Ajudou Dilma
Rousseff a enfrentar a polêmica sobre o aborto no mundo evangélico e a
vencer as eleições presidenciais de 2010. Apesar de novamente se aliar
73
ao governo petista que estava sendo instalado em 2011, o senador da
IURD não deixou de tirar proveito de sua posição Pentecostal durante a
presidência de Dilma, algo que provavelmente iria beneficiá‐lo.
Os parlamentares evangélicos conseguiram impedir, durante o
primeiro ano do novo governo, a distribuição de material didático anti‐
homofobia, rotulado de ʺkit gayʺ, que tinha sido encomendado pelo
Ministério da Educação, com Fernando Haddad. Dilma Rousseff
determinou a suspensão da medida educativa. Desde o início do
governo, os representantes políticos dos pentecostais também
mostraram enfaticamente sua insatisfação com a nomeação da socióloga
do PT Eleonora Menicucci para a Secretaria de Políticas para as
Mulheres. A militante feminista, amiga de Dilma desde os tempos da
guerrilha contra o regime militar, é uma reconhecida defensora da
descriminalização do aborto, tendo inclusive abortado duas vezes.
Irritados com o governo Dilma, os parlamentares evangélicos
exigiram e obtiveram em fevereiro de 2012 uma retratação pública do
titular da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto
Carvalho. Ex‐seminarista católico e interlocutor do governo junto às
igrejas e movimentos sociais, Carvalho havia encorajado os militantes
presentes no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, no mês anterior, a
realizarem uma ʺdisputa ideológica pela nova classe médiaʺ, que estaria
sob a hegemonia evangélica. Em resposta à indignação parlamentar
Pentecostal com Carvalho, Dilma Rousseff nomeou Marcelo Crivella
como Ministro da Pesca. Com a medida, a presidente tentou acalmar
seus aliados religiosos, inclusive em relação às eleições na cidade de São
Paulo, onde Fernando Haddad se apresentava como candidato a
prefeito pelo PT. Crivella assumiu seu novo cargo ressaltando que era
totalmente leigo naquela área e que a sua nomeação não significaria dar
uma trégua ao governo federal em relação a qualquer iniciativa
favorável ao aborto e à união civil entre homossexuais. A presidente
teve de tolerar a imposição evangélica e o ʺfogo amigo do fiel aliado
evangélicoʺ.
Inclusive antes de ser confirmado como candidato do PT para a
Prefeitura de São Paulo em 2012, Fernando Haddad já contava com a
animosidade Pentecostal devido ao “kit gay”. Teria de enfrentar
também um candidato representante dos interesses da IURD: Celso
74
Russomanno. Ex‐apresentador de televisão, Russomanno era o
candidato do Partido Republicano Brasileiro (PRB), da mesma linha de
Crivella, tendo como braço direito o Bispo da IURD Marcos Pereira,
presidente nacional desta linha e ex‐vice‐presidente da Rede Record,
pertencente a Macedo.
Do outro lado da disputa, novamente, estava José Serra, que
também tentaria tirar proveito da fragilidade do PT no meio Pentecostal
devido à questão da homofobia. Serra continuava com o apoio da
Assembleia de Deus CONAMAD e contava também com Valdemiro
Santiago e a sua crescente Igreja Mundial do Poder de Deus. Lula e o
candidato do PT escolhido por ele, Fernando Haddad, tinham diante de
si, como principais obstáculos, o tradicional adversário do PSDB e o
inusitado candidato da Igreja Universal do Reino de Deus.
No segundo turno, a Assembleia de Deus ‐ Ministério Madureira
no bairro paulistano do Brás em São Paulo, liderada pelo pastor Samuel
Ferreira, passou a apoiar José Serra devido ao famoso ʺkit gayʺ. O
ataque a essa medida anti‐homofóbica, atribuída ao ex‐ministro da
Educação e candidato do PT, Haddad, teria ressoado fortemente nos
discursos de Silas Malafaia, que, mais uma vez, era uma espécie de
porta‐voz de Serra dentro do eleitorado Pentecostal17. A tônica ofensiva
da campanha de Serra contra o adversário do PT se baseou, em grande
medida, na questão religiosa, mas o efeito eleitoral foi contrário a ele, já
que foi outra vez derrotado.
Como se vê, os evangélicos vêm apresentando uma considerável
participação na vida político‐partidária do Brasil desde sua
redemocratização. Se a eleição constituinte de 1934 levou o primeiro
pastor protestante a se tornar deputado federal, a de 1986 fez com que
os pentecostais se mobilizassem de maneira efetiva para eleger seus
representantes, impulsionando o crescimento evangélico no Congresso
Nacional e nos demais parlamentos brasileiros. Surgiam assim, no
cenário político, figuras de representantes oficiais de diferentes credos.
No Senado, os pioneiros evangélicos foram Marina Silva e Íris Rezende,
tornando‐se também ministros de estado, e este último o primeiro
17 O fato de que o governo paulista de Serra tinha distribuído em 2009 cartilhas contra a
homofobia em escolas de ensino médio ‐ segundo a edição de 16 de outubro da Folha
de S. Paulo ‐ foi ignorado ou deixado de lado pelos evangélicos.
75
governador Pentecostal18. Porém o primeiro chefe de governo estadual
vinculado explicitamente ao seu perfil evangélico foi Anthony
Garotinho, que usaria isso também como uma estratégia para sua
candidatura à presidência da República.
A maior denominação evangélica do Brasil, a Assembleia de
Deus, foi também uma precursora na inserção Pentecostal na política
partidária, tendo parlamentares em diferentes partidos, mas
principalmente no PSC. Em segundo lugar, em termos demográficos,
está a IURD, cujo braço político é o PRB. O bispo licenciado, e agora
ministro de Pesca, Marcelo Crivella, personifica a força política da
Frente Parlamentar Evangélica junto ao governo federal.
O chamado “kit gay” representou para as eleições de 2012 na
cidade de São Paulo o que o aborto havia representado para as eleições
presidenciais do ano anterior. Nas duas situações, o candidato do PSDB
José Serra procurou tirar proveito do moralismo evangélico nas
questões da reprodução e moral sexual, ainda que sem sucesso. Assim
como há uma barreira nas eleições majoritárias para um candidato
fortemente identificado com um determinado segmento religioso,
também no catolicismo hegemônico há um limite para o uso de
bandeiras tingidas com forte apelo religioso. Ainda que os candidatos a
cargos executivos visitem bispos, pastores, missas, cultos e outras
manifestações, esse apoio parece ser necessário, mas não suficiente para
ganhar as eleições.
Os parlamentares evangélicos atuam há muito tempo no cenário
político brasileiro, sendo que os representantes oficiais ou
“despachantes” das igrejas surgiram somente com a ascensão política
Pentecostal (Campos, 2005). Em nome da liberdade religiosa, os
interesses das igrejas são estrategicamente defendidos durante as
campanhas eleitorais, as legislaturas e os mandatos do executivo. No
caso da IURD, a representação parlamentar se combina com o poder
midiático, exercido por meio de sua rede de televisão de canal aberto,
levando a uma maior influência junto ao governo federal. Os
evangélicos podem não ter força suficiente para decidir eleições em
18 Sobre a existência anterior de governadores pentecostais, se sabe que Leonel Brizola
tinha sido metodista em sua juventude.
76
favor seus candidatos religiosos ou apoiados por suas igrejas, mas
provavelmente continuem a ser elogiados, cortejados e atendidos em
algumas de suas exigências em “nome do Senhor”.
3.3. Argentina: as crenças religiosas no campo legislativo
Diferentemente do caso brasileiro, o Congresso Nacional
argentino carece de blocos e/ou partidos que se relacionem a alguma
instituição religiosa. Entretanto, a partir dos dados gerados por um
estudo realizado por Esquivel e Vaggione (2011)19 é possível explorar
algumas das maneiras com que as instituições religiosas se conectam
com as decisões e/ou posições dos legisladores quando se discute
políticas de sexualidade e reprodução.
Assim, este estudo nos permite reconhecer que 65% dos
parlamentares acessados pela pesquisa declararam crer em Deus. Neste
sentido, 60% se dizem “católicos” e 46% se consideram “muito
religiosos” enquanto que, ao contrário, 26% dizem “não ter religião”.
Além disso, um fato interessante é que quase a totalidade dos/as
deputados/as e senadores/as questionados acreditam que as convicções
religiosas dos parlamentares influenciam o conteúdo dos projetos de lei
e nas votações do Congresso Nacional. No entanto, esta percepção gera
opiniões divergentes: 49% concordam com a influência das crenças
religiosas nas tomadas de decisão, enquanto que 49% discordam (2%
não opinaram).
Em relação aos projetos de lei ‐ que no momento da realização
da pesquisa se mostravam controversos devido à manifesta oposição
das confissões religiosas majoritárias (por estar vinculados ao avanço
19 Nesta seção vamos utilizar os dados gerados por Esquivel e Vaggione (2011) no
âmbito do projeto PIP CONICET 359/08 “Disputas en el espacio público argentino.
Dirigencia política, instituciones religiosas y organizaciones sociales pro‐derechos,
frente a las políticas estatales en materia educativa y de regulación familiar y sexual”.
Os dados foram extraídos de uma pesquisa do tipo questionário estruturado, aplicado
à totalidade dos membros da Câmara dos Deputados e Senadores, com uma margem
de erro de 5% ‐ para 95% de confiança ‐, e o período de levantamento de dados se
estendeu de novembro de 2009 a maio de 2010. Essa pesquisa foi publicada pelo
jornal Página 12. Consulte “A Dios rogando, pero en la gente pensando” (2012, 14 de
janeiro).
77
dos direitos sexuais e reprodutivos) – os parlamentares se mostraram a
favor da autonomia de decisão e liberdade de consciência. Assim, os
projetos de fertilização assistida e identidade de gênero20 são os que
registram maior grau de aprovação (84 e 75%, respectivamente). No
mesmo sentido, uma parcela importante se manifestou a favor da
descriminalização do aborto nas primeiras doze semanas de gestação
(64%)21. Com menor peso ‐ ainda que superando 50% ‐ houve um
acordo em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo22, à
autorização para a criopreservação de embriões (56%), a eutanásia
(52%)23 e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo (51%).
20A lei de identidade de gênero (Lei 26743) foi aprovada por unanimidade no Senado, e
por ampla maioria na Câmara dos Deputados, sendo promulgada em 9 de maio de
2012.
21O aborto tem sido (e continua sendo) um tema bastante polêmico na Argentina, por
isso esses dados chamam a atenção. As opiniões pessoais dos parlamentares sobre o
aborto indicaram que a maioria (83%) acredita que ele deve ser permitido. No
entanto, 36% dos parlamentares não votariam a favor da descriminalização do aborto
e apenas 6% acreditam que deve ser “banido para sempre”. Outro fato interessante é
que quase a metade deles atribui alguma conduta moral reprovável em relação às
mulheres que abortam espontaneamente. Atualmente, o aborto é referido em vários
artigos do Código Penal. Embora seja considerada uma prática criminosa, há exceções
em que o direito penal não se aplica. Essas exceções estão relacionadas com o risco à
saúde ou à vida da mãe, em caso de estupros ou, finalmente, atentado ao pudor de
uma mulher demente (art. 86 do Código Penal). No entanto, este artigo tem gerado
fortes controvérsias doutrinárias dentro do campo jurídico entre os que lutam por
uma aplicação restritiva e os que interpretam que deveria ser mais ampla. Por esta
razão, a Corte Suprema de Justiça da Nação, no conhecido caso “F.A.L”, emitido no
final de 2012, esclareceu os limites e alcances das exceções. Apesar disso, as
discussões doutrinárias não têm sido solucionados, e na prática, um posicionamento
restritivo, que impede a realização do aborto em todos os casos, continua impondo‐se
no país.
22Lei n. 26.618, sancionada em 15 de julho de 2010, e que permite não só a celebração do
casamento civil para pessoas do mesmo sexo, mas também a possibilidade de adoção.
Lembramos que a pesquisa referida foi realizada antes da aplicação e aprovação de
tais alterações no Código civil.
23Lei n. 26.742, denominada “lei da morte digna” ou da eutanásia passiva, que concede
78
Além disso, é comum que os/as parlamentares se reúnam com
diferentes líderes religiosos24 na condição de parlamentares. Isto é, mais
da metade declarou que se encontrou com um bispo e 45% com um
padre católico no último ano.
Outro fato significativo é a opinião sobre a relação do Estado
com os credos religiosos. Neste sentido, a maioria declara que todos
devem ser tratados da mesma maneira e considera que o Estado não
deveria apoiar economicamente os cultos25.
Esta pesquisa mostra que, embora as ideias religiosas estejam
profundamente enraizadas nos senadores e deputados acessados pela
pesquisa26, não há um vínculo tão forte entre essas ideias e as decisões
que tomam durante as votações e deliberações no Senado27, fato que de
alguma forma contesta os dados obtidos em nível populacional.
3.4 O cristianismo na Argentina e a mobilização social
Em julho de 2010, na Argentina é sancionada a alteração do
código civil que permite o reconhecimento da instituição matrimonial a
casais compostos por pessoas do mesmo sexo (Lei 26.618).
Assim como em outros países em que o casamento entre pessoas
do mesmo sexo entra na agenda política (assim como outras políticas
em torno da demanda de DDSSRR), as mobilizações de rua se colocam
24Um fato interessante que surgiu foi que embora haja um amplo apoio aos projetos
relacionados aos direitos civis, mais de 90% dos parlamentares entrevistados
acreditam que outros parlamentares colocam em jogo suas convicções religiosas ao
votarem as leis. Neste sentido, observa‐se um contraste entre o posicionamento
individual (a favor dos projetos de lei) e a percepção coletiva com forte influência da
Igreja Católica.
25No entanto, os recursos estatais dos colégios religiosos recebem uma maior aceitação
por parte dos/as representantes nacionais. Em relação à presença de símbolos
religiosos nas escolas públicas, apenas 3 de cada 10 consideram que devem ser
proibidos.
26Embora as pesquisas tivessem sido enviadas a todos/as os/as deputados/as e
senadores/as nacionais, apenas 102 responderam, representando cerca de um terço do
total.
27Durante o debate sobre o denominado “casamento igualitário”, muitos/as
79
como uma das práticas comuns por parte dos grupos ou setores sociais
que procuram impedir as reformas28. Na Argentina, um dia antes (ou
seja, 13 de julho de 2010) da votação definitiva do projeto, diferentes
setores sociais convocaram uma marcha nacional na Praça do
Congresso (na capital federal) para exigir dos senadores29 votos em
“defesa do casamento e da família”.
Os organizadores foram o Departamento de Leigos da
Conferência Episcopal da Argentina (DEPLAI), a Aliança Cristã das
Igrejas Evangélicas da Argentina (ACIERA), a Federação
Confraternidade Evangélica Pentecostal (FECEP) e as Famílias
Argentinas Autoconvocadas. A partir daí a chamada foi levada adiante
pela associação de uma diversidade de atores pertencentes tanto a
organizações civis como eclesiásticas.
ACIERA e FECEP30 são duas organizações que reúnem igrejas
evangélicas pentecostais que integram o denominado “polo
conservador bíblico” (Wynarczyk, 2009) e se posicionam como os
28Neste sentido, por exemplo, uma história interessante é a mobilização realizada na
Espanha durante as discussões sobre o casamento em 2005, organizada pelo Fórum
Espanhol da Família, a Igreja católica e o partido popular, entidades que formavam a
frente de oposição no debate espanhol (Etxazarra, 2007). Vale mencionar que
acontecimentos parecidos ocorreram mais recentemente na França, onde segundo os
meios de comunicação, mais de 300 mil pessoas se mobilizaram para recusar o projeto
de lei de casamento entre pessoas do mesmo sexo (La Nación, 2010, 14 de janeiro;
Clarín, 2010, 12 de janeiro).
29 O projeto tinha conseguido metade da aprovação na Câmara dos Deputados em maio.
Posteriormente, foi discutido na Comissão de Legislação Geral do Senado, que a 6 de
julho assinou o parecer para o tratamento em sessão da Câmara dos Senadores em 14
de julho de 2010.
30 A ACIERA foi fundada na Argentina na década de oitenta, no período de transição
democrática do país; compunha um subsetor evangélico (de igrejas batistas e irmãos
livres, principalmente) (Jones e Cunial, 2011). A ACIERA se define como uma aliança
entre “denominações, congregações locais e entidades livremente associadas a fins
específicos, que reconhece como hierarquia única e absoluta o Pai, o Filho e o Espírito
Santo e aceita as Sagradas Escrituras como regra de fé e conduta” (Informação obtida
em www.aciera.org). Enquanto que a segunda se difunde quase uma década antes,
nos anos setenta, e era formada pelas “Igrejas locais, organizações e instituições
pentecostais argentinas, inscritas no Registro Nacional de Cultos” (Informação obtida
em www.fecep.org.ar)
80
setores evangélicos mais visíveis na organização da marcha nacional e
na sua militância contra a aprovação da lei.
Por sua vez, a DEPLAI é um organismo que pertence à
Comissão Episcopal de Leigos e da Família e se dedica a articular ações
de apoio à comissão para a difusão dos princípios doutrinais. A
DEPLAI se posiciona como o setor representante da igreja católica na
organização da mobilização. Entretanto, um considerável número de
bispos também participou na difusão da convocação, o que provocou
um grande impacto na sua mediatização. Por exemplo, o então
arcebispo de Buenos Aires, o Cardeal Mario Bergoglio, pediu
publicamente aos párocos das igrejas do país que difundissem a
convocação para a mobilização nacional:
“(...) [DEPLAI] organizou para a terça‐feira, 13 de julho, às 18:30 um
ato em frente ao Congresso Nacional sob o lema “Queremos mãe e pai
para nossos filhos” (...) A proposta é que seja um ato no qual não haja
mais do que bandeiras argentinas ou valores positivos sobre o
casamento homem‐mulher (...) peço que se informem sobre isso e
facilitem a participação de teus fiéis, assim como que nas Missas de
domingo, 11 de julho, se leia a declaração do Episcopado e nas preces
haja intenções pela família. Também peço que concedam lugares aos
leigos do DEPLAI que recolherão assinaturas. (...) (AICA, 2010, 22 de
junho).
Aos setores religiosos se unem outros setores da sociedade civil
que se associam sob a denominação de “Famílias Argentinas
Autoconvocadas”. Neste sentido é interessante mencionar a agremiação
criada sob o nome de “Argentinos pelas crianças” (AxC)31. Deste modo,
a mobilização nacional tentou se instalar como uma manifestação
“cidadã”, ativando uma série de elementos neste sentido, que
31 Segundo publicação da AICA (Agência de Informação Católica Argentina, 18 de
junho de 2010) AxC é um espaço de associação entre diferentes classes sociais que
buscam defender os valores da família. Fruto do grupo “Famílias Argentinas”, o AxC
foi criado como uma página no Facebook, cujo objetivo é defender o casamento
heterossexual e servir como instância de articulação para a geração de ações neste
sentido.
81
permitiram uma identificação não necessariamente ligada a uma igreja
ou dogma religioso em particular.
Se por um lado os organizadores da marcha aglutinam e dão
visibilidade a setores conservadores católicos e evangélicos, por outro
também procuram agregar a ideia de “família” (em geral) como parte
da ação. Para isso foram criados diferentes materiais que procuram
destacar uma identificação desvinculada de discursos confessionais, e
afirmar uma identificação política. Neste sentido, um dos elementos
criados para funcionar como identificador da defesa da família foi a cor
alaranjada (Sgró, 2011; Rabbia e Iosa, 2010). Usando esta cor (e
diferentes lemas, que todavia são coincidentes na defesa da família
fundada em uma união heterossexual) se produziram uma
multiplicidade de produtos gráficos e audiovisuais que circularam e se
reproduziram pelas redes de comunicação digitais. O alaranjado
também foi adotado como marca nacional da marcha, e nas chamadas
era solicitado que se levasse essa cor para a manifestação.
Um exemplo significativo foi a adoção de um logo usado tanto
por organizações envolvidas na difusão da convocação como
usuárias/os para se identificarem com a recusa da reforma do código
civil (ver Figura 1). Nesse sentido, a concentração na Praça do
Congresso Nacional foi visivelmente marcada por bandeiras argentinas
e bandeiras alaranjadas com variados slogans, tais como: “casamento =
homem e mulher”, “O que importa é a família”, “Argentina = Sodoma”,
“Salvemos a família”, entre outros.
Figura 1:Logo Casamento
82
No ato foi lido o “Manifesto pelo casamento e direito prioritário
das crianças32” a partir dos quais se apresenta o posicionamento político
em relação às demandas dos setores reunidos na manifestação33. Os
setores conservadores, ainda quando se mostravam visivelmente
alinhados à igrejas católica e evangélica, insistiam em declarar no
encerramento do ato que a manifestação é produto de uma articulação
cidadã, de uma maioria que “deve” ser escutada e representada no
Congresso Nacional. Essa “maioria silenciosa”34 que “se fez escutar” é a
que compõe a mobilização e reivindica o direito das crianças. Deste
modo se explicita a condição de ativismo em defesa da vida e da
família, significantes centrais do posicionamento das hierarquias
religiosas conservadoras quando se discutem políticas de sexualidade e
reprodução.
4. Considerações Finais
Muito além da questão do espiritismo kardecista, já
mencionado, o cristianismo apresenta diferentes características nos dois
países tratados neste texto. Na Argentina, o catolicismo tem um peso
demográfico (76,5%) e jurídico maior, já que ainda mantém seu vínculo
com o Estado, enquanto que o protestantismo (9,0%) é relativamente
pequeno. No Brasil, ao contrário, o catolicismo se encontra mais
reduzido (64,6%) face a um acelerado crescimento evangélico (22,2%),
duas vezes maior em relação ao país vizinho. Na Argentina há um
pouco mais de pessoas sem religião que no Brasil, mas em
contrapartida, a diversidade religiosa é menor.
Em termos de presença no espaço público, em ambos os países o
catolicismo exerce um papel significativo, ainda que na Argentina
atualmente haja certo enfrentamento ao governo. No Brasil, onde a
32 Consultar http://www.aicaold.com.ar/docs_blanco.php?id=488 [Último Acesso: 3 de
abril de 2013]
33 O “Manifesto” além de ressaltar as noções de família e casamento defendidas, serviu
para realizar uma revisão das várias ações levadas adiante pelo ativismo conservador
e afirmar o apelo aos legisladores que votariam no dia seguinte o casamento
igualitário.
34 O Manifesto expressa: “...se fez ouvir a «maioria silenciosa». Esta voz deve ser
escutada e respeitada por nossos representantes políticos”.
83
Teologia da Libertação foi muito mais expressiva e ativa, a igreja
exerceu um importante papel de apoio a militantes políticos e sindicais
durante o enfrentamento com a ditadura militar. A relação com o
regime é um aspecto bastante controverso do catolicismo argentino,
debate que tem sido retomado em função da eleição do cardeal de
Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio para Papa. Ainda que o Papa
Francisco seja coerente em termos de vida simples e proximidade com
os pobres, não foi assim quando era bispo e defensor da Teologia da
Libertação. Com relação a isso, ele recebe desde o início de seu
pontificado o apoio explícito e entusiasmado do maior expoente dessa
vertente católica, o teólogo e ex‐frade franciscano brasileiro: Leonardo
Boff.
Do lado evangélico, a inserção na vida político‐partidária
ganhou importância no Brasil na década de 1980, quando os
pentecostais decidiram ocupar seu espaço na Assembleia Constituinte.
Ainda que na Argentina a reinstauração da democracia ocorreu em
1983, a inserção político‐evangélica somente começou a ocorrer na
década seguinte.
Houve no Brasil uma mobilização de católicos e evangélicos em
torno da preservação de privilégios de organizações religiosas no
Código Civil sancionado em 2003. Na Argentina, a reforma do Código
Civil aprovada em 2010 permitiu o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, algo que provocou a reação enfática e organizada de instituições e
líderes católicos e evangélicos.
Em ambos os países, as questões de moral sexual estão
atualmente na essência da mobilização de ativistas cristãos, evangélicos
e católicos. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha e publicada no Brasil
em 24 de março de 2013 no jornal Folha de S. Paulo permite a
comparação com alguns dados da realidade argentina. Enquanto que
76,3% dos argentinos se mostram favoráveis à união matrimonial de
sacerdotes católicos, no Brasil o percentual é de 56%; da mesma forma,
60,3% dos argentinos se mostram a favor do sacerdócio de mulheres,
enquanto que 58% dos brasileiros defendem essa posição. Com relação
ao polêmico tema do aborto, 64% da população argentina tolera em
todos ou alguns casos sua prática, enquanto que no Brasil essa
porcentagem cai quase pela metade, ou seja, 37%. Esses dados apontam
84
um caráter mais liberal da Argentina em relação ao Brasil. Uma maior
presença evangélica neste último está diretamente ligada a esse fator. E
como consequência, tendem a ocorrer mais manifestações públicas e
político‐partidárias de ativistas cristãos, em ambos os países, em torno
dessas questões.
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88
Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi
María Inés Landa1
Jorge Leite Jr.2
Andrea Torrano3
1. Introdução
Cada época engendra seus monstros, os quais, a partir de
diferentes perspectivas, nos contam sobre as irregularidades
imagináveis desta particular encruzilhada histórica. Aqui nos propomos
abordar os monstros contemporâneos enquanto locus de significado
pelos quais transita a inteligibilidade do presente, expressando aquilo
que põe em causa o normal do humano.
Definir o que e quem é um monstro é uma tarefa que apresenta
grandes dificuldades. Como assinala Kappler ʺnão existe uma definição
de monstro, mas algumas tentativas de definir que variam segundo os
autores e, sobretudo, segundo as épocas. Num sentido mais geral, o
monstro é definido em relação à normaʺ (Kappler, 1993: 291. Grifos e
tradução do autor).
O conceito “monstro”, mais exatamente, funciona como um
ʺoperador conceitualʺ (Gil, 2012: 13), na medida em que representa o
desenvolvimento de todas as irregularidades possíveis, e afronta ‐ ou
coloca em questão – a norma do humano. Neste sentido, afirma Foucault,
o monstro é ʺum princípio de inteligibilidadeʺ de todas as anomalias, e,
ainda assim, é um ʺprincípio verdadeiramente tautológicoʺ, porque a
propriedade do monstro consiste em se afirmar enquanto tal, “explicar
em si mesmo todos os desvios que podem resultar dele, mas sem que seja
1Investigadora asistente do CONICET, CIECS‐CONICET/UNC, Centro de
Investigaciones y Estudios sobre la Cultura y la Sociedad (CIECS), Consejo Nacional
de Investigaciones Ciéntificas y Técnicas (CONICET), Universidad Nacional de
Córdoba (UNC) – Argentina.
2 Professor adjunto do Departamento de Sociologia, da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar), Brasil .
3Professora assistente da Facultad de Direito e Ciências Sociais, UNC, bolsista doutoral
IDH‐CONICET, Universidad Nacional de Córdoba – Argentina.
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em si mesmo inteligívelʺ (Foucault, 2000: 62‐63)4. Portanto, mais do que
tentar definir o monstro em sentido afirmativo, se trata de mostrar seu
sentido em função daquilo a que ele se opõe.
De nossa perspectiva, o monstro deve confrontar‐se com o que
considera normativamente humano. Mas isso não significa que o
monstro represente a alteridade absoluta, mas sim, nos termos de
Agamben, ele é uma exclusão inclusiva, “uma forma extrema de relação
que inclui qualquer coisa através de sua exclusão” (Agamben, 2003: 31).
Ou seja, o humano e o monstro se encontram em uma tensão tal que um
é o reverso e o complemento do outro. Neste sentido, embora se
confronte com a norma do humano, o monstro não é ʺexterior e pura
alteridade em relação ao homem, mas sim um ‘interior externalizado’
do ser humanoʺ (Giorgi, 2009: 325).
Desse modo, o monstro não apenas se confronta com a norma do
humano, como se se tratasse exclusivamente de um desafio à ordem da
vida, onde a monstruosidade é posta em jogo no campo da
ʺnormatividade da vidaʺ5. Como expressa Canguilhem:
4No curso Os Anormais (1974‐1975), Foucault se refere ao ʺmonstro humanoʺ
distinguindo dois momentos: o primeiro, desde a Idade Média até o século XVIII,
onde o monstro é considerado um conceito jurídico‐biológico, uma mistura de reinos,
de individualidades e de gêneros. E um segundo momento, entre o final do século
XVIII e início do século XIX, quando ele é identificado com as más formações, que
serão a explicação de determinadas condutas criminosas, é, portanto, um conceito
jurídico moral. A primeira manifestação do monstro jurídico moral é o ʺmonstro
políticoʺ, o criminoso político, aquele que está fora do pacto social. Esta
monstruosidade é a do tirano, dos revolucionários e, ainda, do delinquente comum.
Daí o autor conclui afirmando que, em finais do século XIX, o conceito de monstro é
abandonado pelo de anormal. Isso ocorre porque a monstruosidade deixa de ser
entendida como uma categoria jurídico‐política e se converte em uma noção
fundamental da psiquiatria criminal.
5 De acordo com Canguilhem, viver significa aceitar algumas coisas e recusar outras,
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ʺdevemos, portanto, compreender na definição de monstro sua
natureza viva. O monstro é o vivente de valor negativo. (...) o que faz
dos viventes seres valorizados em relação ao modo de ser do seu
ambiente físico é sua consistência específica (...). Assim, o monstro não
é apenas um vivente de valor diminuído, ele é um vivente cujo valor é
repelir (...) é a monstruosidade, e não a morte, o contravalor vitalʺ
(Canguilhem, 1976: 202‐203).
Pelo contrário, a partir do momento que a vida do homem como
indivíduo biológico está imbricada na do homem como sujeito político, ou,
nos termos de Foucault, se ʺo homem moderno é um animal em cuja
política é posta em causa sua vida de ser viventeʺ (Foucault, 2002b: 173),
a vida e a política entram em uma relação de implicação tal que se pode
inferir uma biologização da política e uma politização da biologia (Esposito,
2008‐2009), em suma, uma biopolítica.
Assim, é possível afirmar que o monstro, ao irromper na ordem
da vida, irrompe também na ordem da política. Como expressa
Lucchese e Bove: ʺse a presença de monstros biológicos questiona a
ordem da vida, o monstro também interpela necessariamente a ordem e
as hierarquias no universo ético e político da históriaʺ (Del Lucchese,
Bove, 2008: 21. Tradução dos autores). Consequentemente, o monstro
impacta a ordem do biopolítico, é um conceito biopolítico.
Tal como advertia Foucault, os dispositivos de poder não podem
funcionar senão mediante a formação e circulação de um saber: ʺo
biológica, diferente em relação ao ambiente em que vive. Portanto, somente em
relação ao indivíduo é que se pode estabelecer o normal e o patológico ou, em outros
termos, a saúde e a enfermidade. Isto significa que a fronteira entre o normal e o
patológico apenas pode ser definida se se toma em conta sucessivamente um único
indivíduo. Em condições determinadas, o normal pode converter‐se em patológico se
estas condições mudam e o indivíduo permanece o mesmo. Mas esta delimitação
entre o normal e o patológico não pode ser determinada para a totalidade dos
indivíduos. Neste sentido, normalidade e a patologia seriam dois conceitos de valor
não redutíveis quantitativamente. No entanto, esta normatividade biológica do
indivíduo é convertida pela ciência em uma medida quantitativa. Assim, o normal
vivente é substituído pelo normal científico. O homem de ciência encontra, no
conceito de média um equivalente objetivo e cientificamente válido do conceito de
normal ou de norma. E como considera que a média tem uma significação mais
objetiva, tenta reduzir a norma à média (Canguilhem, 1971: 115‐123).
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poder produz saber (...); poder e saber se implicam diretamente um
sobre o outro; não existe relação de poder sem a constituição correlata
de um campo de saber, nem de saber que não suponha e não constitua
ao mesmo tempo relações de poderʺ (Foucault, 2002a: 34). Em nossas
sociedades se produz um saber sobre a população humana, através de
estatística e da probabilidade, que permite identificar suas
regularidades (nascimento, mortalidade, saúde, expectativa de vida,
etc.) e a partir daí é possível estabelecer a norma do humano. Ou seja,
toma‐se os processos da vida para administrá‐los, controlá‐los e
modificá‐los, em outras palavras, se utilizam os dados da realidade
como suporte para influir sobre a realidade (Foucault, 2006).
Neste sentido, podemos dizer que os monstros não são excluídos,
já que são parte da realidade que se quer administrar. Assim, eles não se
encontram fora da distribuição do normal, mas são localizados mais ou
menos distantes da norma. A monstruosidade pode ser estabelecida em
termos de graus: o mais ou menos monstruoso é definido em função da
distância em relação à norma. Consequentemente, a monstruosidade
desafia a norma a partir de sua própria interioridade, é uma ameaça
inerente à norma do humano.
A monstruosidade é algo que convive em(entre) nós e, como parte
da realidade que habitamos, é algo que se deve administrar, já que é
parte (ameaçadora) da população. Quando se assume esta concepção de
monstruosidade como um mal necessário, a gestão da população
considera que o monstro se apresenta como um risco que se deve
controlar, prognosticar e prevenir (OʹMalley, 2006: 21). Portanto, a
gestão da vida é exercida, em maior medida, sobre os chamados
ʺgrupos produtores de riscoʺ, ou seja, sobre sujeitos sociais coletivos (De
Giorgi, 2005: 39) que são considerados uma ameaça para a população
que se pretende proteger6.
6 A categoria ʺgrupoʺ, como conjunto de indivíduos que apresentam certas
características comuns e aos quais são atribuídos uma identidade, torna‐se o objeto e
o objetivo do poder. A gestão não é exercida tanto sobre corpos individuais – o que
Foucault denomina anatomopolítica ‐ nem sobre a totalidade da população ‐ a
biopolítica (Foucault, 2002b: 168‐169), mas sim sobre os grupos caracterizados como
perigosos.
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A partir desta consideração são implementadas estratégias que
permitem identificar estes grupos e que possibilitam a intervenção das
autoridades administrativas sobre eles de forma preventiva. O governo
sobre a vida dos grupos de risco é realizado através da vigilância e do
controle que, como adverte Deleuze, nas sociedades de controle (Deleuze,
1991) em que vivemos trata‐se inclusive de uma (auto)vigilância e
(auto)controle.
Deste modo, a monstruosidade explicita como o “poder funciona
diferentemente, tomando como alvo certas populações, administrando‐
as, realizando a humanidade de sujeitos que poderiam constituir uma
comunidade unida por leis comuns a todosʺ (Butler, 2006: 98). Isto
significa que sobre o continuum da população são produzidos cortes
entre a população que se quer defender (os que representam a norma) e
os grupos de risco (aqueles que se desviam da norma) que podem ser
caracterizados como monstros. Em outras palavras, sobre o plano
neutro da população o poder distingue a ʺvida que não merece ser
vivida (...) e a vida digna de ser vivida (ou viver)ʺ (Agamben, 2003: 173),
entre vidas vivíveis com mortes lamentáveis e vidas inumanas que não
ʺmerecem ser choradasʺ (Butler, 2010b: 13‐56), entre ʺcorpos que
importamʺ e os corpos descartáveis (Butler, 2010a: 53‐94).
Assim, advertimos que o conceito monstro, enquanto ʺoperador
conceitualʺ, permite compreender, por um lado, ʺa precariedade da
identidade humanaʺ, e, por outro, a representaçãoda antítese da ordem
social, enquanto um risco sempre ameaçador de romper com esta, e, por
fim, como o elemento necessário para legitimar e justificar a
implementação de estratégias de prevenção de riscos e de aumento do
controle social (Neocleous, 2005: 5).
É nesta dupla dimensão da monstruosidade, enquanto
questionamento de uma identidade humana normativa e como
caracterização do risco que apresentam certos grupos populacionais,
que encontramos neste conceito a possibilidade de uma aproximação
analítica em relação às estruturas de poder tecno‐somáticas nas quais
repousam as corporalidades do presente. O monstro desafia a norma do
ʺhumanoʺ e sua aplicação, se instala no centro de uma política do
vivente que deve distribuir os corpos segundo um regime específico de
poder para sua utilização e descarte.
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Se, como adverte Haraway, assistimos na atualidade a uma
ficção política (ciência política) na qual a definição do que é o corpo
humano se torna cada vez mais problemática7, a obesidade epidêmica e os
zumbis, sobre os quais refletiremos neste artigo, evidenciam, um a partir
do discurso da ciência (biomédica), e outro, da ficção, manifestações de
transgressões de fronteira do propriamente humano.
Do ponto de vista do enfoque biomédico a obesidade se
configura tanto como fonte de enfermidades e de riscos (incluindo a
manifestação de disposições subjetivas de marginalização social),
quanto como ameaça somático‐política que atenta contra a crença
sanitário‐empresarial da (auto)liderança individual e comunitária. A
volumosidade, flacidez e carnalidade amorfa do corpo obeso se
constituem em marcas somáticas que confessam, através do registro
visual, a transgressão dos cidadãos biológicos, que se apresentam em
sua condição de desvio radical entre os limites do humano/não‐
humano.
O zumbi, ou morto‐vivo, é um corpo que se situa na zona que
separa a vida da morte, sua presença não apenas manifesta um corpo
decomposto, mas também põe em causa estas duas ordens
diferenciadas. Desse modo, o zumbi representa tanto uma transgressão
à constituição orgânica do corpo humano, como uma ameaça aos limites
que separam o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, em outras
palavras, a vida humana da vida não‐humana. Como assinala Cortés‐
Rocca ʺo zumbi define uma nova tipologia do monstruoso, na medida
em que implica um perigo – como todo monstro – que todavia não se
define a partir da simples diferença, tal como ocorre com os monstros
clássicos como o dragão, o energúmeno ou o fantasma, mas a partir de
uma deformação do humanoʺ (Cortés‐Rocca, 2009: 341‐342).
7 Haraway se apropria da noção de cyborg, organismo cibernético, enquanto criatura de
realidade social e também de ficção, para representar as transgressões de fronteiras,
as fusões poderosas e as possibilidades de resistência dos corpos em sua composição
orgânico‐artificial. Em sua perspectiva, o cyborg reúne três rupturas cruciais: 1) a
fronteira entre o humano eo animal, 2) a distinção entre os organismos (animais,
humanos) e máquinas e 3) as fronteiras entre o físico e o não‐físico (Haraway, 1995:
256‐262).
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Precisamente o que queremos evidenciar através da análise do
corpo obeso e do zumbi é que, ao contrário dos discursos tradicionais
sobre a monstruosidade que transformam o monstro na alteridade
absoluta do humano, o monstro é um ʺinterior externalizadoʺ do
humano, está en(tre) nós.
O obeso e o zumbi seriam manifestações de corpos que perdem
sua forma humana, no primeiro caso, por descuido, e no segundo, por
decomposição; o obseso encarna a enfermidade do corpo, constituindo‐se
em um perigo contra os princípios sanitário‐empresariais, enquanto o
zumbi perde qualquer possibilidade de redenção, seu corpo evoca um
estigma do corpo corrompido e corruptor.
2. O governo do tamanho e do peso corporal: o dispositivo discursivo
de obesidade (epidêmica)
Um dos discursos mais influentes nos modos de perceber o
próprio corpo e o dos outros na atualidade é o da obesidade epidêmica
(Wright, 2009:1). No entanto, sua força e proliferação não podem ser
compreendidas se não consideramos também as tecnologias de
normalização corporal e de otimização de si, que supõe as políticas de
consolidação de uma ʺcidadania biológicaʺ8 que redefine suas
prioridades vitais e regimes subjetivos (Rose, 2012:270).
Um cenário comum em várias metrópoles de nossa
contemporaneidade é o da coexistência de um discurso que promove
um estilo de vida ativo e saudável, que se vincula com uma aparência
8 Para Rose (2012: 270) o conceito de cidadania biológica permite, por um lado, explorar
a biologização da política a partir da perspectiva da cidadania e, por outro, analisar as
reterritorializações da cidadania, em termos biológicos, nos cenários locais e
transnacionais contemporâneos. Segundo este autor, na atualidade se estaria
produzindo uma redefinição do valor humano como consequência do intenso
desenvolvimento que têm se dado nas últimas décadas na biologia, na biotecnologia e
na genômica. Esta redefinição supõe uma progressiva biologização da cidadania e,
portanto, também da política e da sociedade. Entre outras práticas políticas e sociais,
tais como as práticas de aborto seletivo ou de diagnóstico genético, Rose oferece o
exemplo dos processos de implementação de políticas de saúde pública. As políticas
preventivas da OMS para minimizar a epidemia da obesidade e a pandemia do vírus
de gripe A são casos paradigmáticos deste tipo de políticas.
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harmônica e tonificada, e a propagação, por diversos meios, de
narrativas em tom catastrófico sobre os perigos que representam a
obesidade e o sobrepeso à saúde individual, comunitária e mundial.
Apesar da naturalização desses discursos, é necessário assinalar
que a forma como percebemos a corpulência, que associamos à idéia de
obesidade, é uma característica de nossa época. A não mais de um
século atrás, a obesidade, longe de representar feiura ou enfermidade,
augurava bonança e saúde promissora (Jutel, 2009: 60). Como observam
Lebesco e Fraziel (2001:2), foi necessário construir uma cultura obcecada
pelo peso e pela magreza para que os significantes gordura, sobrepeso,
obesidade adquirissem o tom inquietante que apresentam na atualidade.
Nesta seção nos propomos a desembaraçar alguns dos fios que
enlaçam as redes que configuram, na atualidade, o dispositivo
discursivo da obesidade (epidêmica). Para tanto, em primeiro lugar
analisamos o discurso que circula na e que é difundido pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) a respeito do sobrepeso e da
obesidade quando incorpora a perspectiva biomédica sobre estes
estados corporais particulares. Encontramos na invenção e no uso de
um instrumento de medição, o índice de massa corporal (IMC), uma
das condições de possibilidade para a construção, por parte de diversos
organismos governamentais e sanitários, de um discurso que define a
obesidade como uma epidemia do século XXI. Mostramos, finalmente,
como através da circulação de um conjunto de biopedagogias, que
operam tanto através de um registro prescritivo como de um registro
escópico, se instala uma maquinaria moralizante que infunde na
população aversão em relação à figura do obeso, de tal forma que ela é
exibida como uma condição de anomalia e monstruosidade.
2.1. A patologização da obesidade no discurso virtuoso da OMS
Nas últimas trinta décadas a obesidade tem sido considerada,
em escala mundial, como um problema de saúde global que apresenta
crescimento significativo (Flegal et. Al., 2011). Seu incremento não seria
objeto de preocupação governamental e social não fosse a quantidade
de efeitos adversos à saúde que a ela estão associados (Flegal, 2006).
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Uma das instituições que tem proposto intervenções a respeito da
questão, a nível mundial, é a Organização Mundial de Saúde (OMS).
A OMS é um dos organismos de referência em matéria de
concepção e implementação de políticas de saúde pública a nível
mundial. A partir dessa entidade se têm dirigido e coordenado ações
sanitárias no sistema das Nações Unidas (WHO, 2013a). A função que
esta cumpre, no tocante à saúde pública, é a de definir diretrizes em
relação às questões sanitárias mundiais, configurar a agenda das
investigações em saúde, fornecer apoio técnico aos países, estabelecer
normas e supervisionar as tendências sanitárias mundiais (WHO,
2013b).
Para a OMS, a obesidade e o sobrepeso representam o quinto
principal fator de risco de morte no mundo, e são definidos ʺcomo um
acúmulo anormal ou excessivo de gordura que pode ser prejudicial à
saúdeʺ (WHO, 2012. Grifos do autor). Conforme informações da página
da instituição ʺmorrem a cada ano, pelo menos, 2,8 milhões de pessoas
adultas como consequência de sobrepeso ou obesidade. Ademais, 44%
dos casos de diabetes, 23% das cardiopatias isquêmicas e entre 7% e
41% da ocorrência de alguns tipos de câncer, podem ser atribuídos ao
sobrepeso e à obesidadeʺ (WHO, 2012).
Nesta definição, o componente ruim é atribuído ao excesso de
gordura. Este excesso é calculado por um instrumento de medição
denominado índice de massa corporal (IMC), que é usado para a
construção das categorias abaixo do peso, peso normal, sobrepeso e
obesidade, e para a posterior identificação das mesmas na população.
Consequentemente, a conceitualização desses estados para a OMS se
completa incorporando um limiar numérico que padroniza as
categorias e permite sua diferenciação entre um IMC igual ou superior a
25, enquanto que ao grupo classificado como obeso corresponde um IMC
igual ou superior a 30. Daí se deduz uma relação linear e de graus entre
um estado e outro.
O IMC deriva do índice de Quetelet desenvolvido entre 1830 e
1850 ecriado pelo estatístico Adolphe Quetelet para registrar a variação
de peso e altura dos recrutas do serviço militar francês (Oliver, 2006;
Halse, 2009: 46). Em suas observações, Quetelet percebe a existência de
uma distribuição gaussiana (normal) dos níveis de peso e altura na
97
população estudada, a partir do qual cria um índice para realizar uma
descrição estatística do “homem tipo” (Oliver, 2006). Atualmente, o
IMC é uma representação matemática que fornece uma estimativa da
composição corporal, e é calculado dividindo o peso corporal em
quilogramas pelo quadrado da altura do corpo em metros (Wilmore e
Costill, 2001: 492).
A centralidade que adquire este índice nas definições de peso
corporal cunhadas pela OMS responde ao que essa entidade necessita
para cumprir sua função de proporcionar à comunidade de governos e
agências internacionais de financiamento dados confiáveis sobre o
problema da obesidade, a partir dos quais permite diferenciar os grupos
normais dos patológicos no interior de uma população específica, e assim
justificar a implementação de políticas de prevenção.
Neste sentido, o IMC supõe um índice que requer tão somente a
aplicação de uma fórmula para realizar o cálculo, e desse modo confere
aos estudos uma aura de objetividade e transparência que é sempre
bem recebida pela comunidade de especialistas que atuam nesses
organismos. Além disso, a padronização de pesos corporais a partir de
um mesmo conceito e de uma mesma medida facilita, portanto, a
realização de estudos estatísticos de tipo comparativo, uma vez que, ao
homogeneizar as categorias e reduzir sua complexidade, ignora as
diferenças conceituais e neutraliza as variações no interior das
categorias estabelecidas.
Isso não tem passado despercebido por estudiosos da questão
(Halse, 2009; Jutel, 2009; Stuart, 2013). Entre outras questões, Stuart
(2013) argumenta que a redução da complexidade inerente às noções de
obesidade e sobrepeso, o estabelecimento do sobrepeso como um estado
de proto‐enfermidade e, fundamentalmente, a migração de descrições
de tipo qualitativas sobre a obesidade em direção a outras definidas
unilateralmente por medições de tipo estatísticas, tem catalisado a
produção não apenas da obesidade epidêmica, mas também da
pandemia.
Não obstante, e apesar dessas polêmicas e controvérsias, o IMC
tem prevalecido como discurso virtuoso que classifica em normal e
anormal, em saudável e patológico e em seguro e arriscado, os pesos e
tamanhos corporais de populações e indivíduos.
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Um discurso virtuoso é constituído por um conjunto de valores,
crenças, práticas e ações que estabelecem regimes de verdade
destinados a moldar os sujeitos através da construção de determinados
comportamentos como valiosos, desejáveis e saudáveis (Halse, 2009:
47). O que distingue um discurso virtuoso de outros discursos é que o
virtuosismo se configura como um estado cuja dinâmica de
comportamento é assintótica. Isso significa que não há limite nas ações
que se pode empreender para alcançar o ideal normativo imposto por
aquilo que o ICM postula como o peso normal. Isso se torna evidente na
oferta de um sem‐número de produtos e serviços que são colocados à
disposição dos consumidores e usuários que desejam se aproximar do
dito corpo ideal.
Se googleamos as palavras peso ideal e IMC o instrumento de busca
levantará cerca de 100.000 páginas dentre as quais uma porcentagem
considerável corresponde a empresas ou profissionais liberais
(nutricionistas, personal trainers, cirurgiões estéticos, entre outros) que
oferecem programas de nutrição e de atividades físicas, entre outros
produtos, para reduzir o peso corporal e a massa de gordura.
Escolhendo uma página ao acaso encontramos um teste que o próprio
internauta pode realizar para saber se seu peso está adequado para sua
altura. Note‐se a menção à OMS enquanto entidade que legitima a
informação que é publicada no site.
Peso Ideal ‐ Calcule seu peso ideal de acordo com sua altura
“O peso está diretamente relacionado ao nosso bem‐estar. Por isso, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Sociedade Espanhola para o
Estudo da Obesidade (seedo) recomendam controlá‐lo e mantê‐lo em
equilíbrio. [...]
Com esta ferramenta você poderá saber o seu peso ideal em segundos,
preenchendo os campos abaixo. No resultado você obterá o seu Índice
de Massa Corporal (IMC) [...]”
(Cálculo de IMC, peso recomendado e % do peso corporal. Publicado
em “Dietas a tu medida”, 2011).
Apesar de se ter afirmado, em diferentes lugares, que o IMC não
é válido como ferramenta para o diagnóstico clínico, e muito menos
99
para o auto‐diagnóstico (Kuczmarski e Flegal, 2000)9, esta medida se
está enraizando no tecido social como parâmetro normativo.
“Se seu resultado é o “normopeso”, você está em uma forma ideal
[...]
Por outro lado, quando você tem mais quilos do que é aconselhado em
função de sua altura e data de nascimento, as opções apresentadas são
duas: sobrepeso (de grau I ou II), dado que mostra que deve se cuidar
um pouco, mas sua saúde não se encontra em risco grave; ou
obesidade (de tipo I, tipo II, tipo III ou mórbida, e tipo IV ou extrema).
[...]
Se seu resultado é este, você deve procurar por um nutricionista,
depois de consultar seu médico generalista, pois sua saúde pode estar
em perigo...”
(Cálculo de IMC, peso recomendado e % do peso corporal. Publicado
em “Dietas a tu medida”, 2011)
O IMC, por ser um índice que pode ser aferido por qualquer
pessoa que tenha conhecimentos mínimos de matemática, tem sido
amplamente adotado tanto pelos órgãos de saúde pública, nacionais e
internacionais, como por empresas que oferecem produtos e serviços
para o emagrecimento. Portanto, esta medida não apenas se torna um
ideal dificilmente realizável, mas também se ajusta a uma norma
9 Os conceitos de obesidade e sobrepeso cunhados pela OMS remetem a um excesso de
gordura no corpo humano. Uma das críticas centrais que tem sido feito ao ICM é que
ele não é um método adequado para medir massa magra, mas que o que ele
efetivamente mede é a massa corporal. A variável “peso do corpo” medida em
quilogramas compreende a massa magra, mas também se correlaciona com a
densidade óssea do corpo e, especificamente, a massa corporal (Finer, 2012, apud
Stuart 2013). Métodos como medição de dobrascutâneas, pletismografia corporal ou a
obsorciometria de raio‐X e de energia dupla (DEXA) seriam, em todos os casos, os
métodos apropriados para medir a massa magra do corpo em nível individual (e,
possivelmente, também seriam mais confiáveis do que o ICM em nível populacional).
Todavia sua implementação supõe um custo mais elevado que o ICM. Ademais, o
ICM foi criado, nas suas origens (índice de Quetelet), com a finalidade de determinar
médias em uma população, e não para ser aplicado em nível individual, e muito
menos em contextos clínicos.
100
estratégica no marco de um discurso altamente moralizante que opera
sobre a base de uma noção alargada de saúde10.
“O índice de massa corporal (IMC) é um indicador simples da relação
entre o peso e a altura, que é comumente usado para identificar o
sobrepeso e a obesidade em adultos.
[...]
O IMC fornece a medida mais útil do sobrepeso e da obesidade na
população, uma vez que ela é a mesma para ambos os sexos, e para
adultos de todas as idades.” (WHO, 2012)
O ICM, ao classificar pesos corporais, também classifica pessoas.
Por exemplo, a valoração geral de pessoas em condição normal ou
patológica contribui para a geração de estereótipos em um sentido
estigmatizante, como acontece com a conhecida associação entre a
obesidade, a gordura e termos como doença, preguiça, passividade,
gula, lerdeza, falta de autoestima, entre outros.
O ICM invoca e se baseia em uma lógica binária e normalizadora
na qual aqueles que se aproximam do ideal, do peso normal, estão a
salvo das enfermidades e dos riscos associados aos estados
(potencialmente) patológicos, que são aqueles que se desviam, por
excesso ou déficit, dos valores definidos como ʺnormaisʺ.
“Um IMC elevado é um importante fator de risco para enfermidades
não transmissíveis, como: diabetes, transtornos do aparato locomotor
(especialmente a osteoartrite), doenças cardiovasculares
(principalmente cardiopatia e acidente vascular cerebral). [...]
O risco de contrair estas doenças não transmissíveis cresce com o
aumento do IMC.” (WHO, 2012)
10 Saúde, para a OMS, já não significa ausência de doença, mas estende seu significado a
uma idéia ambivalente, subjetiva, de bem‐estar individual. Esta redefinição do termo
inagura uma nova episteme em saúde, na qual o processo de medicalização indefinida,
tão lucidamente descrito por Foucault (1996: 75‐80), move‐se de um paradigma
centrado na doença, e em seu diagnóstico, em direção a outro que amplifica o
mecanismo da vigilância, incorporando as funções orgânicas em equilíbrio, a
vitalidade física e a disposição sócio‐mental dos cidadãos: ʺA saúde é um estado de
completo bem estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças ou
enfermidadesʺ (OMS, 1948).
101
As crônicas do risco ganham peso político‐sanitário por meio de
uma narrativa de matiz epidemiológica que correlaciona a prática de
estilos de vida específicos com a probabilidade de desenvolver
determinadas doenças degenerativas. O sedentarismo e uma dieta
desequilibrada (rica em gorduras) aparecem, nos marcos de tal
narrativa, como os principais fatores de risco que contribuem para
elevar as taxas de morbidade e mortalidade por doenças não
transmissíveis em todo o mundo.
Este epidemiologiado risco legitima a promoção de um estilo de
vida ativo, apontando que tipo de condutas são prejudiciais à saúde, ao
mesmo tempo em que adverte a população acerca do tipo de
precauções que devem ser tomadas para se ter uma vida livre de tais
enfermidades (Lupton , 1999, citado em Fraga, 2005: 81).
“O sobrepeso e a obesidade, assim como seus males associados não
transmissíveis, são em grande parte preveníveis. Para apoiar as
pessoas no processo de fazer escolhas, de modo que a opção mais fácil
seja a mais saudável em matéria de alimentação e atividade física
periódica, e, em consequência, de prevenção da obesidade, são
fundamentais as comunidades e os contextos favoráveis.” (WHO, 2012)
Isso envolve o estabelecimento de territórios de fronteira onde
os sujeitos são categorizados em ir/responsáveis, a/normais, e saudáveis ou
doentes. Estas narrativas colocam nas mãos dos cidadãos a
responsabilidade por suas escolhas vitais e pelas consequências
des/favorável que resultam delas.
“No nível individual, as pessoas podem:
‐ limitar a ingestão energética procedente da quantidade de gordura
total;
‐ aumentar o consumo de frutas e verduras, bem como legumes,
cereais integrais e frutas secas;
‐ limitar a ingestão de açúcares;
‐ realizar uma atividade física períodica, e
‐ atingir o equilíbrio energético e um peso saudável.” (WHO, 2012)
102
Mapa 1. O quadro global da obesidade. Publicado em Daily Downey Obesity Report em junho del 2012.
É traçada, desta forma, uma cartografia dos novos marginais,
identificados como ameaças ao bem‐estar nacional e mundial. O obeso e
a obesa integram esta extensa lista.
“Muitos países de baixa e média renda atualmente estão enfrentando
uma ʺdupla cargaʺ da morbidade. [...] Enquanto continuam lidando
com os problemas de doenças infecciosas e desnutrição, estes países
estão experimentando um aumento brusco nos fatores de risco para
doenças não transmissíveis, como a obesidade eo sobrepeso,
especialmente em ambientes urbanos.” (WHO, 2012).
Em torno desta topografia moral se ergue um aparato político‐
pedagógico que organiza e dissemina um conjunto de saberes e técnicas
de autogestão que o coletivo social deve interiorizar e incorporar se
deseja alcançar esse respeitado estado saudável. Tal como Hardwood
(2008:15‐30), denominaremos esse conjunto de práticas de
ʺbiopedagogiasʺ. As biopedagogias operam sobre a base de uma
concepção neoliberal de ʺindivíduoʺ, capaz de gerir sua própria saúde e
controlar os riscos que a cercam. É depositada, assim, total confiança em
sua ação empreendedora e em sua capacidade de (auto)transformação,
(auto)correção e adaptação. A implementação de dispositivos
discursivos moralizantes que estimulam as pessoas a adotar práticas de
(auto)controle e (auto)viligância, alguns dos quais apresentamos neste
artigo, são baseados neste paradigma.
“A responsabilidade individual só terá eficácia plena quando as
pessoas tiverem acesso a um estilo de vida saudável. Portanto, em
matéria social é importante:
‐ Apoiar as pessoas no cumprimento das recomendações acima,
mediante um compromisso político sustentado e a colaboração das
múltiplas partes interessadas, públicas e privadas, e
‐ Fazer com que a atividade física regular e os hábitos alimentares
saudáveis sejam economicamente acessíveis e inteligíveis por todos,
especialmente os mais pobres. (WHO, 2012)
104
Aquilo que se tem chamado de obesidade epidêmica11 tem dado
origem a novas modalidades de disciplinamento e controle, em outras
palavras, biopedagogias. Estas se organizam como práticas de governo
orientadas para a gestão dos corpos com o propósito explícito de
reduzir a porcentagem de população obesa, assinalando os riscos
implicados em tal condição.
A OMS estabeleceu o Plano de Acção 2008‐2013 para a estratégia
mundial de prevenção e controle de doenças não transmissíveis, a fim
de ajudar os milhões de pessoas que já estão afetadas por estas doenças, que
passam toda a vida enfrentando e prevenindo suas complicações secundárias.
O Plano de Acção se baseia na Convenção‐Quadro da OMS para o
Controle do Tabaco e na Estratégia mundial da OMS sobre dieta
alimentar, atividade física e saúde, e fornece um roteiro para a criação e
fortalecimento de iniciativas de vigilância, prevenção e tratamento das doenças
não transmissíveis. (WHO, 2012)
Neste deslizamento do poder se instaura uma biopolítica que,
em articulação com as formações disciplinares, funciona como um
controle aberto e contínuo, sancionando, desta maneira, uma nova
educação corporal e sanitária (Fraga, 2005: 77; Deleuze, 1991).
Neste regime os indivíduos não estão apenas submetidos a
condições contínuas de vigilância empreendida por estas biopedagogias,
mas também pressionados a realizar automonitoramentos constantes
através de saberes (conhecimentos científicos) que os orientam sobre
como comer de modo saudável e manter‐se ativo, ao mesmo tempo em
que informam sobre a obesidade e seus riscos associados.
O estilo de vida ativo que a OMS promove glorifica a vida ativa e
demoniza a obesidade e os desvios que a ela são atribuídos (Fraga, 2005;
Rail et.al., 2010). Este paradigma opera sobre a base de: a) uma ideia de
perigo vinculada à existência de formas de vida classificadas como
arriscadas: sedentarismo, alcoolismo, consumo de tabaco, etc. (Rail et
11 Vale destacar o terreno escorregadio sobre o qual respousa o conceito de epidemia da
obesidade, já que esta não é uma doença contagiosa (não se espalha através do contato
entre as pessoas) e é difícil pensar que se poderá fazer um antídoto para sua redução
na população global.
105
al., 2010); b) o mito de que atividade física é saúde12, e que sua prática
sistemática pode impactar positivamente na prevenção dos riscos
relacionados à obesidade (Carvalho de 1998, Fraga, 2005); c) uma
perspectiva sobre o saudável representada por uma forma/composição
corporal/muscular mensurável, que identifica no acúmulo de gordura o
agente do perigo; d) uma noção neoliberal de pessoa entendida como
um indivíduo responsável por si e por suas ações, capaz de modificar
seus hábitos e estilos de vida através da incorporação de técnicas de
(auto)disciplinamento (Vazquez Garcia, 2005); e, finalmente, e) uma
política de prevenção que valoriza a divulgação como forma de educar
quanto aos benefícios da prática regular de atividade física para a
saúde, por um lado, e por outro como meio de informar sobre as
novidades, em matéria de riscos, que os diferentes estilos de vida
identificados como prejudiciais à saúde representam para a vida
individual e coletiva (Fraga, 2005).
Em resumo, o estilo de vida ativo, e a consequente
estigmatização do sedentarismo e da obesidade, operamsobre a base de
12 A noção de mito é tomada da investigação realizada por Yara Maria Carvalho
intitulada ʺEl ʹMitoʹ de la Actividad Físicaʺ, no qual se correlaciona a noção de mito
com a crença generalizada de que atividade física é saúde. A autora adverte que, para
além da validade de certas hipóteses sobre a questão da saúde e da prática sistemática
de atividades físicas, de rituais e de relações repetitivas que os sujeitos
contemporâneos estabelecem em torno desta crença, em grande parte impulsionada
pelos meios de comunicação, naturalizam os saberes científicos da medicina e da
fisiologia do exercício como verdades últimas. Neste sentido, é importante resgatar
também o trabalho de Eric Oliver Fat Politics The Real Story Behind America’s Obesity
Epidemia no qual se discute alguns discursos extremistas que associam a obesidade
com riscos de morbilidade e mortalidade na população norteamericana. Ademais,
inversamente, há uma infinidade de exemplos que mostram que a atividade física
pode ou não ser saudável, e que isso é condicionado por quem, quando, onde e como
se praticam as atividades esportivas e a ginástica. Em resumo: o mito é um discurso
que se converte em uma crença concebida como verdade inquestionável, e em torno
da qual se organizam rituais e práticas que são naturalizados na esfera do social e do
religioso. A partir desta perspectiva, a equação atividade física e saúde transforma‐se
num mito na sociedade contemporânea, na medida em que é incorporada na vida
familiar e comunitária, naturalizando (ou seja, ritualizando) a relação entre os
sujeitos, as tecnologias corporais, a medicina e os corpos, e reproduzindo dispositivos
de saber‐poder e de espe(ta)cularização que sacralizam as associações entre beleza,
saúde e cuidado do corpo como formas universais.
106
um conjunto de estratégias biopedagógicas que ensinam/orientam as
pessoas a respeito de como e o que é ser um bom biocidadão (Halse de
2009; Harwood, 2009).
2.2. As confissões carnais de obesidade do corpo
Os biopedagogías sobre as quais fizemos menção na seção anterior
operam na base de dois registros: um prescritivo e outro escópico.
O registro prescritivo coloca em circulação saberes e narrativas
tendentes a inscrever os corpos no conceito amplo de saúde e bem‐estar.
Para isso, usa uma retórica que pode transitar entre um tom informativo
ou de conselho, a outro entusiasta e amigável. Pode ainda adotar um
estilo intimidante que beira o terror.
O regime escópico ativa uma dinânima de produção de imagens
que operam a partir da criação de figuras dicotômicas tais como
a/normal e in/desejável, associadas à lógica de operação binária do ICM
e do par ʺmodelo (exemplo)/estigmaʺ (Barthes, 1974: 48, Goffman, 2003).
É interessante observar como são apresentadas, em diferentes
meios de comunicação de massa, a idéia de beleza, cuja imagem está em
acordo com o estabelecido pelo regime prescritivo e, por sua vez, com a
perspectiva hegemonizante do discurso sanitário. Por exemplo, a
obsessão paranóica por reduzir os excedentes abdominais até a
conquista da pureza muscular parece enraizada no diagnóstico mítico da
chamada obesidade andróide, ʺo padrão típico de acúmulo de gordura em
um homem, no qual a gordura se deposita principalmente na parte
superior do corpo, especialmente no abdômenʺ (Wilmore e Costill, 2001:
541). O mesmo ocorre com a obesidade ginóide, tipicamente feminina, cuja
concentração de gordura e volume se concentrado na região dos
glúteos, quadris e coxas, ou seja, os mesmos locais do corpo que
constituem o foco da preocupação estética de diversos produtos e
técnicas de emagrecimento (Wilmore e Costill, 2001: 541).
Do mesmo modo como um abdômen magro, fibroso, musculoso
em um homem é um sinal de sensualidade e vitalidade, uma barriga
proeminente de cerveja é percebida, pelo contrário, não apenas como
um desagradável fator estético, mas, principalmente, como um fiel
indicador de desvios em sua forma corporal.
107
Figura 2. Imagen exibida no artigo “As gorduras são imprescindíveis para a
vida?” Publicado em Revista Muy Interesante (8/1995: 8).
A gordura que se acumula na região central do corpo é
anunciada metabolicamente como a mais perigosa para a saúde. Os
fatores que são reconhecidos como responsáveis por sua produção são,
em maioria, aqueles associados a um estilo de vida sedentário e
degenerado. Daí se conclui que sua redução ou aumento estão
relacionados às práticas in/sanas do indivíduo afetado pelo nocivo
excedente corporal. Se este persiste na forma insana, diz‐se que o
indivíduo é merecedor dos riscos auto‐degenerativos.
O peso moral que regula o entendimento social é organizado em
torno do princípio normativo neocapitalista que clama a que cada um se
responsabilize por seu próprio bem‐estar. Seu des/cumprimento se
evidencia por meio da (própria) ʺapresentação pessoalʺ (Goffman, 1989).
Metafórica e conceitualmente, e a partir de um registro quase
religioso, a obesidade é tratada pelo dispositivo da saúde e do bem‐
estar como um pecado contra o credo sanitário‐empresarial da
(auto)liderança individual e, portanto, da (auto)gestão corporal e
pessoal. O obeso e o sedentário representam, desse modo, o fora do
108
ideal, que regula a performatização dos corpos saudáveis, bonitos e
produtivos (Fuss, 1999). É demarcada, assim, uma ordem moral que se
polariza em uma série de dicotomias, onde o primeiro elemento do par
converge com o ideal empresarial enquanto o segundo, sustentando seu
oposto, condena o desvio de maior visibilidade. O pecador é
representado, então, como o sujeito irresponsável, incapaz de
autocontrole, desorganizado, passional, impulsivo, cuja compulsão o
leva ao caminho da ruína, do vício e da consequente destruição.
Figura 3. Fotografia exibida no artigo
“É verdade que se sou obeso terei
disfunção erétil?” (Gómez, 2008)
publicado na Revista Men’s Health
(2/2008: 8).
O corpo do obeso ingressa
em uma trama confessando sua
transgressão. Sua volumosidade,
flacidez e carnalidade amorfa não
fazem mais que narrar o
conglomerado de faltas que este
mortal comete em seu dia a dia.
Tal diagnóstico clínico e
governamental implica em um
conjunto de práticas visuais: a
observação social, a espionagem
em torno das formas corporais dos
ʺoutrosʺ e até mesmo a confissão dos ʺtrangressoresʺ, são fruto de um
olhar estigmatizante e inquisitor (Scholz, 2009).
O obeso é situado neste imaginário nos limites do humano/ não‐
humano e do bárbaro/ civilizado, a partir de um repertório de figurações
que vão desde o grotesco e o monstruoso até o alienígena, assexuado e
infantil. Os obesos, pecadores por terem se distanciado das normas de
sua sociedade, tornam‐se espetáculo cujo castigo é posto no duplo efeito
de sua aparência: da perspectiva estética, seus excessos comunicam
monstruosidade física, enquanto que a partir da abordagem santitária,
109
os mesmos são tidos como enfermidades, riscos e até mesmo tomados
como fatores subjetivos de marginalização social.
Figura 4. Empresa: Del Mar ‐ Medical Spa Empresa, especialista em programas
de perda de peso. (Mercado Fitness, 5,6/2010: 82).
Figura 5. Imagen de uma campanha de
2009 do Ministério de Saúde de
Portugal. Texto: Os sedentários nao
conseguem escapar das doenças. Faça
exercício. (Mercado Fitness, 5, 6/2010:
83)
A exposição ridicularizada
destes sujeitos pelos diversos meios
de comunicação opera como um
biopedagogia que mostra o que pode
acontecer com quem se afasta da
regra compulsória da vida saudável
e ativa. Como reflete Prosa (2010, s.
p.):
Os super‐heróis da gula, de Gargantúa até Diamond Jim Brady, têm
sido relegados a um passado distante, ignorante e atrasado. Seus
110
herdeiros – os grandes comilões de hoje – são costumeiramente
considerados seres anormais ou sociopatas ou, ainda mais comumente,
perdedores medíocres, desajustados ou espécimes humanos
desgraçados. Ocasionalmente, pessoas extremamente obesas (nais
quais talvez vejamos imagens aterradoras do que pode nos acontecer
se ignoramos os escrúpulos de controle social e nossos próprios
superegos vacilantes) aparecem no noticiário do jornal da noite ou nos
programas com testemunhos de violência em horário nobre.
O bom, a massa magra, e o ruim, a massa gorda, se enfrentam,
como num território de batalha, na própria corporalidade. Assim, corpos
obesos convertem‐se em textos nos quais se pode ler a diferença, a
enfermidade, a dis/funcionalidade, a in/docilidade e a monstruosidade
(Torras, 2007:17). Esta textualidade pode ser reescrita, corrigida,
adaptada, ou ao menos simular normalidade, em uma aparência
espe(ta)cular e/ou em um organismo que se move, produz, figura, opera
segundo a norma de uma forma‐função normalizada.
Portanto, o discurso do saudável, cuja finalidade é sustentar a
ficção do sujeito empreendedor e a representação positiva de si mesmo
(também fictícia em si), deve se estruturar como dialeticamente
polissêmico/a e ambivalente para que possa nomear, apropriando‐se e
suprimindo todos os possíveis comportamentos dos outros, toda a
multiplicidade subversiva derivada de um excesso simbólico que pode
vir a afrontar a hegemonia sanitária da cultura ativa (Figari, 2009: 225;
Boltanski, 2002: 167).
3. O (des)governo dos zumbis
Através da figura do morto‐vivo, este ser que trai um dos tabus
sociais mais antigos e firmemente estabelecidos, uma série de valores,
medos e conflitos históricos socialmente delimitados podem ser
analisados. Este parece o caso dos zumbis contemporâneos, personagens
da cultura do entretenimento que, de origem colonial e religiosa,
alcançaram no início do século XXI o status midiático de uma das
principais metáforas do caos social (Drezner, 2011), conforme exemplifica o
111
Centro de Controle e Prevenção de Doenças do governo estadunidense13
em sua campanha Prontidão zumbi, criada para explicar como a população
deste país deve agir caso aconteça um ataque destes seres: se você está bem
equipado para lidar com um apocalipse zumbi, você estará preparado para um
furacão, uma pandemia, um terremoto ou um ataque terrorista14.
No mundo do entretenimento contemporâneo, seja em filmes,
livros, quadrinhos ou videogames (Russel, 2010), os zumbis
predominam como o principal exemplo fantástico e ficcional de um
inimigo instintivamente agressivo, numericamente superior,
absolutamente sem compaixão (porque não possui nenhum tipo de
emoção), irracionalmente eficaz, devorador literal de vidas e cuja
origem é misteriosa e confusa. Este último fator é, inclusive, um dos
elementos característicos deste morto‐vivo pós‐moderno: sua
procedência tem versões distintas nas mais variadas narrativas, indo
desde um efeito desconhecido da radiação nuclear15 (que causa a
“ressurreição” dos cadáveres) à manipulação genética de vírus
desenvolvidos para guerras bacteriológicas e que fogem ao controle16
(causando a agressividade, a decomposição dos corpos e a urgente
necessidade de se alimentarem de carne humana). Para este artigo, a
origem histórica deste monstro tão recente e ocidental quanto
internacionalmente expressivo17 é fundamental.
3.1. Cadáveres famintos
Conforme Mary Del Priore, em seu estudo sobre monstros,
durante o século XVII na região dos Balcãs, na Grécia, na parte oriental
do Império Austro‐Húngaro e na Rússia, houve uma grande
13Center for Disease Control and Prevention – CDC ‐ http://www.cdc.gov/
14Zombie preparedness. Disponível em: http://www.cdc.gov/phpr/zombies.htm. Acesso
em: 05/03/2013. Todas as traduções são dos autores.
15 Como no filme fundador da figura do zumbi contemporâneo, A noite dos mortos vivos
(Night of the living dead, dir: George Romero, EUA, 1968).
16 Como no filme Extermínio (28 days later, dir: Danny Boyle, Reino Unido, 2002).
17 Existem filmes de zumbis produzidos em vários países do mundo, com culturas
políticas e temores sociais tão distintos quanto África do Sul, Bélgica, Brasil, Canadá,
Coréia do Sul, Cuba, Filipinas, Haiti, Itália, Japão, México, Nigéria, Nova Zelândia e
Romênia, entre outros (Russel, 2010).
112
propagação de ideias a respeito de mortos‐vivos, pessoas que por
castigo divino ou ligações com demônios, depois de mortas
“mastigavam” em seus túmulos e podiam sair para sugar o sangue (ou
carne) de outras pessoas (Del Priore, 2000). Estes seres conhecidos na
Grécia como vrykolakas, se tornaram política e popularmente
importantes durante as epidemias de vários tipos de pestes que
ocorreram no início do século XVIII em grandes regiões do leste
europeu e em parte da Europa ocidental, deixando centenas de doentes
e cadáveres insepultos pelas vilas e estradas.
Ainda conforme a autora, um caso de repercussão internacional
no período foi o de Arnaldo Paole acusado, depois de sua morte, do
desaparecimento de várias pessoas da cidade de Medwegya, na
Hungria. Após as autoridades investigarem o caso e colherem
depoimentos de policiais e médicos, um relatório oficial escrito em
alemão foi publicado em 1732 e, no mesmo ano, divulgado em jornais e
revistas de língua francesa e inglesa. É graças a este relatório e suas
traduções que aparece escrita pela primeira vez, com diferença nas
grafias regionais, a palavra “vampiro” (Del Priore, 2000: 108).
Este é um dado extremamente importante: os primeiros relatos
modernos ocidentais sobre mortos que saem de suas tumbas
procurando devorar pessoas e transformando suas vítimas também em
mortos‐vivos, vão se desenvolver na personagem do vampiro18 que, até
a metade da década de 80 do século XX, era o representante do mal, da
luxúria e da desumanização antropofágica na cultura de massas. A
partir desse período, a grande maioria das personagens vampiros
tornam‐se cada dez mais sentimentais, envolvidas em crises de
identidade e em profundo conflito entre sua natureza assassina e o
amor‐paixão romântico burguês.
18 Na passagem do século XIX para o XX, a figura da múmia também vai contribuir para
o imaginário sobre mortos que saem de suas tumbas (Loudermilk, 2003). Mas, apesar
de intimamente associado ao colonialismo europeu e de seu caráter de realeza da
Antiguidade, este morto‐vivo de inspiração egípcia não se desenvolveu com a mesma
vitalidade que o vampiro. Talvez tenha contribuído para isso a sua falta de
sensualidade e o completo distanciamento do universo erótico, tão importante para a
literatura de horror da época.
113
Em exata oposição aos tradicionais defuntos mastigadores dos
relatos oitocentistas ou aos clássicos e sensuais bebedores de sangue
inspirados em Drácula, na primeira década do século XXI os vampiros
que fazem sucesso na literatura e no cinema são adolescentes que
desejam, mais do que tudo, casar virgens e não lembram em nada um
cadáver ambulante19. Com o crepúsculo dos aristocráticos e erotizados
mortos‐vivos vampiros, vem o amanhecer das massas putrefatas de
mortos‐vivos zumbis.
3.2. O espírito colonial
Conforme Kyle Bishop (2008), a primeira vez que o termo
“zombie” aparece escrito é em 1792, no texto do francês Moreau de
Saint‐Méry, definindo‐o como “palavra criola que significa espírito,
aparição” (apud Bishop, 2008; 143) e, no século XIX, este mesmo termo
aparece associado ao nome do revolucionário haitiano Jean‐Jacques
Dessalines, também conhecido como Jean Zombie (Bishop, 2008). Ele foi
um dos principais atores da sangrenta revolta de escravos que, em 1794,
levou este país a ser o primeiro a abolir a escravidão e, expulsando as
tropas dos colonizadores franceses em 1804, declarar‐se independente,
tornando‐se também a primeira república governada por negros.
Já para Jamie Russel, o termo zumbi aparece no mundo anglo‐
saxão em 1889 em um artigo no Harper´s Magazine do jornalista Lafcadio
Hern sobre o Haiti intitulado “A terra dos que voltam” (Russel, 2010:
23). Em 1819 a palavra aparece no Oxford English Dictionary, afirmando
que foi escrita pela primeira vez na língua inglesa em uma obra do
mesmo ano chamada História do Brasil, de Robert Southey, e ressaltando
que zumbi era sinônimo de diabo (Russel, 2010: 23).
Segundo o dicionário brasileiro Aurélio,
“Zumbi. [Do quimb. nzumbi, ‘duende’.] S. m. 1. Bras. O chefe do
quilombo dos Palmares, na sua fase final; zambi. 2. Bras. Fantasma
que, segundo a crença popular afro‐brasileira, vaga pela noite morta;
19 Como na saga literária “Crepúsculo” de autoria da norte‐americana Stephanie Meyer
e suas continuações, todas transformadas em uma série homônima de cinema pela
Paris Filmes.
114
cazumbi. 3. Bras. Indivíduo que só sai à noite. 4. Bras., Al. Designação
dada no interior, à alma de certos animais, como, p. ex. O cavalo e o
boi. 5. Bras. Lugar deserto no sertão” (Ferreira, 2004: 2097).
Não podemos nos esquecer que o último e mais famoso líder do
maior quilombo que o Brasil teve, o de Palmares, no século XVII,
também era conhecido como Zumbi ‐ conforme lembra o primeiro
significado deste dicionário20. Sua fama de guerreiro chegou até
Portugal e, como a etimologia de seu nome parece indicar, evocava o
medo provocado por uma figura valente, inteligente, espectral e que
lutava ferozmente contra a ordem escravocrata estabelecida. Sua
inspiração libertária não se restringiu a seu período histórico, sendo
resgatada no fim do século XX pelos movimentos sociais negros e
transformando a data de sua morte, 20 de novembro, no Dia da
Consciência Negra no Brasil.
Se Jamie Russel (2010) estiver correto e a primeira vez que o
termo zumbi aparece em língua inglesa é num livro do século XIX sobre
a história do Brasil, podemos perceber o quanto este nome já
amedrontava o poder colonial nas Américas provavelmente há alguns
séculos, evocando em uma mesma palavra insinuações de rebelião
política e forças sobrenaturais. Zumbi dos Palmares e Jean Zombi
corporificaram o espírito que assombrou o colonialismo de suas
respectivas épocas históricas e culturas locais nas quais, não por caso,
tal espírito foi interpretado como força maligna e demoníaca. Ao
contrário dos dois líderes negros, o termo zumbi vai se desenvolver não
como inspirador de coragem e rebeldia contra as injustiças sociais, mas
como sinônimo de um escravo sem vontade e autonomia – e depois
como um monstro irracional e desumano ‐ mostrando o quanto a
opressão colonial e o medo do colonizador ajudou a formar o
imaginário deste ser.
Mas é apenas em 1929 que a figura do zumbi chegou à cultura
de massas norte‐americana, alcançando pela primeira vez pessoas que
não viviam nas colônias caribenhas nem estavam ligadas nos assuntos
de administração colonial ou política internacional. Depois de um
20 Russel (2010) e Bishop (2008) mostram como existe uma controvérsia entre vários
pesquisadores sobre a origem etimológica da palavra zumbi.
115
grande período interno de instabilidade política e econômica, em 1915
os Estados Unidos invadem o Haiti sob o pretexto de pacificar os
conflitos e reorganizar a economia local, controlando política e
militarmente o país21 (Russel, 2010). Neste contexto, o aventureiro e
jornalista William Seabrook chegou a esta terra em 1928 e, um ano
depois, lançou o livro “A ilha da magia” (Seabrook, sem data).
É este livro que vai divulgar massivamente para um público que
se considerava moderno, racionalista, urbano e ávido por novidades
exóticas, a religião vodu como algo primitivo e a figura do zumbi como
sendo um infeliz escravo rural morto‐vivo (Bishop, 2008; Russel, 2010).
O texto tornou‐se um sucesso imediato em vários países ocidentais e
iniciou uma crescente busca no mundo do entretenimento22 por pessoas
mortas de culturas e nações subalternas que, através de poderes
mágicos e sobrenaturais, permaneciam vivas e mortas ao mesmo tempo.
Hoje, essa imagem parece ser uma excelente metáfora para a situação de
tantos povos que viviam sob o domínio de nações estrangeiras e sua
brutal e desumanizante maneira de lidar com as populações e culturas
nativas mas, na época, tal imagem foi compreendida como um sinal
inequívoco da barbárie, ignorância e depravação sexual em que viviam
os negros quando deixados a seu autogoverno, justificando a invasão
militar e a política segregacionista.
Curiosamente, o encontro deste aventureiro com um zumbi é
apenas uma breve – e impactante ‐ passagem do livro. Ao narrar suas
conversas com Polynice, um fazendeiro da região que não acreditava
nas crenças nativas, o autor se surpreende com a crença nos zumbis por
parte deste poderoso senhor. Ressaltando a ligação fundamental
encontrada na lenda entre o zumbi e o trabalho escravo, Seabrook narra
seu encontro com esses trabalhadores amaldiçoados e infelizes em uma
das passagens mais impactantes do livro:
“Minha primeira impressão dos três zumbis, que continuavam a
trabalhar, foi a de que eles tinham realmente alguma coisa de estranho.
21 As tropas norte‐americanas se retiram apenas em 1934.
22 Inicialmente o entretenimento literário não ficcional, depois o cinematográfico e, daí
em diante, adquirindo formas em todos os tipos de produções culturais: games,
televisão, quadrinhos, literatura, música etc.
116
Seus gestos eram de autômatos. Não podia ver seus rostos, por estarem
próximos ao chão, mas Polynice segurou um deles pelos ombros e
pediu que endireitasse os ombros. Dócil como um animal, o homem
levantou‐se e o que vi então causou‐me um choque desagradável. O
mais horrível era o olhar, ou melhor, a ausência de olhar. Os olhos
estavam mortos, como se fossem cegos, desprovidos de expressão. Não
eram olhos de um cego, mas de um morto. Todo o semblante era
inexpressivo, incapaz de expressar‐se” (Seabrook, sem data: 84).
Procurando justificar o que vira através de causas naturais para
este estado humano, como a letargia23, o autor vai concluir que o zumbi
é um dos grandes mistérios do Haiti, terra onde a razão ocidental
encontra seu limite operacional.
Outro trabalho extremamente importante sobre o tema dos zumbis
haitianos foram os livros do antropólogo e etnobiologista canadense Wade
Davis, chamados “A serpente o e arco‐íris”, lançado em 198524 e “Passage of
darkness: the ethnobiology of the haitian zombie”, de 1988. Nestes relatos, o
autor narra sua pesquisa no Haiti patrocinada por médicos americanos em
busca de explicações químicas e científicas para o processo de
zumbificação. O tema estava novamente na mídia internacional decorrente
dos conflitos políticos que estavam ocorrendo naquele país, com o auge da
crise do governo ditatorial de Jean Claude Duvalier, o Baby doc, e que
culminaria em sua deposição por um golpe militar.
Além disso, o Haiti se tornaria na década de 80 o país mais
pobre da América Latina. Como se não bastasse, os Estados Unidos
nesse período o culpam pela epidemia de AIDS (através de sangue
contaminado usado para transfusões), mais uma vez associando o
desregramento sexual dos negros à catástrofe e consequente ruína da
23 Este hipótese será pesquisada apenas na década de 80 do século XX, nos estudos de
Wade Davis.
24 Fazendo tanto sucesso quanto a obra de Seabrook, rapidamente este livro foi
adaptado para o cinema e lançado em 1988 com o mesmo título. No filme, a aventura
do pesquisador e o interessante debate conceitual sobre religião e ciência expostos no
início da película rapidamente dão lugar a um terror simplório e incapaz de
desenvolver a importante questão de fundo que a própria obra apresenta: a relação
entre política e a religião vodu no Haiti, especialmente no período Duvalier. No Brasil
o filme foi lançado com o assombroso título “A maldição dos mortos‐vivos” (The
serpent and the rainbow, dir: Wes Craven, EUA, 1988).
117
civilização branca. Apenas depois de protestos diplomáticos, o Centro
de Controle e Prevenção de Doenças25 reviu sua posição
desresponsabilizando as pessoas negras haitianas pelo avanço da
doença nos EUA (Parker e Aggleton, 2001). Mesmo assim, ficou
reforçada a íntima relação entre o Haiti e o perigo do contágio de
doenças altamente mortais, sendo este último elemento fundamental
para o imaginário do zumbi contemporâneo.
Em busca do poderoso veneno/ anestésico encontrado no baiacu
e que seria o elemento principal de uma poção que transformaria
pessoas vivas em mortas‐vivas, Davis percebeu o quanto a crença neste
seres era um dos elementos mais importantes de controle social através
da religião. Nas muitas sociedades secretas voduistas que se
espalhavam por um Haiti predominantemente rural, ser transformado
em zumbi, ou seja, alguém cujo destino após o túmulo seria tornar‐se
um escravo sem vontade ou autonomia, era visto como a mais terrível
punição contra os inimigos sociais. Conforme entrevista recente com o
autor,
“[Na lenda] um zumbi é alguém que teve sua alma roubada por um
feitiço e que fica capturado em um estado de purgatório perpétuo e
que acaba sendo mandado para trabalhar como escravo em plantações.
Hoje sabemos que não há nenhum tipo de incentivo para criar uma
força de escravos‐zumbis no Haiti, mas dada a história colonial aliada
à ideia de perder a sua alma – o que significa perder a possibilidade de
ter uma morte digna para o vuduista ‐, tornar‐se um zumbi é um
destino pior do que a morte. É por isso que no Haiti não se teme os
zumbis, mas se tornar um zumbi” (Assis, 2010).
Outro elemento fundamental dos trabalhos de Davis foi mostrar
a morte como um dado muito mais cultural e social do que biológico.
Ao passar pelos rituais de velório e sepultamento, o indivíduo é
considerado morto pela comunidade, independente de seu
funcionamento biológico. Desta forma, uma pessoa que foi velada e
25 O mesmo órgão governamental que em 2012, como vimos, vai lançar a “Prontidão
zumbi”.
118
enterrada, se for reencontrada novamente andando ou trabalhando, não
será vista como alguém vivo como antes, mas sim como um morto‐vivo.
Desta forma, podemos perceber o quanto o zumbi “tradicional”,
ou “haitiano” era associado a um imaginário colonial e religioso. Sua
figura evocava o trágico destino de uma morte sem descanso, tornando
a pessoa zumbificada um eterno trabalhador escravo, sempre à serviço
de seu mestre e senhor, sem desejos, esperanças ou qualquer grau de
liberdade. O zumbi representava, entre outras coisas, um conflito entre
a tradicional ordem escravocrata e o moderno sistema capitalista, cuja
solução provisória era apoiada e consagrada pelo discurso religioso.
Seja política, econômica ou espiritualmente, o zumbi das colônias era o
grande paradoxo e pesadelo do sonho liberal: a liberdade econômica de
um capitalismo que escraviza.
No cinema da primeira metade do século XX, foram dois os
principais filmes que trataram do zumbi haitiano: White zombie26, de
1931 e I walked with a zombie27, de 1943 (Russel, 2010). Ambos os filmes
(mas principalmente o primeiro) espetacularizaram para as grandes
audiências cinematográficas um monstro originado dos países
colonizados do Novo Mundo, insinuando que a “barbárie nativa” dos
povos subalternizados era uma ameaça real e constante. Em seu artigo
sobre White zombie, Bishop (2008: 141) afirma: em outras palavras, o
verdadeiro horror nestes filmes está na perspectiva de um ocidental tornando‐se
dominado, subjugado e efetivamente “colonizado” por um nativo pagão.
Depois de algumas décadas de filmes com baixo orçamento,
originados de vários países, apresentando mortos quase vivos
assombrando vivos quase mortos e misturando magia, extraterrestres e
terror psicológico, é o cinema norteamericano independente que vai
criar a figura do zumbi contemporâneo e iniciar o contágio deste tema
em todo o universo do entretenimento.
26 White zombie, dir: Victor Halperin, EUA, 1931.
27 I walked with a zombie, dir: Jacques Tourneur, EUA, 1943
119
3.3. O zumbi contemporâneo
Em 1968, George Romero lança o filme “A noite dos mortos‐
vivos”. Causando um choque na época, este filme de baixo orçamento e
imagens consideradas extremamente violentas, vai originar a figura do
zumbi contemporâneo: um morto que retorna à vida sem consciência,
comumente atacando em grupo e cujo único objetivo é devorar os
humanos vivos, transformando aqueles que foram mordidos em novos
zumbis.
Neste filme em preto e branco, um grupo de pessoas que não se
conhecem é encurralado dentro de uma casa abandonada e cercada por
estas criaturas, cuja origem ninguém compreende – embora as notícias
da televisão digam que os mortos vivos devem ter alguma ligação com
a radiação atômica. Liderados por um homem negro, o grupo tenta
sobreviver e descobrir o que está acontecendo, enquanto os vários
conflitos entre eles apenas pioram a situação e aceleram seu final
trágico. “A noite dos mortos vivos” foi considerado subversivo28 sob
vários aspectos: imagens explícitas29 de violência; a completa ausência
de confiança nas forças estatais e nas instituições públicas (como a
polícia e o próprio governo); a descrença na solidariedade e capacidade
de ajuda mútua entre as pessoas e, principalmente, colocar um homem
negro não como um zumbi (igual aos zumbis do colonialismo), mas
como a personagem principal e líder da “resistência”, mostrando‐se o
único sensato e altruísta naquele grupo. Conforme Russel (2010: 112): “o
que torna a visão apocalíptica de Romero tão desconcertante é o
niilismo que a anima. O levante dos mortos contra os vivos é
representado por um ataque repetido contra toda a verdade, valor e
conforto que a civilização se apega”.
28 Conforme Russel (2010) a quase totalidade da crítica do período viu no filme apenas o
exemplo de um enredo fraco e solto que servia de desculpa para cenas de violência
desmedida e gratuita.
29 Revivendo a tradição do Grand‐guinol europeu (Hand e Wilson, 2002) e ajudando a
iniciar o chamado cinema “gore” ou “splatter”, com imagens exageradas e das mais
realistas até então realizadas, apresentando cenas de sangue, mortes, mutilações e
violências físicas.
120
Entre todos os autores pesquisados, é unânime a ideia de que
esta película é um marco do cinema de horror e a obra que criou a
figura contemporânea do zumbi, estabelecendo inclusive os principais
elementos narrativos que formarão este gênero de filme30. Podemos
citar em primeiro lugar as imagens diretas e explícitas de mutilação e
morte, onde o corpo humano é apresentado em detalhes apenas para
realçar o efeito causado pelas imagens de sua violenta destruição.
As pessoas sendo perseguidas e encurraladas como uma caça
também é outra constante destas produções. Seja cercadas em uma casa,
presas em uma ilha, isoladas em um bunker ou shopping Center, a
sensação de clausura e muitas vezes de claustrofobia está sempre
presente31. Outro elemento importante, normalmente surgido como
consequência do acossamento é o convívio forçado entre sujeitos
totalmente distintos em vários níveis: social, econômico, cultural e
moral. Disto resultam conflitos internos muitas vezes emocionalmente
tão violentos quanto os ataques dos zumbis. No universo destas
produções, o bom convívio humano é um ideal tão ilusório quanto
destrutivo.
A origem dos zumbis e a causa de sua necessidade de
exterminar os vivos também nunca é clara, ajudando a construir o
30 Não queremos com isso dizer que todos os filmes de zumbis sigam à risca estes
elementos; apenas sugerimos que eles são os mais comuns e que os filmes mais
criativos e originais sobre este tema justamente são os que conseguem subverter estes
elementos‐chave que caracterizam as narrativas e o “gênero” sobre zumbis.
31 A ideia de um grupo de humanos cercado por inimigos não humanos representando
o colapso da vida social e da civilização remete ao final de um dos clássicos da ficção
científica, a peça “R.U.R.”, do tcheco Karel Tchápek (lançada no Brasil como “A
fábrica de robôs”). Escrita em 1920 e encenada em 1921, ela narra a estória de uma
empresa que constrói empregados‐escravos meio‐mecânicos meio‐orgânicos para
trabalharem em fábricas, que revoltam‐se contra seus empregadores humanos. Foi
esta obra que criou o termo robô, originado do tcheco, significando “servidão,
trabalho forçado”. Cansados de serem explorados, os robôs se unem para destruir
seus opressores. Escrita como clara referência ao socialismo e sua crítica ao
capitalismo, o texto trabalhava a tomada de consciência dos trabalhadores robôs
escravos e a derrocada capitalista pela organização e ascensão desta nova classe
social. Da ficção científica do início do século XX ao terror fisiológico do fim deste,
uma mudança parece clara: o capitalismo atual não teme mais a tomada da
consciência de classe pelos organizados e politizados trabalhadores, mas a revolta
daqueles que já são considerados “mortos” por este modelo.
121
ambiente de insegurança e desconfiança presente nestas obras. Da
mesma forma, a multidão de zumbis é fundamental: eles são inúmeros
e sua quantidade cresce na mesma proporção em que fazem vítimas. Os
zumbis nunca estão sozinhos, mas sempre em grupos. Mais que
inteligência ou habilidade física, os zumbis representam uma ameaça
pela sua incontrolável e crescente quantidade.
Mas os elementos mais inovadores criados por Romero e que
definitivamente rompem a continuidade do zumbi contemporâneo com
seu homônimo haitiano são o canibalismo e o contágio. A partir de “A
noite dos mortos vivos”, os zumbis se desenvolveram como seres que
perseguem as pessoas para devorá‐las e que, tendo contato com as
secreções, mordidas ou arranhões deles, os humanos estão fatalmente
condenados à tornarem‐se também um cadáver faminto32.
Ora, o zumbi haitiano não era canibal. Seabrook inclusive fala das
lendas a respeito de sua alimentação, que deveria ser completamente sem
sal, pois este tempero poderia trazer da volta sua consciência
adormecida. A dieta deste resignado monstro colonial era estritamente
regulada, enquanto que a do monstro contemporâneo e globalizado é
descontrolada e insaciável, na mesma proporção em que o outro monstro
analisado neste artigo – o obeso – deve controlar seu apetite.
Como vimos, o zumbi caribenho era principalmente um escravo,
indissociável de um senhor e de uma relação de servidão, encarnando
uma punição contra aqueles que desafiavam o poder estabelecido e
assombrando o imaginário colonial. Já o zumbi contemporâneo pertence
a um imaginário global e apocalíptico, onde imperam o caos e a
desordem. O primeiro inspirava medo por sua evocação à manutenção
aterrorizantemente imposta da ordem social; o segundo provoca medo
por sua referência violenta à falta de qualquer ordem social.
Se no Haiti rural os inimigos sócio‐políticos eram as vítimas
preferidas da zumbificação, no imaginário do mundo globalizado
qualquer pessoa pode vir a se tornar um zumbi. Para isso, não é
necessário ser encarada como uma ameaça política, mas simplesmente
32 Curiosamente, em nenhum momento desta película fundante, a palavra “zumbi(s)” é
proferida. O termo usado é sempre “mortos vivos” ou, mais comumente, apenas
“mortos”. Talvez com isso o diretor já quisesse deixar claro a não relação entre o
zumbi haitiano e os defuntos ambulantes contemporáneos.
122
ser vitima de um contágio. O trágico zumbi haitiano era um miserável
físico e um amaldiçoado espiritual, enquanto o agressivo zumbi
contemporâneo é um contagioso cadáver decomposto, afastado de
qualquer referencial transcendente ou sagrado. Ao perder a relação com
a magia e a religião (Filho e Suppia, 2011), o morto vivo atual se
biologizou e se medicalizou33. Sua principal característica não é mais a
alma aprisionada e abatida, mas o corpo putrefato e sempre pronto para
contaminar e corromper os ideais de saúde física e social.
A corporeidade do zumbi contemporâneo é um de seus traços
definidores. Enquanto estes seres haitianos possuíam estrutura física
intacta, machucada pela rudeza da vida escrava, mas viva o suficiente
para trabalhar, os mortos vivos contemporâneos são cadáveres
decompostos. O locus da morte do zumbi caribenho estava na alma e se
manifestava espiritualmente. O do zumbi contemporâneo está no plano
biofisiológico, manifesto no apodrecimento explícito de sua carne e
órgãos. Ora, a visão da interioridade do corpo humano é justamente
uma das características da cultura visual de nossa época. Seja na ciência,
com os avanços das tecnologias médicas; na arte, com o cinema de
vísceras expostas ou na mídia em geral – que apresenta imagens que
vão de exames clínicos dos órgãos internos ao cadáver despedaçado de
uma vítima de violencia ‐ a imagem do corpo aberto, fragmentado,
desmembrado e expondo seu interior é uma constante (Moraes, 2010,
Ortega, 2013).
“Numa cultura na qual a intimidade deixou de ser valorizada e
protegida, passando a ser exposta nos mais ínfimos detalhes em
realityshows, programas de auditório, diários na Internet e outros
teatros do eu contemporâneos, a interioridade visceral revelada pelas
novas imagens acompanha esse processo de externalização. Apesar de
essas imagens serem tão pessoais e ‘íntimas’ por pressagiar de maneira
tão eficaz nossa condição mortal, estamos nos acostumando à sua
difusão e reprodutibilidade.” (Ortega, 2013: 91).
33 Entre os filmes que pretendem explicar a origem dos zumbis, o argumento de um
vírus ou de uma experiência laboratorial mal‐sucedida é uma constante.
123
Assim, a figura do zumbi apresenta a maneira como estamos nos
adaptando a ver o corpo humano: um agrupamento de vísceras, ossos e
secreções cada vez mais expostas. Nesta nova maneira de apresentar e
representar o corpo, a pele perde sua função de velar pelo encobrimento
de seu interior, acabando com o “pudor orgânico”. A função primeira
da carne nestas imagens passa ser a de demonstrar sua fragilidade e
declarar que não existem mais segredos fisiológicos escondidos.
3.4 A precariedade da vida zumbificada
Como vimos, este específico morto vivo ameaça não apenas por
sua fome insaciável de carne humana e do elemento contagioso de sua
condição, mas por estar sempre associado a um colapso civilizacional.
Não por acaso, o termo “apocalipse zumbi” é constante em tais obras.
Assim, podemos afirmar que o zumbi contemporâneo representa
primeiramente o inumano ou, melhor dizendo, um ser humano que já
não é mais humano.
Este é um elemento extremamente importante, principalmente
nos filmes: o constante aviso que os zumbis já foram humanos, mas não
o são mais. Parentes, amigos, vizinhos, amantes ou filhos, todas aquelas
pessoas que antes possuíam um forte laço afetivo e constituíam uma
rede de solidariedade, após o “contágio” passam a ser vistas como
inimigas, ameaças que devem ser unicamente exterminadas sem o
menor traço de afeto ou compaixão. Os zumbis parecem legitimar a
noção de que ser reconhecido como humano é um privilégio de poucos
– privilégio esse que pode ser retirado a qualquer momento.
O tema do reconhecimento do Outro como humano e a
fragilidade deste vínculo é um dos temas trabalhados pela filósofa
estadunidense Judith Butler. Em muitos de seus trabalhos (Butler, 2006;
2010; 2011), esta autora analisa o que chama de “vida precária”, ou seja,
o caráter contingente e vulnerável da própria noção do que pode ser
considerado como “vida humana” e, assim, conferir a determinadas
pessoas ou grupos o status de humanos, merecedores de afetos,
cuidados, proteção e inteligibilidade.
Para a autora, a “vida” não é pensada como um dado natural e
biológico, mas como uma relação de forças sociais, simbólicas e
124
biopolíticas que legitimam determinadas “vidas” a serem vistas como
importantes e merecedoras de reconhecimento enquanto outras são
encaradas como supérfulas, desnecessárias e incovenientes.
Refletindo sobre a guerra – especialmente a “guerra ao terror”
estadunidense ‐ e sua lógica de desumanizar o inimigo, em um esforço
que envolve não apenas propaganda e campanhas militares mas
necessita da cumplicidade e apoio da mídia, Butler nos mostra como,
nestas relações de poder, determinados grupos ou pessoas não são
compreendidos como totalmente humanos. Sendo assim, essas vidas
podem ser arruinadas, tornadas miseráveis ou mesmo destruídas sem
que isso venha a abalar aqueles que as destroem ou mesmo os que
apenas “se informam” sobre tais acontecimentos. Conforme a autora
(2006: 58): “certas vidas estão altamente protegidas e o atentado contra
sua santidade basta para mobilizar as forças da guerra. Outras vidas
não gozam de um apoio tão imediato e furioso e não se qualificam
inclusive como vidas que ‘valham a pena’”.
Ora, como vimos, a figura do zumbi contemporâneo parece se
encaixar perfeita e literalmente neste modelo de vidas que não são mais
reconhecidas como vidas, tornando seus sujeitos não‐humanos.
Seguindo a lógica da guerra, as obras sobre zumbis parecem proclamar
que existem pessoas ou grupos que não são humanos (mesmo que já
tenham sido algum dia) e que seu extermínio é necessário, não devendo
ser pensado como algo cruel ou “desumano”. Ainda conforme Butler
(2010, 54), “por isso, quando tais vidas se perdem elas não são objeto de
dor, pois na retorcida lógica que racionaliza sua morte, a perda de tais
populações é considerada necessária para proteger a vida dos ‘vivos’”.
Exatamente o mesmo discurso usado nas obras com zumbis.
Assim, visto como uma relação política de legitimação de
determinados grupos, valores e ideias sobre outros, a figura do zumbi
contemporâneo com sua ameaça civilizacional pode ser pensada não
apenas como metáfora do caos social internacional que se instalaria com
um ataque destes seres (Drezner, 2011), mas como o incontável números
de pessoas e vidas em todo o planeta que são encaradas como
perigosas, repugnantes e desimportantes. Como os zumbis, muitas
vezes o fim destes seres que não são mais vistos como humanos é o
125
extermínio, sem direito ao luto ou mesmo ao reconhecimento de sua
humanidade.
Neste sentido, o zumbi globalizado contemporâneo é igual ao
seu antecessor caribenho e colonizado: ambos são monstros por não
conseguirem ser pensados como humanos. Suas “vidas mortas”
representam nem tanto o questionamento dos limites culturais entre a
vida e a morte, mas principalmente um jogo de poder político que
determina quem deve ser visto como um morto, uma ameaça impura e,
consequentemente, ser descartado como uma vida que não vale a pena
ser vivida.
“São vidas nas quais não cabe nenhum pesar porque já estavam
perdidas para sempre ou porque na verdade nunca o “foram”, e
devem ser eliminadas desde o momento em que parecem viver
obstinadamente nesse estado moribundo. A violência se renova frente
ao caráter aparentemente inesgotável de seu objeto. A desrealização do
ʺOutroʺ quer dizer que ele não está vivo nem morto, mas em uma
interminável condição de espectro”. (Butler, 2006: 60).
Em um mundo em que, apesar dos esforços em contrário, o
racismo, o sexismo, as discriminações por etnias, sexos, gêneros, classe,
nação, cultura ou traços físicos, entre outras, não apenas continuam
vivas mas renascem quando acreditava‐se que elas não existissem mais,
uma questão fica no ar: se ideias que já deveriam estar mortas e
enterradas continuam saindo de suas tumbas e encontrando abrigo em
nossas mentes e atitudes, talvez os zumbis não sejam apenas uma
personagem de ficção. Talvez zumbis sejamos nós.
4. Reflexões finais
Tal como aponta Foucault, desde o alvorecer do século XVIII, o
corpo e a vida foram convertidos nos objetos e objetivos do poder (cf.
Foucault, 2002a, 2002b). Quando a vida do homem biológico está
imbricada na do homem político, se assiste a uma reconfiguração da
política. A política se converte em vigilância e gestão de corpos e da
vida.
126
O corpo perde sua caracterização naturalista e essencialista, e
passa a ser compreendido como uma configuração do poder. Como
expressa Haraway ʺos corpos (...) não nascem, eles são fabricados. Eles
foram completamente desnaturalizados enquanto símbolo, contexto e
tempoʺ (Haraway, 1995: 357). O corpo e a vida não são um fato
biológico, mas um complexo campo de inscrição de códigos
socioculturais que devem ser decifrados.
Neste contexto, podemos dizer que tanto o corpo monstruoso do
obeso como a vida monstruosa do zumbi – questões sobre as quais nos
detivemos nesse artigo ‐, são duas imagens da monstruosidade que
devem ser decifradas a partir deste horizonte biopolítico. O monstro é
um conceito biopolítico, definido na identidade entre vida e política.
Enquanto operador conceitual, o monstro se opõe à norma do
humano. O monstro é uma figura transgressora das categorias estéticas,
epistêmicas, jurídicas e políticas a partir das quais se reconhece o
humano. O monstro encarna o limite entre o bonito e o feio, o saudável
e o enfermo, o humano e o inumano, o vivo e o morto, o natural e o
artificial. Representa uma figura específica do poder que ameaça o que é
definido como humano. Portanto, o monstro tensiona a pretensão
classificatória e normalizadora do biopoder.
Embora os limites do humano e do monstruoso pareçam estar
delimitados e fixados, a presença de corpos monstruosos e vidas
monstruosas problematiza tais demarcações e aponta uma zona onde
esses limites tendem a se confundir. A obesidade epidêmica e os zumbis, do
ponto de vista do discurso da ciência (biomédica) e da ficção,
questionam as definições sobre o que é um corpo e uma vida
propriamente humanos.
Por um lado, a obsesidade epidêmica aponta para a
monstruosidade do corpo humano, a monstruosidade (a gordura) que
assombra o corpo a partir de seu interior até apoderar‐se dele. A
obesidade é a manifestação, transcrita no corpo, da monstruosidade que
está no humano, é um humano convertido em monstro. A
volumosidade, flacidez e carnalidade amorfa do corpo são marcas
somáticas que confessam, em seu corpo, a transgressão dos limites entre
o humano (saudável e belo) e o não‐humano (enfermo e feio).
127
Por outro lado, o zumbi representa a desumanidade do monstro, é
um corpo humano em decomposição, um morto‐vivo que perdeu certas
manifestações humanas: rosto, linguagem, afetividade. O zumbi é
também um humano convertido em monstro, portador de uma vida
menos que vida, de uma vida que conduz à própria morte.
Ambas as imagens da monstruosidade informam que, apesar de
sua constituição em oposição à norma do humano, não se trata de uma
alteridade radical com relação ao humano, mas de uma ʺexclusão
inclusivaʺ (Agamben, 2005), uma exteriorização do monstro que habita,
que está incluído, no humano. A monstruosidade desafia a norma a
partir de sua própria interioridade, é um perigo inerente à norma do
humano.
Os critérios normativos sobre os quais se estabelece ʺo humanoʺ
permitem uma gestão desigual sobre a população considerada
ʺhumanaʺ e aquela que se tem desumanizado. O monstro, como perda
de humanidade, seja por portar um corpo monstruoso – o obeso –, seja
por levar uma vida monstruosa – o zumbi –, é objeto de uma gestão
política que o define como um ser carente de valor. Consequentemente,
sobre o continuum da população se produzem cortes entre a população
que se quer defender (os que representem a norma) e os monstros (os
que se desviam dela), ou, em outros termos, entre os ʺcorpos que
importamʺ e ʺas vidas dignas de serem vividasʺ, e os ʺcorpos
descartáveisʺ e as ʺvidas que não merecem ser vividasʺ.
A monstruosidade se lança em uma economia política da vida,
na qual se decide o que constitui e o que não constitui uma forma de
vida humana. Produz uma vida qualificada positivamente, uma vida
que deve ser protegida, e uma vida qualificada negativamente, em
termos de monstruosidade.
O monstro não é apenas um ser sem valor, mas, como expressa
Canguilhem, é um vivente com valor negativo cuja função é repelir.
Neste sentido, o monstro é portador de um corpo e de uma vida que é
considerada como uma ameaça, uma vida que é excluída do que é
considerado vida ʺnormalʺ ou ʺvivívelʺ, uma vida com valor negativo.
Isso coloca em evidência o sentido moralizante que se esconde
por detrás da identificação do monstro. O obeso e o zumbi seriam
manifestações de corpos que perderam sua forma humana em função
128
do desvio de seu comportamento. O obeso não apenas apresentaria um
corpo doente, mas também um estado vital atribuído ao abandono, à
falta de vontade e autoestima. É um corpo que foi monstrificado por
descuido e se apresenta como um perigo para os princípios sanitário‐
empresariais. Por outro lado, o zumbi é um corpo em decomposição,
que perdeu toda a possibilidade de redenção, que evoca um símbolo do
corpo corrompido e de uma vida corruptora.
As figuras da obesidade epidêmica e do zumbi permitem
compreender a instabilidade da norma do humano e, por outro lado, a
oposição à ordem social que a caracteriza. Os monstros são uma
epidemia que ameaça, a partir da interioridade, a ordem normativa do
humano. Os monstros irrompem no campo da biopolítica para nos
mostrar a fragilidade do humano, para nos ensinar que a humanidade
monstrifica, que somos monstros.
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Figura 2. Imagen exhibida en el artículo “¿Son las grasas imprescindibles para
vivir?” Publicado en Revista Muy Interesante, agosto, 1995, pág. 5.
Fig. 3. Gómez, Manuel (2008) Fotografía exhibida en el artículo “¿Es cierto que
si soy obeso tendré disfunción eréctil?”. Publicado en la Revista Men’s Health,
febrero, 2008, pág. 2.
Figura 4. Imagen publicitaria de la empresa “Del Mar ‐ Medical Spa Empresa”,
expertos en programas de pérdida de peso. Publicado en la revista Mercado
Fitness, en mayo‐junio del 2010, pág. 82.
Figura 5. Imagen de una campaña del 2009 del Ministerio de Salud de Portugal.
Texto: Os sedentários nao conseguem fugir das doenças. Faça exercício.
Publicado en la revista Mercado Fitness, en mayo‐junio del 2010, pág. 83.
134
PARTE II
Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes demandas
de reconhecimento no Brasil e na Argentina
Richard Miskolci1
Maximiliano Campana2
1. Introdução
Martha Minow, ao escrever sobre a relação entre direito e
mudança social começa expressando o seguinte:
“Penso que existem duas classes de pessoas quando se trata do tema
do direito e mudança social: aquelas que pensam que o direito é um
importante instrumento de mudança social e aquelas que não creem
que seja. […] Quando se trata das relações entre direito e mudança
social, não posso dizer quem está errado” (2000, p.1).
Essa reflexão parece‐nos interessante como um pontapé inicial
para realizar algumas considerações em torno da utilização do litígio
como instrumento de mudança social nas demandas por
reconhecimento de direitos. Mas para entender melhor como e para que
se mobiliza o direito, é interessante primeiro adentrar no processo de
formação e socialização profissional dos/as estudantes de advocacia
para seu futuro exercício profissional.
1 Richard Miskolci é professor do Departamento e do Programa de Pós‐Graduação em
Sociologia da UFSCar e pesquisador do CNPq. Tem publicações na área de
sexualidade, gênero e direitos humanos.
2 Advogado pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC). Doutorando em Direito e
135
A maioria das pessoas vê o Direito como a área profissional de
quem se sente vinculado/a às demandas por justiça. Não é incomum
ouvir jovens às vésperas de entrar na universidade refletindo sobre a
advocacia como uma possibilidade atraente por causa de seus ideais de
fazer valer a igualdade de todos perante a lei e contribuir para uma
sociedade mais justa. No entanto, pesquisas em vários contextos
nacionais indicam que se o impulso inicial para a carreira pode ser a
busca por justiça, a estrutura formativa no Direito tende a frustrá‐la e
até mesmo substituí‐la por objetivos mais práticos.3
Neste artigo, buscamos discutir como a formação de
advogados/as poderia ser vinculada proficuamente a um
comprometimento com a justiça e a igualdade. O compromisso
(commitment) com esses valores poderia ter um efeito positivo de
democratização de sociedades com uma história marcada por
desigualdades, injustiças e autoritarismos. Em especial, nos casos
brasileiro e argentino, essas três chagas culturais demandam que a
atuação da área da justiça se engaje em um processo em andamento de
gradativa transformação social pelo qual passam nossos países desde o
fim de suas últimas ditaturas militares.
2. Formação jurídica e socialização dos advogados
Voltemo‐nos para a formação de advogados/as. Para
compreendê‐la melhor podemos nos basear em Basil Bernstein (1977) e
seu conceito de “código de conhecimento educativo”, o qual se compõe
pelo currículo, a pedagogia e a avaliação:
“Ao aplicar a ideia de código à transmissão educativa que tem lugar
nas escolas, Bernstein trata de demostrar que a organização, a
transmissão e a avaliação do conhecimento (ou seja, o currículo, a
pedagogia e a avaliação respectivamente) estão intimamente
3 Dentre essas pesquisas destacamos as de Carlos Lista e sua equipe na Argentina e a de
Boaventura de Souza Santos (2012) em Portugal. No Brasil, há várias investigações
sobre o tema e também uma vertente que analisa o contraste entre os ideais de justiça
e neutralidade e a forma como a profissionalização os impede ou frustra. Sobre esse
último tópico consulte as pesquisas de Bonelli et alli (2008) e Bonelli (2011).
136
relacionadas com os padrões de autoridade e de controle social
vigentes na sociedade. […] Enfim, o código educativo explica a
estrutura de poder e os princípios de controle vigentes na instituição”
(Brígido, 2006a, p.45).
Dessa maneira, aquele/as alunos/as que tenham internalizado o
“código de conhecimento educativo” da instituição de maneira correta,
terão assegurado o êxito na carreira educativa e universitária. Desse
modo, o triunfo e a imposição de determinados “códigos” nas
faculdades de direito redundará em determinadas concepções de
justiça, equidade, liberdade e direitos, concepções que atualmente se
caracterizam por serem conservadoras e individualistas. Essa questão
não deixa de ser relevante ao levar em conta que em países como a
Argentina, o acesso à justiça só é possível pela mão de um/a
advogado/a, o que implica a conversão de estudantes de advocacia em
profissionais que finalmente custodiariam a liberdade individual e a
propriedade privada, dois valores sumamente importantes na
sociedade argentina.4
Diante desse panorama, quais são as motivações dos/as
estudantes no momento de escolher a carreira de advocacia e quando
devem inserir‐se no mercado de trabalho?
Para responder essa pergunta, Tessio Conca (2006) nos adverte
que existe uma importante variação na resposta dos/as estudantes. Em
geral, essas motivações podem se enquadrar em quatro grupos5: o
primeiro deles se vincula com a influência de um círculo próximo,
constituído por familiares e amigos/as advogados/as, que influenciam
na decisão. Um segundo grupo, por sua parte, manifesta ter escolhido a
profissão por sentir certa inclinação por disciplinas vinculadas às
ciências sociais e, depois de ter considerado opções como ciência
4 A representação de um advogado matriculado é obrigatória para atuar frente às cortes
de justiça, e a condição de advogado condição necessária para ocupar alguns cargos
públicos, em particular para ser juiz em qualquer instância do sistema de justiça. É
por isso que se deve sublinhar que, na Argentina, os advogados têm o “monopólio”
do acesso à justiça e as faculdades de direito um grande poder político.
5 Havia um quinto grupo, que manifestou ter escolhido a carreira “por eliminação”, por
não saber o que estudar ou não ter podido ingressar em outras carreiras de seu
agrado.
137
política, serviço social ou sociologia, escolhem a advocacia por
considerá‐la uma carreira que abre perspectivas seguras de trabalho, ao
que também incluem a posição de prestígio e poder que ela permite
alcançar. O terceiro tipo de motivações está vinculado à busca de uma
carreira que abra as portas de uma profissão tradicional, prestigiosa e
economicamente rentável. Finalmente, encontramos como principal
motivação da escolha da carreira a necessidade de dar resposta a um
ideal social e humanitário.
No caso desses ideais, os/as estudantes manifestam que sua
verdadeira motivação se vincula ao seu interesse pela justiça, a busca de
una sociedade mais igualitária e a defesa dos direitos dos demais: “[…]
o que me levou a escolher essa profissão [foi] a sede de justiça, e se me
perguntam o que é, digo: buscar que se respeitem as instituições, as leis
e as constituições” (apud Tessio Conca, 2006, p.63) Com essa resposta,
um estudante se associa claramente com esse último grupo de
alternativas. Com certeza, a autora adverte que:
“Conforme vão avançando no curso, suas motivações iniciais começam
a se ver contrariadas. A própria estrutura da agência educativa, os
conteúdos que se transmitem e as metodologias de ensino vão
defendendo uma percepção mais ajustada das possibilidades reais que
têm o advogado para mudar situações de injustiça” (Tessio Conca,
2006, p.63).
Desse modo, os/as alunos/as que alguma vez acreditaram na
possibilidade de satisfazer seu desejo por uma sociedade mais justa
como advogados/as terminam convencendo‐se de que o papel
verdadeiro do/advogado/a se centra principalmente em “litigar e
ganhar” e que aqueles valores vinculados à proteção de direitos de
pessoas desprotegidas e a busca de maior justiça e igualdade social são
ideais dificilmente realizáveis no exercício profissional.
Isso se deve, principalmente, ao modo em que se estrutura a
educação legal em países como o Brasil e a Argentina. Neles, a maioria
dos advogados e advogadas são formados dentro de disciplinas em que
138
a formação se caracteriza por ser marcadamente teórica,6 e nas quais se
encontram dois núcleos temáticos claros: um central que se vincula ao
direito positivo (como é o direito civil, penal ou comercial) e outro, mais
periférico, formado por disciplinas consideradas auxiliares ou
meramente informativas (entre as quais se encontram a história, a
economia e a sociologia). Tudo isso implica uma ausência de conteúdos
e debates que fomentem nos/as estudantes perspectivas críticas que
discutam com os discursos jurídicos dominantes. A consequência de
tudo isso é que as carreiras de advocacia acabam promovendo uma
identidade profissional pouco comprometida socialmente, carente de
crítica diante dos discursos sócio‐jurídicos tradicionais e altamente
individualistas, onde os futuros advogados e advogadas se limitam a
reproduzir a ordem social existente (Brígido, 2006b).
Segundo Lista (2011), a predominância de uma concepção
formal e instrumental de justiça na formação de estudantes de direito na
Argentina faz com que eles/as não percebam ou reconheçam a
existência de relações de poder. É como se a “neutralidade” da justiça a
impedisse de reconhecer desigualdades e, principalmente, diferenças.
Denominamos desigualdade o contraste relacional entre sujeitos
detentores de condições econômicas, culturais e mesmo de acesso
privilegiado à justiça e aqueles/as que não detém essas condições no
mesmo nível. Diferenças, por sua vez, referem‐se à forma como cada
sociedade distingue/marca as pessoas com relação ao gênero, à
sexualidade, à raça, etnia, geração, entre outras categorias.
Se em relação às desigualdades socioeconômicas a esfera
jurídica até busca fazer frente ainda é menor o reconhecimento das
diferenças como também engendrando desigualdades, as quais não se
resumem à renda ou classe social, antes a experiências sociais de
discriminação, preconceito e outras formas de violência simbólica.
6 De qualquer forma, nos últimos 28 anos de transição democrática argentina
experimentamos diversas mudanças curriculares que apontam para a inclusão em um
núcleo de formação prática, a associação do segundo núcleo temático com matérias
interdisciplinares que flexibilizariam o currículo, também a diminuição dos anos de
curso e a incentivar uma perspectiva crítica na aproximação pedagógica. Nem todos
esses objetivos foram alcançados e a implementação dessas reformas ainda está em
execução.
139
Os contextos brasileiro e argentino são similares na formação de
advogados/as, em ambos predominam os aspectos ressaltados por Lista
como a predominância da transmissão de conhecimento sobre o
desenvolvimento de habilidades que combina três aspectos: “a
centralidade do direito e da monodisciplinaridade, fragmentação, forte
classificação e hierarquização do conhecimento e a reprodução da
abordagem legal positivista e formalista como modelo hegemônico”
(2011, p.5).
Nesse modelo de ensino e aprendizado, o Direito tende a ser
isolado de suas origens sociais e políticas, portanto apagando sua
contingência de forma a reproduzir violências simbólicas típicas da
sociedade em que ele se estabeleceu. O passado autoritário e classista
em que o acesso à justiça foi mantido um privilégio das elites
dominantes é ignorado de forma a preservar intocadas as estruturas
legais e culturais que as beneficiam até hoje. Assim, não é de se
estranhar o contraste, ao menos no caso argentino, entre os ideais com
os quais estudantes ingressam nos cursos e o pragmatismo
desencantado com que os deixam tornando‐se profissionais às custas da
adoção de um apoliticismo alienante. Afinal, a neutralidade da justiça
não pode ser confundida com cegueira com relação às condições de
desigualdade em que ela é aplicada ou, inclusive, não é aplicada,
mantendo boa parte da população apartada de seus direitos e do
reconhecimento de sua cidadania.
Em parte, isso se passa porque o sociológico e o histórico
tendem a ser mantidos fora ou apenas parcialmente incorporados na
formação legal, por meio, por exemplo, da filtragem das reflexões de
cunho sociológico e político pela perspectiva do direito. É clara a
tendência dos cursos brasileiros a priorizarem a contratação de
advogados para oferecerem disciplinas que permitiriam maior
permeabilidade da formação às discussões históricas, sociológicas,
antropológicas e políticas. Buscando evitar esses contatos e trocas, os
cursos levam a uma formação que prioriza a manutenção – e até mesmo
o reforço ‐ de um hermetismo do direito, o que contribui para que
estudantes passem a ver com desconfiança fontes que poderiam
problematizar conteúdos apresentados como doutrinas e/ou verdades
inquestionáveis.
140
No Brasil, como analisado por Lista na Argentina, o discurso
pedagógico do direito tem quatro características que clamam por crítica:
a centralidade e autoridade dos professores, a passividade e indiferença
dos estudantes, o estilo ritualístico e dogmático do ensino e a
arbitrariedade e o antagonismo nas discussões (Cf. Lista, 2011, p.8).
Trata‐se de características não apenas da área do Direito, mas também
de sociedades latino‐americanas que vivenciaram uma história comum
marcada pelo autoritarismo e pela manutenção do acesso à justiça como
privilégio das elites.
Nossas sociedades mudaram e se democratizaram nas últimas
décadas e análises críticas como esta ou a de Lista são produtos dessa
nova realidade político‐institucional, a qual, infelizmente ainda não
interferiu ou modificou a esfera de formação dos aplicadores do direito.
Segundo Boaventura de Souza Santos:
“O principal desafio que se coloca nesse contexto é que todo o sistema
de justiça, incluindo o sistema de ensino e formação, não foi criado
para responder a um novo tipo de sociedade e a um novo tipo de
funções. O sistema foi criado, não para um processo de inovação, de
ruptura, mas para um processo de continuidade para fazer melhor o
que sempre tinha feito” (2012, p.81).
Estudantes de Direito formam um contingente grande e
potencialmente poderoso de profissionais que poderia auxiliar no
aprofundamento da democracia em nossos países. Infelizmente, sua
potencialidade democrática mantém‐se controlada por valores
historicamente arraigados e que tendem mais a frear processos de
mudança social do que os aprofundar. É paradoxal que as recentes
conquistas no Supremo Tribunal Federal brasileiro, como o
reconhecimento das uniões entre pessoas do mesmo sexo e a
constitucionalidade das cotas raciais,7 se deem em um país em que a
graduação em Direito mantém um perfil dogmático e conservador.
Qual a origem desse descompasso?
7 A respeito das discussões sobre a constitucionalidade das cotas consulte Silvério (2012)
e sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo veja Oliveira (2012).
141
Estudos como os de Bonelli (2008; 2011) demonstram que as
carreiras jurídicas brasileiras, marcadas por alta competitividade,
tendem a inculcar nos jovens profissionais discursos universalistas que
apagam as problemáticas das diferenças. Quem quer conseguir e
manter um emprego como advogado é induzido a adotar estratégias e
discursos em que o profissionalismo se confunde com neutralidade.
Bonelli et alli (2008) mostra como isso se passa com mulheres
advogadas que, na base da profissão, afirmam não reconhecer nenhuma
particularidade ou dificuldade extra por serem mulheres em uma área
de atuação majoritariamente masculina. Compreensivelmente, depois
de ascender profissionalmente o discurso ganha nuances e muitas
mulheres reconhecem e trazem ao discurso as dificuldades enfrentadas
para serem reconhecidas como boas profissionais em contextos
historicamente masculinos.8
Assim, o paradoxo entre as recentes decisões do Supremo
Tribunal Federal brasileiro e os discursos predominantes na base
profissional – em especial na esfera de formação – se torna mais
compreensível. A lógica de entrada na área de trabalho ainda é a da
adoção, o mais irrestrita possível, das concepções mais tradicionais e
arraigadas do que é o Direito, a profissão de advogado/a, do que é
passível de discussão ou não. O reconhecimento das diferenças sociais,
das desigualdades ou mesmo do acesso desigual à justiça ainda é quase
um privilégio de quem conseguiu um emprego e certa estabilidade
profissional.
3. O caso argentino dos advogados/as ativistas: os avanços LGBT e o
poder conservador dos movimentos contra o aborto
Em contraste com o cenário brasileiro mencionado no item
anterior, vale a pena conhecer uma particularidade argentina.
Conforme alguns teóricos (Lista, 2012, Manzo, 2011, Vecchioli, 2006),
uma nova classe de advogados/as litigantes estaria emergindo no país,
fundamentalmente por meio das transformações sociopolíticas e
8 Bonelli et alli (2008) conceitua como “apagamento de gênero” a característica marcante
de como a incorporação de mulheres na base da profissão tem se dado em nosso país.
142
jurídicas que se deram desde a reinstauração da democracia. Esses
novos profissionais poderiam ser chamados de “ativistas” e se
caracterizam por estarem vinculados a movimentos sociais e/ou
organizações não‐governamentais e compreenderem que o direito pode
ser entendido também como uma ferramenta de mudança e
transformação social e que o acesso à justiça não pode ser considerado
apenas de um ponto de vista formal, antes ser plenamente exercido
pelos/as afetados/as. Em relação a isso, e ao referir‐se aos/às
advogados/as ativistas, Lista (2012, p.148) reflete:
“Quem adota e promove uma definição de acesso à justiça mais ampla,
dinâmica e com base substantiva […] tende a conceber a politização
dos conflitos sociais como uma estratégia jurídica na demanda e na
defesa dos direitos dos peticionantes. Por sua vez, ao promover a
participação e a incorporação dos setores mais desprotegidos nas
relações de desigualdade social, tendem a reforçar o poder de tais
setores e fortalecer sua autonomia”.
A origem desses novos “ativistas” foi favorecida por diversos
fatores, entre os quais se destacam a reforma constitucional de 19949,
um maior nível de mobilização de organizações não‐governamentais
em defesa dos direitos de incidência coletiva10, uma situação política
favorável para a mobilização do direito, a incorporação por parte dos
movimentos sociais de profissionais legais em suas fileiras, a adoção
por parte desses movimentos de um discurso de direitos humanos e
fundamentalmente pelas ajudas econômicas recebidas por parte de
organismos internacionais que exigiam, em troca, que entre as medidas
9 Tal reforma implicou a incorporação do reconhecimento de direitos de incidência
coletiva e instrumentos jurídicos próprios para a defesa desse tipo de direitos, como o
amparo coletivo e a ação de habeas data.
10 Por “direitos de incidência coletiva” entendemos aqueles direitos que possuem um
número indeterminado de indivíduos, os quais podem ver‐se afetados diante de
determinadas ações ou medidas tanto do Estado como de outros indivíduos. Se
incluem nos direitos de usuários e consumidores, direitos a um ambiente sadio,
direitos das minorias (sexuais, raciais, etc), entre outros.
143
a serem implementadas deviam se desenhar estratégias de litígio de
interesse público.11
Dentro desse contexto, surgem as primeiras clínicas jurídicas na
Argentina (incentivadas pelo financiamento externo e aplicando um
modelo e uma metodologia de trabalho que surgiu nos Estados Unidos
na década de 1920 e foi transplantada para a América Latina quase um
século depois) que pretendiam ser espaços de reflexão e formação de
futuros/as advogados/as, com a ideia de alterar a concepção tradicional
do direito em dois sentidos: por um lado, educando advogados/as
diferentes, com maior sensibilidade social em defesa dos direitos dos
mais desprotegidos, bem treinados em questões de interpretação e
crítica ao direito e às instituições; também, a médio e longo prazo, que o
direito fosse mobilizado como uma verdadeira arma de transformação
social, diminuindo as desigualdades sociais e protegendo direitos
historicamente postergados (Puga, 2002).
Desde então, advogados e advogadas comprometidos/as com
causas de interesse público ou com a defesa de interesses de
movimentos sociais não deixaram de proliferar, e os tribunais em todo
país conheceram e resolveram causas novas que vão desde pedidos de
proteção ao meio ambiente sadio, saneamento de rios e bacias hídricas,
proteção a usuários e consumidores, discriminação racial ou por
motivos de gênero, sexualidade, direitos de propriedade dos povos
originários, entre muitos outros. E apesar do incômodo e da reticência
que essas demandas causaram (e ainda causam) nos distintos órgãos
judiciais, uma posição favorável por parte da Corte Suprema de Justiça
da Nação diante desse tipo de demandas, na última década, incentivou
a utilização estratégica do direito por parte desses/as novos/as
profissionais.
Nos últimos anos, em matéria de direitos sexuais e reprodutivos,
diversos grupos vinculados ao movimento da diversidade sexual12
11 Por litígio de interesse público entendemos a estratégia de judicializar diversos casos
com a finalidade de penetrar nas agendas públicas, gerar mudanças políticas e sociais
ou impactar nas políticas de governo. Em relação à ajuda econômica recebida por
parte dessas organizações, foi particularmente importante a proveniente da Fundação
Ford, que exigia a utilização desse tipo de litígio (Teles, 2008)
144
tiveram um grande êxito no momento de obter respostas às suas
demandas. Essas se vincularam fundamentalmente ao reconhecimento
de direitos, por parte do Estado, para conseguir o matrimônio em
condições iguais às dos casais heterossexuais e, posteriormente, para
que fosse reconhecida a identidade de gênero autoconferida de toda
pessoa que assim o deseje. Durante as campanhas desenvolvidas, se
desenharam estratégias judiciais e políticas tendentes a obter respostas
judiciais aos seus pedidos, e, em alguns casos, dando bons resultados. É
por isso que se deve considerar que esse movimento soube mobilizar
com grande efetividade o direito (Manzo, 2011).
No caso das estratégias para o casamento entre pessoas do
mesmo sexo, sua origem data do ano de 2006, quando um conjunto de
organizações LGBT13 decidiram nuclear‐se em uma federação (imitando
o mesmo modelo que tinha demonstrado êxito na Espanha). Assim,
surgiu a FALGBT: Federación Argentina de Lesbianas, Gays, Bisexuales
y Trans14. Um ano mais tarde, essa federação lançou a campanha pelo
reconhecimento do direito ao casamento para casais formados por
pessoas do mesmo sexo (denominada “Campanha pelo Casamento
Igualitário”), com apresentações diante da justiça. A principal estratégia
não consistia tanto em obter uma sentença judicial favorável, antes o
12 Cabe esclarecer que o movimento pela diversidade sexual na Argentina não é um
bloco unitário e homogêneo. Ao contrário, existem diversas e importantes divisões
dentro dele (Meccia, 2006). O mesmo se passa no Brasil, país em que não se dá
unificação similar à observada na Argentina. A ABGLT, com sede em Curitiba, não
foi criada a partir de uma coalizão das diversas vertentes LGBT brasileiras tampouco
tem um discurso e/ou metas partilhados com elas. Em outras palavras, no Brasil há
mais divergências e menos coesão do que na Argentina no que toca às demandas de
diversidade sexual.
13 A sigla LGBT faz referência a “Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros/as”.
14 Em relação a isso, Litardo (2009:171) menciona que a FALGBT surge como
consequência da “experiência espanhola, FELGBT – Federación Estatal de Lesbianas,
gais, bisexuales y trans ‐ (…) a que possibilitou a reforma do código civil espanhol
para o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo” no ano de 2005 e que a
federação na Argentina “tem uma série de objetivos que se destacam a priori por uma
nacionalização da questão GLTTTBI em todo território argentino. A Federación se
instalou como um espaço de integração regional em busca de uma articulação em
nível federal como estratégia de integração na luta e demanda por direitos civis e
políticos da comunidade GLTTTBI”.
145
que se buscava era instalar o debate sobre a reforma do casamento na
agenda pública de então. Foi por isso que, alguns meses mais tarde,
diversos deputados apresentaram na Câmara um projeto de lei de
“casamento igualitário” no marco da mesma campanha.
De maneira surpreendente, a estratégia judicial funcionou e, no
dia 10 de novembro de 2009, uma juíza da cidade de Buenos Aires
resolveu o caso declarando a inconstitucionalidade dos artigos do
Código Civil que regulavam o matrimônio, classificando‐a de
discriminatória. Em poucos meses, na cidade de Buenos Aires, distintos
juízes reconheceram novamente esse direito, gerando uma importante
jurisprudência vinculada ao reconhecimento dessas demandas. Com
esses precedentes favoráveis, a FALGBT anunciou que lançaria uma
“campanha judicial em todo o território nacional” com a finalidade de
obter novas sentenças desse tipo em lugares diferentes do país. As
representações se fariam por parte de advogados e advogadas da
Federación e contariam com a colaboração do Instituto Nacional contra la
Discriminación, la Xenofobia y el Racismo (INADI) (Campana, 2011). As
respostas a essas novas demandas não foram favoráveis e a questão
caiu nas mãos da Corte Suprema de Justicia de la Nación.
Não foi necessário que o órgão máximo judicial do país
resolvesse: no dia 15 de julho de 2010, o Congresso argentino aprovava
as modificações no Código Civil15, permitindo o acesso ao casamento
para os/as homossexuais.
Obtido o direito ao casamento, a FALGBT lançava uma segunda
campanha denominada “Derecho a la identidad, derecho a tener derecho” e,
com ela, o reconhecimento da identidade de gênero se convertia na
nova demanda do movimento pela diversidade sexual na Argentina.
Nesse caso, a estratégia seguida foi a mesma: pressionar tanto no
âmbito legislativo quanto no judicial. No primeiro, se apresentaram
vários projetos de lei e, em novembro de 2011, as comissões de
“Legislación General” e “Justicia” da Câmara dos Deputados discutiram e
aprovaram um deles16, começando assim o processo legislativo. No
15 Lei nacional número 26.618.
16 Veja “Un paso hacia la identidad de género”. Disponível em http://www.
pagina12.com.ar/diario/sociedad/3‐180876‐2011‐11‐09.html. (último acesso: 30 de
novembro de 2011).
146
âmbito judicial, levaram‐se a cabo vários pedidos de reconhecimento de
identidade de gênero diante da justiça e autorização para mudar nomes
nos documentos públicos. A novidade dessas solicitações foram que
os/as afetados/as alegavam que era sua identidade autodeclarada a que
deveria se levar em conta no momento de resolver, e não o fato de
terem sido submetidos/as a intervenções cirúrgicas ou perícias médicas,
psicológicas ou psiquiátricas.17 Essas demandas obtiveram uma
recepção favorável nos mesmos tribunais de Buenos Aires que
consideraram que a instituição civil do matrimônio compreendido
apenas como entre homem e mulher era inconstitucional (enquanto que,
nos tribunais do resto do país, diante da mesma demanda, a resposta
era muito diferente), autorizando aos demandantes a mudarem suas
identidades sem obrigá‐los/as a submeterem‐se a perícias médicas ou
psicológicas, e levando em consideração somente a autonomia de quem
demandava. Essa demanda também se resolveu no âmbito legislativo,
com a lei nacional 26.743, a qual reconhece a identidade de gênero de
todas as pessoas do país.
Nesse caso, resulta difícil aferir a influência que a estratégia judicial
pôde ter na decisão do Congresso Nacional argentino. Na verdade, o que
se pode supor é que a lei de identidade de gênero seria o primeiro passo de
um processo de transformações em diferentes instituições estatais (nas
quais se incluem a justiça) que já havia começado.18
17 É importante sublinhar que até o momento, os pedidos de reconhecimento de
identidade de gênero para realizar intervenções cirúrgicas de mudança de sexo ou
retificar documentos públicos, em sua maioria se caracterizavam por:
1. Outorgar uma grande relevância às distintas perícias a que as pessoas trans
deveriam submeter‐se e os informes de experts (médicos forenses, psiquiatras,
psicólogos, entre outros) que, em consequência, se produziam.
2. O relato de uma vida de sofrimento. Esses casos, em geral, tratavam sobre pessoas
trans que já tinham sofrido intervenções cirúrgicas, e que por suas histórias de vida,
caracterizadas pelo sofrimento constante e a discriminação permanente, logravam
convencer ao juíz sobre a necessidade de intervenção cirúrgica e/ou retificação dos
registros documentais.
18 Já existia o reconhecimento da identidade de gênero das pessoas trans em distintas
repartições públicas no momento de aprovação e sanção da lei. Assim, por exemplo,
na província de Córdoba, no ano de 2011, o Ministério da Saúde reconheceu a
identidade de gênero de travestis e transsexuais que foram atendidas em hospitais
públicos da Província (Resol. Ministerial 146/2001). A Universidade Nacional de
147
Quando se faz referência ao uso estratégico do direito na
Argentina, em geral os teóricos têm uma perspectiva otimista, e
entendem que a mobilização do direito pode ser entendida como uma
ferramenta capaz de conseguir mudanças sociais significativas no
reconhecimento de direitos por meio de vitórias em campos judiciais
(Böhmer, 1997; Courtis, 2003; CELS, 2008). Inclusive quando as
respostas dos juízes não são favoráveis, se considera que o mero feito de
ter utilizado os tribunais produz “efeitos indiretos” benéficos, pois em
alguns casos as demandas se instalaram na opinião pública, nos meios
de comunicação e nos setores políticos e acadêmicos. Dessa maneira,
mantém‐se justificada a estratégia jurídica. Essa postura se baseia na
visão estadunidense exposta por Michael W. McCann, o qual, em sua
obra Rights at Work (1994), considera que o direito pode participar
diretamente em um processo político de contestação contra uma ordem
estabelecida. Como sublinha esse autor em um artigo mais recente, o
direito proporciona “simultaneamente princípios normativos e
estratégicos para a direção das lutas sociais” (McCann, 2004, p.508).
Dentro dessa perspectiva se poderia entender porque uma parte
importante do movimento da diversidade sexual optou por uma
inclusão de estratégias judiciais em suas campanhas pelo
reconhecimento de direitos. Além disso, nos permitiria justificar como
as decisões da justiça asseguraram direta e indiretamente o êxito das
campanhas lançadas. Desse modo, o uso estratégico do direito por parte
do movimento LGBT seria um claro exemplo de quanto os tribunais
podem contribuir à mudança social.
Com certeza, se fizermos uma leitura mais detalhada, em ambos
os casos, as demandas se resolveram definitivamente no Congresso
Nacional e não na justiça. Além disso, não é possível encontrar vínculos
diretos entre essas sentenças que reconheciam direitos e a decisão do
Córdoba, por sua parte fez o mesmo em outubro, sendo a primeira universidade na
Argentina que legislou sobre esse assunto, garantindo o respeito à identidade de
gênero autopercebida de seus membros (Ord. HCS 9/11), e, posteriormente, viria a
resolução 1181/2011 do Ministério de Seguridad de la Nación, estabelecendo que “Las
personas trans deberán ser reconocidas por la identidad de género adecuada a su percepción,
tanto en el trato personal como para cualquier tipo de trámite, comunicación o publicación al
interior de las Fuerzas”.
148
Poder Legislativo. E mais, em quase todos os casos, as sentenças que se
ditaram fora da cidade de Buenos Aires não reconheciam os direitos
que o movimento demandava. Assim mesmo, a maior parte da
imprensa escrita se centrou no debate parlamentar e houve,
comparativamente, uma escassa cobertura dos fatos judiciais (Sgró
Ruata e Rabbia, 2011). Tudo isso nos leva a duvidar da efetividade que
tiveram realmente as estratégias judiciais empregadas pelo movimento
e quanto essas estratégias trouxeram para suas lutas por
reconhecimento.
Ainda que não possamos concluir que o movimento pela
diversidade sexual tenha sido exitoso pelo emprego de estratégias
judiciais, é possível admitir que outros setores, aos quais denominamos
“pró vida” têm uma grande eficácia no momento de usar os tribunais
argentinos. Esses setores se caracterizam por serem marcadamente
conservadores, estarem relacionados com instituições católicas,
manterem uma concepção estática e tradicional da sexualidade (à qual
vinculam exclusivamente com seu papel reprodutivo) e expressar que
seu principal objetivo é a defesa da vida desde a concepção. Ademais,
esses setores se caracterizam por ter utilizado tradicionalmente a arena
judicial para impedir o avanço em matéria de sexualidade e (não)
reprodução. De fato, atualmente, o Ministerio de Salud de la Nación
enfrenta nove demandas judiciais somente contra o Programa Nacional de
Salud Sexual y Procreación Responsable19 (Peñas Defagó, 2009).
De todos os casos, o mais emblemático foi o “Portal de Belén”20. O
caso se originou quando um laboratório farmacêutico obteve uma
autorização do Ministerio de Salud de la Nación para produzir a pílula de
anticoncepção hormonal de emergência (conhecida como “pílula do dia
seguinte”). Essa autorização fez com que uma ONG chamada “Portal de
Belén” se apresentasse diante da justiça argumentando que tais pílulas
atentavam contra a vida das crianças por nascer, e solicitou que se
tirasse sua autorização e se proibisse sua fabricação, distribuição e
comercialização em todo país. A Corte Suprema de Justicia de la Nación
aceitou a demanda considerando que a vida humana começa desde a
19 Lei 25.673
20 Caso “Portal de Belén Asociación Civil sin fines de lucro c/Ministerio de Salud y
Acción Social de la Nación s/Amparo”.
149
concepção e tal fármaco devia ser considerado abortivo e, em
consequência, ilegal.
Os casos não se esgotam aqui. Esses grupos obtiveram
resoluções judiciais favoráveis que impediram as realizações de abortos
permitidos pela lei, o ensino de educação sexual nas escolas, a
distribuição de métodos contraceptivos em hospitais públicos e,
inclusive, a anulação dos primeiros casamentos entre pessoas do mesmo
sexo a que fizemos referência anteriormente (Campana, 2011). Se a
maioria desses casos se caracteriza por utilizar o sistema judicial para
impedir o avanço dos direitos, os tribunais em todo país se mostraram
bastante receptivos a esse tipo de demanda, convertendo‐se em aliados
importantes quando se disputam essas questões.
O caso dos avanços alcançados pelas demandas de direitos
LGBT argentinos e a manutenção de uma visão negativa do aborto
podem ser pensados dentro da dinâmica maior em que se enquadram
essas disputas judiciais no período democrático recente: uma
rediscussão do que é a nação argentina. De forma paralela, o mesmo
tem se passado no Brasil, no qual não apenas o aborto continua
criminalizado como os direitos LGBT têm avançado mais timidamente.
É perceptível que a partir do Governo Dilma Rousseff a agenda geral
dos direitos humanos sofreu uma freada, o que o caso recente da eleição
de um parlamentar da frente evangélica para a presidência da Comissão
do Congresso sobre Direitos Humanos vem corroborar.
De forma apenas parcial e controlada, o que temos assistido em
terras brasileiras são algumas conquistas envolvendo nossa diversidade
étnico‐cultural, em especial o reconhecimento da constitucionalidade
das cotas nas universidades pelo Supremo Tribunal Federal.
Compreensivelmente, devido às diferentes composições populacionais
e às diferentes histórias, o caso argentino se desenvolve de maneira que
demandas de reconhecimento e direitos se dão em uma sociedade que
(ainda) se vê de forma mais homogênea enquanto no Brasil a
problemática de uma sociedade multirracial se impõe.
A despeito das diferenças, ambas as sociedades passam por um
processo democrático de reavaliação do que se compreende como a
nação argentina ou brasileira. A seguir refletimos preliminarmente
como essa transformação da forma como compreendemos quem faz
150
parte de nossas respectivas nações tem se dado a partir de um
enquadramento multiculturalista, o qual tem marcas das sociedades
que criaram a noção de diversidade e podem limitar os avanços e as
conquistas em dois países do Sul Global.
4. Diversidade e diferenças: para onde caminham as nações?
Em relação ao caso argentino e suas conquistas recentes, a
sociedade brasileira e seu legado cultural autoritário parece amortecer
as conquistas democráticas recentes em uma das esferas em que elas
mais poderiam florescer. Afinal, como já observamos, entre as
motivações que levam estudantes a optarem pelo Direito se encontram
ideais como o de prestar um serviço à sociedade e aos que mais
precisam.
Trata‐se de algo similar ao que se passa em outras esferas
profissionais e políticas que mantém esses compromissos vinculados a
vertentes de reflexão sobre diversidade e multiculturalismo. As
melhores das intenções terminam por traduzir demandas de
transformação das relações de poder e diminuição das desigualdades
sociais em discursos que apelam à retórica da tolerância e da
incorporação de grupos sociais minoritários sem modificar os
privilégios dos socialmente majoritários, leia‐se, frequentemente não os
mais numerosos, antes os que detém o poder regulador da ordem
social.
O fato acima é perceptível no contrassenso de chamar as
mulheres ou os negros de minorais em uma sociedade como a
brasileira, em que eles/as são metade ou mais da população. Na
verdade, minorias, diversidade e multiculturalismo formam um
vocabulário tímido e conservador para lidar com desigualdades e
injustiças. O termo diversidade é uma noção teórico‐política que surgiu
na América do Norte em meio à preocupação com conflitos étnico‐
raciais, e mesmo culturais, entre a década de 80 e a de 90 do século
passado. Nesse período, havia, por exemplo, desde conflitos culturais
entre diferentes comunidades de imigrantes de ex‐colônias na
Inglaterra, na França e na Holanda até, na América do Norte, a
rivalidade entre as partes de fala francesa e inglesa no Canadá que
151
levou a uma tentativa de transformar o Quebec em um outro país. Nos
Estados Unidos, no início da década de 1990, entraram para a história
episódios de conflitos raciais entre negros e brancos como os que se
passaram em Los Angeles.
É neste contexto histórico de grande preocupação social que surge
a demanda por reflexões acadêmicas e políticas apaziguadoras e
conciliatórias. Em 1990, é lançado um texto fundamental sobre o tema, The
Politics of Recognition [A política do reconhecimento] do filósofo canadense
Charles Taylor. Nesse artigo há uma reflexão que serve de base para boa
parte do que foi produzido daí por diante sobre diversidade, tanto em
termos acadêmicos como na forma de políticas sociais. A noção de
diversidade busca compreender as demandas por respeito, das demandas
por acesso a direitos por parte de pessoas que historicamente não tiveram
esses direitos reconhecidos como negros, povos indígenas, homossexuais,
mas de forma a que esses direitos particulares sejam reconhecidos dentro
de um contexto institucional universalista.
O universalismo se revela intransigente e incapaz de lidar com
transformações históricas e sociais em que o apelo à igualdade se
sobrepõe ao reconhecimento das injustiças sobre o qual sua tradição
intelectual, social e legal se assentou desde ao menos o final do século
XVIII (cf. Miskolci, 2010). O multiculturalismo, por sua vez, menos do
que antagonizar com o universalismo busca atualizá‐lo para a realidade
contemporânea, em particular das nações mais heterogêneas ou –
melhor dizendo – mais abertas ao reconhecimento de sua diversidade
interna. A despeito dos avanços, o multiculturalismo mantém intocado
e inquestionado o olhar hegemônico sobre o qual assenta seus ideais, o
qual pode ser claramente definido como os dos grupos estabelecidos e
detentores do poder econômico, cultural e político desde a colonização.
No Brasil, um país marcado por séculos de colonização
exploratória e pela escravidão, a República foi criada em fins do XIX de
forma a preservar os privilégios das classes dominantes brancas, ricas e
letradas. Desde então predominou o discurso universalista e os ideais
de um liberalismo aparentemente fora de lugar, mas cuja lógica servia a
152
manter a imensa maioria da população sem cidadania plena.21 De forma
simplificada, pode‐se dizer que apenas após o final da última ditadura
militar (1964‐1985) é que surgiram condições políticas abertas a
demandas de reconhecimento de diferenças anteriormente ignoradas ou
violentamente negadas.
A Assembleia Constituinte de meados da década de 1980 foi um
marco ao impulsionar debates democráticos sobre nossa sociedade e seu
resultado, a Constituição de 1988, estabeleceu o marco institucional dentro
do qual floresceriam as demandas por reconhecimento das diferenças em
fins do século XX. Dentre elas, algumas das mais visíveis foram a demanda
de igualdade de direitos por parte de homossexuais, a luta dos
movimentos negros pelas ações afirmativas e de indígenas e quilombolas
por demarcação de suas terras e reconhecimento de suas culturas.
Na Argentina, a situação não é muito diferente. O modelo
agroexportador, desenhado no final do século XIX, por uma elite
capitalista e liberal quase não se modificou até hoje. E ainda que, formal
e legalmente, a cidadania plena se alcançou em 1947, quando se
reconheceu o direito ao voto feminino, e os movimentos operários e
sindicais estavam bem estabelecidos, não foi antes de 1983, com a
reinstauração da democracia, que os diversos movimentos sociais e
atores coletivos começaram a ter participação na vida política e
institucional do país.
A crescente importância política e institucional que começou a
cobrar a sociedade civil na arena política foi juridicamente respaldada
pela reforma constitucional de 1994. Essa reforma implicou uma
importante transformação nas instituições do país, o reconhecimento de
novos direitos e instrumentos jurídicos tendentes a garantir o exercício
efetivo deles. Mas, além disso, durante a década de 1990 se produziu
uma importante retirada por parte do Estado de várias de suas funções
tradicionais e, consequentemente, o surgimento de muitas organizações
políticas e sociais tendentes a suprir esse vazio. Dentro desse contexto
político e institucional favorável é que floresceram diversas das
demandas por reconhecimento de direitos e das diferenças.
21 Sobre essa profícua linha de reflexão sobre os aparentes paradoxos brasileiros
consulte a clássica discussão de Roberto Schwarz intitulada “As ideias fora de lugar”
(2000).
153
Apenas dentro do que as pessoas de fala inglesa denominam de
constitutional law e que podemos traduzir por Estado de Direito
podemos debater os termos de convivência em uma sociedade que
pretende um dia ser plenamente democrática. Muito além das também
fundamentais conquistas das eleições diretas, do voto universal, a
democracia é um construto histórico e cultural que depende do grau de
liberdade de rediscussão dos limites da cidadania, sobretudo buscando
ampliá‐la para aqueles e aquelas que não têm reconhecida sua
humanidade, seus direitos, sua igualdade jurídica e social. Apenas
depois dos anos oitenta que as sociedades brasileira e argentina
passaram a viver dentro dessas condições, portanto há apenas menos de
três décadas, um curto período dentro de nossa longa história.
Quando alguém se pergunta por que ainda vivemos em uma
sociedade injusta e autoritária é só refletir sobre como nossa experiência
democrática é recente e curta. No caso brasileiro, vinte e cinco anos são
muito pouco tempo dentro desses séculos de experiência histórica
colonial, escravagista e mesmo imperial ou republicana dentro dos
quais se forjou uma sociedade altamente desigual não apenas em
termos econômicos, mas também em outros aspectos não menos
importantes como raça/etnia, gênero, sexualidade, etc. De qualquer
forma, o Brasil conquistou muito neste quarto de século e avançou a
passos largos em comparação com muitas outras nações com histórias
similares. Ainda há muito o que fazer, mas vivemos dentro de um clima
democrático profícuo para as transformações que, quiçá, possam vir a
nos tornar uma sociedade plenamente democrática e com justiça para
todos/as.
No caso argentino, os contínuos golpes de estado, a instabilidade
das instituições políticas, a alternância entre regimes ditatoriais e
democráticos, um modelo baseado na exportação de matérias agrícolas
e importação de manufaturas e a dependência econômica das grandes
potências produziram um paulatino empobrecimento da maior parte da
população, convertendo‐se também em um país altamente desigual.
É em meio ao cenário inaugurado pelas novas Constituições e a
rearticulação dos movimentos sociais na década de 1990 que começa a
surgir uma nova forma de compreensão da nação e do acesso à
cidadania. As políticas criadas sob o rótulo da diversidade buscam fazer
154
frente a este novo cenário cultural e político tão recente quanto
imprevisível. Não é de se estranhar que em sociedades marcadas pelo
comando por elites temerosas com relação ao povo e à possibilidade de
perda de sua posição de comando22 busquem, ao menos inicialmente,
fazer frente às demandas sociais de reconhecimento das diferenças por
meio do filtro político que as traduz na linguagem da tolerância da
diversidade.
Tolerar é muito diferente de reconhecer alteridades, de valorizá‐
las em sua especificidade e conviver com a diversidade também não quer
dizer aceitá‐la. Em termos teóricos, diversidade é uma noção derivada de
uma concepção estática de cultura que advoga a tolerância dos
“diferentes”, mas mantendo a cultura dominante intocada por esses
“Outros” sociais. É como se da ignorância ou do apagamento das
diferenças sociais passássemos apenas a reconhecê‐las recusando nos
relacionarmos/transformarmos pelo contato com elas. A retórica da
diversidade busca manter intocada a cultura dominante criando apenas
condições de tolerância para os diferentes, os estranhos, os “outros”. Seu
resultado, o multiculturalismo, tende a criar condições sociais e políticas
de gestão das diferenças ou, sendo mais direto e claro, o estabelecimento
de um regime atualizado das antigas formas de segregação que
caracterizaram historicamente sociedades como a norte‐americana.
A retórica da diversidade tem forte apelo, e não apenas no
Brasil, na Argentina ou na esfera da política, pois apresenta o mundo
como podendo ser diverso sem modificar hierarquias ou relações de
poder. Alguns falam de diversidade por meio do termo
multiculturalismo, essa utopia euro‐norte‐americana da convivência
com imigrantes, não‐brancos, não‐heterossexuais, entre outros, a partir
de uma perspectiva que mal encobre sua origem branca, cristã,
ocidental e masculina. Trata‐se de uma utopia dos nostálgicos do poder
branco colonial, na qual as diferenças seriam toleradas sem modificar
profundamente os valores e os privilégios dos grupos sociais
dominantes.
22 Sobre as origens históricas desse medo da elite brasileira em relação ao povo consulte
Miskolci (2012) e Azevedo (1987). Azevedo mostra que o temor da Abolição originou
o medo dos negros no Brasil, Miskolci por sua vez analisa como esse temor dos
negros foi transformado em medo do povo após a proclamação da República.
155
Distinguir entre diferença e diversidade exige abandonar uma
concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela
para uma concepção horizontalizada de relações em que se afasta o
conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença é
algo incomensurável, mas potencialmente mais democrático e
promissor. Uma perspectiva informada pelas diferenças pode
questionar e até modificar hierarquias, colocar em diálogo os
subalternizados com o hegemônico de forma, quiçá, a mudar a ordem
que mantém e reproduz desigualdades.
Os discursos jurídicos e a formação em Direito ainda constituem
um conjunto de técnicas que buscam fazer o Outro se enquadrar ou ser
reconhecido sem modificar as concepções hegemônicas de justiça e
igualdade. Ou seja, demandas de reconhecimento e igualdade a partir
da diferença tendem a ser enquadradas em um modelo legal autoritário,
normativo, violento. Podemos reavaliá‐lo de forma que, ao invés de
homogeneizar ou alocar confortavelmente cada um em uma gaveta por
meio das diferenças possamos modificá‐lo e atualizá‐lo de forma a
mudar sua histórica conformação aos interesses dos grupos
dominantes.
Nas sábias palavras de Adriana Vianna:
“Falar de “direito à diferença” implica, em primeiro lugar, reconhecer
a possibilidade de heterogeneidade cultural e social como algo legítimo
em universos políticos mais amplos, dotados de uma suposta
“unidade”, como se dá nos Estados‐nação modernos. Mais do que
apreender a diferença como condição inerente aos grupos sociais, isso
equivale a defendê‐la como algo relevante na constituição da
especificidade de indivíduos e coletividades que não desejam negá‐la
para serem reconhecidos como participantes legítimos de unidades
abrangentes” (Vianna, 2012, p. 204‐205).
Percebe‐se como as demandas de reconhecimento e acolhimento
das diferenças questionam a compreensão ainda corrente do que seria a
nação brasileira ou mesmo a argentina. Esse construto cultural e legal, a
nação, pode ser repensado e adquirir uma acepção mais inclusiva e
democrática. A noção de diversidade busca amortecer as críticas e
incorporar de forma controlada e/ou subalterna grupos sociais cuja
156
história se confunde com uma de luta constante contra o aniquilamento
de suas singularidades. A perspectiva das diferenças tende a ser temida
como trazendo consigo necessariamente o conflito e a discórdia,
interpretação dos estabelecidos sociais que deixa de reconhecer as
alteridades internas à sociedade brasileira ou argentina como
interlocutoras em nível de igualdade.
As diferenças podem incitar o debate, fazer com que as
divergências se traduzam em diálogos e negociações. Talvez o maior
desafio de nossas democracias seja o de deixar para trás os temores
elitistas sobre o povo ou as demandas subalternas como ameaças à
ordem. Superar este medo dos grupos sociais injustamente mantidos à
margem do reconhecimento, do respeito e da justiça exige modificar a
histórica aversão de nossas elites políticas, intelectuais e econômicas às
divergências ou ao conflito. Em um contexto plenamente democrático
todos/as – e especialmente cada um/a – tem o direito de divergir ao
mesmo tempo que demanda seu reconhecimento como parte da
coletividade.
É nesse contexto em que o papel da formação dos advogados e
das advogadas, na Argentina e no Brasil, cumpre um papel central.
Concepções jus‐naturalistas, arcaicas, positivistas e conservadoras
continuam dominando o currículo quando se tratam de profissões
jurídicas. Os estudantes são meros receptores passivos de discursos que
não podem ser colocados em dúvida tampouco discutir, são formados
sem ferramentas críticas e, em sua maioria, carecem de compromisso
social e ideal de justiça. Desse modo, se formam operadores jurídicos
cujo papel é reproduzir a ordem existente.
No caso argentino, os/as advogados/as ativistas têm pouca
margem para produzir mudanças significativas no que se refere ao
reconhecimento de direitos. Nesse mesmo contexto, aqueles/as
advogados/as que se oponham ao avanço dos direitos encontram na
justiça um campo propício para tornar efetivas suas demandas. Cenário
similar se encontra no Brasil, de forma que em ambos os países o direito
e a mudança social parecem não se dar bem.
Uma modificação na esfera formativa do Direito seria uma bem‐
vinda contribuição para o aprofundamento de nossas democracias. A
transformação poderia começar pela incorporação de uma perspectiva
157
educacional dialógica, o incentivo ao debate em sala de aula e a
incorporação de fontes históricas e sociológicas que tensionam, mas
também enriquecem, o aprendizado legal por meio do incentivo à
reflexão e a contextualização da prática profissional. Dessa maneira, o
próprio Direito passaria a incorporar as diferenças reconhecendo seu
papel social não apenas de mantenedor da tradição ou do estabelecido,
mas também de veículo de transformação social.
A prática profissional pode adaptar‐se às demandas atuais por
maior acesso à justiça, reconhecimento de diferenças historicamente
ignoradas ou negadas pela ordem jurídica herdada de nosso passado
autoritário. Em suma, o Direto pode manter seu compromisso com a
ordem sem deixar de incorporar as demandas que apontam para a
construção de uma sociedade mais justa, a qual não alcançará seus
ideais de igualdade sem o apoio da esfera jurídica.
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160
A construção de identidades homossexuais na advocacia paulista:
uma abordagem sociológica de profissionalismo e diferença
Dafne Araújo1
Maria da Gloria Bonelli2
1. Introdução
Este texto procura mostrar as continuidades e as mudanças que
vêm ocorrendo na advocacia no que diz respeito à diversidade sexual3
no exercício profissional. Introduzindo novas questões para reflexão
acerca da homossexualidade, identidade e diferença, visa ampliar a
perspectiva binária heterossexual que predomina nos estudos sobre
gênero nas profissões jurídicas, centrada numa dimensão relacional
restrita ao masculino e feminino. Complementando a investigação sobre
profissionalismo e diferença no mundo do Direito, este estudo focaliza
advogados e advogadas na cidade de São Paulo, que se identificam ou
não como homoafetivos e que trabalham com a problemática da
diversidade, em especial na defesa de vítimas de discriminação sexual.
A abertura para a diversidade dentro das carreiras jurídicas é
fruto de várias transformações que tiveram origem na década de 1990,
no Brasil. Até essa data, a advocacia era exercida em escritórios de
pequeno e médio porte. Posteriormente, os escritórios foram crescendo
de acordo com o cenário da globalização e efervescência econômica.
Essas grandes mudanças no mundo jurídico se deram principalmente
pela privatização das grandes empresas públicas naquele contexto. A
demanda por operadores(as) de direito cresceu e houve um aumento
1 Dafne Araújo é mestranda do Programa de Pós‐Graduação em Sociologia, da
Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora do grupo Sociologia das
Profissões, da UFSCar.
2 Maria da Gloria Bonelli é professora titular do Departamento de Sociologia da
abordagem da diferença, pela opção de manter a forma como o grupo estudado se
nomeia.
161
significativo na oferta de cursos superiores. Como consequência, a
participação feminina na carreira se ampliou.4
Além da feminização das carreiras jurídicas, a visibilidade de gays
no mercado de trabalho também é fruto de transformações culturais e
comportamentais que foram atribuídas às situações de trabalho e, ass
do im, reduziram as oposições às mudanças na forma tradicional de se
exercer a profissão no Brasil. Este capítulo discute as diferentes
dinâmicas que ocorrem na situação de trabalho dos advogados que
assumem sua homossexualidade.
O estudo se destinou a desenvolver os seguintes aspectos: a
investigação a respeito das mudanças ocorridas entre operadores e
operadoras do direito sobre a diversidade sexual e a visibilidade dos
homossexuais no mercado de trabalho jurídico; e como os entrevistados
equacionam os possíveis conflitos entre a visibilidade homoafetiva e o
ideário da neutralidade profissional.
Para compreender melhor essas mudanças, procurou‐se captar
como se dá a inserção de advogados e advogadas no mercado de
trabalho, articulando‐a com as abordagens teóricas referentes a gênero
que fornecem fundamentação para análise. Essa bibliografia trata as
diferenças na profissionalização segundo o gênero que se desloca do
binarismo e do determinismo biológico. Dessa maneira, aponta como o
gênero é produto de uma construção social que fixa identidades a partir
de diferenças percebidas entre os sexos.
A pesquisa de campo ocorreu em dois momentos: inicialmente, a
equipe do projeto Profissionalismo, gênero e diferença nas carreiras
jurídicas entrevistou quatorze advogados atuantes em escritórios e
sociedades de advogados da capital e do interior, abordando a questão
da diferença de gênero e sexualidade na prática jurídica. Depois
focamos exclusivamente o Grupo de Advogados pela Diversidade
Sexual – GADvS, na cidade de São Paulo. Para compor esta parte do
estudo, realizamos cinco entrevistas, sendo três com advogados gays
militantes da causa LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais);
houve também o acompanhamento de eventos no GADvS, o
levantamento de notícias e artigos através de redes sociais e do site da
4 Bonelli, et. al., 2008.
162
Ordem dos Advogados do Brasil, seccional São Paulo (OAB – SP).
Procuramos delinear e comparar suas trajetórias profissionais,
compreendendo as formas como percebem e vivenciam a
homossexualidade na profissão.
2. O profissionalismo e as mudanças na advocacia brasileira
Ao pensar profissões, articulamos a abordagem de Freidson
(2001) ‐ que aponta as limitações do foco nos processos de
profissionalização e direciona a análise para o profissionalismo ‐ com a
proposta de Evetts (2011), que critica a tipologia sugerida por esse
autor, incorporando a ela negociações de significados que os próprios
profissionais realizam em torno de tal conceito.
Para Freidson5, o profissionalismo é uma das formas de se
estabelecer relações no mundo do trabalho e concorre com outras duas
formas pela legitimação na sociedade: a de mercado e a burocrática. A
forma de organização do trabalho pelo profissionalismo é um modelo
que valoriza o saber especializado (o saber abstrato), obtido em
instituição de ensino superior. É acompanhada da regulação de seus
membros pelos pares através do credenciamento e do controle do
ingresso no mercado, sendo longa a permanência na atividade. A
ideologia que sustenta essa terceira lógica é a da especialização
discricionária para a prestação de serviços de qualidade, da autonomia
da expertise frente aos interesses específicos dos clientes, do Estado e do
mercado. A ênfase na neutralidade do profissionalismo fundamenta o
privilégio dessa autonomia e do monopólio.
Na lógica de mercado, o treinamento costuma acontecer no
próprio ambiente de trabalho, havendo baixa permanência na mesma
ocupação, já que o ingresso na atividade é aberto e a especialização é do
cotidiano. A ideologia da livre‐concorrência prioriza o conhecimento
generalizado ao especializado, a livre escolha do consumidor em vez do
controle do mercado. A lógica burocrática por sua vez estrutura‐se a
partir de uma relação hierárquica de comando, a porta de entrada é
controlada pelo setor de recursos humanos, sendo médio o tempo de
5 Freidson, 2001.
163
permanência na ocupação, ascendendo‐se no interior da organização.
Ideologicamente, ela se embasada na valorização do caráter
administrativo, da produtividade da especialização mecânica e da
eficiência.
O controle do ingresso nas atividades exclusivas da profissão
são garantidas por jurisdições, que reservam esse mercado de trabalho
especializado aos habilitados, protegendo‐o da concorrência dos leigos.
Além desse fechamento, a construção de carreiras controladas pelos
pares, que avaliam a expertise daqueles que progridem nesse percurso,
é a forma de insular a profissão em relação às influências políticas. O
insulamento das carreiras jurídicas públicas dá a dimensão da
autonomia profissional e da independência das instituições da justiça. O
fechamento estabelece quem pode tentar ingressar na carreira,
exigindo‐se requisitos para o recrutamento que antecedem a aprovação
nos concursos, como possuir a formação superior em Direito, a
credencial da OAB, a experiência anterior na advocacia. O insulamento
é a garantia dos membros que ingressaram na carreira de que os
critérios de promoção serão definidos pelos pares, sem ingerências
externas. Instituições públicas se organizam principalmente na forma
burocrática e na profissional. O avanço desta última sobre aquela
depende das conquistas de seus membros nas relações com o Estado.
Contemporaneamente, estudiosos das profissões têm questionado
a persistência das fronteiras entre o tipo ocupacional, o burocrático e o do
mercado, com o surgimento de hibridismos que põe em xeque essa
terceira lógica. Evetts6 segue nessa direção, detendo‐se na análise das
mudanças que vêm ocorrendo no profissionalismo devido ao trabalho
dos profissionais nas grandes empresas e corporações internacionais. Ela
identifica duas maneiras de se conceber o profissionalismo: como valor
ocupacional e como discurso. Na primeira – profissionalismo
ocupacional – o apelo a esse valor é iniciativa do próprio grupo, dando
ênfase às relações entre os pares, à construção de uma identificação
comum, à discricionariedade e a confiança. A segunda maneira –
profissionalismo organizacional – é imposta de fora do grupo, vindo de
6 Evetts, 2011, p.407.
164
cima, principalmente dos chefes e patrões; esta prioriza o gerencialismo, a
burocracia, a padronização e o desempenho.
Para a autora, o profissionalismo como valor ocupacional tem
predominado na literatura especializada, sendo visto como sistema de
valores normativo e como ideologia. O primeiro sentido reflete uma
visão otimista das contribuições do profissionalismo para a coesão e
ordem social. O segundo sentido é crítico desse primeiro, percebendo
negativamente o profissionalismo como ideologia que sustenta o
fechamento do mercado aos não credenciados e o monopólio do
controle do trabalho.
Evetts7 aponta o surgimento mais recente de uma terceira
interpretação do profissionalismo como valor ocupacional: aquela que
analisa o discurso administrativo, característico do profissionalismo
organizacional, que visa impulsionar a racionalização e a disciplina,
reorganizando e controlando o trabalho. Tal discurso surge fora do
grupo, geralmente nas organizações privadas e no Estado
descaracterizando o sentido da autonomia profissional e do controle do
trabalho pelos pares. A ênfase recai no controle dos praticantes pelos
gerentes e supervisores, na competitividade e no individualismo, em
substituição às relações colegiadas e à competição jurisdicional para
garantir o monopólio da atividade. No Estado, tal profissionalismo
adquire o sentido de eficiência administrativa e produtivismo.
Sobre esse apelo, Evetts considera que:
“é necessário tentar compreender de que forma o profissionalismo
como sistema normativo de valores e como ideologia agora está sendo
crescentemente usado nas modernas organizações, e outras instituições
e lugares de trabalho, como um mecanismo para facilitar e promover a
mudança ocupacional.”8
O modelo híbrido que transpõe fronteiras foi situado por Evetts
(2011) como externo ao grupo profissional, vindo de cima. A abordagem
da autora vincula os valores manifestos nos discursos do profissionalismo
aos interesses conflitantes da profissão, do Estado e do mercado.
7 Evetts, 2011, p.410.
8 Evetts, 2011, p.407. Tradução livre.
165
As mudanças que vêm ocorrendo na advocacia brasileira são
acompanhadas da passagem do predomínio do profissionalismo como
valor ocupacional normativo, quando a prática jurídica era solo ou
partilhada por colegas, para o crescimento do discurso do profissionalismo
organizacional, com a proximidade dos sócios das grandes sociedades de
advogados em relação a seus clientes corporativos.
A advocacia diversificou suas formas de atuação, combinando o
exercício liberal em escritórios de pequeno porte atendendo
principalmente clientes individuais, com a expansão das médias e grandes
sociedades de advogados, que estratificaram a profissão. Os sócios dessas
firmas contratam advogados associados para dar conta dos serviços
jurídicos demandados principalmente pelos clientes empresariais.
Houve também o aumento expressivo na oferta de cursos de
ensino superior de direito, com a ampliação do número de ingressantes
no mercado de trabalho. Em 2001, o Brasil tinha 380 cursos de direito e
em 2011 havia saltado para 1.210. Em julho de 2013, a OAB nacional
contava com 773.908 advogados, sendo 45.6% de mulheres. A maior
oferta dos cursos superiores contribuiu para mudar as formas de exercer
a profissão no Brasil. Além de representar um expressivo aumento da
participação feminina na carreira, observou‐se a estratificação do
tamanho dos escritórios e da posição dos advogados neles, seja como
sócios ou associados. O crescimento das sociedades de advogados que
lidavam com as especializações na área de negócios e no direito
empresarial foi outra mudança observada na prática jurídica, a partir das
grandes privatizações de empresas públicas, no final dos anos 1990. A
globalização econômica também foi responsável por parte dessas
mudanças, com a atuação direta dos Estados Unidos em transferências de
modelos de instituições e adaptação de cultura jurídica.9
Junto com a clientela corporativa veio, além da especialização
criteriosa, a demanda por trabalhos de caráter rotineiro e repetitivo,
como as milhares de ações de consumidores contra grandes empresas
de telefonia, bancos, entre outras.
Portanto, a organização do trabalho jurídico foi perdendo suas
características homogêneas como profissão: o predomínio da advocacia
9 Bonelli, et. al., 2008.
166
solo ou em escritórios pequenos combinou‐se com as sociedades de
advogados médias e grandes; a advocacia generalista foi diversificada
pela expertise em áreas de elevada especialização e, pelo seu oposto , o
trabalho jurídico repetitivo.
Resultado da internacionalização da profissão, o modelo de
sociedades de advogados trouxe consigo o intercâmbio de
conhecimento especializado entre países, através da padronização
transnacional de serviços jurídicos. Para que isso seja possível, é
necessário que o profissional domine línguas estrangeiras, em especial o
inglês, além ter experiência de cursos ou estágios no exterior. Um dos
advogados entrevistados teve a oportunidade de fazer um curso nos
Estados Unidos e gerenciar a filial de um escritório paulista em Nova
York. Na mesma sociedade de advogados encontra‐se a elite dos
profissionais internacionalizados e os associados que assumem as
tarefas desvalorizadas. O processo de estratificação da profissão é
acompanhado de sua generificação, com homens predominando nas
áreas mais especializadas e mulheres concentradas nos trabalhos
jurídicos rotineiros.
A visibilidade do gênero na carreira pode, portanto, associar‐se à
estratificação do grupo e às maiores ou menores chances de sucesso
profissional. Por esta razão, conhecida nos escritórios, várias advogadas
atuam para que as marcas de gênero não venham para o primeiro plano
na prática profissional, procurando deixá‐las restrita ao âmbito privado.
Se esse padrão é conhecido para a recepção à diferença de gênero na
advocacia, nos perguntamos neste capítulo como a homoafetividade
repercute nas carreiras dos advogados? Ela produz o tipo de
estratificação observada para as mulheres? Como se busca dar
visibilidade ou apagar as marcas da sexualidade na advocacia?
3. Conceituando gênero e sexualidade
Scott (1990) tratou o gênero como categoria analítica e
desconstruiu a concepção biologizada, abordando como a diferença
sexual é socialmente construída. A segregação no mercado de trabalho
é, para a autora, parte do processo de construção binária do gênero e
das relações de poder que engendram.
167
Sendo assim, gênero não é característica essencial fixa e imutável
do ser. As diferenças anatômicas foram essencializadas em contextos
históricos e culturais específicos. Segundo Butler (2003), a cultura é a
forma de distinguir sexo e gênero. A autora contrasta sexo como
diferença biológica entre macho e fêmea, e gênero como construção
social, cultural e psicológica. A partir desse pressuposto, identidades
fixas e essencializadas em “homens” e “mulheres” puderam ser
discutidas. Desse modo, Butler concebe o gênero como gradiente que
combina masculino e feminino com heterossexualidade e
homossexualidade, sem oposições entre eles. Segundo ela, o gênero que
o corpo expressa é resultado de atos e gestos performáticos que
fabricam identidades normalizadas, imitadas ou parodiadas do mito da
feminilidade e da masculinidade.
Segundo Barbalho (2008, p.46) “as pessoas tendem a pensar de
maneira heteronormativa, de forma que ao pensar nas identidades a
primeira noção de classificação é binária, ou seja, homem ou mulher,
masculino ou feminino.”.
Não só o gênero é culturalmente construído, mas o sexo também,
superando o binarismo sexo‐natureza, gênero‐cultura. A partir dessa
perspectiva, gênero deixa de se referir ao masculino e ao feminino, e
passa a apresentar múltiplas possibilidades de identificações que não
estão essencializadas em formas duais de diferença sexual e de gênero.
Scott (1990) criticou a visão hegemônica de que a dominação masculina
se justificava por diferenças biológicas, entre homens e mulheres. Scott
adota uma visão foucaultiana ao encarar que o poder circula em uma
perspectiva relacional, possibilitando assim o acesso feminino ao poder,
mesmo que este seja desigual ao dos homens.
Para Butler (2003), tanto o sexo (que se refere às diferenças
biológicas), quanto o gênero (que envolve as diferenças culturais,
sociais, e psicológicas) são produzidos culturalmente e historicamente.
De acordo com essa visão, o gênero deixa de se limitar ao masculino e
ao feminino, possibilitando assim diversas identificações que não
seguem necessariamente o padrão dual de diferenciação sexual.
Essa autora ainda afirma que o gênero carrega consigo as
relações de poder que produzem o efeito de um sexo pré‐discursivo,
este que é construído culturalmente. Essas relações sociais de poder
168
desenvolvem‐se em contextos específicos, não sendo permanentes. A
discriminação e a desigualdade entre os sexos e os gêneros resultam de
relações de dominação que podem ser mudadas.
O preconceito em relação à diversidade sexual é uma dessas
relações de dominação. A percepção da homossexualidade no ambiente
de trabalho das carreiras jurídicas desnuda os limites da neutralidade
da expertise e do mérito nesta dimensão. A ideologia do
profissionalismo carrega consigo o apagamento dos processos de
construção social das diferenças de gênero, que são realimentados pela
essencialização à medida que elas são usadas para reafirmar qualidades
profissionais femininas e masculinas.
A visibilidade da diferença sexual está engendrada à lógica do
armário abordada por Segdwick (1990), que se impõe ao homossexual e
também aos heterossexuais já que os profissionais, em sua maioria,
declaram não ter preconceito em relação à diferença sexual, mas ela tem
de ser mantida sob discrição, para não interferir na carreira. Para
Segdwick, todos, homens e mulheres, hetero ou homo‐orientados, estão
dispostos dentro dos mesmos processos sociais de regulação de nossas
vidas a partir da sexualidade.
Apesar disso, hoje é possível perceber maior visibilidade
homoafetiva nas carreiras jurídicas. Isso decorre de mudanças culturais
que se processam nas grandes firmas de advocacia globalizadas e se
refletem nas sociedades de advogados brasileiras. Elas se empenham
em ter como modelo as sociedades norte‐americanas, visando ampliar a
circulação internacional e as parcerias nessas redes, que tratam as
políticas de diversidade como diferencial positivo.
A diversidade sexual vem sendo discutida no âmbito dos
direitos como reconhecimento à diferença nas identidades pessoais e
sociais. O olhar crítico sobre a construção heteronormativa permite
perceber as barreiras à expressão livre da identificação homoafetiva e a
produção de desigualdades no exercício do desejo e da sexualidade.
4. A identidade homosexual na profissão do(a) advogado(a)
Em 22 de março de 2011 foi criada, no âmbito do Conselho
Federal da OAB, a Comissão da Diversidade Sexual e Combate à
169
Homofobia, destinada a discutir e coordenar as matérias, projetos e
ações da entidade nessa área. Representando uma importante mudança
no cenário jurídico nacional, o apoio da comunidade jurídica tornou‐se
importante para a visibilidade de homossexuais em uma profissão já
consolidada.
As conquistas dos homossexuais que estão sendo concretizadas
nos tribunais, têm contado com o apoio da comunidade de advogados
que vem se mobilizando para defender os direitos homoafetivos. Em 28
de fevereiro de 2010, a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São
Paulo10 fechou parceria com o Escritório Lessi e Advogados Associados.
O acordo visa atender de forma gratuita os associados da APOLGBT e
demais pessoas que procuram pelos serviços da associação. Segundo
notícias veiculadas na época, a iniciativa partiu do presidente do
escritório, Pedro Lessi, que representa vários casos de discriminação por
orientação sexual. Para ele, o respeito à orientação sexual é um direito
fundamental e todo indivíduo deve ter esse direito garantido nos
tribunais, já que não são garantidos pelo Legislativo. Desde então,
desde questões contratuais menores, como desrespeito ao uso da
logomarca da APOLGBT, até questões de repercussão nacional, como
ofensas públicas à população LGBT, podem ser objeto de representação
jurídica.
Inicialmente, a pesquisa teve a intenção de articular sexualidade
e profissionalismo, partindo da hipótese de que operadores e
operadoras do direito não revelassem a homossexualidade, mantendo‐a
na intimidade sob a lógica oculta do armário, com discrição para não
afetar de forma negativa sua carreira. Priorizariam assim sua
identificação profissional perante sua identificação sexual.
Entrevistamos alguns advogados gays que são bem sucedidos na sua
atuação em sociedades de advogados, e observamos a confirmação do
apagamento da visibilidade da sexualidade, para superar barreiras à
10 A Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo é uma entidade civil, de
direito privado, sem fins lucrativos, fundada em 1º de fevereiro de 1999, tendo como
missão a garantia da cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais,
assim como a promoção da visibilidade e autoestima desta população e a educação da
sociedade para o fim da discriminação, preconceito e violência homofóbica. (Fonte:
http://www.paradasp.org.br/ associacao.php)
170
progressão. No entanto, além desse tipo de conduta, o trabalho de
campo permitiu localizar outro comportamento entre os profissionais.
Foi possível encontrar advogados e advogadas que assumissem
publicamente sua homossexualidade, que se apresentam como figuras
públicas do Direito, e como militantes da causa homoafetiva na cidade
de São Paulo e em outras grandes cidades do país. A pesquisa de campo
permitiu tomar conhecimento de um grupo de profissionais do Direito
que, além de reconhecer publicamente sua identidade homossexual,
luta por direitos e trabalha com causas relacionadas à sexualidade
contra‐hegemônica. Eles também trabalham com clientes empresariais,
nas sociedades de advogados, nos escritórios que lidam com outras
especialidades, além da defesa contra a discriminação sexual. Trata‐se
de um grupo ativo nas causas acerca do direito homoafetivo e para o
respeito de operadores e operadoras do direito homossexuais: o Grupo
de Advogados pela Diversidade Sexual.
Formado por operadores do Direito, o Grupo de Advogados
pela Diversidade Sexual – GADvS é uma entidade privada que tem
como objetivo principal garantir os direitos de cidadania da população
homossexual. Além de advogados e advogadas, o grupo conta com a
atuação de profissionais de diversas áreas, numa perspectiva
multidisciplinar na luta pelos direitos LGBTs. Com dois anos de
existência, o grupo luta em prol do respeito à diversidade sexual,
juntamente com a atuação no judiciário, e é referência em casos de
sucesso. Seus membros se sentem preparados para dar suporte jurídico
e orientação a qualquer cidadão, principalmente os de orientação
homoafetiva.
Para eles, o desafio é declarar e tornar legítimo o direito de gays
ao casamento e às uniões estáveis, além do reconhecimento que a
homofobia é uma conduta criminosa, assim como o racismo. O grupo
destaca a premissa básica de que todos são iguais perante a lei, se
colocando o objetivo de reduzir a violência moral e física que a
população LGBT vem sofrendo. Para o diretor do GADvS (advogado,
gay, militante da causa LGBT), o avanço dos direitos da comunidade
gay não é um modismo, mas um processo histórico. Apesar de alguns
projetos de leis tramitarem por mais de uma década (como o caso de
171
parceria civil e criminalização de homofobia), ainda não existem leis
federais protetivas.
Os valores normativos predominante no profissionalismo
enfatizam a neutralidade da expertise, mas a agenda da diversidade
sexual que é encampada pelo GADvS dá visibilidade a essa diferença.
As identificações profissionais, embora coletivas aos advogados, não
são fixas e vivenciadas da mesma forma pelos pares. As interseções com
as marcas das diferenças pluralizam esses processos identitários, podem
ganhar ou não visibilidade. As lutas simbólicas em torno desse ideário
profissional foram observadas nas entrevistas realizadas pela equipe da
pesquisa. Encontramos advogados e advogadas que foram bastante
firmes em se apresentar como pessoas não preconceituosas em relação
ao profissional gay, mas pouco dispostas a aceitar a visibilidade dessa
diferença, como na fala a seguir:
“O [nome do advogado] está saindo do armário agora, ele ainda não
falou para nós, isso não é problema, a atitude dele tem que ser
diferente, o problema dele são os pais, desde a contratação eu já
percebi. (...) Não; isso não é problema não, a atitude dele tem que ser
diferente, desde que não ofenda ninguém, ele só não pode é chegar
aqui de Maria Chiquinha etc, etc, porque não condiz com o ambiente,
ele tem que se comportar de acordo com o ambiente. Se eu chego num
ambiente gls eu não posso ficar assim, né?(fez trejeitos com as mãos),
como uma pessoa homossexual chega num ambiente ele tem que
respeitar o ambiente onde ele está, um casal que vai num boteco ele
não vai ficar se agarrando, se beijando, não vai ficar sentando no colo
do outro em público, isso depende da postura da pessoa, não da
opção.” (Joyce, advogada sócia, escritório familiar no interior, 46‐50
anos, divorciada, com filhos)
Alguns dos advogados gays entrevistados também reforçaram a
neutralidade do profissionalismo, para evitar que as marcas da
homoafetividade abalem o status conquistado na carreira. A passagem
abaixo aborda a questão da “postura profissional neutra”, na visão de
um deles.
“Eu acho o seguinte, a questão do trejeito, de ser afeminado ou não, eu
acho que isso implica numa postura de confiança que eu acho que o
172
senso geral da sociedade tem, por exemplo, eu acho que você vai se
sentir mais confortável sendo atendido por um profissional se ele
mantém uma linha reta, não é pra ser o machão, grosseiro, aquele
típico macho, entendeu, homem, e também não é pra ser uma pessoa
que é homem e quer ser mulher entendeu. Eu acho que isso acaba
criando um problema de, talvez confiabilidade no profissional, a
pessoa acha meio estranho. Eu não tenho preconceito com isso, eu acho
que tanto faz, mas eu acho que em geral as pessoas têm essa percepção.
(...)
Eu acho que pra parar com questão de preconceito eu acho que tem
que parar de participar às pessoas se é gay, se é lésbica, se é isso ou
aquele outro. Você não é nada, você é você, uma pessoa, um ser
humano que trabalha. Pronto, ponto final. ” (Jonas, advogado sócio de
renda, 26‐30 anos, solteiro, sem filhos)
O apagamento das marcas visíveis da diferença quanto à
sexualidade realizada por esse entrevistado é acompanhado da ênfase
na identificação com a profissão, que se sobrepõe ao pertencimento a
outra comunidade, como a homoafetiva. O profissionalismo repõe o
status social negado às pessoas gays na sociedade e traz recompensas
através do reconhecimento obtido pelo domínio da expertise.
Rumens e Kerfoot (2009) analisaram homens gays no trabalho
em organizações receptivas à inclusão. Eles sugerem que mesmo nesses
ambientes, os homens gays atuam sobre o self para se identificarem
como profissionais, vivendo empoderamento. Dessa forma, não deixam
de ser afetados pelas normas que tratam a sexualidade e o
profissionalismo como polos opostos.
Em contraste com essa forma de lidar com a diferença na
profissão, temos entre os profissionais do GADvS aqueles que
vivenciam a interseção entre a identificação profissional e homoafetiva
de forma pública. Nosso interesse neste aspecto é registrar as dinâmicas
nas situações de trabalho dos advogados que assumem abertamente sua
sexualidade em comparação com aqueles que não o fazem, ou que
entendem que a sexualidade é assunto da intimidade, restrito ao
privado.
As lutas concorrenciais entre o apagamento da diferença, com a
política do armário e a visibilidade da identificação profissional e sexual
173
apontam oportunidades de mudanças nessas relações, ao se questionar
a hegemonia da neutralidade. Jovens advogados formados em 2009 já
presenciavam em suas universidades maior abertura para a diversidade
sexual, seja na carreira, seja no preparo para casos e clientes. Segundo o
advogado João, a faculdade em que cursou direito sempre foi ativa na
defesa da não discriminação sexual.
ʺhavendo inclusive cadeiras de Psicologia e Sociologia dentro do
Direito, visando promover debates para que a comunidade aceitasse os
ʺgaysʺ. Tive até mesmo uma professora homossexual não assumida,
mas que levantava a bandeira. Notei receio com tal tema somente com
relação àqueles alunos mais velhos, de outra época. Os mais jovens têm
aceitado a diversidade sexual sem problemasʺ. (João, advogado, 24
anos, solteiro, gay não assumido)
Advogados do GADvS também compartilham da opinião e
afirmam que existe hoje a possibilidade de assumir e afirmar a
identidade gay já na faculdade. Para eles, a geração de advogados que
se formou na década de 90, e hoje tem entre 35 e 40 anos, só pode
assumir sua sexualidade após chegar ao topo da carreira. Assim
aconteceu com Joaquim, que só “saiu do armário” após se tornar sócio
de um importante escritório de São Paulo.
Para o entrevistado Jorge, estudante de direito, existe a
“certeza que está havendo uma abertura para mais homossexuais se
assumirem, não que deixou de existir a discriminação, porém a
abertura para se falar no tema e se assumir atualmente está sendo mais
aceita, na faculdade de Direito existe muitos homossexuais assumidos,
na minha própria faculdade existe uma trans que está no 3º ano da
faculdade, o fator formal na formação do Bacharel em Direito está bem
mais informal, tal informalidade possibilita o que chamamos de
diversidade ser mais perceptível e difundida, o que ajuda também com
a extinção de estereótipos, como de que todo homossexual é
cabeleireiro. Grupos de diversidade sexual estão presentes em apenas
Universidades Públicas (pelo menos é até onde sei), não existe (ou não
conheço) um grupo dentro de uma faculdade de Direito
especificamente, mais sim grupos interdisciplinares”. (Jorge, 20 anos,
estudante de direito, solteiro, gay não assumido)
174
Em contrapartida, João vê como algo negativo para a carreira de
um advogado caso ele, segundo suas palavras, ‘levante a bandeira’ e
demonstre a sua opção sexual para a sociedade. Diz não ser
preconceituoso, mas não vê motivos para que a sexualidade e a opção
sexual de cada um sejam declaradas e divulgadas, visto que não necessita
disso para exercer sua profissão, e acrescenta: ʺé algo que deve ser mais
fechado, não necessitando de publicização até mesmo para evitar
preconceitos. Há colegas gays que não divulgam sua opção sexual, e
apenas exercem suas profissões como se heterossexuais fossem.ʺ
No que se refere ao ambiente de trabalho e a relação com os
clientes, João acredita que
ʺA marca da sexualidade não implica na não escolha do advogado pelo
cliente, entretanto, desde que este advogado se porte como um
advogado e não como um “advogado gay”. Quero dizer, ele não
precisa a todo instante demonstrar sua opção sexual e fazer questão de
que ela seja exposta, pois neste caso enfrentará preconceito de uma
sociedade que ainda não está preparada para enfrentar tal tipo de
situação.ʺ (João, advogado, 24 anos, solteiro, gay não assumido)
A ideia de que o advogado, independente de sua sexualidade,
deve se portar como “macho” está presente em todas as falas desses
entrevistados. Tanto para eles quanto para outros advogados e outras
advogadas entrevistados, é necessário que se mantenha uma postura
profissional para não sofrer preconceitos na carreira. Ao questionar
como seria tal postura, as respostas eram sempre em relação ao modo
de se vestir, de falar, de andar. O ideal é que um advogado que se
assuma gay não seja afeminado.
Para Jorge, o advogado homossexual tem grandes chances de
subir na carreira, desde que seja ou pareça homem hetero, branco,
casado e pai de família. O homossexual terá sua ascensão profissional
garantida ao não se mostrar afeminado. Além disso, afirma que ser
homem no mundo jurídico é fácil: “a maior facilidade em relação
homem versus mulher seria a de que no mundo jurídico, os homens são
predominantes, mais não conheço mulheres que tiveram dificuldades
em subir na sua carreira profissional”. No entanto, existe a ideia de que
aqueles que se assumem gays teriam que se qualificar mais que os
175
outros. Assim como as mulheres, que acreditam estar em desvantagem
na carreira em relação aos homens, os advogados que assumem sua
opção sexual estudam e se dedicam mais ao trabalho para não dar
brechas para a discriminação.
“Eu acho que a minha opção sexual sempre me fez dar mais duro, mais
duro porque eu acho que o medo de ser discriminado e tudo mais,
você acaba buscando uma proteção para seu sucesso profissional. Se
você tem sucesso profissional é mais difícil a pessoa sobrepujar isso
com você” (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay
assumido).
O que nossa pesquisa indica é que não podemos falar de
profissionalismo como se seu sentido fosse único e coeso, já que a
neutralidade e o apagamento das diferenças estão sujeitos a
questionamentos, bem como a reafirmações. A visibilidade da
homoafetividade desses profissionais é algo que está sendo construído e
produzido historicamente. Tais mudanças estão intimamente
relacionadas à fragmentação da ordem tradicional que deu origem ao
modelo das profissões no século XIX, e é hoje acompanhada da
pluralização dos valores na sociedade contemporânea, como também
dos embates em torno do ideário do profissionalismo.
Tal como ocorre com o gênero, os papéis sexuais são forjados
socialmente e, por esse motivo, criam‐se expectativas e comportamentos
apropriados para homens e mulheres. Quando tratamos do ambiente de
trabalho, que se construiu em contraste com o da casa, espera‐se uma
conduta que demarque fronteiras difíceis de serem mantidas, como as
do jogo das identidades no público e no privado. O profissionalismo foi
um aliado para se constituir essas fronteiras fixas, mas elas estão
sujeitas a deslocamentos e às disputas discursivas sobre seu significado.
O depoimento abaixo revela os custos do cruzamento das
fronteiras entre público e privado na visibilidade da homossexualidade.
As diferenças de comportamento, a forma de se vestir, de falar
produzem estereótipos que estigmatizam o profissional no ambiente de
trabalho com os pares e no relacionamento com clientes.
176
Eu acho que talvez pelo fato dele ser um pouco mais afeminado, que
pode ter originado esse tipo de preconceito, isso é uma coisa que eu
realmente vejo nas pessoas, eu acho que hoje em dia a opção sexual é
muito menos tabu, mas ela é menos tabu com as pessoas que não tem
os trejeitos, marcas visíveis, o que é muito triste. E qual é o problema?
Eu realmente me considero uma pessoa totalmente desprovida de
preconceito. (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay
assumido)
Como os estereótipos produzem padrões de comportamento
homossexual no qual o homem age de forma mais afeminada e a
mulher mais masculinizada, quando uma advogada é considerada mais
dura e firme em seu trabalho, rumores acerca da sua sexualidade
entram em pautas veladas nos corredores dos escritórios de advocacia.
A hipótese inicial a respeito da maior abertura na cidade de São
Paulo foi confirmada pelos entrevistados. Quando perguntados se há
diferença entre a visibilidade homoafetiva em São Paulo e em cidades
do interior ou outras regiões do país:
“Na cidade onde moro, que é São Paulo, a abertura profissional para
profissionais homossexuais é bem aceita, porém em cidades menores
existe um tabu muito grande.” (Jorge, 20 anos, estudante de direito,
solteiro, gay não assumido)
“Por estarmos em São Paulo, eu acho que é um lugar onde você tem
mais contato em relação a isso, as pessoas são mais abertas pra esse
tipo de coisa” (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e
gay assumido).
5. A diferença sexual e identificação homossexual no Brasil
Os advogados homossexuais dizem que não devem se portar
como tal, mas existe uma única maneira de representar e praticar a
homossexualidade? O que é ser um homossexual na carreira? O que
isso representa? Quais são as implicações em assumir tal identidade na
profissão? Abordaremos agora essas questões.
Os movimentos homossexuais surgiram no Brasil no final da
década de 1970. De acordo com Fry e Macrae (1983), em um pequeno
ensaio sobre a história da construção médico‐legal da
177
homossexualidade e as suas manifestações no Brasil, os movimentos
sexuais surgiram com o propósito de repensar a identidade
homossexual e combater as manifestações do preconceito. Além disso,
proporcionou maior visibilidade da homossexualidade para o público
como um todo. A imprensa passou a dedicar mais espaço ao assunto,
além da televisão que, apesar de representar uma identidade sempre
caricata para o homossexual, tornou possível a visibilidade social desse
grupo de pessoas que antes viviam no anonimato e nos guetos sociais.
Tais mudanças criaram condições sociais mais favoráveis para
que profissionais viessem a assumir sua homossexualidade dentro do
ambiente de trabalho. Não é possível dizer que a homossexualidade
aumentou, não existem dados que comprovem isso, mas os processos
de luta para a redução do estigma social garantiram maior visibilidade
aos homossexuais do que antes disso.
A visibilidade da identidade homoafetiva entre operadores e
operadoras de direito se ampliou, e é possível verificar essas mudanças
no cenário atual da cidade de São Paulo. Importante ressaltar nessa
análise, os advogados entrevistados e também aqueles com os quais
pudemos entrar em contato, apesar de ocuparem um lugar subalterno,
enquanto homossexuais são parte dos segmentos favorecidos da
população, muitos deles em posições dominantes na hierarquia social.
Além disso, como vimos acima, no mundo do Direito, a
ideologia predominante no profissionalismo é baseada na neutralidade
afetiva. Dessa maneira, aqueles que se enquadram no perfil do
profissional sério, competente e que se adequam às construções sociais
de feminino e masculino tendem a prevalecer diante daqueles que
fogem do padrão.
“Os que são suspeitos de não virem a se dedicar totalmente à carreira
(cuidados com a família), ou aqueles que corporificam uma imagem de
si percebida como a antítese do neutro (a sexualidade visível, a
emotividade, a politização, o trajar diferente do ‘terno‐terninho’)
perdem a pressuposição de sua competência, atestada pelo mérito da
proveniência do diploma, da credencial da OAB e do currículo.”
(Bonelli e Barbalho, 2008, p.286)
178
Como os profissionais do direito lidam então com a identidade
profissional e a identidade homoafetiva? Elas entram em conflito?
Segundo Hall (2003), resultado de mudanças estruturais e institucionais,
o sujeito passa a ser composto de várias identidades, sendo elas
algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. A identidade torna‐se
algo em contínua transformação, definida histórica e culturalmente, não
mais biologicamente. As várias identidades não unificadas no self
resultam em uma identificação constantemente deslocada.
A contemporaneidade apresenta múltiplas identidades culturais
com as quais o indivíduo pode se identificar, fazendo‐o possuir uma
multiplicidade de identidades possíveis. Hall argumenta que a
modernidade tardia pode ser caracterizada pela diferença que produz
múltiplas posições de sujeitos, isto é, diferentes identidades.
Se antes dessa modernidade o que prevalecia eram as identidades
de classe e/ou gênero, agora as categorias gênero, sexualidade, raça,
classe, nacionalidade, entre outras, que podem entrar em conflito,
constituem uma totalidade de identidades através das narrativas do self.
A representação torna‐se elemento importante para que identidades
formadas e transformadas culturalmente possam se cruzar.
No final da década de 1990, o debate mudou de direção e os
teóricos passaram a aludir suas análises à emergência de categorias que
se referiam à multiplicidade de diferenciações que se articulavam ao
gênero. Tais categorias são chamadas de categorias de articulação e de
interseccionalidades. Os questionamentos passaram a ser realizados em
torno do deslocamento nos referenciais teóricos utilizados e de
abordagens desconstrutivistas.
Se os indivíduos são formados por diversas noções de
identidades, é necessário mais de uma categoria para compreendê‐lo
como um todo. Interseccionalidades e/ou categorias de articulação
oferecem ferramentas analíticas para a compreensão e articulação das
múltiplas diferenças e desigualdades.
“É importante destacar que já não se trata da diferença sexual, nem da
relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da diferença,
em sentido amplo para dar cabo às interações entre possíveis
diferenças presentes em contextos específicos.” (Piscitelli, 2008, p.266)
179
Ao debater as categorias de articulação e intersseccionalidades,
Piscitelli critica as identidades fixas dentro das teorias de gênero. Para a
autora, o gênero deve ser problematizado e não mais visto sob modelos
teóricos totalizantes e universalizantes.
Piscitelli (2008), assim como Avtar Brah rejeita o conceito de
patriarcado como algo universal. Brah (2006) abordou o debate da
articulação entre gênero, raça, etnicidade e sexualidade, no feminismo
negro, na Inglaterra. A proposta de Brah era trabalhar diferença como
categoria analítica, pensando na diferença como experiência, como
relação social, como subjetividade e como identidade.
“A autora afirma que há discursos que apresentam diferenças, como o
racismo, que traçam limites fixos. Entretanto, outras diferenças podem
ser apresentadas como relacionais, contingentes. Como a diferença
nem sempre é um marcador de hierarquia nem de opressão, uma
pergunta a ser constantemente feita é se a diferença remete à
desigualdade, opressão, exploração. Ou, ao contrário, se a diferença
remete a igualitarismo, diversidade, ou a formas democráticas de
agência política”. (Piscitelli, 2008, p.269)
Essa linha de pensamento que intersecciona as diferenciações,
pode ser usada para se pensar em como as construções de diferença e
distribuições de poder contribuem para o posicionamento desigual dos
sujeitos no âmbito global. Para melhor compreensão, é necessário
pensar como Scott (1998) em que os sujeitos são constituídos mediante a
experiência. Por esse motivo, a sua identidade vai estar relacionada com
o lugar e tempo em que se situa. Uma mulher brasileira, branca,
estudante e de classe média é vista de maneira diferente dependendo
do país em que se situa. Na Europa pode ser vista como migrante, latina
e outras posições que não teria se estivesse em seu país de origem.
As identidades são construídas dentro dos discursos e emergem
em um jogo específico de poder e por isso são produtos da marcação da
diferença e da exclusão11 . O autor usa o termo “identificação” de Homi
Bhabha por ser menos ardiloso que o de identidade, pois ambos são
conceitos não muito bem desenvolvidos da teoria social.
11 Hall, 2001.
180
A identificação é uma constante construção, um processo nunca
completado. Ela é um processo de articulação e suturação porque está
sujeita a historicização, estando constantemente em processo de
mudança e transformação. Além disso, as identidades são constituídas
por meio da diferença e não fora dela. Avtar Brah já se questionava de
que forma era possível teorizar o vínculo entre a realidade social e a
realidade psíquica, para assim teorizar o sujeito pós‐colonial em suas
diferentes identidades.
Stuart Hall (2000) concentra‐se em uma discussão da
problemática da formação da identidade e da subjetividade, colocando‐
se a importante pergunta: por que acabamos preenchendo as posições‐
de‐sujeito para as quais somos convocados?
Como já dito anteriormente, Hall salienta que está acontecendo
uma desconstrução das visões sobre a identidade em diversas
disciplinas, as quais põem em crise a noção de uma identidade integral,
originária e unificada. Um conceito‐chave é o de “agência”, que
expressa a identificação como uma construção, como um processo
nunca terminado. A identificação é, portanto, um processo de
articulação. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco”, mas nunca um
ajuste total. Mas o conceito principal é o de identidade, que não é, em
Stuart Hall, uma noção essencialista, mas um conceito estratégico e
posicional, ou seja, as identidades jamais são unas. Em suma, as
identidades operam através da exclusão, da construção discursiva de
uma exterioridade constitutiva e da produção de sujeitos
marginalizados, na superfície exilados do universo simbólico ou do
representável.
A compreensão de identidades aos olhos de autores pós‐
coloniais mostra desde a produção de novos sujeitos devido à nova
ordem global, até a difusão das interseccionalidades e categorias de
articulação para abordar as diferenças. O que se pode concluir é que as
identidades foram percebidas como um conjunto de diferenças que
caracterizam os indivíduos e os identifica dentro das práticas
discursivas e psicanalíticas. As identificações, por pertencerem ao
imaginário, sempre são reafirmadas pelos próprios sujeitos que desejam
se inserir na dinâmica das estruturas de poder.
181
6. Conclusões
A pesquisa seguiu um percurso que mostrou o recorte da
visibilidade de advogados que lidam com a identidade profissional e
homoafetiva e acabam seguindo para a militância LGBT. O enfoque que
foi dado ao GADvS e aos advogados militantes serviu de base para
argumentação de como a homoafetividade irá interferir na profissão,
dando outros rumos a partir da militância no movimento LGBT. A força
da identificação sexual configura o caminho profissional, mostrando
uma interseção na qual se busca reconhecimento para o valor de sua
expertise, rejeitando a desqualificação de seu saber com a reconversão
de seu capital jurídico para a atuação na especialidade dos direitos
homoafetivos.
Quando os profissionais não fazem essa reconversão, os custos
dos estigmas são pesados. Os pares profissionais produzem as
invisibilidades ao partilharem o ideário da neutralidade do
profissionalismo como fundamental para o exercício da advocacia. Os
profissionais gays, envolvidos ou não em lutas contra a discriminação
sexual apagam as marcas dessa diferença ao agirem em sintonia com
esse valor normativo, que coloca em pólos opostos a vida profissional e
a intimidade, mantendo no armário sua homossexualidade. Nestes
casos, a intersecção entre identidades fica sujeita ao predomínio do
status profissional perante o estigma da diferença sexual.
Por fim, a análise dessas trajetórias profissionais permitiu
compreender os processos de mudança que estão ocorrendo na
advocacia paulista e os novos arranjos institucionais, visando a
diversidade sexual, desde as instâncias da OAB‐ SP, como a Comissão
da Diversidade Sexual e Combate a Homofobia até as sociedades de
advogados que vêem na diversidade a possibilidade de ampliar suas
redes nas grandes firmas internacionais.
182
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183
184
As mulheres na magistratura: comparações entre Argentina e Brasil
Camila de Pieri Benedito1
Maria Eugenia Gastiazoro2
1. Introdução
A proposta deste capítulo é a análise comparativa sobre as
diferentes formas de inserção profissional, como também sobre
percepções de gênero, no judiciário argentino (Córdoba) e brasileiro
(estado de São Paulo). Comparam‐se dados qualitativos de entrevistas
realizadas com magistradas para discutir questões teóricas sobre gênero
e profissão jurídica.
Como reconstitui a pesquisadora Margareth Rago (2001), a
exclusão das mulheres por um largo período das funções públicas na
política, nas ciências e na filosofia, são consequências de um contexto
histórico e social que se refletiu nas ciências – como a medicina – que
retratavam a mulher como diferente dos homens, sendo estas
consideradas inferiores intelectualmente, fisicamente e moralmente.
A constituição do direito e de suas instituições entrelaçou‐se
com este contexto tornando sua presença, em relação a dos homens,
inferior quantitativamente. Em suas origens, o judiciário brasileiro e
argentino foi composto unicamente por homens brancos e da elite
política (Coelho, 1999; Kohen, 2008) assim como o corpo estudantil das
universidades de direito. As primeiras mulheres advogadas também
demoraram a surgir (Argentina: Bergoglio, 2007, Sánchez, 2005, Kohen,
2005, Bergallo, 2005, Gastiazoro, 2008; Brasil: Junqueira, 2007, Bonelli,
2012).
Além das lutas feministas que impactam sobre o papel da
mulher em nossa sociedade, auxiliando seu maior ingresso em cursos
1 Mestre em Sociologia. Programa de Pós‐Graduação em Sociologia, Universidade
Federal de São Carlos. Pesquisadora do grupo Sociologia das Profissões, UFSCar.
2 María Eugenia Gastiazoro: Mestre em Sociologia (Centro de Estudos Avançados,
UNC) e Advogada (Universidad Nacional de Córdoba). Auxiliar Docente na Cátedra
Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da UNC.
185
universitários e na vida pública, outros movimentos ocorrem tanto no
Brasil como na Argentina refletindo na feminização das carreiras
jurídicas: a organização empresarial dos escritórios jurídicos
intensificou‐se no contexto da internacionalização da economia nos
anos 90. Ambos os países reformaram seus sistemas judiciários no
sentido de modernizar e racionalizar o seu funcionamento, muitas
vezes sob a direção de organismos internacionais. Por sua vez os
processos de democratização da educação trouxeram um aumento do
número de profissionais do direito, sendo destacado o ingresso
qualitativo de mulheres na profissão (Bergoglio, 2007; Junqueira, 1998).
Na Argentina, a tendência à organização empresarial do
trabalho dos advogados significou um aumento no tamanho dos
escritórios, bem como um aprofundamento da divisão do trabalho
jurídico e um aumento da especialização. O surgimento de grandes
empresas jurídicas – escritórios com mais de cinquenta advogados – ao
lado dos pequenos e médios escritórios de advocacia, expressa
claramente estas transformações (Bergoglio, 2005).
No caso do Brasil, Junqueira (1999, 1998) analisa este processo
iniciado pelo contexto de privatizações do governo de Fernando
Henrique Cardoso e se estende sobre o maior ingresso de mulheres.
Sobre as diferenças entre advogados e advogadas, a autora retoma o
conceito de glass ceiling3 – ou teto de vidro – que corresponde a uma
barreira invisível que impede que homens e mulheres ocupem com a
mesma facilidade os espaços de maior prestígio, pois para que possam
alcançar estes postos precisam se esforçar mais que os homens que são
colocados nas posições mais prestigiadas enquanto elas permanecem
nos trabalhos burocráticos e de menores privilégios.
Na Argentina, a reforma da administração judiciária e sua
modernização implicaram uma série de mudanças que ampliaram a
oferta de trabalho no setor público. Embora a feminização do poder
judiciário não seja um processo recente, a possibilidade que existe hoje
de prestar concursos abertos influi na crescente inserção de mulheres
neste campo de trabalho. Entretanto, vários estudos mostram que elas
3 Junqueira utiliza‐se do conceito de glass ceiling cunhado por Margareth Thornton no
texto Dissonance and Distrust: Women in the Legal Profession (1996).
186
estão sub‐representadas nos postos de maior hierarquia, ao passo que
são sobre‐representadas em posições de menor poder e decisão
(Mackinson e Goldstein, 1988; Gastron, 1991; Bergallo, 2005; Kohen,
2008; Gastiazoro, 2010). De modo semelhante, no Brasil a participação
feminina nas carreiras jurídicas públicas se intensificou a partir do
momento em que as provas objetivas passaram a manter a identidade
de candidatos e candidatas anônima (Bonelli, 2011) apesar de haver
ainda o peso do gênero durante a parte subjetiva, de entrevistas.
Estas variáveis, brevemente elucidadas, ilustram como a questão
da equidade na participação feminina e masculina nas carreiras
jurídicas não pode ser considerada somente a partir da questão
temporal. Neste artigo, são resgatadas as perspectivas de mulheres que
trabalham no poder judiciário de Córdoba e também de juízas estaduais
e federais paulistas no Brasil. A ideia é comparar como operadoras do
direito no Brasil e na Argentina têm observado a questão da
participação das mulheres no direito para então discutirmos questões
teóricas sobre diferença de gênero e carreiras jurídicas.
Na próxima seção do artigo serão destacadas as bases teórico‐
metodológicas das duas análises para que seja possível realizar a
explanação mais detalhada das pesquisas nos dois países. No trecho A
inserção das mulheres no poder judicial em Cordoba, será posto em destaque
a pesquisa de Gastiazoro enquanto na seção A percepção de gênero entre
juízas estaduais e juízas federais no interior do estado de São Paulo será
exposta a de Benedito no Brasil.
2. Aspectos teóricos e metodológicos da investigação
A investigação na Argentina foi realizada sobre o Poder
Judiciário da Província de Córdoba e a Justiça Federal de Córdoba.
Depois da análise de dados quantitativos que dão conta de processos de
segregação vertical e horizontal nos poderes judiciários considerados,
foram feitas entrevistas com mulheres que lá trabalham para
compreender as desigualdades de gênero. Neste presente artigo foram
analisadas entrevistas tomadas a mulheres juízas de diferentes níveis,
ademais do caso de uma secretária da Justiça Federal.
187
Embora se venham produzindo transformações tanto no mundo
do trabalho como na vida, a divisão sexual do trabalho ainda é uma
estrutura que afeta as atividades das mulheres, e a gestão de seu tempo,
tanto no campo do privado como do público, elemento cuja repercussão
ultrapassa aquilo que elas são capazes de ʺnegociarʺ ou ʺrenegociarʺ na
esfera privada. Ademais, persiste nos agentes um olhar que percebe e
valoriza as diferenças de gênero dentro de uma visão binária que incide
de maneira negativa sobre as próprias mulheres. Essa situação se
reproduz através da violência simbólica presente nas relações sociais, o
que impõe uma construção social arbitrária do biológico, e em especial
do corpo (Bourdieu, 2005). Neste sentido, as desigualdades de gênero
dentro da profissão jurídica se sustentam em arbitrariedades culturais
que se evidenciam como naturais.
Entre os modelos teóricos explicativos das desigualdades de
gênero apresentados por Hull e Nelson (2000), aquele das escolhas dos
atores postula que são as próprias mulheres que incidem na
configuração das desigualdades de gênero. A partir desta perspectiva,
argumenta‐se – segundo a teoria do capital humano de Gary Becker
(1985) – que as diferenças de gênero são consequência dos
investimentos individuais em educação, mas também em experiência e
treinamento profissional que homens e mulheres investem em si.
Enquanto as mulheres fazem escolhas que privilegiam as
responsabilidades familiares contra o próprio crescimento na carreira
profissional, os homens concentram sua atenção em sua formação e
especialização profissional. Esta explicação resulta criticável porque
coloca o foco no individual sem levar em conta as barreiras estruturais,
a discriminação e orientação institucional de gênero. Investigações
sobre o tema observaram que, por mais que as mulheres tenham a
mesma formação e experiência de trabalho que os homens, tais
características não são efetivamente valorizadas da mesma forma
quando se trata de obter promoções (Fiona e Hagan, 1999; Rhode, 2003).
Além disso, as pautas de trabalho nas empresas jurídicas, como a
extensa jornada de trabalho e a consequente sobreposição crescente da
vida com o trabalho são barreiras que potencializam as desigualdades
em detrimento das mulheres, sustentadas pela divisão sexual do
trabalho (Bergoglio, 2007a). Nesse sentido:
188
“... os níveis concretos de autonomia e autodeterminação efetivamente
alcançados pelas pessoas não depende apenas de suas aspirações e
esforços pessoais, mas também do gênero, da idade, etnia e setor
socioeconômico em que eles estão situados... a individualização está
sempre inscrita em um campo de lutas... que determinarão quais
sujeitos efetivamente possuem autonomia”. (Stecher Godoy e Diaz,
2005:94)
A teoria de Bourdieu (2005:105) permite adentrarmos na
ʺ(re)construção social, sempre reproduzida, dos princípios de visão e
divisão geradores dos gênerosʺ, que ocorre dentro das estruturas
institucionais que, por sua vez, são sustentadas por meio das estratégias
que os agentes colocam em marcha. A lógica do modelo da divisão
entre o masculino e o feminino se instaura e reinstaura por meio de um
trabalho constante de diferenciação a que os agentes não deixam de ser
submetidos e que os leva a distinguir‐se por meio de processos de
masculinização ou feminização.
É certo que:
“as mudanças provadas pela globalização enfraqueceram os costumes
e o senso comum tradicionais: o paradigma de gênero mudou, já não
se baseia mais no modelo capitalista anterior do homem provedor e
das mulheres no espaço doméstico, alcançando também a recuperação
de uma perspectiva mais complexa de gênero, superando a perspectiva
reducionista que o coloca como oposição binária entre mulheres e
homens. No entanto, estes avanços deixaram basicamente intocada a
divisão sexual do trabalho como forma organizativa da sociedade,
tornando muito mais opressora suas múltiplas jornadas e convertendo
o tempo – sua escassez – em um lugar de sujeiçãoʺ (Manifesto dos
Direitos Sexuais e Reprodutivos, 2006:8).
Sendo, então, a solução culturalmente institucionalizada na vida
cotidiana que:
“as estratégias de conciliação do trabalho, do doméstico‐familiar e do
pessoal são uma questão de caráter privado, sendo as mulheres os
agentes que protagonizam estas estratégias privadasʺ (Missa e Unceta,
2008).
189
Neste sentido, as relações estabelecidas entre os espaços e
tempos do produtivo e reprodutivo, do privado e do público, do
familiar e do trabalho são aqui fundamentais.
No caso do trabalho de Benedito, foram selecionadas para a
análise duas carreiras jurídicas públicas brasileiras: a magistratura
estadual e a magistratura federal paulistas, analisando desta forma a
presença das mulheres no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e no
Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). A pesquisa e a análise
dividem‐se em duas partes: a primeira, quantitativa, relaciona o
conceito de profissionalismo com a maior ou menor presença feminina
nestas carreiras como também a abertura mais ou menos flexível para a
presença destas nas instituições. A segunda parte, qualitativa, é a
análise dos discursos de juízas federais e estaduais de onde são
resgatadas suas percepções sobre a presença feminina nas instituições.
O conceito chave na análise é o profissionalismo, tanto em seu
aspecto institucional pelas contribuições de Freidson (1996) como o
definido em forma de discurso a partir de Evetts (2003). Freidson
constrói as variáveis do profissionalismo como um tipo ideal4, segundo
o autor o trabalho organizado pela lógica do profissionalismo se
distingue de outras formas de trabalho5 em três pontos essenciais: em
primeiro lugar diferencia‐se do trabalho realizado pelas ocupações que
são uma especialização mecânica, sendo então uma especialização
criteriosa, ou seja, que demanda um estudo especializado e
aprofundado realizado na universidade. Este saber é abstrato,
característica que compõe o segundo elemento do profissionalismo e
4 O tipo ideal de Freidson é distinto daquele concebido por Weber. Neste caso, o tipo
ideal se constrói em um conceito mutável a partir das diferentes variáveis com as
quais se encontra como organização estatal e condições históricas e geográficas.
5 Freidson coloca que o profissionalismo concorre com outras duas formas de
organização do trabalho em nossa sociedade: a lógica de mercado e a lógica
burocrática. A lógica de mercado se contrapõe ao profissionalismo ao criticar seu
caráter monopolista em relação ao mercado de trabalho e o credencialismo ‐
obrigatoriedade de diploma. Desta forma, nesta lógica o treinamento dos ingressantes
costuma acontecer no próprio ambiente de trabalho e seus membros são transitórios.
Já a lógica burocrática compreende um Estado controlador e hierárquico, sendo uma
organização ideologicamente embasada pela valorização do caráter administrativo e
de eficiência.
190
funciona como um mecanismo de reserva de mercado e construção de
credenciais – os diplomas, terceiro elemento – que permitem somente
aos iniciados o ingresso nos grupos profissionais.
As carreiras jurídicas podem ser consideradas profissões por
serem concebidas nestes moldes. Somente indivíduos com o título de
bacharel em direito podem fazer parte destas instituições que ainda
demandam processos de seleção individuais, ou seja, provas e
concursos especiais para que os(as) bacharéis possam se tornar
advogados(as), juízes(as), promotores(as) de justiça, dentre outros
tantos profissionais do mundo jurídico. A história de cada uma destas
carreiras e a forma como constituíram sua autonomia e profissionalismo
– como descrito nos moldes de Freidson – variam entre si, existindo
carreiras mais e outras menos consolidadas6.
A hipótese, que é inclusive confirmada pelos dados, coloca que
as carreiras mais antigas e prestigiadas são também as que possuem um
menor número de mulheres e menor flexibilidade para o crescimento
quantitativo de seu ingresso como também sua presença nos cargos
mais altos. Em dados de 2010 (Benedito, 2011) na primeira instância da
magistratura federal havia 37,01% de mulheres, número que sobe para
46,15% na segunda instância. No caso do TJSP em primeira instância o
número é próximo do TRF com 36,70% mulheres, mas cai
dramaticamente para 3,98% na segunda instância.
Como colocado em Bonelli (2011), o TJSP é uma das mais
prestigiadas instituições jurídicas do país e que mais cedo estabeleceu
sua autonomia e espaço no mundo do direito. Com uma composição
inicial estritamente masculina, branca e elitizada, estes patamares
permanecem ainda hoje na carreira com uma criteriosa seleção de
6 A legitimação das carreiras frente a sociedade também se compõe por um processo
mais complexo e em constante transformação que ocorre desde o surgimento das
carreiras aos dias atuais, havendo um constante diálogo entre as instituições e entre as
instituições e a sociedade. A definição de Andrew Abbott (apud Rodrigues, 1997)
sobre o profissionalismo o descreve como o equilíbrio de um sistema sempre
dinâmico que absorve e regula transformações internas e externas. As profissões
detém o monopólio de um serviço prestado (por exemplo a medicina pelo cuidado da
saúde humana) que Abbott descreve como jurisdição, disputas entre as profissões pelo
monopólio de áreas de conhecimento e atuação. Estas disputas ocorrem
simultaneamente de forma intra e interprofissional (Rodrigues, 1997).
191
membros. Sua capacidade de definição dos patamares de seleção e
promoção explicam a fraca presença feminina, em especial na segunda
instância.
Já no caso da magistratura federal, um processo histórico
distinto com o impacto do executivo sobre ela – a extinguindo durante o
governo Vargas, ressurgindo apenas durante a ditadura militar –, pelas
novas atribuições e transformações a partir da Constituição de 1988 e
um processo de seleção para a segunda instância não autônomo que se
realiza conjuntamente ao executivo, transformam sua composição:
“A maior feminização na segunda instância da Justiça Federal tem
então a ver com a sua menor autonomia de promoções e de controle de
seus membros, resultado tanto de sua dependência do executivo para
as promoções como pela sua tardia consolidação como profissão.
Assim, foi mais fácil a entrada da mulher na segunda instância da
carreira pelo fato de a carreira ter se iniciado em um momento que as
mulheres estavam começando a aumentar de número nos cursos de
graduação e intensificando sua entrada no mercado de trabalho”.
(Benedito, 2011, p.55).
Além do âmbito quantitativo da feminização das carreiras
jurídicas é possível, a partir da construção teórica de Julia Evetts,
aprofundar a análise sobre as construções subjetivas das mulheres no
TJSP e na Magistratura Federal. Para Evetts o profissionalismo se
constitui e se legitima frente a sociedade como um discurso de
competência e altruísmo, delimitando seu espaço como detentor do
monopólio daquele saber e do serviço prestado. Analisando o uso do
termo do profissionalismo no âmbito privado, a autora percebeu como
este tem sido utilizado como disciplina7, definindo e moldando perfis e
corpos desejáveis dentro das instituições.
Sob a perspectiva foucaultiana, os corpos podem ser entendidos
como resultados de um processo histórico e dinâmico que incide sobre
7 “O uso do discurso do profissionalismo em uma grande empresa privada de serviços,
pela gerência, serve para orientar identidades de trabalho, condutas e práticas
‘apropriadas’” (Evetts, 2006, p. 525).
192
eles um efeito de poder8. Conjuntamente aos discursos do gênero, pode
se considerar que as construções identitárias das magistradas articulam
os discursos do profissionalismo com os de gênero que é entendido aqui
a partir das contribuições de Judith Butler que foge de uma análise que
parte do sexo natural onde se impõe uma história de gênero masculina
e feminina e passa a compreendê‐lo como uma identidade construída e
performática em que “a platéia social mundana, incluindo os próprios
atores, passa a acreditar, exercendo‐a sob a forma de uma crença”
(Butler, 2003, p. 200).
O gênero e o profissionalismo se encontram na construção de
uma corporalidade adequada ao mundo jurídico. A ideia é de que
sendo profissões constituídas a partir do masculino, existe um processo
de negociação da diferença que ora busca uma essencialização positiva
de atributos naturalizados como femininos ora os invisibiliza e, dessa
forma, as posturas reservadas e as roupas despidas de qualquer
conotação sexualizada demonstram um processo de invisibilização da
diferença enquanto que a relevância dada às qualidades femininas e o
ganho das carreiras jurídicas com elas realiza uma essencialização
positiva.
3. A inserção das mulheres no Poder Judiciário em Córdoba.
3.1 O tratamento diferenciado
A profissão jurídica foi um campo masculino até princípios do
século XX. Apesar das dificuldades, a presença das mulheres nesta
profissão foi aumentando ao longo do século, sendo hoje significativa a
percentagem de mulheres tanto ingressando na carreira como no
exercício profissional (Kohen, 2005; Bergoglio, 2005).
8 A analítica do poder é um recurso teórico empenhado por Foucault que se distingue
daquela denominada pelo autor como teoria do poder na qual este é proposto como
soberano e fonte da dominação. Na analítica do poder, não sendo concebido como
algo que possui dono ou que pode ser repassado, que possui origem, meio e fim,
entendido a partir como relações que emergem historicamente em meio a negociações
e lutas que se expandem pela sociedade como regimes de verdade que constroem e
moldam os corpos (Foucault, 2003).
193
O ingresso crescente de mulheres no poder judiciário da
província de Córdoba é destacado pelas entrevistadas como um
processo que era evidente já nos anos 80, e cujos obstáculos expressos as
mulheres deveriam superar. Havia certas resistências quanto ao
ingresso massivo das mulheres, e a elas eram exigidos, para serem
admitidas, maiores atributos em comparação com os homens.
Uma depoente conta‐nos que algumas vezes, nos escritórios
jurídicos, a atacavam por se mulher, e esclarece que nem sequer se
costumava dizer: ʺsenhora juízaʺ. Apesar de seu sexo, a estrutura a
identificava como um juiz – homem –, igualando‐a à retórica masculina
e conta, inclusive, que isso estava estampado no próprio carimbo que
ela utilizava:
“Nas palavras escritas me atacavam por ser uma mulher, mas eu nunca lia
essas coisas. Em outras palavras, diziam: ʺVocê, juiz, eu a rejeitoʺ. Porque
nem sequer se usava ʺsenhora juízaʺ. Desde 85 que eu era juiz, eu era
ʺsenhor juizʺ... meu carimbo dizia: ʺDoutora ...ʺ e abaixo dizia ʺsenhor
juizʺ, não dizia ʺsenhora juízaʺ oficialmente. Isso ninguém se lembra, mas
eu o tenho muito presente” [Vogal, Civil e Comercial, PJ Córdoba].
Esta situação dá conta de elementos da estrutura ocupacional
que formalmente impunham a forma masculina nas práticas de todos os
agentes implicados na justiça, independentemente de seu gênero, já que
tradicionalmente essa era uma profissão masculina.
Outra entrevistada, que foi juíza de um tribunal de foro
múltiplo no interior de Córdoba, relatou como foi posta à prova por sua
condição de mulher, sobretudo nos casos que requeriam a atuação da
polícia:
“Foi difícil minha tarefa porque, sobretudo quando eu tinha que lidar
com a polícia, aí sim eu reconheço que tornavam a questão difícil pra
mim. Porque, por exemplo, eu tinha uma violação e desde o médico
legista, que escrevia os relatórios em termos vulgares... Então o que
eles queriam era... Ainda por cima, se eles me viam andando com um
vestidinho branco nessa época, digamos... era como um desgaste, um
jogo de provocações, que queriam não sei... Eu sempre tive um caráter
muito forte, não sou uma pessoa autoritária, mas eu sempre fui muito
firme, e para a população isso lhes oferecia muita segurança”
[Múltiplo, Juiz Jurisdição, PJ Córdoba].
194
O tratamento dados às mulheres se assemelha ao analisado por
Boigeol (2005) na França. A investigadora argumenta que lá, um
primeiro acesso das mulheres à magistratura, sobretudo nos postos
mais altos do poder judiciário, foi entendido como um atentado ao
modelo tradicional familiar e aos atributos constitutivos da profissão,
bem como uma concorrência em relação à qual os juízes estavam
plenamente conscientes de sua fragilidade. Embora todos os casos
expostos sejam de mulheres com mais de 50 anos de idade, também
algumas mais jovens, cuja idade gira em torno dos 30 anos, percebem
que as mulheres continuam sofrendo algum preconceito de gênero em
relação ao tratamento dado a elas por seus chefes.
O tratamento diferenciado dado às mulheres também foi
observado em tribunais federais de Córdoba, e uma das entrevistadas
relatou como, no momento de investigar as causas de direitos humanos,
foram subestimados por sua condição de mulheres, o que não significou
que não persistiram com seu trabalho.
3.2 Regime de trabalho e práticas que consolidam as marcas de gênero
As mulheres destacam que a administração judiciária tem uma
estrutura profissional que lhes permite conciliar as exigências do
trabalho com as da vida familiar, algo distinto do que acontece no
campo do exercício da advocacia. Nos tribunais, as mulheres encontram
um horário fixo que oscila entre 6 a 8 horas diárias, conforme sejam
contratadas ou funcionárias públicas, respectivamente, ademais há
regime de licenças, férias, o que incentiva a inserção das mulheres nesse
campo. Assim o percebem as próprias entrevistadas:
“As empregadas contratadas que começam a trabalhar valorizam
muito poder levar, digamos, adiante um projeto de família com filhos,
gravidez, com um horário que é bastante acessível para as mulheres,
porque as duas da tarde as contratadas já podem ir para sua casa (as
funcionárias públicas, as 4 da tarde), elas tem 3 meses de licença
maternidade, tem duas férias por ano, têm todo o mês de janeiro livre,
oito dias úteis em julho, tem licença para amamentação, e também 20
dias ao ano por adoecimento familiar, ou seja, tudo isso elas tem, e é
195
muito respeitado, se respeita muito a licença maternidade” [Juiz, Civil
e Comercial, PJ Córdoba].
Mas, embora a estrutura ocupacional da administração
judiciária leve a que as mulheres busquem inserir‐se neste campo de
trabalho, o sistema de licenças muitas vezes age contra elas, já que
alguns juízes veem isso como um problema para o desenvolvimento do
trabalho dos tribunais.
“a licença maternidade e a licença amamentação causam um impacto
muito grande no tribunal, porque não se cobrem as licença de
maternidade, então comigo aconteceu, por exemplo, no final do ano
passado, desde outubro e novembro até o começo de março deste ano,
ter duas pessoas a menos para trabalhar... Isso é muito problemático e
pode levar, indiretamente, à discriminação de juízes que não querem
empregar mulheres” [Juiz, civil e comercial, PJ Córdoba].
Por exemplo, esta mesma juíza conta o caso de uma empregada
que é uma mãe solteira com um filho, que não conta com uma rede
social familiar em Córdoba porque é de outra província. Ela teve que
sair de um tribunal do qual pediu transferência porque sua chefa se
incomodava cada vez que ela faltava quando seu filho estava doente.
Por outro lado, as entrevistadas notam que, em geral, os homens
tendem a ser cada vez menos contratados; observam que, como
contratados, os homens são muito poucos. As mulheres que trabalham
nos tribunais da província relatam que a pouca presença de homens faz
com que, muitas vezes, eles sejam mais solicitados do que as mulheres,
inclusive há casos em que são solicitados especificamente homens.
“Há muitos tribunais civis onde toda a equipe, desde a secretária até o
escrevente, são todas mulheres. Nós aqui temos um assistente‐
secretário homem, contratados nós temos um empregado efetivo, e
dois estagiários homens... somos o tribunal que mais homens tem. Sei
de um tribunal no qual o juiz é homem, e que dizem, extra‐
oficialmente, as pessoas têm dito que ele quer que seu tribunal venha a
ser integralmente composto por homen” [Juiz, Civil e Comercial, PJ
Córdoba].
196
3.3 Diferenciação do trabalho por gênero
A segregação horizontal é um processo que tem a sua história.
Se rastreamos o que contam as mulheres que ingressaram em tribunais
da província há mais de 20 anos, observamos que havia obstáculos
explícitos para o acesso a determinadas foros. Em geral, as mulheres
não eram nem admitidas nem desejadas no âmbito do direito penal ou
do trabalho, essas eram matérias reservadas aos homens. Eram muito
poucas as que entravam ali. Havia uma segregação horizontal que
vedava às mulheres trabalhar no campo da justiça penal, o que por sua
vez incidia em uma segregação vertical, como se deduz da citação
acima. Assim, por seu gênero as mulheres eram excluídas dos âmbitos
de trabalho considerados não adequados para elas. Um desses espaços
eram os tribunais criminais, onde se exerce um poder muito importante,
o exercício da coerção física sobre os cidadãos. As justificativas
apresentadas eram que ali não colocavam mulheres em função do tipo
de crimes que tratava, principalmente os que afetavam a integridade
sexual. Isto significa que os delitos nos quais as vítimas geralmente
eram mulheres ficavam nas mãos dos homens, sob sua decisão, sendo
as mulheres excluídas desse âmbito do poder.
Algumas mulheres que ingressaram em foros específicos como
civil ou de menores, enviadas a eles apesar de seu interesse por outros
ramos, em geral permaneceram ali, porque começaram a se interessar
ou a gostar. Além do mais, ter trajetória num mesmo foro é
conveniente, já que é um antecedente pra ascender dentro dele. Embora
hoje não haja restrições institucionais para que as mulheres ingressem
no foro penal, a percentagem de homens neste foro ainda é maior,
sobretudo nos cargos de magistrados e funcionários. Este limite
explícito que existia, já não existe na estrutura institucional, inclusive
quando há vagas no foro penal é muito possível que elas as ocupem. Os
concursos para ingressar na polícia judiciária têm permitido e permitem
que muitas mulheres entrem nesse setor. Todavia, as entrevistadas
apontam que trabalhar na penal continua sendo mais difícil para as
mulheres em função das condições de trabalho e, em alguns casos, isso
implica que as mulheres peçam transferência para outras jurisdições.
197
Como vemos hoje, as mulheres participam cada vez mais em
foros tradicionalmente masculinos. Mas se observa ainda uma
segregação horizontal acentuada entre os âmbitos de civil e comercial
por um lado, e penal de outro. Os tribunais do trabalho, embora tenham
sido um espaço de acesso restrito para as mulheres, hoje são um foro
que se destaca pela forte presença delas.
Outra questão que surge no relato das entrevistadas se refere à
diversidade de condições de trabalho que existem nos diferentes foros
dentro dos tribunais. Ao comparar os foros de civil com os de penal,
observam que os de civil são mais precários e hostis a elas que os de
penal.
“as condições de trabalho na civil são muito duras, porque a carga de
trabalho é significativamente mais pesada que em qualquer outro foro,
é impressionante a quantidade de causas que se movem por dia, é
necessário um trabalho muito mais dedicado, as condições de
infraestrutura dos tribunais civis são espantosas em relação aos
tribunais penais, que têm muita comodidade, tem ar condicionado,
cada funcionário tem um computador, um telefone, um escritório, um
espaço próprio que aqui não tem... aqui às vezes não tem um lugar
onde colocar um estagiário, aqui todo mundo fica amontoado, eu
tenho um escritório muito pequeno, às vezes juízes têm um escritório
maior, ás vezes tem dois funcionários trabalhando no escritório do juiz
porque não tem espaço” [Juiz, Civil e Comercial, PJ Córdoba].
Por outro lado, o tratamento entre empregados e advogados é
muito diferente na civil e na penal. Alguns entrevistados apontam como
isso parece influenciar os funcionários do sexo masculino, que preferem
migrar para a penal, por exemplo, porque não suportam os maus tratos,
enquanto as mulheres tendem a ficar.
Ademais encontramos os típicos argumentos que apontam para
a inserção diferenciada de homens e mulheres dentro do poder
judiciário em função de uma questão de afinidades distintas, quase
natural entre os sexos. Essa afinidade é expressa por outra das
entrevistadas que, embora observe que as mulheres hoje estão em todos
os âmbitos do poder judiciário, em sua opinião a penal é para os
198
homens, já que as mulheres, por sua sensibilidade costumam ficar mais
expostas nesse lugar.
Também nos tribunais federais de Córdoba a diferenciação por
foro persiste, embora sua marca não seja tão profunda como era há
vinte anos atrás. Uma das entrevistadas conta o caso específico de sua
corte, onde a juíza é mulher, o que permitiu que as mulheres
ingressassem no tribunal e estivessem claramente representadas em
todos os foros.
“desde quando eu entrei já eram todas mulheres na Civil e, em Penal
eram todos homens, há 20 anos. E em alguns tribunais isso têm se
mantido, ou têm ingressado mulheres mas continua tendo mais
homens que mulheres. Agora, em um fórum, a partir do momento que
a juíza é mulher, que é desde... de 91, ou seja... bem, aí se tem invertido
e cada vez mais mulheres são empregadas. Aqui na Secretaria Penal
predominam mulheres e em todo o fórum predominam mulheres”
[Secretaria Criminal, Tribunal Federal, Córdoba].
Como sucede nos tribunais provinciais, aponta que as condições
de trabalho na penal podem incidir numa maior presença de homens, já
que requer mais dedicação ou disponibilidade de tempo. Mas, para elas,
as diferenças de gênero em penal não se expressam como nos juizados
provinciais em função do tipo de delitos que tratam.
“Sim, mas na parte federal nem tanto. Talvez a questão de existir mais
homens na penal seja porque eles têm que trabalhar no período da
tarde, às vezes, na penal. Porque na província, na penal, chegam
alguns assuntos, alguns crimes, que a mulher mesmo trata de... evitar.
Veja, por exemplo, estupros, homicídios, você tem todos esses arquivos
com fotos, e muitas mulheres por aí dizem... Não, não tenho vontade
de me meter a investigar esse tipo de coisa, ou lidar com a polícia e
tudo isso, que é bem... por isso que as mulheres tratam de, de se
afastar. Aqui já não é tão duro, porque as causas que nós temos são por
drogas, vem os consumidores, não, não é... ou fraudes contra o Estado
nacional, ou por... adulteração de documentos...” [Secretaria Criminal,
Tribunal Federal, Córdoba].
199
3.4 Diferenciação de gênero nos níveis de ocupação
A distribuição por gênero nos diferentes níveis do sistema
judiciário é observada pelas entrevistadas, embora nem todas o
percebam como um processo produtor de desigualdades. O caso a
seguir põe em manifesto a diferenciação por gênero em termos de
níveis de ocupação:
“Agora, o que eu posso te dizer, o que eu percebo, por exemplo, nos
foros civis, há tribunais que têm maioria de empregadas mulheres,
poucos homens, mas há homens... há uma maioria de mulheres
empregadas, mas a nível de decisão, digamos, no nível hierárquico há
mais homens do que mulheres. Ou tantos homens quanto mulheres.
Ou seja, também poderíamos interpretar que nas posições de decisão e
de responsabilidade existem mais possibilidades para os homens do
que para as mulheres, porque não se mantém o mesmo percentual das
categorias mais baixas nas mais elevadas” [Juiz, Civil e comercial, PJ
Córdoba].
Por outro lado, o grau de segregação vertical tem relação com o
tipo de foro, o que quer dizer que se intersecta com a segregação
horizontal. Assim, na esfera penal, são muito poucas as mulheres
ocupando o lugar de representantes de Câmara, enquanto que uma
representante do foro de família observa o contrário em seu campo:
“Mas veja nas câmaras como está equiparado, nesta câmara são duas
mulheres e um homem, e na câmara superior são dois homens e uma
mulher. E nos tribunais não, nos tribunais há mais mulheres, havia um
homem que se foi, e agora vem outro e o outro que estava era meu
companheiro. Mas se nos Tribunais de Família há uma marcada
predominância feminina, o notável é que nas câmaras estamos
empatados” [Família, Vogal, PJ P. J. Córdoba].
As mulheres que dizem não perceber segregação vertical
costumam citar quase sempre o caso de mulheres que hoje são membros
do Tribunal Superior de Justiça como um paradigma da igualdade e
prova do acesso das mulheres aos postos mais altos do poder judiciário.
O acesso das mulheres aos tribunais superiores é uma imagem forte,
200
que impõe uma percepção de igualdade para todos os escalões do
poder judiciário, quando na realidade isso não ocorre, já que persistem
os processos de segregação vertical.
Se tomarmos a profissão jurídica como um todo, na qual se
distinguem dois âmbitos – o poder judiciário, por um lado, e o exercício
da profissão, de outro – observamos que a retórica – ligada ao poder
simbólico de definir as coisas – tem força na definição dos locais de
trabalho que por um lado devem ocupar as mulheres e que, por outro,
elas decidem ocupar, que são sobretudo lugares compatíveis com a
divisão sexual do trabalho. Nesse sentido os tribunais se apresentam
como um campo de trabalho específico desta retórica, cada vez mais
acessíveis através do sistema de concursos, como é o caso dos tribunais
de Córdoba. É muito destacado o discurso de que as mulheres vão para
o Judiciário porque deste modo lhes é possível ter uma família. Isso
mostra a persistência da tradicional divisão sexual do trabalho que
repercute tanto na construção da identidade profissional e de gênero
das mulheres como na estrutura da divisão dual do trabalho jurídico.
Seguimos notando os processos de diferenciação que, apesar
das mudanças, tornam a se reproduzir. Hoje, embora nos campos do
poder judiciário e penal haja mais mulheres, não significa que a
diferenciação se desvaneça em prol da equidade, mas que há novos
processos de diferenciação. Consequentemente, o Judiciário se feminiza,
e ademais o peso recai sobre as mulheres, já que os homens começam a
ganhar vantagens por serem cada vez mais escassos e, em
consequência, mais solicitados dentro do espaço dos tribunais.
O profissional se identifica com a abstração, a igualdade e
neutralidade no campo do trabalho sem aperceber‐se dos vieses de
gênero que se evidenciam nos dados quantitativos que enfatizam a
segregação. Este viés de gênero mostra que a direção que homens e
mulheres dão a suas carreiras profissionais e a seus interesses e
compromissos profissionais está condicionada pela divisão sexual do
trabalho, tanto no âmbito da profissional como da vida privada.
Em uma sociedade na qual se põe ênfase no indivíduo, mas
onde as transformações econômicas estruturam o mundo do trabalho,
as estratégias dos agentes assumem diferentes expressões. Temos hoje
uma profissão jurídica que está incorporada no mundo do trabalho
201
mais amplo no qual se registra uma desigualdade de gênero nos
rendimentos auferidos, ademais do impacto negativo que as condições
informais de trabalho têm sobre as mulheres, e o campo da profissão
não é alheio a essas vicissitudes. Especificamente, tanto as mudanças
estruturais da economia como as reformas do poder judiciário ocorridas
nas últimas décadas implicaram uma reorganização do trabalho jurídico
(Bergoglio, 2005). O impacto dessas mudanças significou o progressivo
assalariamento da profissão e, nesse sentido, muitos profissionais são
absorvidos pela administração judiciária, e muitos outros pelas
empresas jurídicas (Bergoglio, 2005; Sanchez, 2005). Neste contexto, as
mulheres valorizam, no momento de tomar decisões chaves em sua
carreira, a necessidade de segurança e a importância de um salário fixo
ou de licenças que sejam respeitadas. Estas escolhas impactam
diferencialmente sobre as mulheres: aquelas incorporadas pela justiça
destacam a importância do salário fixo, enquanto que no campo do
exercício da profissão afirma‐se que os rendimentos podem ser muito
mais altos.
4. A percepção do gênero entre juízas estaduais e juízas federais no
interior do estado de São Paulo
Para a análise das percepções subjetivas por parte das
operadoras do direito brasileiras, foram selecionadas entrevistas com
magistradas no interior de São Paulo. Os depoimentos são de três juízas
federais (TRF3), Ana Alice, Mariana e Carolina e duas juízas estaduais
do TJSP, Juliana e Marcela. As magistradas atuam nos municípios de
Laranjeiras, Rio das Pedras e Água Vermelha, todos localizados na
região central do estado9. As entrevistas se focaram na percepção destas
magistradas sobre a participação das mulheres nas carreiras e nas
principais barreiras que estas podem vir a enfrentar por serem mulheres
e ocuparem uma posição de poder e prestígio. Nas respostas é possível
observar: o impacto da maternidade e dos cuidados com a família na
articulação entre a vida pessoal e a vida profissional, a separação do
9 Com o compromisso de manter a identidade das entrevistadas preservadas, seus
nomes e os nomes das cidades são fictícios.
202
preconceito sofrido pelas mulheres na carreira do que ocorre na
sociedade como um todo e a essencialização de características
masculinas e femininas que afloram na atuação profissional.
Das cinco entrevistadas três são mães, porém a maternidade
aparece na fala de todas como a principal dificuldade enfrentada pelas
mulheres na magistratura. Nos discursos é possível resgatar esta
questão a partir de três falas: a primeira que se coloca a partir da intensa
tarefa em articular as longas jornadas de trabalho com o cuidado da
família, a segunda que resgata a necessidade de uma vida social mais
restrita e, por fim, o impacto da maternidade como um empecilho que
dificulta promoções e o aprofundamento dos estudos.
Ana Alice é juíza federal e na época da entrevista estava com 44
anos, é mãe de duas filhas e sua primeira formação é como engenheira.
Para ela, articular trabalho, maternidade e estudos foi sem dúvida seu
maior enfrentamento como magistrada e atualmente com doutorado na
área do direito, um livro publicado e a consequente estabilidade
profissional, cumpriu grande parte de suas expectativas, mas ainda
assim entende como o maior impedimento à ascensão na magistratura a
maternidade:
“Chega um determinado nível, vamos dizer, quando você já é juiz
titular, as perspectivas são um pouco limitadas, porque o acesso aos
Tribunais é bem difícil, tem o componente de certa forma político, e
também tem que conciliar o trabalho com a ascensão profissional, de
modo que tudo isso é muito dificultoso no dia a dia, porque se você se
concentra no trabalho e na família, de uma certa forma, sobra pouco
tempo para você, vamos dizer, se dedicar a algumas atividades que
talvez sejam necessárias para você subir na carreira, como fazer outros
cursos que isso seria interessante, só que não há tempo muitas vezes
suficiente para tudo isso” [Entrevista com Ana Alice, magistrada
federal].
Juliana é uma magistrada estadual que desde a infância, por
influência do pai também juiz do TJSP, sonhava em ser juíza e, para
tanto, organizou toda a sua vida em direção ao direito e mais
especificamente ao tribunal. Atualmente com 42 anos, é juíza cível,
diretora do fórum e mãe de um garoto de dois anos, o que torna sua
203
vida bastante atribulada. Sobre a questão das dificuldades na carreira,
aponta a maternidade da seguinte forma:
“Eu tenho um filho pequeno, até retardei muito a minha, o meu
ingresso na vida materna, por conta da profissão, né? Depois de quinze
anos de magistratura que eu tomei coragem e engravidei, até porque
havia uma questão biológica na minha vida... eu tava com quarenta
anos e eu não tinha mais tempo para retardar a maternidade (...). A
gente, mulher ainda, a questão complica bastante... você é profissional,
você é mãe, você é esposa, você tem funcionários para administrar,
você tem uma casa pra administrar, por mais que você tenha pessoas
que te ajudem o encargo fica todo sobre a gente, né?” [Entrevista com
Juliana, magistrada estadual].
Da mesma forma esta questão aparece no depoimento de
Marcela, magistrada estadual e mãe de dois filhos. A maternidade é
também colocada como um trabalho a mais e especialmente feminino:
“Dentro da carreira em si, dentro da magistratura em si, eu nunca
enfrentei nenhuma dificuldade pelo fato de ser mulher, eu acho que a
condição de mulher nos traz dificuldades em relação à administração
do seu tempo pessoal, que eu vejo os colegas homens, eles muitas
vezes deixam toda a administração doméstica e os cuidados com os
filhos exclusivamente com a esposa, e por mais que o meu marido
divida comigo todas essas atribuições, muitas vezes as crianças até por
um apego decorrente da gestação, da amamentação, eles querem muito
mais a mãe do que o pai, a criança muitas vezes quando chora quer a
mãe e tudo isso traz uma sobrecarga pessoal significativa” [Entrevista
com Marcela, magistrada estadual].
Carolina, na época recém ingressa na magistratura federal e com
apenas 29 anos, era casada e não tinha filhos, uma escolha tomada
justamente pela dificuldade de articular a maternidade com a longa
jornada de estudos para o ingresso no judiciário e depois por conta da
alta movimentação dos recém‐ingressos:
“... quanto mais qualificada é a mulher mais difícil fica para ela ter
filhos, principalmente antes dos trinta anos, mas do meu concurso só
204
tem uma mulher com filhos, tem uma outra que engravidou agora o
bebê nasce acho que até agora novembro, dezembro, mas a maioria
acaba tendo filhos mais tarde. A dificuldade para entrar na carreira é
um dos fatores, não existe, é muito complicado estudar o necessário
para passar e ficar grávida ou cuidar de uma criança, isso é muito
complicado. O fato de ter que mudar, ou seja, você vai, tem gente que
foi para Ponta Porã, para Corumbá, para Dourados, para Jales e a
família não. Então isso é uma outra dificuldade, mas não é um fator
impeditivo, no máximo o projeto fica um pouco adiado” [Entrevista
com Carolina, magistrada federal].
Para Mariana, que é divorciada, a maternidade aparece como
uma escolha delicada. Escolheu não ter filhos e pesando diversos
fatores concluiu ter tomado a melhor decisão.
Nos estudos que relacionam trabalho e gênero no Brasil e
internacionalmente, a relação entre o papel social da mulher sobre os
cuidados da família e a consequente pressão no ambiente de trabalho
são postos em análise. Hochschild (apud Bonelli, 2004) mostra como as
mulheres sofrem não uma dupla jornada de trabalho na casa e no
trabalho, mas tripla. A primeira jornada de trabalho seria aquela
realizada no escritório em que deve haver uma dedicação máxima para
a realização de um serviço bem feito, a segunda seria feita em casa onde
se deve demonstrar ser uma boa mãe, esposa e dona‐de‐casa enquanto a
terceira e última jornada de trabalho se compõe pelo trabalho emocional
que conecta subjetivamente as duas primeiras e constrói um sentimento
de satisfação.
“O trabalho das emoções feito principalmente pela mulher para lidar
com a dupla jornada de trabalho, e o custo emocional que ele
representa tanto na negação do problema quanto nas separações
conjugais que causam, tornam‐se uma terceira jornada de trabalho na
vida cotidiana” (Bonelli, 2004, p. 362).
O controle da vida pessoal pelas magistradas se intercala com
estas questões indo até a necessidade de uma vida menos
movimentada. Isso se relaciona tanto com a necessidade da própria
205
carreira que as coloca no patamar de figuras públicas10 como pelos
compromissos da maternidade.
“Quando meu filho dorme é onze horas da noite e eu tô morta e eu
quero dormir (risos) e aqui no fórum não dá tempo de nada a gente
realmente é uma constante, a gente observa que a maioria dos juízes
não tem, não conseguem ter uma vida social muito intensa e é assim
comigo também” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual].
O profissionalismo como um discurso, no sentido de Evetts, serve
para analisar como condutas e corpos são moldados nas instituições. Isso
se inicia desde os bancos escolares, se aprofunda nos processos de seleção
que separam os adequados daqueles que não o são, vai até o cotidiano do
trabalho com as demandas sobre posturas sóbrias, atitude reservada e
vestimentas formais. As origens do judiciário como homogeneamente
branco, masculino e de elite repercute até os dias atuais com uma
presença feminina de origens privilegiadas – como é o caso das
entrevistadas – e as roupas que excluem qualquer possibilidade de
sensualidade desloca seus corpos para o âmbito masculino.
Como operadoras do direito são sujeitos ativos e as vestimentas
sóbrias que encobrem os corpos a partir do corte “correto” das saias e
dos decotes conservadores e dos tecidos sem transparências e largos o
suficiente para não marcarem os corpos realizam esse deslizamento
entre o passivo e o ativo. Como Butler coloca, o gênero existe em sua
corporalidade pela performance, sendo possível se observar nos corpos
como as negociações da presença feminina nas carreiras jurídicas
ocorrem.
Além dessas questões ainda existem processos de
essencialização positiva de características naturalizadas como femininas
como é possível ver nos seguintes depoimentos:
“...acho que nessa carreira não tem diferença entre homem ou a
mulher. Tem que ter esse perfil de isolamento, de gostar de leitura, e
ficar sozinho, muito tempo de concentração lendo, não sei se isso é
10 O discurso é de que ao fazerem parte do judiciário tornam‐se algo como modelos de
conduta tanto pelo respeito à instituição da qual fazem parte como pela posição que
ocupam de julgar sobre a lei.
206
uma característica que predomina em mulheres, talvez outras
características não existam tanto em mulher... essa coisa da
agressividade policial de investigar, mas é mais fácil encontrar
indivíduos que tenham esse perfil, homens, mas aqui não sei se mais
mulheres gostam disso, eu acho que tanto faz se é homem ou mulher
não dá diferença nenhuma” [Entrevista com Mariana, magistrada].
“Na verdade a gente ouve muito elogio até, falando que as mulheres
que são da magistratura, elas são mais humanas, elas são mais
cuidadosas, são bem mais cautelosas, mais decididas, a gente sempre
ouve isso, pelo menos eu sempre ouço isso como um elogio e nunca
senti preconceito e assim nunca eu acho que às vezes o preconceito a
gente que cria do outro para com você né? Eu acho que tem muito
disso, uma coisa que eu não fico puxando “Ah, então é porque eu sou
mulher, por isso que o senhor não gostou da minha sentença?”
Entendeu? Sabe, não tinha isso na cabeça, então eu nunca senti
diferença. Eu acho... que a gente também não é homem, mas eu sempre
recebi assim, muitos elogios, dos advogados e, hoje o universo tá muito
feminino e então é, bastante comum ter uma juíza, duas advogadas e
às vezes duas mulheres como parte, então hoje tá muito comum isso
já” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual].
“Eu acredito que a sensibilidade feminina realmente a diferencia do
trabalho, eu vejo que os homens na carreira jurídica eles entendem,
tomam decisões e atuam de uma forma muito mais fria e prática do
que a mulher, resolvendo aquele problema que se propõe naquele
momento, isso a maioria, enquanto que a mulher muitas vezes procura
ver o que tem por trás, principalmente nas questões de família”
[Entrevista com Marcela, magistrada estadual].
Para finalizar, outra fala que se repete é sobre a não existência de
qualquer tipo de preconceito dentro das instituições, a partir do
argumento de ser uma instituição intelectualizada que demanda de seus
membros o nível universitário. Sobre isso a seguinte fala é um exemplo:
“... acho muito proveitosa que seja objeto de estudo todo esse
desenvolvimento da mulher na carreira [no caso as carreiras jurídicas]
porque, embora eu acredite que, que nem eu disse, que não é objeto de
preconceito o trabalho da mulher na carreira jurídica, eu acredito
207
também que isso não exista na maior parte das outras áreas, a mulher
ainda hoje é vítima de muito preconceito na sociedade (...) tudo isso
demonstra o quanto nossa sociedade ainda precisa se desenvolver
muito, para oferecer a mulher a dignidade que merece na sociedade”
[Entrevista com Marcela, magistrada estadual].
Deve se levar em consideração como a participação das
mulheres nas carreiras jurídicas é sutilmente negociada no cotidiano do
fórum de justiça e na vida pessoal e profissional dos membros destas
carreiras. A palavra sutil é aqui utilizada, pois remete ao fato de as
percepções de gênero, da participação feminina, da existência ou não de
preconceitos e mesmo na definição do que significa ser um bom ou uma
boa profissional estão profundamente entrelaçadas com ideias
naturalizadas sobre quem são os homens e quem são as mulheres, o que
fazem, como sentem e como trabalham.
A presença feminina pode ser tanto vista como um ganho para o
mundo jurídico a partir de uma essencialização positiva de
características femininas dadas como naturais como também pode ser
apagada a partir dos trajes escolhidos que escondem qualquer sinal de
passividade, fragilidade ou sexo, que se encontram culturalmente
imbricados ao feminino. O discurso do profissionalismo permeia estas
negociações construindo e negociando, constantemente, performances
de gênero e construindo subjetividades que remetem ao sucesso e que,
por conta de uma origem exclusivamente masculina, acabam por serem
constituídas a partir de características também tipicamente colocadas
como masculinas, como a força e a capacidade de decisão.
“Então você ser uma boa juíza sem deixar de ser mulher, porque a
questão é essa, vamos dizer, não confundir os papeis, porque na
verdade um papel é um papel profissional com o outro lado seu
pessoal, e há quem confunda ou que exagere muitas vezes. Então
tradicionalmente talvez uma vocação mais masculina. Acho que assim,
nesse sentido sim, porque justamente o homem que está mais
acostumado a tomar certas decisões que causam impacto, ou que ele
mesmo decide do modo dele, enfim, então essa dificuldade ela existe,
não vou dizer que não exista, mas você se acostuma a lidar com isso,
você se acostuma a decidir, a ter que tomar decisão, muitas vezes que
208
contraria interesses. Então você sabe que não dá para agradar todo
mundo, então é uma questão também de costume, de experiência”
[Entrevista com Ana Alice, magistrada federal].
Em seu trabalho sobre as mulheres nos esportes equestres,
Miriam Adelman (2011) se depara com uma situação semelhante em
que mulheres passam a integrar esportes de origens exclusivamente
masculinas, nos quais o sucesso se baseia em características como a
força e o vigor físico. Como coloca no texto, a partir da revisão
bibliográfica sobre o tema e sua articulação com o objeto de pesquisa, “a
atividade esportiva feminina era inicialmente terreno para a expressão
de sujeitos femininos rebeldes e desobedientes” (Adelman, p. 936),
demonstrando o impacto da chegada de sujeitos vistos culturalmente
como frágeis, delicados em um mundo onde a força e mesmo a
agressividade são dados como necessários.
Utilizando‐se do conceito de Sedgwick (apud Adelman, 2011) de
homossociabilidade, a autora coloca como as identidades são negociadas
em contextos de sociabilidade masculina. Intercalado a esses espaços de
sociabilidade vêm a tona noções arraigadas de feminilidade
relacionadas ao frágil e aos cuidados do lar que afastam as mulheres
destes espaços, vistos como incompatíveis com suas naturezas. A
sociabilidade nestes esportes é permeada por formas de interação
masculinas em que existe certa dificuldade e uma constante necessidade
de prova das mulheres que pretendem fazer parte deste circuito.
No caso das mulheres nas carreiras jurídicas públicas o impacto
de sua presença no direito já parece ter passado deste estágio inicial,
que é possível ser analisado como tendo ocorrido ainda no século XX.
Porém, atualmente, ainda é possível perceber como a presença feminina
é ainda motivo de conflitos e necessita ser interpretada e negociada
pelos membros das instituições, tanto homens como mulheres. Além
das manifestações discursivas é possível perceber como os trajes
funcionam como uma ferramenta subjetiva assim como também a
essencialização positiva que busca adequar as mulheres ao que se
compõe como uma atuação profissional de excelência.
209
5. Considerações finais
As abordagens teórico‐metodológicas escolhidas pelas
pesquisadoras para a análise dos dois contextos – o argentino e o
brasileiro – são entre si distintas mas é possível ainda assim perceber
aproximações entre os dois trabalhos. Nos dois casos a questão da
maternidade e dos cuidados da família aparece como um dado de
grande relevância sobre a participação da mulher nas carreiras jurídicas.
Culturalmente associadas aos cuidados domésticos, como profissionais
no direito acabam por acumular o trabalho profissional com aquele
realizado em casa. Tanto no caso do Brasil como no da Argentina, as
carreiras públicas aparecem como uma escolha empregatícia mais
adequada àquelas que buscam constituir família por se estabelecer em
horários determinados e pela possibilidade de licenças.
No caso da segregação horizontal, observou‐se em Córdoba que,
até cerca de vinte anos atrás, determinados espaços de trabalho estavam
restringidos e outros eram criados para as mulheres, por decisões
provenientes da própria instituição do poder judiciário. Atualmente, se
registra maior participação das mulheres em matérias que eram
tradicionalmente masculinas, ainda que subsista marcada segregação
horizontal entre os âmbitos de civil e comercial, por um lado, e penal
por outro. Embora possam aceder aos espaços vinculados à
administração de penas, ainda se evidenciam alguns obstáculos que
incidem no desempenho das mulheres nestes espaços. Já no trabalho de
Benedito no Brasil esta questão não aparece com grande visibilidade
principalmente por conta do foco escolhido para as entrevistas com
magistradas da justiça federal e da justiça estadual. Talvez se houvesse
uma pesquisa no caso da advocacia a situação poderia ter sido
diferente.
No caso da segregação vertical, o trabalho de Benedito
demonstra uma inequidade bastante dramática no número de homens e
mulheres nos níveis mais altos das magistraturas em foco, que, em sua
pesquisa, é explicada pelo insulamento institucional dessas carreiras
que acabaram por construir um perfil homogêneo de membros que
ainda hoje se faz presente – apesar de estar se transformando. A
segregação vertical por gênero se apresenta em todos os foros
210
analisados na Argentina. A implementação de sistemas meritocráticos
pode ter efeito positivo para a redução das desigualdades de gênero,
porém tais sistemas são mais exigentes com as mulheres, inseridas
numa sociedade na qual persiste a divisão sexual do trabalho, o que faz
com que as diferenças de gênero se estanquem no interior de uma
profissão na qual a proporção de graduadas é cada vez maior.
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213
214
Participação popular e legitimidade judicial:
sobre o julgamento por júri
María Inés Bergoglio1
1. Introdução
Como destacou Tocqueville, os países que têm chamado os cidadãos
comuns para compartilhar as responsabilidades judiciais, se
caracterizam pelo alto reconhecimento popular da magistratura. Resta‐
nos perguntar, entretanto, até onde estes efeitos são registrados nas
nações que, em contextos marcados pela insatisfação com o trabalho
judicial, têm incorporado recentemente a participação leiga na justiça.
Este artigo explora as relações entre a participação leiga na
administração da justiça e legitimidade judicial em Córdoba, na
Argentina, onde os tribunais mistos têm sido implantados desde 2005
para o julgamento de alguns crimes aberrantes. Para isso são
empregadas diversas fontes empíricas, dentre as quais se destacam os
dados de pesquisa da população geral obtidos em Córdoba em 1993 e
2011.
Embora já exista evidências de que aqueles que têm atuado como
jurados melhoram suas opiniões sobre o funcionamento da justiça, por
enquanto o caráter limitado da experiência cordobesa sugere que seus
efeitos sobre a legitimidade judicial na cidadania geral podem ser muito
fracos ainda.
Nos últimos anos, diversos países ‐ Japão, Coreia, Espanha, Croácia,
Rússia, Argentina ‐ têm introduzido a participação de leigos em seus
sistemas judiciais, muitas vezes no contexto de reformas orientadas
para aprofundar os processos de democratização. É necessário
interrogarmo‐nos sobre as consequências destas inovações
institucionais, já que a presença dos cidadãos comuns entre aqueles que
1 Faculdade de Direito, Universidade Nacional de Córdoba. Agradecimentos ao apoio
para este projeto outorgados pela Secretaria de Ciência e Técnica ‐ Universidade
Nacional de Córdoba
215
tomam decisões legais significativas pode afetar o sistema legal como
um todo.
A contribuição dos sistemas de júri à consolidação das formas
democráticas de governo tem sido extensamente discutida2. Em
primeiro lugar, foi salientado que constitui uma forma de participação
cívica. O júri provê uma oportunidade institucionalizada para que os
cidadãos se reúnam, deliberem e tomem decisões legalmente
significativas. Transfere abertamente poder aos cidadãos e destaca o
lugar que ocupam no Estado.
Aqueles que promovem a participação dos cidadãos comuns nos
procedimentos penais destacam também que a instituição cumpre uma
função global de controle. A presença dos leigos nos tribunais penais
contribui para garantir que os veredictos sejam consistentes com as
ideias de moralidade e justiça vigentes na comunidade, e promove a
equidade dos procedimentos (Machura, 2003). Lempert (2007) destaca
que, de todo modo, há uma melhora na transparência das ações dos
juízes.
De fato, várias iniciativas recentes para instaurar o julgamento
por júri são registradas em contextos marcados pela desconfiança na
justiça. Assim, Klijn & Croes (2007) informam sobre uma iniciativa para
incorporar a participação cidadã nas decisões cidadãs, que surgiu na
Holanda em meio a um clima de descontentamento popular pela
excessiva clemência dos juízes. Enquanto isso, Fukurai e Krooth (2010)
relatam uma proposta para instaurar o júri popular no México, inserida
num conjunto de medidas para reformular a administração da justiça,
considerada vulnerável à corrupção relacionada ao tráfico de drogas. A
experiência de tribunais mistos em Córdoba, Argentina, começou
também num contexto de insatisfação com o trabalho judicial3. Estas
iniciativas têm em comum o fato de que a participação dos leigos é
concebida como uma forma de controlar o poder dos juízes, no contexto
de uma situação caracterizada pela insatisfação com o trabalho judicial
ou a falta de confiança na justiça.
2 Para uma revisão detalhada dos efeitos esperados do julgamento por júri, ver (Hans
2008; Voigt 2008).
3 Na sessão 5 se explica com maiores detalhes a introdução do julgamento por júri em
Córdoba, Argentina.
216
Tem‐se sustentado, ainda, que esta instituição contribui para a
legitimação do poder judicial. Tocqueville já havia observado o impacto
positivo que a interação entre os juízes e cidadãos comuns tem sobre o
prestígio dos juízes: ʺO júri, que parece diminuir os direitos da
magistratura, funda, na verdade, o seu próprio império, e não há países
onde os juízes sejam tão poderosos quanto naqueles onde o povo
participa da distribuição de privilégiosʺ (2001; e.o. 1840, p. 138). A partir
de pesquisa sócio‐jurídica, Machura (2003) e Marder (2005) revelaram
os efeitos positivos da participação cidadã na administração da justiça
sobre a confiança nos juízes. Voigt (2008) relata correlações positivas
entre a confiança no sistema legal e a incorporação da participação dos
leigos.
Na teorização contemporânea sobre a democracia, se destaca a
contribuição da deliberação pública para a construção da legitimidade
de ordem política. Os pesquisadores que trabalham com este marco de
referência têm destacado que a sala do júri se parece com a situação da
fala ideal habermasiana, pois oferece um espaço para o debate racional
entre iguais, governado pela força do melhor argumento (Iontcheva,
2003; Gastil & Weiser, 2006).
Resta‐nos questionar, entretanto, até que ponto a introdução dos
tribunais por júri seria eficaz no sentido de melhorar a legitimidade da
administração da justiça. Trata‐se de uma questão para a qual é difícil
obter evidência empírica, já que requer comparações internacionais4 ou
estudos de séries históricas. A questão é particularmente interessante
desde uma perspectiva latino‐americana, uma vez que na região os
baixos níveis de confiança na justiça são crônicos.
Com o objetivo de fornecer alguns elementos para o avanço da
discussão desta questão, o trabalho revisa a evolução da confiança na
justiça em Córdoba, Argentina, onde foi introduzida a participação dos
leigos no campo penal em 2005. Através de dados de pesquisas de
opinião pública, analisamos as mudanças nas atitudes em relação aos
juízes e júris, na população em geral, entre 1993 e 2011.
4 Ver por exemplo a tentativa de Voigt (2009) de comparar mais de 80 países,
classificados segundo o tipo de participação leiga que implementa.
217
2. Legitimidade e confiança na justiça: questões teóricas
O trabalho de Weber continua sendo o mais influente na análise
contemporânea sobre a legitimidade. A partir de sua perspectiva, a
legitimidade é entendida como a qualidade de uma autoridade ou
instituição que leva as pessoas a se sentirem obrigadas a seguir suas
regras ou decisões. Todos os poderes desejam, por isso, alimentar a
crença em sua legitimidade, e só é possível analisar essa legitimidade a
partir de uma abordagem relacional.
Sua tipologia sobre as formas de dominação legítima tem sido
utilizada por décadas na investigação sociojurídica. Recentemente, têm‐
se observado que a utilidade dessa classificação tende a se reduzir no
mundo contemporâneo, enquanto que a grande maioria dos regimes
legítimos corresponde ao tipo racional‐legal (Dogan, 2010). Esta crítica
parece menos justificada a partir da perspectiva latino‐americana, uma
vez que na região o enfraquecimento dos partidos tradicionais
acompanha a crescente personalização da política. (Cheresky, 2010).
Rosanvallon (2009) apontou também que, nas sociedades
contemporâneas, onde a expressão eleitoral perde sua centralidade,
surgem novas formas de aproximação da ideia de interesse público, o
que dá origem a novas formas de legitimação, que entendem por
legitimidade a imparcialidade, a reflexividade e a proximidade. Ao
contrário da legitimidade tradicional de estabelecimento, obtida pelos
governos democráticos através do mecanismo eleitoral, esses modos de
legitimação apontam para as qualidades da relação entre os que
exercem o poder e os cidadãos. Essas qualidades nunca são definitivas,
por isso as autoridades necessitam se relegitimar continuamente.
A perspectiva relacional é hoje o principal legado weberiano
presente neste campo de pesquisa. Como destaca Lembcke (2008), tal
perspectiva está presente entre os que adotam um enfoque top‐down e se
concentram em descrever os esforços dos poderosos ou das instituições
para que suas pretensões de legitimidade sejam aceitas. O enfoque
relacional também se encontra entre os que definem a legitimidade
como a crença na correção de tais pretensões por parte daqueles que
estão sujeitos a um sistema de dominação. Neste caso, o foco não se
218
dirige tanto para os esforços do poder para validar sua dominação, mas
para os motivos de concordância com as demandas de poder.
Esta segunda abordagem, do tipo bottom‐up, é adotada neste
trabalho, que analisa a legitimidade a partir das convicções subjetivas
dos cidadãos. A partir desta perspectiva, é possível fazer afirmações,
empiricamente fundamentadas, sobre a extensão da aprovação que
recebe um sistema de dominação, ou descrever dinamicamente sua
evolução.
Na análise empírica da legitimidade dos tribunais se utiliza
frequentemente a noção de apoio difuso, inicialmente desenvolvida por
Easton (1965). O apoio específico se refere ao consentimento a uma
decisão em particular. Mas a autoridade seria frágil se tivesse que
depender inteiramente de tais acordos, já que a tomada de decisões ‐
especialmente nos tribunais ‐ sempre favorece alguns e prejudica
outros. A autoridade sobrevive graças a um ambiente de apoio geral,
que não está relacionado a uma medida específica, mas que é difuso, e
que lhe permite decidir à discrição.
O apoio difuso pode ser entendido como um reservatório de boa
vontade, e implica que as pessoas têm confiança na capacidade de
certas instituições de fazer políticas desejáveis em longo prazo. Supõe
certa lealdade à autoridade, e implica que o fracasso ao realizar políticas
desejáveis a curto prazo não prejudica o compromisso básico das
pessoas com a instituição. Esta noção de apoio difuso tem sido utilizada
para estudar empiricamente a legitimidade judicial (JL Gibson, Caldeira
e Spence, 2005; J. Gibson, 2007) entendida como a confiança no sistema
judicial, e é empregada da mesma forma nesta investigação.
3. A confiança na justiça: questões metodológicas
Na América Latina, a pesquisa empírica sobre a legitimidade
institucional tem utilizado dados de pesquisas de opinião provenientes
de duas fontes de dados comparativos em nível regional ‐ Gallup e
Latinobarómetro ‐ que utilizam as clássicas perguntas sobre o grau de
219
confiança em diferentes instituições5. A principal utilidade destas
medidas é a possibilidade de realizar análises comparativas entre
diversos países, assim como de seguir a evolução no tempo dos níveis
de legitimidade. Ao que se refere à Argentina, Turner & Carballo (2010)
publicaram dados sobre a confiança na justiça para várias datas,
começando por 1984. Por outro lado, a série Latinobarómetro oferece
medições anuais desde 1995.
Tem‐se destacado, entretanto, que uma medida adequada da
legitimidade deve incluir tanto itens atitudinais ‐ como a confiança nas
instituições ‐ como itens condutuais6, que permitam observar o grau de
obediência à autoridade, ou a disposição para cumprir com seus
mandatos. A crítica é digna de consideração, especialmente em uma
região onde a baixa legitimidade das instituições judiciais não impediu
a crescente judicialização da política (Sieder, Schjolden e Angell, 2005).
A observação é particularmente importante em um país como a
Argentina, onde são registrados, ao mesmo tempo, baixos níveis de
legitimidade das instituições judiciais e consideráveis taxas de
litigiosidade.
Em nosso país, o índice de confiança na justiça elaborado pela
equipe da Universidade Di Tella considera tanto os indicadores
condutuais como atitudinais. Entre os primeiros se incluem os itens
relacionados à disposição para recorrer à justiça em conflitos
patrimoniais, de trabalho e familiares; entre os segundos se encontram
as questões de opinião sobre a imparcialidade, eficiência e integridade
da justiça. A série, iniciada em 2004, mostra sistematicamente valores
mais elevados nos itens condutuais do que nos atitudinais 7.
Neste projeto foram utilizadas duas medidas diferentes de
confiança na justiça, ambas destinadas a detectar as atitudes em direção
aos magistrados. A primeira delas está centrada na figura pessoal do
5 A formulação da questão é a seguinte: Por favor, diga, para cada um dos grupos,
instituições ou pessoas mencionadas na lista, quanta confiança você tem neles: muita (1),
alguma (2), pouca (3) ou nenhuma (4) confiança em...? O Congresso Nacional, o Poder
Judiciário, os partidos políticos, as Forças Armadas, a Igreja, os Meios de comunicação, etc.
6 Para mais detalhes sobre tal classificação de indicadores ver Power e Cyr (2010).
=1601 maiores detalhes sobre a construção deste índice e os resultados alcançados.
220
juiz, e é resultado da resposta mais simples para o público em geral
(Você acha que o juiz inspira muita, bastante ou pouca confiança e
sensação de proteção). A segunda utiliza a medida tradicional de
confiança nas instituições, usada na pesquisa comparativa
internacional, mencionada acima.
Foram utilizados os dados de duas pesquisas de opinião pública,
realizadas na cidade de Córdoba por esta equipe de pesquisa. A
primeira delas incluiu 400 casos, e ocorreu muito antes da introdução
da participação dos leigos, em 1993. Nesta foi medida a confiança na
figura do juiz como pessoa, e foram obtidas opiniões com relação a
temas como a independência, a imparcialidade, a eficiência e a
honestidade da justiça.
O segundo estudo foi realizado em 2011, quando os tribunais
mistos já funcionavam há seis anos, e foram realizadas 434 entrevistas.
Além da confiança na figura pessoal do juiz foi medida a confiança no
poder judiciário. Isso permitiu observar que a correlação (R de Pearson)
entre ambas as medidas é de 0,443, com um nível de significância de
0,000. As opiniões relativas à avaliação da justiça foram recolhidas da
mesma forma que no projeto anterior.
Também foram utilizadas as bases de dados do Latinobarômetro
para o período de 1995‐2010 para a descrição da situação argentina
dentro do contexto regional.
4. A confiança na justiça na Argentina
Na Argentina, as pesquisas de opinião revelam níveis
relativamente baixos de confiança nas instituições, entre elas, no poder
judiciário. Os dados do Latinobarômetro indicam que somente um em
cada três cidadãos (34,5%) declarou ter muita ou alguma confiança nos
tribunais em 2010. A informação comparativa permite contextualizar
esta cifra.
Como pode ser visto na Tabela 1, na União Europeia os dados
recolhidos pelo Eurobarômetro indicam um valor de 47% para a mesma
data. Além da homogeneidade das médias, as diferenças entre os países
europeus são destacadas. Na área germano‐escandinava a proporção de
cidadãos que confiam no Judiciário está acima de 60%. No Reino Unido,
221
a confiança nos tribunais também é maioritária, enquanto que os
valores diminuem nos países que recentemente aderiram à democracia,
como a Espanha, ou se caracterizam pela frequência de crises políticas,
como a Itália. As recentes democracias da Croácia ou da Letônia
registraram valores semelhantes aos argentinos.
Esta conexão entre a solidez da democracia e a confiança na justiça
é igualmente visível quando observamos os dados norte‐americanos8.
Enquanto no espaço europeu quase metade dos cidadãos confia na
justiça, na América Latina a proporção regional atinge 32%. Na região,
os países com maior tradição democrática, como o Uruguai ou a Costa
Rica, ultrapassam claramente a média regional. Também é importante
notar que o Brasil ‐ o país latino‐americano com a mais longa tradição
de júri, cuja participação dos leigos na administração da justiça funciona
desde 1822 (Amietta, 2010) ‐ registra níveis de confiança na justiça
significativamente maiores que a média da área.
A capacidade das instituições para responder às demandas
socioeconômicas dos cidadãos também influencia os níveis de
legitimidade institucional. Como mostram os estudos comparativos de
Gilley (2006) e Power e Cyr (2010), não é de se estranhar que os países
latino‐americanos com maiores níveis de desenvolvimento humano
contem instituições de maior respaldo social.
Esses dados permitem observar que a confiança no poder judiciário
registrada na Argentina apresenta valores próximos à média regional. É
um pouco maior do que encontramos em países com significativas
desigualdades étnicas, como Peru, Bolívia e México, cujo sistema
judicial formal concorre com práticas judiciais dos povos originários, o
que acaba por enfraquecer ainda mais a confiança nas instituições do
Estado. (Power e Cyr, 2010).
Esta revisão da informação disponível sobre os níveis de
legitimidade institucional, em nível regional, indica que vários fatores
influenciam a confiança na justiça, tais como: a tradição democrática, a
capacidade das instituições de responder às demandas socioeconômicas
dos cidadãos ou as desigualdades étnicas.
8 Para uma discussão detalhada, empiricamente fundamentada, da relação entre a
experiência democrática e os níveis de legitimidade na América Latina, ver Power e
Cyr (2010).
222
Tabela 1 ‐ Confiança no Poder Judiciário, 2010.
Muita/alguma Pouca/nenhuma Não sabe
América Latina
confiança confiança /não respondeu
Uruguay 58,1% 38,5% 3,4%
Brasil 51,1% 45,4% 3,6%
Costa Rica 46% 49,9% 4,1%
Venezuela 37,8% 58,1% 4,1%
Chile 36,9% 61,5% 1,6%
Argentina 34,5% 63,6% 2%
Colômbia 34% 59,4% 6,6%
Panamá 33,6% 61,3% 5,1%
México 27,5% 67,7% 4,8%
Paraguai 27% 69,8% 3,3%
Bolivia 23,5% 68,3% 8,2%
Peru 14,7% 82,7% 2,6%
Média 32,4% 63,2% 4,3%
Muita/alguma Pouca/nenhuma Não sabe
Europa
confiança confiança /não respondeu
Dinamarca 84% 14% 2%
Suécia 73% 25% 2%
Áustria 71% 26% 3%
Alemanha 60% 34% 6%
Reino Unido 50% 45% 5%
França 45% 50% 5%
Espanha 44% 51% 5%
Itália 42% 52% 6%
Letônia 36% 54% 10%
Croácia 20% 76% 4%
União Européia 47% 48% 5%
Fonte: Para América Latina, Latinobarômetro (www.latinobarometro.org). Para Europa,
Eurobarômetro (http://ec.europa.eu/public_opinion/index_en.htm). Dados processados
para este projeto.
223
Tabela 2 ‐ Confiança no Poder Judiciário – Argentina, 1995 ‐2010.
Ano N Muita/alguma Pouca/nenhuma Não sabe/
confiança confiança não
respondeu
1995 1200 (100%) 33,6% 62,1% 4,4%
1996 1199 (100%) 23,1% 72,4% 4,5%
1997 1196 (100%) 20,5% 75,1% 4,2%
1998 1264 (100%) 19,6% 78,5% 1,9%
2000 1200 (100%) 27,5% 68% 4,5%
2001 1200 (100%) 20,5% 77% 2,5%
2002 1200 (100%) 8,6% 90,4% 0,9%
2003 1200 (100%) 16,2% 81,2% 2,6%
2004 1200 (100%) 26,2% 72,4% 1,4%
2005 1200 (100%) 26,1% 71,7% 2,3%
2006 1200 (100%) 31,9% 66,9% 1,3%
2007 1200 (100%) 22,7% 74,5% 2,8%
2008 1200 (100%) 24,6% 74,1% 1,3%
2009 1200 (100%) 24,5% 73,3% 2,1%
2010 1200 (100%) 34,5% 63,6% 2%
Fonte: Latinobarômetro, (www.latinobarometro.org). Dados
processados para este projeto.
A análise dos dados históricos sobre a legitimidade da justiça na
Argentina mostra variações consideráveis desde a restauração da
democracia. Analisando a evolução da confiança nas instituições no
período de 1984‐2006, Turner e Carballo (2010) destacaram a
deterioração da legitimidade tanto do poder legislativo como do
judiciário, ocorrida desde o retorno da democracia. Usando dados do
Gallup, demonstraram que em 2006 os níveis de confiança na justiça
chegaram a 20%, praticamente um terço dos níveis registrados em 1984,
momento que se segue à recuperação da democracia (58%). Tal análise
vincula a queda nos níveis de legitimidade à baixa capacidade das
instituições em atender as expectativas econômicas dos cidadãos, e
salienta que a perda de confiança nas instituições não se limita ao poder
judiciário, mas se estende a outros poderes do Estado.
A série de dados do Latinobarômetro, iniciada em 1995, permite
acompanhar a recente evolução dos níveis de legitimidade na justiça.
224
Além das oscilações anuais, nota‐se que a crise do corralito e do “que se
vayan todos” colocou a legitimidade da justiça em seu mínimo histórico.
Naquele momento, menos de um em cada dez argentinos confiava nos
juízes. A posterior recuperação, provavelmente vinculada às mudanças
no mecanismo de nomeação dos juízes do Supremo Tribunal assim
como nos esforços para melhorar a difusão da atividade judicial9, foi
relativamente rápida, colocando os níveis de confiança em números
semelhantes aos de 1995: em 2010 cerca de um terço dos argentinos
confiava na justiça.
O exposto até então é suficiente para indicar que, como pode ser
previsto a partir de uma abordagem relacional de legitimidade, a
confiança na justiça é uma variável complexa, sujeita a diversas
influências. Por isso, a revisão de sua relação com a participação dos
leigos na administração da justiça, que será realizada a seguir, tem
caráter tão somente exploratório.
5. A experiência cordobesa de tribunais mistos
Ainda que sua implementação seja recente, a instituição do júri tem
na Argentina profundas raízes históricas. Entendida como garantia
contra o abuso do poder do Estado, é encontrada em projetos
elaborados em 1813, assim como nas Constituições de 1819 e 182610. A
Constituição Nacional de 1853 a prescreve, em seus artigos 24, 64 inc. 11
e 9911. A longa presença dos projetos de julgamento por júri é um bom
indicador da profunda aspiração democrática dos argentinos, assim
como de sua ampla tolerância à brecha entre o texto da lei e as práticas
sociais. Atualmente, os julgamentos por júri vigoram somente na
província de Córdoba.
9 Para uma descrição dos esforços realizados para restaurar a legitimidade do Tribunal
após a crise, ver Ruibal (2010). O lançamento do canal jurídico de CIJ TV, canal de
notícias de transmissão ao vivo pela Internet de todo o Poder Judicial, feito pela
Suprema Corte de Justiça, em agosto de 2011, foi um marco significativo dessas
estratégias.
10 Para uma revisão histórica da presença dos julgamentos por júri na normativa
argentina, ver Cavallero e Hendler (1988) e Jorge (2004).
11 Estas prescrições se mantiveram após a reforma de 1994, ainda que a numeração dos
artigos agora seja 24, 75 inc. 12 e 118.
225
Nesta província, a participação dos cidadãos nos processos penais
foi ordenada pela Constituição de 198712. Foi colocada em prática pela
primeira vez em 1998, sob a forma de um tribunal misto, composto por
três juízes profissionais e dois cidadãos comuns ‐ escabino ‐, chamado a
intervir em crimes graves, quando o advogado, promotor ou a vítima
assim o solicitam. A participação cidadã alcançada foi bastante limitada:
apenas trinta e três casos foram decididos por meio da intervenção leiga
entre 1998 e 2004 (Vilanova, 2004).
Desde 2004, a província de Córdoba ampliou a participação cidadã
nas decisões penais mediante a lei 9.182. A lei foi aprovada no contexto
de um debate nacional sobre as medidas para combater a insegurança,
impulsionado por Juan Carlos Blumberg13. Assessorado pelo Manhattan
Institute, de Nova York14, Blumberg reclamava o endurecimento penal e
a reforma judicial como meios para melhorar a segurança urbana, assim
como a inclusão do julgamento por júri segundo o clássico modelo
anglo‐saxão.
A concorrência multitudinária das marchas de Blumberg levou à
sanção da lei provincial 9.182, que ampliava a experiência de
participação popular nos tribunais criminais. A lei criou um tribunal
misto, com maioria leiga, composto por oito cidadãos comuns e três
juízes profissionais, que decide por maioria simples em casos de crimes
hediondos e de corrupção.
Durante o debate parlamentar ficou evidente que esta iniciativa
também havia sido impulsionada pelo interesse em recuperar a
confiança na Justiça. O membro que representava a maioria expressou o
principal objetivo da lei nos seguintes termos:
“... o povo argentino pediu justiça porque sentiu que não tinha; o povo
argentino pediu segurança, porque não tinha; o povo argentino pediu
para acreditar em suas instituições porque já não acreditava. Então,
12 Constituição da província de Córdoba, Artigo 162. La ley puede determinar los casos en
que los Tribunales colegiados son también integrados por jurados.
13 Para uma análise mais detalhada do discurso deste movimento social consultar
Pegoraro (2004) e Tufró (2007).
14 Blumberg. Se Reunió con Policías en Nueva York, La Nación, Jun. 6, 2004. Disponível em:
http://buscador.lanacion.com.ar/Nota.asp?nota_id=607975&high=Manhattan%20Instit
ute.
226
nós, os legisladores de Córdoba, devemos responder ao apelo popular
e criar as instituições que nos permitam repor um pacto social que
estava perdido, para criar uma ponte entre o povo e seus líderes, para
gerar aquela crença que se perdeu no tempo. Temos de reconstruir o
contrato social. Para isso, são necessários os julgamentos por júri, pois
esse é um instrumento que nos leva ao objetivo já mencionadoʺ (texto
do debate transcrito em Ferrer e Grundy, 2005, p.101).
O objetivo de relegitimar o poder judiciário por esta via também
era compartilhado naquele momento por outros atores sociais. Assim, o
presidente da Associação de Magistrados, Víctor Vélez, convocado à
Legislatura para discutir a iniciativa, expressou [em relação à ampliação
do número de júris]: “é uma porta que se abre, por onde entra um
saudável sentimento de equidade natural, e por onde sai uma boa ideia
sobre o funcionamento da justiça”15.
As principais resistências à iniciativa procederam da profissão
jurídica. O temor de que, num contexto dominado pelo medo diante do
delito, a participação dos leigos levasse a um endurecimento das penas,
estimulou a oposição dos advogados. O forte apoio oferecido pelo
Tribunal Superior de Justiça contribuiu para a aceitação do novo
sistema, que após sete anos de aplicação contínua, pode ser considerado
em vias de consolidação16.
Em particular, a sua aceitação por aqueles que tiveram a
oportunidade de participar como jurados é alta, como mostram as
pesquisas realizadas pela própria Administração da Justiça, em 2006 e
2010. Esses estudos também mostraram um aumento significativo da
boa imagem da justiça penal após a experiência participativa17.
É importante observar, entretanto, que a limitada competência
atribuída aos tribunais mistos cordobeses é representada pelo registro
15 Publicado em La Voz del Interior, 7/08/2004. Acesso em: http://buscador.lavoz.com.ar/
16 Para uma análise detalhada do processo de aceitação desta inovação institucional, ver
Bergoglio (2010).
17 Andruet, Ferrer e Croccia (2007) relatam que o percentual dos que tinham uma
imagem boa ou muito boa da justiça penal passou de 44% para 98% após a
experiência participativa. A repetição da mesma pesquisa em 2010 mostrou que a
proporção aumentou de 52,3% para 97,7%. (Ver este último relatório em
http://www.justiciacordoba.gob.ar/justiciacordoba/indexDetalle.aspx?id = 110).
227
de apenas 150 processos no período de 2005‐2010. Durante esses seis
anos, apenas mil e duzentas pessoas comuns tiveram oportunidade de
participar das decisões penais.
Por enquanto, estes dados sugerem que os efeitos da
participação leiga sobre a confiança que os cidadãos comuns depositam
nas instituições judiciais podem ser ainda muito débeis.
6. A confiança na justiça em Córdoba
Os dados disponíveis para este projeto permitem comparar a
evolução da confiança na justiça entre 1993 e 2011, assim como
permitem analisar algumas das dimensões dessas mudanças. Tal como
se observa na tabela abaixo, a confiança na justiça tem experimentado
uma leve melhora nestes dezoito anos. Embora o aumento dos que
declaram que a figura do juiz lhes inspira muita ou bastante confiança
seja modesto, as opiniões negativas têm diminuído consideravelmente.
Os que mostravam ter pouca ou muito pouca confiança superavam
50%, e atualmente representam 40%.
Tabela 3. Confiança na figura do juiz, 1993‐2011.
O juiz inspira Ano
1993 2011
Muita confiança 3,6% 3,7%
Bastante confiança 14,5% 16,6%
Confiança regular 28,7% 39,4%
Pouca confiança 38,1% 23,7%
Muito pouca confiança 15,2% 16,6%
Total 100,0% 100,0%
Relação estatisticamente significativa –
Qui Quadrado = 21,663 significativo para p<.000
Fonte: Pesquisas de população geral, Córdoba capital, 1993 e 2011.
Entender estas mudanças requer também entender as modificações
experimentadas nos pontos de vista sobre os diversos aspectos da
administração da justiça, que são avaliados pelos cidadãos na
construção de suas opiniões. Para este projeto foi selecionado um
228
conjunto de dimensões conectadas com valores democráticos centrais,
tal como a independência do poder político, a imparcialidade diante
dos interesses econômicos, e a igualdade de tratamento a todos os
cidadãos, sem importar sua condição. Também foram incorporadas
outras: como a honestidade dos magistrados (entendida coletivamente),
e sua eficácia no desenvolvimento de tarefas específicas, incluindo aqui
um nível de castigo penal suficiente, desde a perspectiva do cidadão
comum.
Ao revisar as modificações da opinião cidadã nestes aspectos,
importa considerar que a experiência direta com a administração de
justiça se tornou mais frequente: a porcentagem da população que tinha
contato com tribunais passou de 33% a 45% nos últimos dezoito anos. O
dado fornece uma representação empírica da tendência à legalização da
vida, destacada por Habermas.
É interessante observar que a percepção do cidadão sobre a
independência dos tribunais com relação ao governo parece menos
negativa; a diferença, relativamente baixa, alcança uma significância
estatística18. O mesmo ocorre com a avaliação cidadã da honestidade
dos magistrados, onde as observações críticas têm diminuído. No
período transcorrido também tem melhorado a opinião sobre a
eficiência dos tribunais no cumprimento de suas tarefas específicas.
Estas mudanças, estatisticamente significativas, podem estar
relacionadas com a maior transparência da função judicial promovida
pela participação leiga no processo penal.
A Tabela 4 informa, da mesma forma, que a proporção de cidadãos
que pensam que o delito recebe um nível suficiente de castigo penal tem
aumentado, relação que alcança significância estatística. É interessante
observar que a maior satisfação com os resultados do processo penal não
procede de um endurecimento das penas, pois a análise pormenorizada
das sentenças emitidas pelos tribunais mistos indica que isso não ocorreu
(Bergoglio e Amietta, 2010). Este resultado sugere que a participação leiga
melhora a legitimação das decisões penais, moderando as críticas em
direção aos resultados dos processos (Park, 2010).
18 Deve‐se observar que a melhoria na imagem da independência judicial no período de
1993‐2011 também pode se conectar às mudanças no processo de designação dos
magistrados, iniciadas em 2000 com a criação do Conselho de Magistratura.
229
Tabela 4 – Opiniões sobre a justiça, 1993 – 2011.
Ano Qui‐quadrado
1993 2011
Independência dos Muito alta 5,8% 6,2% 18,19
tribunais com Bastante alta 13,7% 19,9% significativo
relação ao governo Bastante baixa 32,0% 40,7% para
Baixa 48,5% 33,3% p <,000
Total 100,0% 100,0%
Imparcialidade Concordo 31,9% 30,5% 0, 18
nos julgamentos Discordo Não
68,1% 69,5%
penais significativo
Total 100,0% 100,0%
Imparcialidade Concordo 20,8% 26,0% 2,95
nos processos Discordo Não
79,2% 74,0%
econômicos significativo
Total 100,0% 100,0%
Na aplicação das É dado o mesmo 0,46
7,1% 8,3%
leis penais tratamento a todos Não
Se faz diferença de significativo
acordo com quem se 92,9% 91,7%
trata
Total 100,0% 100,0%
Pune‐se Sim 10,0% 15,4% 5,42
suficientemente a Não significativo
90,0% 84,6%
delito para p < ,02
Total 100,0% 100,0%
Casos de corrupção Muitos 23,5% 20,9% 12,17
entre os juízes Bastante 42,5% 33,9% significativo
Poucos 28,9% 41,4% para p <,007
Nenhum 5,1% 3,8%
Total 100,0% 100,0%
Funcionamento dos Muito bom/bom 16,0% 27,7% 26,39
tribunais Regular 62,5% 55,2% significativo
Mal/Muito mal 21,5% 17,1% para p <,000
Total 100,0% 100,0%
Fonte: Pesquisas de opinião da população, Córdoba capital, 1993 e 2011.
230
A tabela mostra também que as opiniões sobre a capacidade dos
juízes em tomar decisões independentes de pressões econômicas, tanto
em matéria penal como em outros assuntos, praticamente não se
alterou. Tanto em 1993 como em 2011, mais de dois terços dos
entrevistados questionaram a imparcialidade dos juízes; a proporção
não sofreu diferenças estatisticamente significativas no período
considerado. Da mesma forma, a observação acerca do tratamento
dispensado pelos juízes aos cidadãos reflete que as diferenças sociais e
econômicas se mantiveram em níveis semelhantes aos de 1993. Estes
dados sugerem que ainda são necessários maiores esforços no sentido
de promover a realização dos ideais de igualdade perante a lei em
vários aspectos do contato dos cidadãos com a administração da justiça.
As mudanças no modo como os cidadãos avaliam a
independência e a honestidade dos magistrados, assim como o modo
que funcionam os tribunais em geral, e particularmente os penais,
permite explicar a ligeira melhora na confiança na justiça
experimentada em Córdoba no período de 1993‐2011. Como mostra a
Tabela 5 todas estas dimensões se relacionam significativamente com a
confiança na justiça.
O quadro mostra, da mesma forma, que a opinião sobre a
imparcialidade dos juízes e sua capacidade de proporcionar aos
cidadãos igualdade de tratamento ‐ dimensões em que a avaliação
cidadã é negativa para ambas as datas ‐, também estão associadas à
confiança na justiça. Isso provavelmente explica o modesto aumento de
confiança na justiça registrado no período considerado e sugere
possíveis rumos para a futura ação orientada a melhorar a relação entre
judiciáveis e juízes.
231
Tabela 5 – Correlações entre a avaliação da ação judicial e a confiança na
justiça.
Dimensão 1993 2011
Correlação de Pearson 1 1
O juiz inspira confiança Sig. (bilateral) . .
N 394 434
Correlação de Pearson ,180(**) ,128(*)
Independência dos tribunais em
Sig. (bilateral) ,000 ,010
relação ao governo
N 394 401
Correlação de Pearson ,246(**) ,235(**)
Imparcialidade nos julgamentos
Sig. (bilateral) ,000 ,000
penais
N 381 415
Correlação de Pearson ,263(**) ,299(**)
Imparcialidade em processos
Sig. (bilateral) ,000 ,000
econômicos
N 375 415
Correlação de Pearson ,233(**) ,192(**)
Tratamento na aplicação das leis
Sig. (bilateral) ,000 ,000
penais
N 391 426
Correlação de Pearson ,370(**) ,356(**)
Funcionamento dos tribunais Sig. (bilateral) ,000 ,000
N 372 394
Correlação de Pearson ‐,305(**) ‐,324(**)
Casos de corrupção entre os juízes Sig. (bilateral) ,000 ,000
N 309 420
Correlação de Pearson ,160(**) ,152(**)
Pune‐se suficientemente o delito Sig. (bilateral) ,002 ,002
N 387 416
* A correlação é significativa ao nível 0,05 (bilateral).
** A correlação é significativa ao nível 0,01 (bilateral).
7. A opinião sobre o julgamento por júri
Os dados coletados também permitem analisar como o apoio ao
julgamento por júri evoluiu entre 1993 e 2011. Duas perguntas foram
utilizadas para analisar a opinião diante da participação pública na
232
justiça penal, utilizando uma formulação geral e outra personalizada19.
Como se pode ver na Tabela 6, em ambas as datas o apoio à intervenção
dos leigos nos processos penais é claramente maioritária. Também é
possível observar que é baixa a proporção dos que se opõem
abertamente ao sistema.
É interessante observar, entretanto, que a implementação da
instituição não representou grandes mudanças na atitude dos cidadãos
em relação ao julgamento por júri. Foi registrado um pequeno aumento
da opinião favorável (não significativo), alcançado especialmente por
aqueles que não expressaram opinião em 1993. A desagregação dos
dados indica que esse avanço na adesão à instituição é registrado
principalmente entre as pessoas com baixo nível de escolaridade.
Tabela 6 – Evolução da opinião sobre o julgamento por júri.
Ano Qui Quadrado
1993 2011
Opinião sobre o A favor 58,9% 62,3% 1,43
julgamento por júri Nem a favor nem Não
25,3% 21,9%
contra significativo
Contra 15,8% 15,8%
Total 100,0% 100,0%
Se você fosse Os juizes 33,8% 38,0% 1,51
acusado, preferiria Um júri formado por Não
66,2% 62,0%
que decidissem pessoas comuns significativo
Total 100,0% 100,0%
Fonte: Pesquisas de opinião da população em geral, Córdoba capital, 1993 e
2011.
As pesquisas empíricas têm demonstrado que é comum que a
imagem dos júris seja mais favorável que a dos juízes nos países do
Common Law, como ocorre na Inglaterra e no País de Gales, na Nova
19 A formulação utilizada foi: Como você sabe, em Córdoba um júri de cidadãos comuns
escolhidos por sorteio atua, juntamente com juízes, em julgamentos criminais graves, para
decidir se o acusado é culpado ou não do crime de que é acusado. No geral, qual é sua opinião
sobre este sistema? E se você fosse o réu, quem você preferiria que decidisse se ele é culpado ou
inocente?
233
Zelândia e nos Estados Unidos. Por outro lado, as pesquisas realizadas
nos países de tradição civilista mostram uma variedade de situações.
(Roberts e Hough, 2009).
Os dados disponíveis também permitem observar a relação entre
a atitude em direção ao julgamento por júri e a confiança na justiça
(Tabela 7). Em 1993, quando a instituição não estava em vigor, a adesão
a essa forma de julgamento penal parecia mais frequente entre aqueles
que confiavam pouco na justiça. Esta relação se fazia visível no que diz
respeito ao apoio em geral, como o recolhido de modo pessoal, e
alcançava também significância estatística. Tal como foi mencionado
acima, o interesse em implementar a participação dos leigos foi maior
entre aqueles que tinham uma opinião negativa dos magistrados.
Por outro lado, em 2011, esta ligação do apelo da participação
popular nas decisões penais com a desconfiança na justiça desapareceu.
O apoio geral para o julgamento por júri não foi influenciado pelo nível
de confiança na justiça. Trata‐se de um traço interessante, que indica a
aceitação paulatina da instituição entre os cidadãos comuns.
Tabela 7 – Confiança na justiça e a opinião sobre o julgamento por júri.
1993 2011
Confiança nos juízes Confiança nos juízes
Pouca/ Pouca/
Muita muito Muita muito
/bastante Regular pouca /bastante Regular pouca
A favor 47,0% 55,0% 66,0% 63,6% 59,5% 63,6%
Nem a
favor nem 28,8% 29,4% 21,4% 22,7% 22,7% 20,8%
Opinião do
contra
julgamento
Contra 24,2% 15,6% 12,6% 13,6% 17,8% 15,6%
por júri
Total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
R de ‐0,158(**), significativa para
0,010, não significativa
Pearson p < 0,002
* A correlação é significativa ao nível 0,05 (bilateral).
** A correlação é significativa ao nível 0,01 (bilateral).
Esta interpretação é reforçada pelo vínculo entre a disposição para
atuar como jurado e a confiança na justiça, já que os que confiam na
234
justiça mostram maior disponibilidade em assumir as responsabilidades
nas decisões penais.
8. Considerações finais
Tal como foi destacado na introdução, a relação entre o julgamento
por júri e a confiança nos magistrados é complexa. A experiência
comparada mostra que o apelo de participação popular na
administração da justiça surge habitualmente em condições de crises na
relação entre os juízes e os judiciáveis, quando a confiança cidadã no
modo em que os magistrados cumprem suas responsabilidades se
debilita. Entretanto, em longo prazo, a participação leiga na
administração da justiça tem efeitos positivos sobre a confiança na
justiça, uma vez que consegue consolidar o prestígio dos magistrados.
Os mecanismos que contribuem para este resultado são variados.
Em primeiro lugar, tal como destaca Park (2010) analisando o caso
coreano, a simples presença dos cidadãos comuns modera as críticas
nas decisões penais. Este resultado é mais provável quando os
processos penais recebem uma cobertura ampla da mídia.
Em segundo lugar, tal como observou Tocqueville, na interação
entre os juízes e jurados as diferenças de conhecimentos entre leigos e
letrados são evidentes, o que permite consolidar o prestígio dos
magistrados. Nos tribunais mistos, onde a deliberação é conjunta, há
muitas oportunidades para este tipo de interação.
Por outro lado, espera‐se que aqueles que participaram como
jurados avaliem positivamente sua experiência e a compartilhem nas
várias redes sociais nas quais participam. O fato de que as pessoas
comuns discutam seus encontros positivos com a administração da
justiça beneficia a legitimidade do sistema como um todo.
Em Córdoba, o contexto em que surgiu a lei 9.182 foi marcado pela
débil legitimidade da administração da justiça. Os dados coletados em
1993 confirmam a associação entre a desconfiança nos magistrados e a
adesão ao julgamento por júri, uma relação que apareceu também nos
debates parlamentares da lei 9.182, em 2004.
As pesquisas de opinião realizadas entre os cidadãos comuns após
seis anos de aplicação contínua dos tribunais mistos revelam uma
235
melhoria da confiança na justiça, pequena, mas estatisticamente
significativa. Para interpretar essas mudanças, é necessário observar se
os mecanismos que explicam a ligação entre a participação leiga e a
legitimidade da justiça também estão presentes.
De fato, desde a incorporação do sistema, a cobertura da mídia dos
processos com intervenção leiga tem sido intensa20, por isso é possível
esperar o efeito anunciado por Park, no sentido de que a presença dos
cidadãos comuns reduz as críticas externas nas decisões penais. Na
verdade, nos dados coletados em 2011, se observa que a satisfação
cidadã com o nível de punição criminal melhorou, conforme relatado
acima.
Por outro lado, como foi relatada em estudos que incluíam dados
qualitativos, a interação entre os juízes e jurados no âmbito dos
tribunais mistos cordobeses se desenrola geralmente como uma relação
pedagógica, na qual os juízes se posicionam como professores
permanentemente disponíveis para ajudar com seus conhecimentos os
cidadãos comuns e responder as suas perguntas21. Da mesma forma,
aqueles que prestaram serviço como jurados estão satisfeitos com sua
experiência e melhoraram suas opiniões sobre a administração da
justiça22.
Dadas estas condições favoráveis para que o efeito esperado seja
registrado, cabe questionar por que este resulta relativamente modesto.
É necessário levar em conta que a experiência cordobesa de tribunais
mistos é bastante limitada: apenas 150 processos ao longo de um
período de seis anos. Neste sentido, mesmo que a experiência tenha
sido favorável, o número de pessoas comuns envolvidas é baixo em
comparação à população23.
20 O mais importante jornal da província, La Voz del Interior, publicou 162 notas sobre
estas questões durante o ano de 2007 e 178 notas em 2008. Em cidades pequenas, a
intensidade da cobertura da mídia provocou reclamações dos jurados entrevistados
para este projeto. (Bergoglio, 2011).
21 Ver Bergoglio e Amietta (2010) e Amietta (2011).
22 Ver referências na nota 17.
23 A comparação internacional do número de convocações para o serviço de jurado a
cada ano ilustra este ponto. Park (2010) estima que nos Estados Unidos foram
distribuídos aproximadamente 2.000.000 de convocações para o serviço de júri a cada
236
Deve‐se considerar também que a experiência cordobesa em
julgamentos por júri ocorreu durante um período marcado pela
tendência a uma certa melhoria na imagem da administração da justiça
no país (ver Tabela 2). No entanto, um estudo recente que compara as
avaliações sobre o funcionamento da justiça em diferentes regiões
descobriu que as opiniões positivas são ligeiramente maiores na
província de Córdoba, em comparação ao resto do país, onde não foi
implementada a intervenção leiga na administração da justiça24.
Estes dados sugerem que a implementação dos julgamentos por
júri poderia ter ‐ a longo prazo ‐ efeitos positivos sobre a imagem dos
magistrados, como sugerido teoricamente e observado nos dados
coletados de cidadãos com experiência em participação em julgamentos
por júri. Neste sentido, caberia esperar que, no futuro, a consolidação da
experiência de julgamentos por júri em Córdoba melhore
significativamente a legitimidade do poder judiciário.
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convocações em 2009, ou seja, 1 por 686 habitantes.
24 O estudo, realizado pela Universidad Siglo 21 em 2011 a nível nacional, registrou que
16% dos inquiridos considerou que em Córdoba a justiça funciona bem ou muito
bem. Essa mesma proporção foi de 12% a nível nacional. Mais detalhes sobre esta
investigação em http://www.21.edu.ar/institucional‐investigacion‐proyectos.html
237
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240
PARTE III
Políticas urbanas e habitacionais e seus efeitos sociais. Um estudo do
Programa “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e na Argentina
María Alejandra Ciuffolini1
Lúcia Zanin Shimbo2
1. Introdução
A marginalização social, econômica e política de porções
significativas da população na América Latina conflui – na maior parte
dos países – com um constante processo de segregação espacial. Estas
circunstâncias de segregação sócio‐espacial são resultado de um
conjunto de processos políticos‐institucionais e econômicos3 mais
amplos e de longa data, que têm limitado o acesso aos recursos sociais
para parcelas cada vez mais significativas da população.
No que diz respeito às condições de habitabilidade urbana, se
registra uma dinâmica de isolamento espacial especialmente dirigida
aos segmentos mais pobres da sociedade, sendo, como diz Katzman
(2000), o caso paradigmático de exclusão social hoje.
1 Pós‐Graduação em Relações Internacionais (UCC), Mestre em Administração Pública
(UNC), doutora em Ciências Sociais (UBA). Professora e pesquisadora da
Universidade Nacional de Córdoba e Universidade Católica de Córdoba. Diretora da
Equipe de Pesquisa “El llano en llamasʺ. Linha de pesquisa: políticas públicas, lutas e
conflitos sociais.
2 Graduação em Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), mestrado, doutorado em
Arquitetura e Urbanismo (EESC/USP) e pós‐doutorado no Laboratório de Habitação e
Assentamentos Humanos (LABHAB ‐ FAU/USP). Docente e pesquisadora do
Instituto de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo (IAU/USP).
Linha de pesquisa: política habitacional, mercado imobiliário e trabalho no canteiro
de obras.
3 Um tratamento mais detalhado destas questões foi desenvolvido em Ciuffolini (2010a).
241
Esta tendência é observada tanto na Argentina como no Brasil, a
partir de programas e experiências diferentes, mas que paradoxalmente
são nomeados da mesma forma. Os programas ʺMinha Casa, Minha
Vidaʺ, têm um desenho, um alcance e uma implementação
completamente distintos no caso do Brasil e de Córdoba‐Argentina. Este
artigo se propõe a realizar tanto uma análise desses programas,
pontuando suas semelhanças e diferenças, quanto tomar o caso
argentino, por ser mais antigo, como referência analítica e como um
anúncio de um problema empírico de larga escala para o caso do Brasil,
em relação ao impacto sobre as relações sociais e os processos de
subjetivação a que dão lugar.
Dessa forma, o artigo está organizado em duas grandes seções
que abordam cada um dos casos: Córdoba‐Argentina e Brasil. A
primeira, que trata do caso de Córdoba, está organizada em duas
partes: a primeira é uma descrição do ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ
(PMCMV) e a segunda analisa o espaço a partir da lógica de valor,
circulação e significação. A segunda seção aborda o caso do Brasil,
estruturada em duas partes: a primeira refere‐se à descrição do
programa, e a segunda trata das questões relacionadas à produção da
habitação e às tensões entre política habitacional e o PMCMV.
Finalmente, na conclusão, se oferece um conjunto de reflexões sobre os
mecanismos dos programas analisados e seus efeitos, não apenas
habitacionais, mas também sociais e urbanos, a partir de uma
perspectiva comparativa das duas experiências.
2. ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, Córdoba‐Argentina
Um ponto de partida comum tem sido o de entender que a
habitação não é um elemento neutro, mas que possui uma importante
carga de condicionamento e controle; ao mesmo tempo que reflete um
mundo de signos, desejos e frustrações. Essa condição da casa, não
apenas material, mas também simbólica e ideologicamente constituída,
a coloca em conexão direta com a estrutura social e espacial.
242
É por isso que, em nossa investigação4, o programa – PMCMV –
de relocalização de populações em situação de risco ambiental e/ou
social, implica uma análise do processo de deslocalização/
deslocamento, a partir de um marco que entende o espaço como um
recurso organizacional e como uma força de produção do capitalismo
(Lefebvre, 1974; Smith, 1990; Harvey, 2008). Essa abordagem também
exige uma compreensão do espaço como aquele que resulta das lutas
desencadeadas pelo controle e posse de recursos sociais. Em
consequência, solicita uma análise sobre o imaginário social, as relações
de poder e as formas de dominação e resistência que nele se
organizam5.
O processo de deslocalização/deslocamento que o programa
oferece, está guiado pelos imperativos de uma racionalidade técnica,
uma compreensão do urbanismo e da intervenção pública que prioriza
a constituição de um espaço e de uma ordem abstratos e homogêneos:
ʺpaisagem anódina e repetida, cubos replicados...ʺ, no dizer de Gómez
Luque (2010), ʺcidades outrasʺ6.
Da investigação realizada se depreende que, embora as
melhorias habitacionais, de serviços e de equipamentos urbanos7 sejam
4 A pesquisa foi realizada graças ao apoio oferecido pela Secretaria de Ciência e Técnica
e pelo Centro de Investigações Jurídicas e Sociais da F. de Direito e Ciências Sociais da
Universidade Nacional de Córdoba.
5 Situados a partir de uma episteme interpretativa que permite explorar as experiências
de relocalização e suas implicações na subjetividade política, se realizou um dedicado
trabalho de campo em 6 bairros da cidade de Córdoba ao longo de um ano (setembro
de 2008 a novembro de 2009). Foram realizadas um total de 96 entrevistas nos bairros:
Bairro Ciudad de Mis Sueños (18 entrevistas), Bairro Ciudad Obispo Angelelli (19
entrevistas), Bairro Ciudad Ampliación Ferreyra (23 entrevistas), Bairro Ciudad de los
Niños (5 entrevistas), Bairro Ciudad Ampliación Cabildo (23 entrevistas), Ciudad Sol
Naciente (8 entrevistas). O estudo precedente de documentos governamentais e
dados secundários governamentais se serve de de estatísticas oficiais.
6 Gomez Luque, M. “La casa o la ciudad, la arquitectura de los barrios ciudades”. En
Scarponetti, P. y Ciuffolini, M.A. (comps. 2010) Ojos que no ven, corazón que no siente.
Relocalización territorial y conflicto vidad social: un estudio sobre los Barrios Ciudades de
Córdoba. Buenos Aires: Nobuko
7 Os ʺbairros cidadesʺ possuem os serviços básicos (água corrente, energia elétrica,
243
inegáveis, como também o é a envergadura do plano, é igualmente
certo que a remoção e a relocalização de numerosos assentamentos em
direção aos “bairros cidades” têm gerado um complexo leque de novos
problemas e, também, novas formas de precariedade e desigualdade.
2.1. Descrição do Programa ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, em Córdoba
O PMCMV merece uma análise destacada na trajetória das
políticas estaduais de habitação tanto por seu impacto, relativamente
maior, em comparação com outras políticas habitacionais que foram
aplicadas simultaneamente na cidade8, como por apresentar
características singulares e inovadoras para estas latitudes.
Em primeiro lugar, em termos de recursos aplicados, o
programa significou o maior dos investimentos na cidade de Córdoba
em matéria de política habitacional para os assentamentos precários e
para as favelas. Esta escala de aplicação foi possível graças aos recursos
provenientes de crédito do Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID)9, o que solicitou uma adaptação das políticas às orientações e
condições que tal instituição requeria para o outorgamento dos
créditos10.
construída e aproximadamente 300 m2 de terreno). Se pensarmos na família típica,
com média de seis pessoas ou mais, estas medidas condenam a uma intensa
aglomeração; ao que parece, do ponto de vista das políticas públicas, essas
consequências parecem não ter sido levadas em conta no momento de se projetar os
conjuntos habitacionais.
8 Exemplos destes são: 1) O Programa Nacional PROMEBA (Programa Melhoramento
de Bairros), que na cidade de Córdoba tinha conseguido urbanizar apenas três
assentamentos, que reuniu cerca de 700 famílias até o ano de 2007 (Buthet et. all,
2007). 2) A prefeitura da cidade, sob a direção de Luis Juez entre 2004 e 2007, também
foi responsável por urbanizar alguns assentamentos, mas sem muito resultado sobre
o total da população que vive nas vilas.
9 Por outro lado, o orçamento que recebia há anos atrás a Mesa de Concertación provinha
do cálculo de fundos provinciais e nacionais, não de financiamento externo.
10 Ademais das condições gerais de concessão de empréstimos, a proposta de utilização
dos mesmos deve ser compatível com as políticas do BID sobre ʺDesastres Naturais e
Inesperadosʺ (OP‐704), ʺReassentamentos Involuntáriosʺ (OP‐710), ʺDesenvolvimento
urbano e habitaçãoʺ (OP‐751) “Meio Ambienteʺ (OP‐703).
244
A aplicação do plano implicou a relocalização de pouco mais de
35 assentamentos dos 158 que existiam em 2001 (Buthet et.al., 2007). Isso
teve um impacto direto sobre os levantamentos e censos que foram
realizados após sua implementação, que registraram uma diminuição
tanto da quantidade de pessoas que viviam em “favelas de emergência”
como do número de favelas registradas na cidade.
Por sua vez, as condições de administração do PMCMV também
foram inovadoras. Em primeiro lugar, o plano estava enquadrado em
uma nova constelação administrativa que organizava o aparato
burocrático do Estado Provincial em ʺAgênciasʺ, em conformidade com
as propostas de modernização e reforma do Estado11. Isso anunciava
uma nova perspectiva para articular atores privados e públicos no
campo das políticas públicas e realizar mudanças nas modalidades de
projeto e execução12. Em segundo lugar, o plano fez convergir, em sua
estratégia, três unidades administrativas diferentes: o Departamento
Provincial da Habitação do Ministério de Obras e Serviços Públicos, e a
ex‐Agência Córdoba Solidária (antigo Ministério do Desenvolvimento e
Assistência Social e atual Ministério da Solidariedade) e a Agência
Córdoba Ambiente.
O PMCMV foi destinado para os grupos vulneráveis que
habitavam zonas inundáveis13 da cidade de Córdoba, com necessidades
básicas insatisfeitas (NBI). Ele envolveu a relocalização de favelas e
assentamentos de emergência em novos bairros, longe das regiões de
origem. Também contemplou a construção de pequenos assentamentos
com menores dimensões do que os “bairros cidades”.
O programa previa a construção de 12.000 unidades
habitacionais, das quais 8.537 foram realizadas. Estas casas estão
incluídas no Programa de Regularização de Habitações Sociais
(Programa Escrituração de Vivendas Sociales) do Ministério do
Desenvolvimento Social, que concede a escritura gratuita às famílias
11 Leis provinciais de Reforma do Estado: Lei de 8835 (ʺCarta ao cidadãoʺ), Lei 8.836
(ʺModernização do Estadoʺ), Lei 8837 (ʺIncorporação de capital privado ao setor
públicoʺ).
12 Ver Boito et. al (2009), Nallino (2003).
13 Em seguida, se estendeu à população em risco social.
245
beneficiárias, completando o que previa o PMCMV em relação à
regularização de posse.
O programa previu a entrega às famílias de módulos
habitacionais que compreendiam dois quartos, cozinha e banheiro, com
uma área de 42 metros quadrados. Além disso, os “bairros cidades”
foram equipados com escolas de nível inicial e primário, posto policial,
posto de saúde, áreas comerciais e área de esportes, contando, em
alguns casos, com um centro de capacitação – O Conselho Territorial.
Ademais, eles foram equipados com infraestrutura de rede de água
potável, energia elétrica, iluminação pública, calçadas, pavimentação e
rede de esgoto com estação de tratamento da água.
Para levar adiante este Programa, uma equipe da área de
Habitação Social do Ministério da Solidariedade realizou censos com os
beneficiários, anunciando o futuro remanejamento. Posteriormente,
promoveram oficinas para capacitar os novos proprietários quanto ao
manejo adequado da infraestrutura habitacional antes da transferência.
A transferência foi realizada pela Guarda Nacional, forças
policiais e uma equipe do Ministério do Desenvolvimento Social. As
casas desocupadas eram demolidas por tratores presentes no local para
evitar a ocupação das mesmas por outras pessoas, e para realizar a
reabilitação ambiental dessas áreas, conforme estipulava o convênio
com o BID.
O PMCMV foi financiado pelo BID, juntamente com uma
contrapartida da província. O primeiro empréstimo se concretizou em
2000 – empréstimo 1287/OC‐AR – através do qual o BID avalizou o
ʺPlano de Apoio à Modernização do Estadoʺ (Programa de Apoyo a la
Modernización del Estado ‐ PAME)14. Dentro do marco deste programa
tomam corpo o ʺProjeto de Emergência para a Reabilitação Habitacional
dos Grupos Vulneráveis Afetados pelas Inundações na Cidade de
14 BID empréstimo 1287/OC‐AR. Montante total aprovado pelo BID: USD 215.000.000
(USD 93.282.000 corresponderam ao componente de emergência habitacional).
Financiamento: 20 anos, 7,03% de juros anuais. Montante total de contrapartida local
(Província): USD 215.000.000. Data de Aprovação: 2000. Data de finalização do
projeto: 2007. Avalista: Governo Nacional. Além do empréstimo obtido com o BID,
tomadas para este fim de modernização, a Província conseguiu a aprovação de outro
empréstimo pelo Banco Mundial (Córdoba Provincial Reform Loan, 4585‐AR).
246
Córdobaʺ (Proyecto de Emergencia para la Rehabilitación Habitacional de los
Grupos Vulnerables Afectados por las Inundaciones en la Ciudad de Córdoba)
e o programa ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ (PMCMV). Em 2006, este
programa recebe outra ajuda como parte de um segundo empréstimo
concedido também pelo BID à Província de Córdoba: o empréstimo
1765/OC‐AR, conhecido como ʺPrograma de Desenvolvimento Social na
Província de Córdobaʺ (Programa de Desarrollo Social en la Provincia de
Córdoba)15.
Os objetivos do PMCMV eram: contribuir para o melhoramento
integral da moradia e das condições de vida das famílias beneficiárias;
apoiar os processos de organização social, promoção comunitária e
desenvolvimento auto‐sustentável dos grupos que foram afetados pelas
inundações do Rio Suquía, seus afluentes e canais, e as áreas de risco
antrópicas, especialmente aquelas relacionadas às situações de pobreza
e de vulnerabilidade social; relocalizar em um Novo Bairro as famílias
beneficiárias, dando‐lhes uma moradia com serviços básicos e escritura
individual; prover as novas localizações de equipamentos e
infraestrutura social, possibilitando o acesso aos serviços de educação e
saúde; fortalecer os processos de organização social e as redes
comunitárias da população beneficiária; promover a participação das
famílias na gestão do projeto16.
Alguns dos “bairros cidades” criados pelo PMCMV são: Ciudad
de Mis Sueños (565 casas); Ciudad Obispo Angelelli (564); Ciudad Evita
(574); Barrio 29 de Mayo‐Ciudad de los Cuartetos (480); Ciudad de los
Niños (412); Ciudad Juan Pablo II (359); Ampliación Ferreyra (460);
Ciudad Villa Retiro (264); Ciudad Parque Las Rosas‐Matienzo (312);
Ampliación Cabildo (570); Ciudad Esperanza (380) e Ciudad Sol
Naciente (638). Outros bairros incluídos no PMCMV: Barrio
Renacimiento (233); Barrio San Lucas (230); Zepa (380), Villa Bustos
(197), Los Boulevares (98), Parque Liceo (25), El Quebracho Anexo (230),
15 BID empréstimo 1765/OC‐AR. Montante total aprovado pelo BID: USD 180.000.000.
Financiamento: 25 anos, a juros baseados na LIBOR. Montante total de contrapartida
local (Província): USD 35.000.000. Data de Aprovação: 2006. Avalista: Governo
Nacional.
16 Projeto de Emergência para a Reabilitação Habitacional dos Grupos Vulneráveis
Afetados pelas Inundações na cidade de Córdoba.
247
Villa Azalais (359) Argüello Anexo (147 casas), San Lorenzo (574), La
Esperanza (80), Chachapoyas (202), Los Álamos (178), Yapeyú (138),
Villa Boedo (128), Jardín del Pilar (312), Las Lilas (81), Los Chingolos
(266), Santa Isabel (54), San Antonio (188), Inaudi Anexo (60); e na
Grande Córdoba: Malvinas Argentinas (131, nos planos 1 e 2) y Juárez
Celman (412), e o bairro de Alta Gracia denominado Cafferata (76).
A estas características que concedem singularidades ao PMCMV
se acrescenta outra: certa retórica da emergência e da urgência em sua
concepção e justificativa. Trata‐se de um argumento no qual a
ʺemergênciaʺ está associada a uma situação de risco que, enquanto tal,
não pode ser enfrentada com os meios ordinários, e cujo perigo latente
exige um tratamento urgente, diante do qual se requer uma ação
imediata do Estado. Consequentemente, se suspende o tratamento
legislativo que tais medidas implicariam, dando lugar ao uso de
faculdades puras do poder executivo, como o decreto17. Neste caso,
ademais, a agilidade nas ações é uma exigência da agência
financiadora18 – BID –, já que a situação de emergência impõe uma
dinâmica de flexibilidade jurídica, na qual as normas têm a
particularidade de ser pragmaticamente adaptáveis às circunstância
cambiantes.
Em outras palavras, a emergência torna‐se a base para um novo
ʺpacto socialʺ entre os indivíduos e a estatalidade. Como explicou
Murillo (2008), essa nova relação já não se assenta na ideia de direitos
sociais universais, mas sim em uma espécie de novo humanismo que
reduz a questão social à atenção a um mínimo biológico: ʺas
necessidades básicasʺ. A política social tem assim seu eixo em uma
visão ʺminimizadoraʺ das necessidades humanas que tende, por um
lado, a se mostrar com certa aparência de intervenção voluntária ou
moral das políticas de Estado e, por outro lado, digna‐se a legitimar a
17 Esta situação foi formalizada pelo Decreto de Necessidade e Urgência Provincial N º
2565/01 que declara ʺo estado de emergência hídrica e social na capital da província,
em tudo o que ocorre às imediações e margens do Rio Suquía, canais de irrigação,
margens de leite de rios e em áreas sujeitas a inundaçõesʺ.
18 De acordo com o Regulamento Operacional do BID OP 704: ʺPara obter assistência
imediata em caso de desastre, o país mutuário deve declarar um estado de
emergência e solicitar assistência do Banco em função da sequela do desastreʺ.
248
existência de limiares de cidadania ou de diferentes níveis de cidadania
(Ciuffolini e Vega, de 2009; de la Vega, 2010) que negam qualquer
caráter igualitário de direitos.
Esse desenho de intervenção estatal favorece um tratamento ágil
e focalizado dos problemas, em detrimento de uma ação integral que
ofereça soluções ao complexo fenômeno da pobreza. Assim, o PMCMV
atende prontamente a questão da falta de moradia, mas reproduz, em
seu desenho, as formas de exclusão a ela associadas. Nesse sentido, vale
destacar a intensificação da segregação espacial. Isso ocorre porque o
programa opera um deslocamento geográfico dos pobres para as
margens da cidade, agravando outras situações de exclusão, como as de
emprego, de acesso a serviços básicos, como saúde e/ou transporte, etc.
Consequentemente, criam‐se novos ou reforçam‐se velhos padrões de
desigualdade e de acesso e uso da cidade.
O deslocamento massivo e a relocalização de tantos
assentamentos para os ʺbairros cidadesʺ têm ʺliberadoʺ importantes
espaços na área central para empreendimentos privados e públicos,
revalorizando a terra e tornando‐a inacessível aos segmentos de mais
baixa renda. Isso leva a um processo de ʺsuburbanizaçãoʺ, porque a
população se estabelece cada vez mais longe dos núcleos centrais, e
produz uma menor densidade habitacional na cidade. Assim, a área
destinada ao uso urbano aumentou, entre 1991 e 2001, em 320% para
além do crescimento populacional, produto tanto do mercado
imobiliário quanto dos planos estatais de habitação e, ainda, das
famílias que se veem obrigadas a afastar‐se cada vez mais em busca de
terrenos acessíveis.
2.2 O espaço: lógicas de circulação, significação e valor
A estrutura da economia capitalista funciona assumindo todo
aquele conteúdo do qual deseja se proteger. O que ameaça o capital não
é a violência, mas o seu exterior: que exista algo fora dele. Por esta
razão, sua dinâmica é a de um processo constante de reintrodução de
tudo aquilo que lhe é alheio. Este processo de mercantilização
permanente da lógica econômico‐política é o mecanismo através do qual
se administra e promove a reprodução das relações sociais capitalistas.
249
Nesta reprodução intervém – algumas vezes, por momentos
solidários, em outros, competitivos ou conflitantes – o Estado e o capital
privado. O jogo que se estabelece entre ambos reorganiza, redefine ou
mesmo reconfigura o uso do espaço e as significações sociais que são
tecidas sobre ele. Assim, “toda intervenção urbana é acompanhada de
transformações das atividades e dos valores da sociedade considerada,
assim como de transformações efetivas dos indivíduos e dos objetos
sociaisʺ (Castoriadis, 1989:21).
A infraestrutura urbana, sua disponibilidade, acessibilidade e
significado, se mostra, parafraseando a Gonzales Ordovaz (1998)
também, como um mundo de signos, desejos, frustrações, restrições
evidentes de oportunidades de inserção social. Neste sentido, a
habitação, sua localização e sua relação espacial com o centro da cidade
e com os centros de consumo e de trabalho, etc., permitem perceber com
toda clareza a simbologia e a ideologia urbana.
Nesse sentido, o funcionamento do PMCMV se orientou
principalmente a retirar, da zona central e do interior do anel viário que
circunda a cidade, as favelas de emergência e dos pobres. ʺValiososʺ
terrenos foram desocupados para uso público ou para
empreendimentos privados, configurando um novo mapa espacial e
social no qual a pobreza está confinada às periferias da cidade. Essas
dinâmicas do Estado no uso e na valorização de espaços e populações
através de políticas públicas, e a forma como o mercado define algumas
áreas como de boa qualidade e, portanto, de seu interesse, implicam
toda uma engenharia do urbano na qual a população se reacomoda e se
distribui de acordo com as possibilidades financeiras para consumir e
com as oportunidades de trabalhar e de produzir (Cravino, et.al., 2009).
A população recategorizada socialmente leva a constituição de
uma cidade dual: por um lado, a cidade da população produtora,
proprietária, que consome e trabalha; e por outro, a cidade dos
assistidos, desapropriados, trabalhadores precários e consumidores
intermitentes. Nesses dois espaços se entrelaçam, de maneira
diferenciada, a reprodução capitalista das relações sociais e a
cotidianidade.
É a interconexão, as articulações e as tensões reais ou potenciais
entre esses espaços, que dão origem às relações de classe específicas que
250
são produzidas pelos processos históricos – ou seja, em um espaço‐
tempo particular – de posicionamento e espacialização do trabalho, das
relações sociais e das interações face‐a‐face.
Visto desta forma, o espaço compreende as barreiras no mapa
(arquitetônica e socialmente delimitadas) e nos horizontes da vida
social. A divisão espacial oferece uma série de possibilidades
estrategicamente seletivas, no sentido de desenvolver relações sociais
através do tempo e do espaço (Jessop, 2007:33). Precisamente, o que
queremos dizer é que o espaço, o lugar, o tempo e a interação
favorecem ou não uma conjuntura de insurgência e resistência. Por
outro lado, os deslocamentos e relocalizações implicam destruição de
redes de interação, de solidariedades tecidas no tempo e no espaço
(Hernandez, Mestres e Liberal Ibáñez, 2010).
O movimento massivo de população pobre que implicou o
PMCMV teve como consequência não só o desenraizamento, mas
também o desmantelamento das estratégias de sobrevivência que os
pobres haviam constituído ao longo do tempo, as quais implicavam
redes de controle e solidariedade tanto entre os sujeitos como em
relação à comunidade. Especialmente problemático foi o impacto sobre
as relações de trabalho, já que em suas antigas localizações tinham
acesso fácil e próximo a oportunidades de emprego – quer fossem
trabalhos precários e temporários, quer fossem serviços domésticos ou
trabalhos domiciliares, como costura, carpintaria, etc. –, e o
distanciamento que a erradicação implicou em relação aos demais
setores sociais os colocou à margem do trabalho e, inclusive, de outras
instâncias de integração, como escolas e serviço de saúde.
Além disso, e concomitantemente com a política de erradicação
de favelas, ocorre em Córdoba a implantação de uma política de
segurança que reforça ainda mais a exclusão. Ela consiste em limitar
e/ou controlar a circulação da população pobre – especialmente jovens
do sexo masculino – para além das fronteiras que delimitam os bairros.
Assim, a mobilidade dos segmentos populares pela cidade é regulada
pela força policial e sua política estigmatizante, que atribui à pobreza –
assim, em geral – as práticas da delinquência e do crime.
Essa concomitância de políticas de habitação para setores
populares e políticas de segurança agudizam as práticas de exclusão,
251
confinando os pobres a situações cada vez mais precárias de vida. As
dinâmicas institucionais e econômicas se combinam em sua ação
cotidiana, resultando em formas de regulação, disciplinamento e
reprodução das relações sociais classistas e capitalistas.
Em síntese, nas cidades se expressam com toda transparência,
através das localizações, dos percursos e dos consumos que se habilitam
a determinados grupos, os signos das classes sociais. O espaço urbano,
seu traçado, desenho, infraestrutura e aspectos semióticos fazem dele
um espaço ocupado, carregado de qualidades, de relações, sentidos, ou
seja, de significados que falam a respeito de poder, prestígio e status
social, e definem, para cada grupo em particular, possibilidades e
restrições no acesso e uso do comum, isto é, da cidade.
3. “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e o protagonismo do mercado
na política habitacional
O Programa “Minha Casa, Minha Vida” foi lançado em 2009 no
Brasil, portanto, quase uma década depois do programa homônimo
implementado em Córdoba. Assim como o PMCMV de Córdoba
merece uma análise especial dentre os programas estaduais, o PMCMV
– Brasil representa um marco na trajetória dos programas nacionais de
habitação dado o volume de investimentos públicos e privados, a
quantidade de unidades habitacionais a serem produzidas e a sua área
de abrangência, levando alguns autores afirmar que “talvez seja o
programa habitacional mais ambicioso já desenvolvido no país, mesmo
considerando os ‘áureos tempos’ do BNH [Banco Nacional de
Habitação]” (Cardoso e Lago, 2013: 14).
Mais do que isso, o programa vem corroborar o protagonismo
do mercado imobiliário na política habitacional brasileira, que já vinha
sendo privilegiado em diversas medidas regulatórias e institucionais
desde meados dos anos 1990. Para Arretche (2002), os programas
habitacionais voltados para os setores de renda mais baixa seguiram
duas vertentes desde então. A primeira vertente dava continuidade ao
modelo baseado na promoção pública, por intermédio de Estados e
municípios, já praticado desde o Banco Nacional de Habitação (BNH),
252
entre 1960 e 1980.19 A segunda vertente, entretanto, rompia com o
desenho institucional do modelo anterior: instaurava‐se a linha de
financiamento direto ao mutuário final e introduzia um novo
“paradigma” na provisão de habitação brasileira, pautado nos
princípios de mercado.
A “abordagem de mercado” da política habitacional das duas
gestões de governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995‐
2002), apesar de apresentar uma significativa redução na capacidade de
financiamento diante de um cenário de recessão econômica, inovou ao
criar o programa “Carta de Crédito” que permitia o acesso direto dos
consumidores, sem a intermediação de incorporadoras ou órgãos
públicos de promoção de moradia – como era necessário até então ‐
para a aquisição de financiamento para obtenção da casa própria, tanto
de um imóvel novo ou usado. Esse programa utilizava os dois
principais fundos de financiamento habitacional, estabelecidos desde o
BNH: o Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS) e o Sistema
Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE).20
A partir de 2005, a produção privada de moradias se
potencializou com a entrada do capital financeiro em grandes empresas
construtoras e incorporadoras e com o vertiginoso aumento de recursos
19 Nos seus vinte e dois anos de existência, entre 1964 e 1985, o BNH financiou a
produção de 4,45 milhões de unidades habitacionais, correspondendo a 25% do total
de novas unidades construídas no país – e dessas 4,45 milhões de unidades, somente
33,1% foi destinada para faixas de renda de 1 a 3 salários mínimos. (Royer, 2009). O
modelo de financiamento habitacional adotado desde então no Brasil, dentro do
Sistema Financeiro da Habitação (SFH), foi o de criação de instrumentos de captação
de poupanças privadas (voluntárias no caso do Sistema Brasileiro de Poupança e
Empréstimo – SBPE; e compulsórias, no caso do Fundo de Garantia de Tempo de
Serviço – FGTS), para aplicação primordial em investimentos habitacionais, tanto na
esfera da produção quanto na do consumo (Cardoso e Aragão, 2013).
20 De acordo com Cardoso e Aragão (2013), os recursos do FGTS são destinados ao
investimento habitacional para o atendimento de população de baixa renda e também
para o financiamento de investimentos em saneamento ambiental, remunerados a
baixas taxas de juros, sendo atualmente operacionalizados pela Caixa Econômica
Federal. Já os recursos das cadernetas de poupança, que compõem o SBPE, são
administrados pelo sistema bancário (público e privado), remunerados a uma taxa
um pouco superior ao do FGTS e destinados primordialmente ao financiamento
habitacional para os setores de renda média. (Cardoso e Aragão, 2013: 17‐18)
253
públicos para o financiamento habitacional para obtenção da casa
própria, além de outros fatores conjunturais, tais como o crescimento
econômico do país, a redução das taxas de juros e a elevação real do
valor do salário mínimo.
A ampliação da capacidade de financiamento habitacional era
prevista na Política Nacional de Habitação (PNH), elaborada em 2004
pelo primeiro governo federal de Luiz Inácio Lula da Silva (2003‐2006),
que buscava ampliar o mercado para atingir os “setores populares”,
permitindo a “otimização econômica dos recursos públicos e privados
investidos no setor habitacional”. Para tanto, era prevista a criação de
mecanismos tanto de proteção aos financiamentos habitacionais como
de captação de recursos, entre os quais, aqueles disponíveis no mercado
de capitais. (Brasil, 2004).
Além disso, o Ministério das Cidades foi criado, em 2003, com
um caráter de órgão coordenador, gestor e formulador da Política
Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), e sendo responsável
pela gestão da política habitacional. Entretanto, ele perdia força
operacional diante da manutenção da Caixa Econômica Federal
(CAIXA)21, subordinada ao Ministério da Fazenda, e que continuou e
continua a exercer enorme poder na execução da política habitacional,
como agente operador dos programas e principal agente financeiro dos
recursos do FGTS.
Desde então, os agentes privados souberam atuar na
liminaridade entre o que a política especificava como “habitação de
interesse social” e como “habitação de mercado”, tirando proveito disso
e expandindo consideravelmente a produção habitacional para os
setores populacionais de renda média e baixa, até então desprezados
pelas grandes empresas construtoras nacionais. Muitas dessas empresas
produziram um estoque de unidades habitacionais, cujos preços
variavam até o limite máximo de USD 100 mil, em diversas cidades
21 Desde a falência do BNH, a CAIXA se tornou o principal agente operador e financeiro
dos programas habitacionais. Assim, segundo Azevedo (2007), houve a transferência
do problema da habitação a uma agência financeira de vocação social, mas que não
deixa de lado os paradigmas institucionais de um banco comercial (como, por
exemplo, a busca de equilíbrio financeiro, necessidade de retorno do capital aplicado
etc.).
254
brasileiras, dentro daquilo que o mercado imobiliário passou a chamar,
grosso modo, de “segmento econômico”.22
A crise financeira internacional ocorrida no final de 2008
ameaçou, de certa forma, a comercialização desse estoque (seja em
unidades já produzidas, seja em terrenos adquiridos) e a continuidade
da expansão da produção habitacional levada a cabo por grandes
empresas. Em março de 2009, PMCMV‐Brasil foi lançado com o objetivo
de construir um milhão de moradias e foi apresentado como uma das
principais ações do governo em reação à crise econômica internacional e
também como uma política social de grande escala. Ao mobilizar um
conjunto de medidas de estímulo à produção habitacional, mantendo o
desenvolvimento dos setores imobiliário e da construção civil, o
programa atendia dois imperativos econômicos e sociais – por um lado,
a criação de empregos no setor da construção, e, por outro, a provisão
de moradias. Segundo Fix e Arantes (2009), se as “classes C e D”23 já
haviam sido descobertas por quase todas as empresas nos últimos anos,
ainda havia limites para a efetivação desse mercado, os quais o pacote
pretendia, a princípio, superar por meio do “apoio decisivo dos fundos
públicos e semipúblicos”.
22 Em Shimbo (2012), há o desenvolvimento do argumento de que a habitação social
transformou‐se, de fato, num mercado. O mercado imobiliário descobriu e constituiu
um nicho bastante lucrativo: a incorporação e a construção de unidades habitacionais
com valores até duzentos mil reais (ou USD 100 mil), destinadas para famílias que
podem acessar os subsídios públicos ou não – mas que necessariamente acessam o
crédito imobiliário. Assim, há uma fronteira de indistinção, que se estabelece
empiricamente, entre a forma de produção destinada à habitação de interesse social e
aquela voltada para a habitação de mercado. Ou seja, considero que numa eventual
gradação que procure classificar, num extremo, a produção pública e, no outro, a
produção privada, há uma zona intermediária híbrida – a “habitação social de
mercado”.
23 Há estudos no Brasil, baseados nos dados de renda domiciliar mensal, que classificam
a população em cinco classes de renda. Neri (2008) especifica a seguinte classificação:
a classe E são aquelas famílias que recebem até R$768,00 (ou aproximadamente até
USD 450, em dólares de março de 2008) de renda mensal; a classe D, entre R$768,00 e
1.064,00 (entre USD 450 e 630); a classe C (ou “classe média”), entre R$1.064,00 e
4.591,00 (entre USD 630 e 2,700); e classes A e B, acima de R$4.591,00 (acima de USD
2,700). Esse estudo apontou para o aumento, nos últimos anos no Brasil, da
participação da classe C. Vale destacar ainda a renda domiciliar média, R$ 1.957,00
(ou USD 1,150). Cf. NERI, 2008.
255
3.1 Descrição do Programa “Minha Casa, Minha Vida” ‐ Brasil
Na Fase 1 do PMCMV‐Brasil, para a construção de um milhão
de moradias em todo o território nacional foram alocados R$ 34 bilhões
(ou USD 14 bilhões, em dólares de março de 2009), dos quais 75% eram
provenientes do Orçamento Geral da União (estritamente público e,
portanto, a fundo perdido) e 25% do FGTS (recursos onerosos a serem
devolvidos ao Sistema Financeiro da Habitação ‐ SFH). Desses recursos,
82% se destinavam para subsídios para moradias, 15% para
infraestrutura urbana e 3% para financiamento à cadeia produtiva.
(Ferreira, 2012; Cardoso e Aragão, 2013)
Em 2011, foi lançada a Fase 2 do programa, com a meta de se
construir mais 2 milhões de unidades, contando com recursos entre R$
120 bilhões e R$ 140 bilhões (ou entre USD 72 bilhões e USD 84 bilhões,
em dólares de março de 2011), de acordo com reportagens no momento
do lançamento, sem haver uma divulgação precisa da quantidade de
recursos proveniente de cada fundo. A meta física foi ampliada em
2012, passando para 2,4 milhões de unidades habitacionais.
O PMCMV‐Brasil se apresenta formalmente como um único
programa habitacional, mas que se estrutura operacionalmente em
linhas ou modalidades distintas, de acordo com faixa de renda dos
beneficiários, origem dos recursos e instituição proponente. Tais linhas
estão agrupadas em, basicamente, duas faixas de renda: de 0 a 3 salários
mínimos (SM)24 e de 3 a 10 SMs – posteriormente, a referência deixou de
ser o salário mínimo e passou a ter um valor fixo, ou seja, a primeira
faixa até R$ 1.600,00 (ou aproximadamente USD 960, em dólares de
março de 2011) de renda familiar mensal e a segunda, entre R$ 1.600,00
e R$5.000,00 (ou entre USD 960 e USD 3.000). Na primeira faixa, há o
subsídio com o uso de recursos do Orçamento Geral da União. Na
segunda, uma pequena parte é composta por recursos não onerosos
(utilizados como “descontos”) e a grande maioria advém de recursos
onerosos provenientes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
24 Em outubro de 2012, um salário mínimo equivale a R$622,00 ou, aproximadamente,
USD 300.
256
(FGTS). Em ambas as faixas, a CAIXA é o agente financeiro do
programa. (Ferreira, 2012)
Analiticamente, a primeira faixa corresponde aos programas de
habitação de interesse social já operacionalizados no Brasil desde a
primeira gestão Lula, com algumas mudanças quanto ao montante de
recursos, aliás, bastante considerável, e ao papel dos agentes
promotores. A segunda faixa incorpora o segmento econômico à
política habitacional, tornando‐se evidente o incentivo do poder público
aos agentes privados na produção de habitação voltada para os setores
de renda média baixa e média.
Em termos de gestão e de operacionalização, para a primeira
faixa, é possível notar que o PMCMV‐Brasil foi paulatinamente
absorvendo linhas de financiamento que não estavam presentes no
momento do seu lançamento, indicando um processo de acomodação e
de aperfeiçoamento do próprio programa durante sua implementação.
Em 2009, o programa enfatizava a produção “por oferta” via
construtoras e aqui trazia uma novidade quanto ao papel dos agentes
promotores. Nesse caso, “a construtora define o terreno e o projeto,
aprova‐o junto aos órgãos competentes e vende integralmente o que
produzir para a CAIXA, sem gastos de incorporação imobiliária e
comercialização, e sem risco de inadimplência dos compradores ou
vacância das unidades”. (Cardoso e Aragão, 2013: 37). A CAIXA
seleciona e aprova as propostas das construtoras e define o acesso às
unidades, a partir de listas de demanda, elaboradas pelas prefeituras
municipais. Além desse cadastro, as prefeituras podem participar por
meio da doação de terrenos, isenção tributária, desburocratização nos
processos de aprovação e flexibilização das normas urbanísticas para
aumentar os índices de ocupação do solo. Portanto, nessa modalidade,
estão envolvidos, basicamente, empresas, CAIXA e municípios.
Numa outra modalidade, com menor recurso disponível que a
anterior, o agente promotor pode ser uma entidade sem fins lucrativos
(cooperativas, associações de moradia etc.) que apresenta seu projeto à
CAIXA que, por sua vez, efetua a análise e encaminha para o Ministério
das Cidades, que faz a seleção dos projetos. Após aprovado, a entidade
selecionada envia a lista de beneficiários a serem atendidos. Nessa
modalidade, encontravam‐se as entidades ligadas às famílias
257
moradoras em áreas rurais e os agentes principais eram: entidade sem
fins lucrativos, CAIXA e Ministério das Cidades.
Em 2013, o PMCMV‐Brasil passou a ter outras linhas de
financiamento, absorvendo municípios com menos de 50 mil habitantes
e a questão da moradia rural e, portanto, abrange agora a quase
totalidade dos programas habitacionais anteriores ao PMCMV. Assim,
atualmente, há para as famílias com renda mensal até R$ 1.600,00, as
seguintes linhas:
1. PMCMV Empresas: com recursos provenientes do Fundo de
Arrendamento Residencial (FAR), voltado para capitais estaduais,
regiões metropolitanas e municípios com população igual ou superior a
50 mil habitantes, com operacionalização “por oferta” via construtoras,
como explicado acima.
2. PMCMV Entidades: com recursos do Fundo de Desenvolvimento
Social (FDS), voltado para áreas urbanas de todo o território nacional,
com operacionalização “por oferta” via entidades sem fins lucrativos.
3. PMCMV Oferta Pública: com recursos do Orçamento Geral da União
(OGU) voltado para municípios com até 50 mil habitantes (que não
eram atendidos pelo PMCMV – Fase 1), com operacionalização
diferente dos anteriores, na medida em que ocorre por oferta pública de
recursos a agentes financeiros privados autorizados pelo Ministério das
Cidades (e não pela CAIXA).
4. Programa Nacional de Habitação Rural: voltado para áreas rurais de
todo o território nacional. Divide‐se em três sublinhas: i) Para famílias
com renda anual bruta de até R$ 15.000,00: com recursos do Orçamento
Geral da União; ii) Para famílias com renda anual bruta de entre R$
15.001,00 e R$ 30.000,00: com recursos do FGTS; iii) Para famílias com
renda anual bruta de entre R$ 30.001,00 e R$ 60.000,00: com recursos do
FGTS. Vale destacar que é a única modalidade do PMCMV que
apresenta a linha de financiamento para reforma e ou ampliação de
unidades habitacionais.
Já para a segunda faixa, destinadas às famílias com renda entre
R$ 1.600,00 e R$ 5.000,00, a operacionalização não se alterou desde 2009,
embora os valores máximos de financiamento das unidades
habitacionais tenham sido aumentados, devido à pressão política das
próprias construtoras. O modelo operacional é o seguinte: “as
258
construtoras ou incorporadoras apresentam projetos de
empreendimentos à CAIXA, que realiza pré‐avaliação e autoriza o
lançamento e a comercialização.” (Cardoso e Aragão, 2013: 39). Após a
conclusão da análise, a construtora pode obter um Contrato de
Financiamento à Produção ou apenas enquadrar seu empreendimento
para ser comercializado dentro do programa. A comercialização é feita
pelas construtoras ou pelos “feirões” da CAIXA e os consumidores
podem obter uma carta de crédito dentro do PMCMV para financiarem
a aquisição do imóvel. Para as famílias com renda até R$ 3.100,00, há a
possibilidade de subvenção de até R$ 23.000,00, variando de acordo
com a renda e com a localidade. Nessa faixa, portanto, os agentes se
resumem às construtoras e à CAIXA.
Em relação às metas físicas do PMCMV, é possível notar uma
grande alteração em relação aos números de unidades previstas em
cada uma das faixas entre as Fase 1 e 2 do programa25. Em primeiro
lugar, na Fase 1, evidencia‐se o direcionamento dos recursos para o
segmento econômico do mercado imobiliário, destinando 60% do total
do número de unidades habitacionais, ou seja, 600 mil unidades, para as
faixas de renda que representam apenas 10% do déficit habitacional
brasileiro26, ou seja para as famílias com renda entre R$ 1.395,00 e R$
4.650,00. E, para a faixa de renda de até 3 SMs (ou até R$ 1.395,00), que
concentra aproximadamente 90% do déficit, foram destinadas, 40% das
unidades, ou seja, 400 mil unidades.
Em segundo lugar, reforça o argumento de que o programa foi,
aos poucos, se acomodando e se voltando para as modalidades da
habitação social strictu sensu – na Fase 2, a faixa até 3 SM passa a
concentrar 67% do total das unidades previstas, ou seja, 1,2 milhão de
unidades. Mesmo assim, não corresponde ainda à proporcionalidade do
déficit por faixa de renda. A atuação dos agentes privados no PMCMV
prepondera em todas as faixas, pois entre as diferentes modalidades da
25 Tais números encontram‐se compilados por Cardoso e Aragão (2013) e Brasil (2013).
26 O déficit habitacional brasileiro estimado em 2007 é de 6,273 milhões de domicílios,
dos quais 83% estão localizados nas áreas urbanas. Desse total, 89,4% se refere à faixa
da população com renda média familiar mensal de até três salários mínimos (SM),
correspondendo a 4,616 milhões de domicílios; 6,5% na faixa entre três e cinco SM
(333 mil); 4,1% na faixa acima de cinco SM (209 mil). Cf. Brasil, 2009.
259
Faixa 1, na Fase 2 do PMCMV, apenas 60 mil unidades são destinadas
às entidades sem fins lucrativos.
Apesar do déficit habitacional não ter sido uma referência para o
cálculo das metas físicas, ele foi utilizado na distribuição dos recursos
entre as diversas unidades da federação, de forma proporcional, ou seja,
quanto maior o déficit do estado, maior a cota máxima de acesso aos
recursos do respectivo estado. (Cardoso e Aragão, 2013)
3.2 A produção do “Minha Casa, Minha Vida” – Brasil e a
consolidação de um mercado de habitação
O PMCMV‐Brasil veio legitimar e consolidar um “padrão
econômico” da habitação ‐ ou affordable housing, em inglês, que já vinha
sendo esboçado desde o final dos anos 1990. Castro e Shimbo (2011)
analisam a trajetória desse padrão, inicialmente proposto pelas
empresas que atuavam com autofinanciamento e por cooperativas
autofinanciadas na década de 1990, que foi, posteriormente,
potencializado por grandes empresas (em grande parte, financeirizadas)
com forte apoio estatal antes mesmo do PMCMV.
O padrão arquitetônico e urbanístico da habitação social de
mercado que vem sendo implementado desde então pode ser resumido
em três modalidades básicas: conjuntos de edifícios verticais (em
grande parte, edifícios de até cinco pavimentos sem elevador);
empreendimentos horizontais (casas térreas ou sobrepostas, em muitos
casos, geminadas); e uma combinação das duas modalidades anteriores
no mesmo terreno. Em grande parte, estão presentes os muros que
circundam o empreendimento e prepondera a forma “condomínio” de
gestão desses espaços.
A padronização dos produtos habitacionais aponta, por um
lado, para processos de produção mais racionalizados e, em alguma
medida, industrializados. Por outro, ela não significa necessariamente
uma qualidade arquitetônica, urbanística e construtiva. Nesse sentido, é
marcante a compacidade da área interna da unidade, a concentração de
um alto número de unidades por empreendimento e a presença de
áreas de lazer (mesmo que diminutas) conformando aquilo que
diversos autores têm denominado como “condomínio clube”. Além
260
disso, o mesmo padrão é repetido em diferentes regiões do país,
independente das condições climáticas, culturais e morfológicas do
local (Ferreira, 2012).
Além da baixa qualidade arquitetônica e urbanística, outra crítica
frequente ao PMCMV‐ Brasil diz respeito aos efeitos territoriais de sua
produção. Cardoso (2013) compila estudos recentes sobre essa questão
em quatro regiões metropolitanas do Brasil (Rio de Janeiro, Belém,
Fortaleza e Goiânia) que discutem a periferização dos empreendimentos
do PMCMV e destacam a falta de articulação desses novos
empreendimentos tanto com a política urbana municipal (os Planos
Diretores) quanto com o plano local de habitação de interesse social.
Esse descolamento não se restringe apenas às políticas de
desenvolvimento urbano, mas também a outros programas sociais
regulados pelo próprio governo federal. Isso porque a seleção da
demanda para a Faixa 1 do PMCMV‐Brasil fica a cargo das prefeituras
locais. Os critérios para seleção dos beneficiários podem priorizar
moradores de áreas de risco ou de assentamentos irregulares ou de
outros locais que apresentam precariedades habitacionais, e até mesmo
beneficiários de outros programas de transferência condicionada de
renda (como, por exemplo, o Bolsa Família), mas não só. E é aqui que
pode entrar a margem para um atendimento clientelista das prefeituras
locais, pois o critério principal é a renda familiar.
Portanto, o PMCMV‐Brasil não procura constituir propriamente
uma política de habitação, que estaria centrada numa lógica universal
dos direitos e que pautariam o conteúdo normativo da política pública –
ou a “verdadeira política pública”, como lembra Dagnino (2002)27.
Trata‐se, genericamente, de “um programa de crédito tanto ao
consumidor quanto ao produtor”, como sintetiza Cardoso e Aragão
(2013:40). Portanto, os parâmetros financeiros e a solvabilidade do
27 Dagnino (2002) problematiza as críticas em torno dos “encontros” entre sociedade
civil e Estado que ressaltam, como um dos resultados desse encontro, a criação de
políticas fragmentadas, setorializadas, compensatórias etc. – em contraponto ao que
seria “a verdadeira política pública”. Para a autora, é necessário que se explicitem os
pressupostos dessas críticas e se aprofunde na questão que está implícita nelas –
modelos alternativos de formulação de políticas públicas – e que se remete ao âmbito
mais amplo dos modelos de gestão do Estado.
261
sistema importam muito mais do que o conteúdo universalizante da
política e a articulação com a produção da cidade ‐ que requisitaria uma
abordagem integrada entre política habitacional, política urbana,
política fundiária e política social.
A partir do momento em que o paradigma da política
habitacional passa a ser regido pela lógica privada – como Arretche
(2002) já anunciava desde a década de 1990 –, o modelo de gestão
empresarial cabe perfeitamente na operacionalização da própria
política. Ambos, Estado e empresa, procuram rápidos resultados e a
solvabilidade do sistema (ou dos negócios). Para o PMCMV‐Brasil, que
se lançou com a meta total de se produzir 3,4 milhões de unidades
habitacionais, é interessante que esse número seja atingido em curto
prazo, o que só poderia ser viabilizado pela “eficiência” da iniciativa
privada, segundo uma visão de mercado sobre a política.
O importante aqui é destacar que a habitação social
transformou‐se, de fato, num mercado no Brasil, em termos de sua
lógica de produção. Ou, em outras palavras, o mercado imobiliário já
havia descoberto, antes do PMCMV‐Brasil, um nicho bastante lucrativo: a
incorporação e a construção de unidades habitacionais com valores até
cem mil dólares, destinadas para famílias que podem acessar os
subsídios públicos ou não – mas que necessariamente acessam o crédito
imobiliário.
4. Considerações Finais
O comum a toda forma social de dominação é que ela se
configura no e pelo espaço, em estreita relação com a lógica da produção
e da circulação. Esse processo de inscrição espacial, dos modos de
produzir, consumir e, especialmente, habitar, é condição necessária para
a configuração das relações sociais, suas possibilidades e restrições.
Nesta operação de demarcação, ocupa um lugar privilegiado a
infraestrutura urbana, sua disponibilidade, acessibilidade e significado,
que expõe claramente o mundo dos signos, desejos, possibilidades,
frustrações, restrições expressas, oportunidades de inserção social em
um momento determinado. Mas, no interior da infraestrutura urbana, é
a moradia, sua localização e sua relação espacial com o centro urbano e
262
com os centros de consumo, trabalho, lazer, etc., aquilo que permite
apreciar de modo privilegiado a simbologia e ideologia urbana.
Consequentemente, quando se analisam programas de
habitação, tem‐se a oportunidade de aprofundar a análise do impacto
social, econômico e político dos mesmos, além de observar sua
implementação, pertinência e seus resultados. No desenvolvimento
deste artigo, oferecemos uma minuciosa descrição dos Programas
ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, postos em marcha em ambos os países, na
tentativa de explicar seus mecanismos e seus efeitos, não apenas
habitacionais, mas também sociais.
A primeira questão em relação a esses programas, é que embora
seus nomes sejam idênticos28, os conteúdos, as escalas, os agentes, as
formas de produção e de regulamentação são totalmente distintos.
Entretanto, os empreendimentos habitacionais produzidos e os espaços
urbanos resultantes em ambos os programas são muito semelhantes.
Trata‐se da produção de grandes assentamentos que conformam ora
condomínios fechados, ora “bairros‐cidades”.
Uma segunda questão na qual podemos encontrar outra
semelhança é o processo de segregação sócio‐espacial, que no caso de
Córdoba se manifesta explicitamente, enquanto no Brasil, que tem
linhas e modalidades diferenciadas, parece afetar especialmente a
parcela de beneficiários com menores salários. Estudos recentes indicam
justamente que os empreendimentos da Faixa 1, portanto das famílias
mais pobres, encontram‐se localizados em áreas de expansão urbana,
mais afastados dos centros do que os empreendimentos das Faixas 2 e 3,
voltados para população com maior renda.
Entretanto, no Brasil, o programa é muito recente para se
analisarem os efeitos sociais e territoriais advindos desse tipo de
aglomeração urbana e de habitação. O caso argentino é emblemático e
serve como referência sobre o que pode acontecer no Brasil, numa
escala muito mais ampliada, em relação ao aprofundamento de práticas
de exclusão e de constituição de territórios de precariedades, sejam elas
habitacionais, urbanas e sociais.
28 E, neste aspecto, outro estudo seria necessário para verificar se o nome argentino
inspirou o caso brasileiro, que pode ser uma possibilidade plausível em épocas de
internacionalização de programas sociais, ou se foi apenas uma coincidência.
263
Outra semelhança entre ambos os programas é sua baixa
qualidade arquitetônica e urbanística. Os emergentes desequilíbrios
territoriais gerados pelas intervenções por meio das políticas públicas
impactam, de maneira imediata, sobre os percursos e os usos sociais do
espaço. O deslocamento para as áreas suburbanas e escassamente
equipadas tem como resultado uma experiência controversa entre a
condição de classe e o status de cidadãos. A brecha aberta entre um
status e outro, e as contradições entre eles, são um terreno igualmente
fértil para a constituição de dois processos completamente opostos. O
primeiro faz da contradição, e da consciência acerca dela, o lugar
privilegiado para a constituição do político como resistência à
dominação: as lutas políticas e sociais são gestadas precisamente na
experiência que os indivíduos têm desta inconsistência. O segundo se
edifica a partir das experiências de desprezo – dor, raiva ou indignação.
Os processos de exclusão violam os pressupostos normativos da
interação e da coesão e afetam de modo direto os sentimentos morais
dos sujeitos (Honneth, 2009, p.263). Desse modo as formas estruturais
de desprezo estão associadas aos sentimentos de injustiça.
No que diz respeito às diferenças, cabe destacar que, embora
ambos os programas se apresentem formalmente como um único
programa habitacional, no caso do Brasil, ele se estrutura
operacionalmente em linhas ou modalidades distintas, de acordo com
faixa de renda dos beneficiários, origem dos recursos e instituição
proponente. Já em Córdoba há uma única modalidade de operação, que
se constitui através de financiamentos provenientes sobretudo de
crédito internacional, e em menor medida de fundos próprios do
governo provincial. Ademais, esse último é implementado diretamente
a partir do âmbito governamental, sendo que seu produto é a moradia
já construída. No caso do PMCMV‐Brasil, de outro modo, trata‐se,
genericamente, de “um programa de crédito tanto ao consumidor
quanto ao produtor”29, com fundos públicos ou com fundos controlados
pelo Sistema Financeiro da Habitação, todos de origem nacional –
29 Um programa de alcance nacional como o PMCVM‐Brasil, que trabalha desde a
operação do financiamento, é o programa PROCREAR, implementado pelo Governo
Federal.
264
apesar da entrada de capital financeiro internacional nas grandes
empresas construtoras.
Em ambos os programas, a produção da habitação está dentro
de um processo de mercantilização mais amplo de políticas sociais.
Nessa produção e reprodução intervêm – de maneiras por vezes
solidárias, em outras competitivas ou conflitantes – o Estado e o capital
privado. No caso brasileiro, houve a constituição de um mercado de
habitação social, que embora requisite fundos públicos, está pautado
por critérios de eficiência privada. Como apontou Oliveira (1998, p.13),
para se construir “o pretenso mercado auto‐regulado, que dispensaria
tudo o mais a não ser os próprios critérios da lucratividade”, é
necessário “muito Estado, muitos recursos públicos”. Nesse sentido,
houve uma mudança recente das relações do fundo público com os
capitais particulares e com a reprodução da força de trabalho: o fundo
público funciona como prerrogativa (“ex‐ante”) das condições de
reprodução e não mais como “ex‐post”, típico do capitalismo
concorrencial. Isso significa, ainda de acordo com Oliveira (1998, p.21),
que a “per‐equação da formação da taxa de lucro passa pelo fundo
público, o que o torna um componente estrutural insubstituível”. No
caso do PMCMV‐Brasil, além dessa per‐equação, a decisão sobre as
formas de regulamentação do fundo público passou também pelas
empresas.
Para finalizar, e ir além das semelhanças e diferenças
decorrentes dos programas ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ antes pontuadas,
cabe ressaltar que tanto no Brasil como em Córdoba‐Argentina o déficit
habitacional é muito elevado e afeta fortemente o segmento mais pobre
da população. Daí a importância dos programas habitacionais, como
espaços de constituição de direitos e formas de inclusão social. No
entanto, a validade e a legitimidade dos mesmos são postas em xeque
toda vez que, por meio deles, se procede a uma nova exclusão, isto é,
quando suas formas de operacionalização aumentam a segregação
sócio‐espacial já existente, e obstruem ou restringem o acesso e o uso da
cidade como espaço comum e inclusivo.
265
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269
270
A tradução contemporânea das demandas populares (ou do conflito
que emerge do universo popular) nos espaços públicos:
o caso do Córdoba, Argentina
Gerardo Avalle1
1. Introdução
O modo de inscrição das demandas populares nos espaços
públicos é um fenômeno que adverte sobre as dinâmicas da
inclusão/exclusão que assume cada sociedade. Particularmente, o modo
como esses horizontes de expectativas são processados por dispositivos
governamentais torna visíveis as tensões do presente.
Estas formas de nomeação, de construir e de impregnar os
sentidos da política, estão longe de ser uma pretensão unívoca. Ao
contrário, tanto espaço público, política, como Estado e governo são
conceitos que, para além da institucionalidade que os acompanham, são
objeto de permanentes disputas e tensões, uma disputa permanente de
posições, onde alguns dominam e outros resistem, que representam as
formas de dominação do presente e as relações de força que
sedimentam.
Consequentemente, um olhar que se aproxime das linguagens
que assumem as demandas populares, e de sua inscrição nos interstícios
da política, implica necessariamente identificar as instâncias de
tradução – institucionais – onde o potencial da resistência é transcrito
nas ordens da administração pública. Isto não significa, de sobressalto,
o desaparecimento do conflito; pelo contrário, de nossa perspectiva é o
início do desacordo e da resistência a serem processados pelo sistema
político. Nesse sentido, observar as linguagens com que as políticas
públicas – e especialmente as sociais – interpelam e processam as
1 Pós‐graduado em Ciência Política (UCC), mestre em Sociologia (UNC), estudante de
PhD em Política e Governo (UCC‐UCM). Professor de Sociologia e Metodologia na
Universidade Católica de Córdoba, professor de pós‐graduação na Universidade
Nacional de Córdoba. Pesquisador UCC em conflitos e lutas sociais. Membro da
equipe de pesquisa El Llano em Llamas.
271
expectativas populares permite compreender os dispositivos
governamentais empregados sobre a população.
A gramática popular adverte sobre o avesso de uma política de
(des)igualdade, e esta é a afirmação que desenvolveremos neste texto: a
inscrição dos sujeitos nos espaços públicos e as demandas por maior
igualdade enfrentam‐se com um risco permanente de desativação
política e inclusão degradada na linguagem da cidadania.
A possibilidade de sustentar esse tipo de afirmações requer uma
contextualização que marque, dentro da trajetória das políticas públicas,
aquelas transformações que as fazem (radicalmente) diferentes de seus
antecessores, apesar de manter linguagens idênticas. Neste sentido, a
configuração do cenário político e social argentino tem registrado, em
termos gerais, comportamentos singulares. Especificamente, nos
referimos às modificações que se começaram a registrar em todos os
parâmetros de relevância pública: Estado, pobreza, democracia,
cidadania, direitos. Neste trabalho, decidimos tomar parte dessas vozes
de demanda e impugnação, recuperando aqueles trechos de entrevistas
e observações de campo realizadas durante vários anos na província de
Córdoba, Argentina2, que nos permitem compreender estas
transformações e continuidades que o relato popular adverte. Os
discursos mostram, neste sentido, uma continuidade quase estrutural
em relação ao modo de pensar o político e o público.
2 O corpus dos dados é constituído a partir do trabalho em diferentes projetos de
investigação: ʺTerritórios em disputa. Um estudo sobre o conflitos territoriais urbanos
e rurais na Província de Córdoba ʺ. Dir. Dr. M. A. Ciuffolini. Universidad Nacional de
Córdoba e Universidad Católica de Córdoba. MynCyT; ʺApropriação/Expropriação
de territorialidades sociais. Análise comparativa de processos de erradicação/
relocalização de grupos sociais empobrecidos em cidades argentinas”. Dir. Dr. Ana
Nuñez, M. A. Ciuffolini., P. Scarponetti. Universidad Nacional de Mar del Plata.
FONCYT; ʺA construção política da (des)igualdade: pobreza e sexualidade nas
políticas públicas da província de Córdobaʺ. Dir.: Dr. M. A. Ciuffolini, Co‐Dir.: JM
Vaggione, Universidad Católica de Córdoba, MinCyT; ʺRelocalização territorial,
conflitividade social e processos de subjetividade políticaʺ. Dir.: Dr. P. Scarponetti,
Co‐Dir. Dr. M. A. Ciuffolini, Universidad Nacional de Córdoba, ʺO chão em chamas.
Movimentos e lutas sociais urbanas e camponesas na Córdoba de hojeʺ. Dir.: Dr. M.
A. Ciuffolini, Universidad Católica de Córdoba, Agência Córdoba Ciência; ʺCulturas
políticas em setores populares de Córdobaʺ. Dir.: Dr. M. A. Ciuffolini, Universidad
Católica de Córdoba.
272
O presente trabalho está organizado em três seções: a primeira
contextualiza, a partir da percepção dos setores populares, o caso
argentino; o segundo adverte sobre a emergência de novos atores
coletivos no marco da crise econômica de 2001; e, finalmente, a terceira
desenvolve a trajetória dos dispositivos estatais e das organizações
populares, abordadas nas seções anteriores, mas desta vez no território
da província de Córdoba. Córdoba é um estado localizado
geograficamente no centro da Argentina, com uma população de mais
de 3 milhões de habitantes, sendo a segunda província mais populosa,
depois de Buenos Aires. As relações com a administração central
sempre foram tensas, independentemente da orientação política dos
respectivos governos. Durante a década de 90, a província foi
governada por diferentes frações do centenário partido Radical (UCR),
enquanto a administração central era ocupada pelo peronismo (PJ). No
final da década, o governo local passa para as mãos do PJ, e o governo
nacional é liderado por uma mesma orientação política. No entanto, os
vínculos nunca foram pacíficos, e muitas vezes extrapolaram as vias
institucionais de resolução.
2. Argentina: a percepção popular de um modelo excludente
Argentina começa um processo neoliberalizador a partir da
instauração do governo estabelecido pela ditadura militar em 1976. Isto
se aprofunda sob as bases do conhecido ʺConsenso de Washingtonʺ
durante a presidência de Carlos Menem (1989‐1999). Durante esta
década, os indicadores sociais (pobreza, desemprego, miséria, saúde,
educação, etc.) se viram fortemente afetados.
A dinâmica da implementação de reformas estruturais foi dramática
e poucas vezes consensual. Isso supôs importantes deslocamentos dos
atores coletivos envolvidos nas tomadas de decisões, o realinhamento
no campo popular, e a emergência de novos atores organizados em
torno de demandas reivindicativas básicas como o acesso a direitos
sociais, coberturas assistenciais e contenção diante do crescente
desemprego. Esta situação acabou implodindo nos dramáticos
acontecimentos que ocorreram no final de 2001 e princípio de 2002,
reflexo de uma crise política, econômica e social.
273
A crise de 2001 reafirmou a dinâmica do capitalismo local: não
existem transições ordenadas sem rupturas e permanentes disputas
entre os distintos segmentos do capital. Ao contrário do que ocorre no
país vizinho, Brasil, a capital nacional argentina sempre foi dependente
da política estatal e da dinâmica do capital internacionalizado. Os
mercados locais (agrícola, industrial e financeiro) sempre se mostraram
dóceis diante do capital internacional, incapazes de ser hegemônicos
dentro de um projeto de acumulação, o que implicou sucessivas crises e
transições caóticas entre cada modelo econômico (Aspiazu e Basualdo,
2012; Sidicaro, 2006). Pós‐2001 o Estado aparece como o ʺmediadorʺ que
atualmente confronta com os principais grupos concentrados de poder;
e trata de consolidar um bloco hegemônico que gire em torno de um
capital nacional produtivo, industrialização da matéria‐prima e
estímulo ao consumo, além de promover o capital financeiro e a
dinâmica extrativa dos recursos naturais, situação que guarda certa
semelhança com o restante do país (Seoane, 2012; CEPAL, 2011; Katz,
2010; Gudynas, 2009).
Esta configuração do campo de força também se traduziu em uma
reconfiguração do discurso político e nas próprias práticas da
estatalidade (Svampa, 2005). Parafraseando Dagnino (2006), o que se
observa é um processo de ʺconfluência perversaʺ entre um projeto
político neoliberal e outro mais democratizante e participativo. E o que
sucede é que, por detrás de um discurso de inclusão que começa a
aparecer fortemente a partir do ano 2003, se observam trajetórias
dissimiles no que se refere à implementação de políticas públicas
(sociais, trabalhistas, de infraestrutura, etc.) em nível nacional e,
especialmente, nas administrações provinciais. Nesse contexto,
indagamos, a partir do testemunho fornecido pelos setores populares,
como é percebida esta dinâmica do sistema político, e as defasagens que
aparecem entre o discurso e a prática concreta empreendida pela
estatalidade.
A situação que se expressa nos relatos sobre a experiência local não
se restringe a sua faceta econômica, o legado da ditadura não foi apenas
de modelos econômicos excludentes e restritivos (ʺpara poucosʺ), mas
também uma tragédia (ʺdestruídaʺ) para toda uma geração de
militantes.
274
ʺNós que temos filhos queremos deixar algo a eles, já que nossa
geração, a famosa geração dos setenta, foi destruída por esse processo,
e aqueles que restaram são a escória, e por isso temos os líderes que
temosʺ (bairro Coordenador assembleias, Córdoba, 2002).
ʺCom esse eufemismo se propunha privatizar a saúde, privatizar
ferrovias, privatizar (‐) era a receita concreta do fim do Estado de bem‐
estar, de um modelo, que com seus prós e seus contras, vínhamos
construindo na Argentinaʺ (Sindicato, CTA 01, Córdoba, 2005).
Esse processo neoliberal é claramente identificado como uma
consequência da ditadura militar, e nesse ato constitutivo é que se inicia
uma mudança de paradigma, e as gerações seguintes são aqueles que
devem atravessar as consequências estruturais da mudança de políticas
e da primazia do mercado.
ʺMas nós lutamos contra um modelo que esteve vigente na Argentina
desde a ditadura militar em diante que, bom, foi o modelo que nos
deixou como estamos, digamos, feito merdas. E, bem, lutamos
basicamente contra isso e contra qualquer um que represente esse
modeloʺ (Movimento Piqueteiro, BDP 06, Córdoba, 2005).
ʺnos anos noventa foi Menem, em 2001 De la Rua, hoje sei lá quem, aqui
na Província De la Sota... Entende o que quero dizer? Gente que está
ligada ao liberalismo e que... continua construindo um país para poucos
e não para todosʺ (Movimento Piqueteiro, BDP 05, Córdoba, 2005).
Por isso quando recuperamos a tese da ʺconfluência perversaʺ de
projetos políticos (Dagnino, 2006) e afirmamos que no interior de cada
relação de força dominante persistem as consequências e tensões de
cada fração de poder, não fazemos mais que tentar compreender a
aparente contradição entre a narrativa de ʺinclusãoʺ que a política pós‐
neoliberal expressa, e a percepção social de certa continuidade da
situação de exclusão e desintegração social no presente.
ʺfalar de desocupação na Argentina é hoje, depois de todo o processo
de privatizações, falar de um problema estrutural que não vai se
resolver de um dia para outro ou com discursos bonitos. Crianças de
275
manhã vão e tomam café da manhã na escola, almoçam no refeitório
da escola, a tarde tomam um copo de leite e a noite passam pelo
refeitório de uma organização para pegar a comida. Isso já faz oito
anos que vem acontecendo, que perspectiva pode ter uma criança que
cresceu assim?ʺ (Movimento Piqueteiro, MTR 02, Córdoba, 2005).
ʺNosso salário é o resultado de todas as medidas de ajuste que foram
aplicadas na última década, onde, obviamente, reduziram nosso poder
aquisitivo e outros setores têm feito horrores e lucrado com issoʺ
(União, ATE 01, Córdoba, 2006).
O que ocorreu foi que a crise de um projeto político (econômico,
social, cultural), que de certa forma se expressou nos acontecimentos de
2001, não realizou uma ruptura total com a institucionalidade e os
modos de participação política instituídos durante as décadas
anteriores. Neste sentido, durante os anos 90 a construção democrática
e de cidadania representou, usando as palavras de Dagnino (2006), a
consolidação de um ʺprojeto neoliberalʺ que conseguiu esconder,
temporariamente, as tensões entre Estado e mercado.
Isto supôs a privatização do espaço público, sua fragmentação, a
retração do Estado e a concepção de cidadão consumidor. Este marco
de ação, de práticas culturais, de formas institucionais, não
desapareceu, em última instância começou a se reconfigurar. A tensão
imanente à constituição dos dois projetos, que de certo modo confluem
contemporaneamente (e perversamente) para uma ʺformaʺ de relação
gerencial entre Estado e sociedade. Os conteúdos dos projetos,
entretanto, não confluem, o conflito entre eles se torna mais velado.
O relato que segue abaixo expressa essa tensão entre uma prática
política que tenta dissolver um modo de conceber o público e político,
por um lado, e a posição subjetiva que orienta os indivíduos dentro do
sistema social.
ʺAs Assembleias, tratando de construir uma questão nova que busque
um senso de justiça através de uma forte participação política, se
deparam com limites muito concretos, nenhum dos assembleístas tem
proposto colocar‐se como cidadão, como contribuinte, do sistema
econômico, político e financeiro onde estamos... as Assembleias não
têm proposto uma rebelião fiscal... temos que incluir em nossos temas
276
de deliberação... assuntos que tenham relação com a gestão pública do
comum... das políticas aplicadas em nível municipal, estadual e
nacional.ʺ (Assembleia Praça Los Naranjos, Córdoba, 2002).
Os relatos dos entrevistados deslizam dentro de um conjunto de
argumentos que vão advertindo sobre o sentir da população em cada
contexto. O final dos anos 90 expressam um sentimento de forte
insatisfação da população com relação à política e suas instituições,
produto de décadas de individualismo e de cidadania mercantilizada e
ʺcontribuinteʺ; contudo, é também neste contexto que começam a se
pronunciar fortes discursos de impugnação institucional e emergência
de novas formas de organização alternativas aos canais habituais de
participação. Como se observa no relato dos entrevistados, o olhar sobre
o Estado vai se deslocando a partir de uma rejeição e impugnação total,
ampliada logo após a crise de 2001 no caso argentino, até se converter
no centro das demandas dos tempos atuais.
ʺDesde o início, sentimos a necessidade de nos reunir para discutir
questões que estavam pesando sobre nossas vidas... pessoas que
buscam o acordo entre seus pares, participando das Assembleias... as
Assembleias são formadas pela porção mais próxima do povoado, por
cada vizinho ʺ(Assembleia Bairro Alto Alberdi, D3).
ʺtodo esforço que é feito a partir da assembleia é construir um poder
alternativo que discuta plenamente sua posição diante do Estadoʺ
(Assembleia Praça Los Naranjos, Córdoba, 2002).
ʺDesconhecemos a autoridade municipal, desconhecemos todo tipo de
legislação que tenta impedir nosso desenvolvimento... desconhecemos
esses instrumentos como parte de uma prática que... tenta nos esmagar
como povoʺ (Assembleia Bairros San Martin e Paraísos, Córdoba,
2002).
ʺnem os partidos políticos nem o Estado têm sabido proteger este
direito básico de qualquer sociedade que é o de se alimentar e se
reproduzir biologicamente... a sociedade já não acredita nas
instituições, porque elas já não sustentam normas e valores... As
pessoas não acreditam no Estado... e é lógico, é o corretoʺ (Assembleia
Seccional 14, Córdoba, 2002).
277
3. Novas formas de organização, novos discursos, novos projetos
Este cenário de antipolítica, contra‐hegemonia ou democracia
direta que foi gerado no final do século teve impactos na estrutura
institucional, nos discursos públicos, e nas formas organizativas que
assumiram os setores populares. Os relatos mencionados acima se
referem, principalmente, a dois tipos organizativos diferentes. Um
muito próprio do cenário de crise, que foram as ʺassembleias de
bairroʺ, cuja duração foi curta no tempo, mas que foi o espaço que
concentrou um amplo conjunto da população que não encontrava, nas
vias tradicionais de participação, um espaço de canalização de suas
demandas. A dinâmica das assembleias consistiu em recriar os espaços
de deliberação e ação coletiva.
Por sua vez, os movimentos piqueteiros são organizações que se
gestaram como consequência do desemprego massivo durante a
década anterior, que acabou expulsando, em 2002, mais de 25% da
população do mundo do trabalho. Os ʺpiqueteirosʺ se caracterizaram
por implementar medidas de ação direta, entre elas os piquetes ou
bloqueios, como sua principal prática para forçar uma resposta
concreta do Estado.
Inevitavelmente, este contexto implicou uma mudança nos
modos de ação, intervenção e operação da estatalidade. O final do
século veio acompanhado, por toda a região, de um ar renovador.
Linguagem que inclusive permeou o discurso dos organismos
financeiros internacionais, incorporando uma perspectiva mais ʺsocialʺ
no tratamento das problemáticas que surgiam como consequência da
defesa tenaz do modelo de mercado. Assim, as estruturas
institucionais, para além de toda possível resistência à mudança, se
viram empurradas a um novo cenário político. O Estado reaparece
como responsável pelas condições de vida de cada indivíduo e pelo
destino coletivo da população.
Neste contexto, o que parece interessante é investigar as
ausências e continuidades que contêm esses discursos, enquanto
remanescentes de antigos projetos em coexistência com os novos. Isto
porque cada lógica da estatalidade condensa a expressão das relações
de força de cada período (Poulantzas, 2001; Foucault, 2006). E neste
278
sentido, que não sejam hegemônicas não implica que tenham
desaparecido. De modo que é provável que o ranço mercantil esteja
sempre presente, e à espreita a cada crise, apelando aos já conhecidos
argumentos que colocaram em xeque a estrutura de proteção social de
meados do século passado.
Os relatos que aparecem a seguir falam sobre recuperar o papel
do Estado em relação aos problemas sociais, à regulação da economia e
à distribuição de recursos. Mas frente a este papel ativo que se lhe
atribuem, novamente se recuperam as velhas críticas aos estados sócio‐
interventores, como a de serem funcionais à lógica da acumulação
capitalista, ou de atuar como representantes dos interesses
empresariais frente às demandas trabalhistas.
ʺAcho que o Estado é quem deve centralizar o uso do poder...
indispensável, o Estado tem coisas das quais ele pode escapar, ele é
responsável pela saúde, pela educação, pela segurança, por fazer
justiça, são coisas tão prioritárias o que tudo isso traz à dignidade e ao
desenvolvimento do homem, que o único responsável é o Estadoʺ
(ONGs 01 Carlos Paz, Córdoba, 2000).
ʺo que... o imperialismo busca e... e o governo representando o
imperialismo, é poder continuar mantendo esse sistema de
acumulação, onde ganham uns poucos, quer dizer, quem lucra na
América Latina, na África, na Ásia... são os grandes cartéis, os grandes
monopóliosʺ (Movimento Piqueteiro, Córdoba, CTD‐AV 04, 2005).
O modelo emergente se afirmou, em primeiro lugar,
recuperando a figura do Estado como ator político chave do qual
emanam as diretrizes da política e da gestão pública (Mecle, 2010). Isso
implicou, necessariamente, um redimensionamento de toda a estrutura
de proteção social e, especialmente os mecanismos de regulação/
assistência aos setores mais desprotegidos (não‐empregáveis,
desempregados, menores, mulheres, idosos, etc.).
O paradigma emergente requereu, em primeiro lugar,
incorporar na agenda pública a problemática da desigualdade como
um problema social. Assim, o parâmetro da política social alteraria
significativamente seu lugar de enunciação. A assistência continuaria
279
chamando‐se assistência, mas sua sustentação deixaria de ser – pelo
menos de modo direto – a compensação de uma carência, o pobre
vulnerável. Agora, a linguagem começaria a circular dentro do campo
da ʺinclusãoʺ3, e desse modo, o apelo dos ʺdireitos humanosʺ se
converteria numa caixa de ressonância para incorporar o direito à
saúde, educação, cultura, trabalho, entre outros, como argumento de
sustentação da penetração estatal.
ʺSe o governo implementa programas... sei lá, o Hambre Más Urgente, o
Manos a La Obra, não é que faça isso porque seja BOM, mas o faz em
função de uma pressão social que existe, que coloca diante de seu nariz
este problema da comida... bem... este problema... e o do trabalhoʺ
(Movimento Piqueteiro, MTR 02, Córdoba, 2005).
Dois exemplos são ilustrativos neste caso, o Plano Jefes y Jefas de
Hogar Desocupados criado em 2002 na Argentina tem nos seus
fundamentos uma linguagem marcada pelas noções de ʺinclusãoʺ,
ʺdireitos humanosʺ e ʺcidadaniaʺ, começando a reconhecer situações
estruturais de vida que antes eram entendidas como temporárias e
isoladas, quer seja a pobreza ou o desemprego (Avalle, De la Vega e
Ferrero, 2009). Outro exemplo é o Plano Jóvenes Más y Mejor Trabajo, de
2003, quando o Estado reconhece a existência de problemas estruturais
na geração de emprego e inclusão no mercado de trabalho de grande
parte da população, modificando a estratégia de contenção e assistência
que eram pressupostos dos seguros de desemprego ou dos planos
sociais criados em meados dos anos 90 como o ʺPlan Trabajarʺ (Avalle e
Brandan, 2010).
4. Córdoba, demandas e conflitos no território: participação, terra e
trabalho.
Córdoba é uma das maiores províncias do interior da
Argentina. Os níveis de pobreza e desocupação tiveram níveis
semelhantes ou superiores à média nacional durante as últimas
3 Ver Informe de Políticas Sociais do Ministério de Desenvolvimento Social (2007).
280
décadas4. O problema da habitação, ou déficit habitacional5, é um
fenômeno crônico que se viu agravado em diferentes momentos pela
falta de políticas habitacionais para os setores populares, pela crescente
pobreza e desemprego na década de 90 e, atualmente, pela
revalorização e criação de valor sobre territórios localizados nos
assentamentos urbanos. Segundo os dados disponíveis, atualmente a
Província de Córdoba apresenta um déficit significativo em matéria de
habitação, todavia ainda mais significativo é o número de domicílios
que registram propriedade irregular da terra e/ou da moradia que
habitam.
4 Durante os anos 70, o desemprego foi registrado em aproximadamente 3,8% da
população economicamente ativa. Na década seguinte sobe a 5,8%. Ambos os valores
muito inferiores aos obtidos durante a década neoliberal, onde o índice alcançou os
11,6%, com um pico 18,4% em maio de 1995. A partir do ano 1998, este indicador
começa uma escalada que supera os valores históricos alcançados em 2002, chegando a
21,5% da população economicamente ativa. A partir desse momento se registra um
descenso insistente situando‐se, no quarto trimestre de 2008, no nível mais baixo desde
outubro de 1992 e maio de 1989, chegando a 7,3%. No primeiro semestre de 2009 volta a
se notar um incremento neste indicador, situando‐se em 8,6%, encerrando com uma
média anual de 8,68% da população desocupada. No entanto, os níveis de desocupação
relativamente ʺbaixosʺ das primeiras duas décadas não seriam acompanhados da
mesma forma pelos índices de pobreza. Durante o ano de 1989 a população em situação
de pobreza ascendia a 29,1%, e a população indigente superava a porção desocupada da
população economicamente ativa. Em 1990, o comportamento desses indicadores é
ainda mais claro, enquanto se registra uma ligeira queda da desocupação, os níveis de
pobreza e indigência marcam um pico de 44,9% e 14,5%, respectivamente. Em 1991,
uma ligeira queda da desocupação é acompanhada por uma queda em ambos os
índices. Os efeitos regionais que gerou a crise mexicana de 1995 impulsionaram
novamente o crescimento da desocupação e da pobreza. No entanto, esta última não
perderá seu impulso ascendente, alcançando os 57,5% em outubro de 2002, superando
os níveis de 1989. No que se refere aos níveis de desemprego, a província de Córdoba é
um das que apresenta maior volatilidade. Com uma tendência de se aproximar ou
superar a média nacional, particularmente nos anos de 1989, 1997, 2002 e 2007‐2009.
Quanto aos níveis de pobreza, estes se mostram semelhante à média nacional,
superando‐a nos momentos de crise local ou nacional.
5 Na Argentina, a média de gastos sociais com habitação para a década de 90 não chega
a superar 1,7% do PIB, inclusive há a evidência de um ligeiro aumento nos cinco anos
a partir de 2000 (CEPAL, 2009). Nas políticas habitacionais, especificamente, com a
abertura democrática se alterava o índice de 0,7% do PIB, decaindo ao longo da
década de 90 para 0,4% do PIB (Rodriguez e Taborda, 2009).
281
Considerando‐se de maneira conjunta a situação de
aglomeração crítica e as condições deficitárias de moradia, a
percentagem de domicílios é de 13%, enquanto os problemas de
propriedade afeta a 35% dos domicílios na província. Disso resulta que
quase a metade dos domicílios da província manifesta algum problema
habitacional. Um levantamento comparativo de preços aponta que o
valor dos terrenos dentro do Anel Viário da cidade de Córdoba subiu,
em média – entre novembro de 2007 e fevereiro de 2011 – cerca de 50
por cento, ou seja, 10 por cento ao ano. Ainda assim, existem áreas em
que o aumento foi superior a 70 por cento e, em alguns casos
específicos, cem por cento6.
O comportamento que essas variáveis descrevem sobre a
situação habitacional tem sido uma constante nos últimos 20 anos,
dando lugar a distintas reações e demandas por parte dos setores
populares. Somando‐se à crise econômica do final do século, este
contexto adquiriu uma dimensão dramática, que resultou em uma
confluência de demandas por trabalho, habitação e alimentação; e
políticas públicas tendentes a neutralizar o problema, mas com uma
forte dinâmica segregacionista e revalorização de terras centrais.
ʺporque há muitas casas que, por si só, nos deixam meio retirados
porque somos ascendentes de favela (procedentes de favela), e não
havia espaço mais perto do centro para construir casas. E outra, acho
que o governador, ele não quer as favelas perto do centro, mas longe
dali, porque eles já sabem a forma de viver das favelas, que roubam,
que são sujos, que não são todos iguais, mas por isso também estamos
meio retirados. Ainda que tenha muito espaço perto da usina, mas isso
é para o país, traz mais dinheiro, a favela nãoʺ (Assentamento
Relocalizado, Bairro A. Cabildo 09, Córdoba, 2008).
No entanto, a trajetória dessa problemática teve
comportamentos diferentes ao longo do tempo. A organização popular
em torno da habitação traduziu as demandas e expectativas sociais de
ʺcasa própriaʺ construindo um horizonte de mobilidade social e acesso
6 Realizado pelo jornal La Voz del Interior e publicado em fevereiro de 2013
http://www.lavoz.com.ar/cordoba/tierra‐cada‐vez‐mas‐cara‐escasa [Acessado em:
25/05/2013]
282
a direitos ʺvioladosʺ. O problema da moradia provocou, em finais dos
anos 80 em Córdoba, a multiplicação de organizações populares que se
formaram em torno da gestão das necessidades básicas (alimentação,
vestimenta, água, luz, etc.). Isto implicou uma crescente organização
territorial para resolver, de modo comunitário, os problemas
cotidianos. Ao mesmo tempo, um consistente posicionamento no
espaço público como atores com grande capacidade de mobilização e
controle territorial.
ʺAqui na Vila, por exemplo, há 10 anos não tínhamos água, então as
pessoas eram uma coisa assim que lutavam todo santo dia e se
organizavam em torno da água, chegou um momento em que a favela
estava sitiada, porque não havia água, então se faziam bloqueios por
todos os lugares em que parecia bom fazê‐lo, mas eram todos os
vizinhos, não era uma organização, uma coisa real, uma necessidade
básica que não tínhamos e, bom, se organizaram e assim conseguiram
ter água potávelʺ (Movimento Piqueteiro, Unidhos 01, 2005).
Neste contexto é que ganham forças as demandas sociais por
ʺacesso à cidadeʺ (Ciuffolini, 2007). Um conceito que engloba o direito à
terra, moradia, saúde, educação e serviços básicos. Simultaneamente,
diante da ameaça que esta demanda representava para a estabilidade
dos governos é que começam a se ativar diferentes dispositivos de
regulação. Neste marco surge, no início dos anos 90, em Córdoba, o que
se denominou “Mesa de Concertación de Organizaciones de Baseʺ, um
espaço institucional, com financiamento público, que supõe a gestão
colegiada da política de habitação e infraestrutura social entre os
setores populares organizados e o governo (Avalle e Ibanez, 2011).
Na seção anterior mencionamos que os dois atores
protagonistas de finais do século foram as assembleias de bairros e os
movimentos piqueteiros. Os dez anos que o antecederam tiveram como
principais referências as organizações de bairro e de base territorial dos
setores populares cordobeses. Organizações que se constituíam em
torno da gestão de necessidades básicas como alimentação, saúde,
moradia, foram articulando‐se entre si e conseguiram formar duas
frentes organizadas de bairros que mobilizaram mais de 100 bairros da
cidade. Eles são a Unión de Organizaciones de Base (UOB) e o Movimiento
283
de Organizaciones de Base (MOB), que, em seguida, se integraram à já
mencionada “Mesa de Concertaciónʺ.
ʺMe dediquei muito ao que chamamos de levar refeitórios e... era
muito trabalho, sabe, e ainda mais na época de Angeloz, de Alfonsín
(década de 80) foi o período mais forte, onde eu comecei a fazer o
trabalho, porque eu via muitas das necessidades do povo, e eu me
somei, eu... me juntei, com um bairro de Saldán e fui a Cáritas, de
Saldán trabalhei em Cáritas por um ano. Então aí formamos uma inter‐
bairro, assim se chamava, uma... era um integrado de todos os bairros,
onde este... trazíamos as necessidades do bairro e víamos
concretamente o que podíamos fazer pelos bairros (...) Fazíamos
atividades (...) vendíamos empanadas, todas essas coisas, até que
vimos a possibilidade de comprar sacos de farinha, açúcar, pão, e
colaborar com o refeitório” (Organizações Territoriais, MOB 03,
Córdoba, 2005).
ʺDesde o início de 1992, tinha sido, digamos, por um lado a unidade...
e, por outro lado, o acesso à habitação, acesso à terra e à moradia,
digamos que esta foi a luta mais forte que teve a União. Quer dizer, era
o que ela tinha de forte (‐) E não deixou de discutir a questão da
educação, da saúde e do trabalho, que em diferentes... etapas
conseguiu desenvolver, que, digamos, de alguma forma a União
discutiu profundamente, mas não resolveu esse assuntoʺ
(Organizações Territoriais, UOB 01, Córdoba, 2005).
Em meados dessa mesma décadas se configura um cenário
fortemente adverso para o protesto social. O Estado provincial
reafirmaria sua face repressiva e concentraria novamente o poder de
decisão com respeito à política pública. Em um contexto de crise
econômica e fiscal significativa, com crescentes níveis de desemprego e
pobreza, a gestão do conflito abandona a linguagem do diálogo e da
ʺconcertaciónʺ. Neste marco se empregam numerosas políticas de
contenção que buscariam frear a conflitividade a partir de uma
proliferação de recursos públicos destinados a subsídios de
desemprego, planos alimentares, pensões, etc., juntamente com uma
permanente prática de desqualificação pública das mobilizações e do
assédio a seus dirigentes com o objetivo de cooptá‐los.
284
Se essas tentativas não alcançavam os resultados esperados, a
repressão direta assumia o protagonismo. O problema que se
avizinhava era a confluência de demandas e reivindicações sociais nos
espaços públicos. Os relatos sobre este caso mostram essas
confluências, quando organizações de bairro, trabalhadores
desocupados, sindicatos, entre outros, começam a delinear um inimigo
comum.
Dois processos, embora aparentemente separados, encontram
uma linguagem comum para construir seu projeto de futuro. Assim, a
demanda por trabalho e por moradia contém uma linguagem coletiva
que condensa desejos e expectativas de amplos setores da sociedade
que pretendem ser parte de ʺprojetos políticosʺ que os contenham. No
entanto, a tradução dessas demandas resultou em um processo de
permanente fragmentação e despolitização dos atores coletivos.
“É como se o Estado adotasse uma estratégia abrangente para destruir
o movimento piqueteiro... (‐) Sim, alguns se apressaram deste lado
para dizer ʺOs bloqueios não vão mais acontecerʺ. Também não é
assim, (...) na realidade o Estado tem chamado nossa luta de doutrina,
e por isso nos reprime de diferentes maneiras, nós também temos que
fazer doutrinas, mas... isso não significa desacreditar das melhores
ferramentas de luta que nos últimos anos o povo tem gestado e que
não apenas estão sendo utilizadas pelo... têm sido utilizadas pelo
movimento piqueteiro, mas também pelos trabalhadores ocupados,
pelos docentes, vimos isso aqui em Córdoba, cheio de piquetes e
bloqueios” (Organização Piqueteira, Córdoba , CTD‐AV 08, 2005).
Como consequência disso, a política de impugnação se
converteu em uma política de gestão, com a consequente despolitização
dos espaços coletivos de base. O dispositivo de governo agiu, desse
modo, traduzindo a queixa popular na gestão mesma das decisões
públicas, reduzindo o potencial de conflito. A administração se
converteu em uma imposição para os setores organizados, subtraindo
espaço para o debate político. Desativada a ameaça mediante a
desorganização, um segundo processo consistiu na extinção do espaço
político.
285
ʺquando entrou um governo (provincial) que foi comprando toda a
liderança, sabe? (...) comprando líderes fortes, os líderes que tinham...
os que tinham força de luta, e bem, foi corrompendo eles (...), porque
se você notar, hoje não temos uma mobilização na ruaʺ (Organização
Territorial, Córdoba, MOB 03, 2005).
Os relatos que se seguem narram o processo de desativação
que sofreram as organizações de base no final dos anos 90, sob o
mandato do governo peronista de De la Sota na província. Estas
organizações experimentam, em um curto espaço de tempo, a perda de
influência nos espaços institucionais, a perda de recursos, que são
destinados para financiamento de novas obras de infraestrutura social
que não conseguiriam nem mesmo se capitalizar, e o rompimento de
solidariedades dentro de suas próprias bases.
ʺEu tenho um problema com a minha cooperativa, nós temos um plano
de habitação e, depois, compramos outras parcelas de terra e entramos
nos novos planos, em novos bairros, então o governo fez a estrutura e
depois saiu, politicamente, vendendo isso, dizendo que eram os novos
bairros que ele dava, sendo que a terra é nossa. Então, temos duas
coisas, as pessoas que vivem em um novo plano de habitação dizem, ‘a
minha casa quem me deu foi o governo’, mas nós temos uma outra
parte que não vai receber a escritura do governo, quem vai receber a
escritura é a cooperativa, porque quem tem a (...) a propriedade é a
cooperativa. Então, até isso os rachou, os rachou como organização,
porque nós, muitos e muitos anos de luta, 5 anos de luta para
conseguir terra para um novo plano de habitação, quando ele entra
(em 1999) é feito um acordo político dentro da nossa cooperativa com
eles, feito um pacto político onde se doavam quarenta lotes desde que
o governo desse a estrutura. E nos enrolou justo aí, deu escola,
iluminação pública para nós, deu asfalto, deu tudo, mas foi quando
ficamos entregues, o governo dizendo que era um novo bairro,
estrutura de bairro novo, e acreditávamos que esse novo plano de
habitação era o novo Plano De La Sotaʺ (Organização Territorial,
Córdoba, MOB 04, 2005).
ʺO que vemos é que parte do Estado está sempre tentando nos
institucionalizar... como por exemplo... eles te dão esse subsídio para o
copo de leite... a partir de agora se chama Centro Infantil e centro de
286
cuidado infantil... isso... e te dão a vaga quando eles querem, e te dizem
que tipo de filhos você tem que ter e com o que (...) você tem que
trabalhar... as pessoas são uma espécie de gestores do Estado... (risos)
quando eles não ditam o lugar, não colocam o esforço, não organizam as
pessoas... colocam o dinheiro, que aliás não é a quantidade de dinheiro
que eles têm que colocar ... mas você trabalha de acordo com os critérios
deles... tantas pessoas... tantos meninos aqui... tantos meninos aqui...ʺ
(Movimento Piqueteiro, MTR 01 Córdoba, 2005).
Uma vez desativada a capacidade de mobilização por meio da
cooptação e ruptura das organizações de base, a demanda por
habitação era totalmente desarticulada. A necessidade não desaparecia,
mas já não havia organização nem articulação popular conjunta que a
sustentasse no espaço público. A ausência de conflito permitia, assim, a
resolução de um problema gestado diretamente a partir das instâncias
institucionais.
Neste marco aparece um conjunto de políticas cuja tendência
seria a de neutralizar a demanda central: o emprego, a alimentação e o
teto. Em nível nacional são implementados em meados de 2002 o Plano
Jefas y Jefes de Hogar Desocupados7; em nível local, o mega‐plano de
habitação ʺMi Casa, Mi Vidaʺ8, ambos financiados pelo BID. O primeiro
exigiu uma reincorporação do beneficiário à disciplina do trabalho:
prestação de serviços em órgãos públicos, controle de saúde e
reinserção no sistema educacional. Em suma, uma regulação
sistemática do indivíduo desempregado. O segundo9, o plano de
habitação, foi implementado de maneira vertiginosa e arbitrária,
através da criação de bairros populares que tinham duas características
fundamentais: situar‐se nas periferias da cidade, e contar com a
presença de todos os equipamentos do Estado (polícia, ministérios,
escolas, refeitórios). Isto se traduziu em uma política diretamente
destinada à regulação do espaço e ao deslocamento da população. No
7 Programa público que envolveu a transferência de dinheiro para os beneficiários e, em
troca, a remuneração por horas de controles de trabalho, saúde e educação.
8 Programa habitacional destinado a setores ʺvulneráveisʺ e ʺrisco ambientalʺ que
envolvem a transferência de assentamentos irregulares e à prestação de uma casa de
família.
9 Este plano é discutido no artigo de Shimbo e Ciuffolini presente neste livro.
287
entanto, isso não implicou ou deteve o crescente problema habitacional,
mas exatamente o contrário10.
A política intensiva de revalorização territorial promoveu a
expulsão de populações de seus locais de residência sem dar‐lhes um
novo destino, levando ao ressurgimento das ocupações de terra que
aconteciam há 15 anos atrás.
ʺE é assim como, sabe quando dizem ʹDeus cria, eles se juntam e o
vento os amontoaʺ, e bom, nos amontoou neste caso aqui ... e eu, isso é
verdade, eu me senti excluído de um monte de... do sistema... nos
chutava para fora, não entrávamos nem na classe média, nem na
média‐baixa, nem em nenhuma classe, não existíamos e prontoʺ
(Ocupação de Terra 04, Icho Cruz, Córdoba, 2012).
ʺE sempre disse a meu filho: ʹOlha, temos a casa porque ganhamos ela
com o nosso sacrifício, papai, mamãe, lutou, você também lutou.
Resistimos, todos os dias’. E quando chegam famílias digo a elas ʹesta é
a minha casa, tanto lutei que vim para cá. E é assim. E aí você tem sua
casa, tem o orgulho de dizer ‘moro lá’ʺ (Ocupação de Terra, Córdoba,
2012).
ʺA questão da habitação sempre representava para nós um problema
porque não podíamos... muitas vezes, por exemplo no ano passado,
quando estávamos alugando, que foi o ano retrasado, chegou um
momento em que em alguns meses tínhamos que decidir entre
comprar um par de sapatilhas Brisa e pagar o aluguel completoʺ
(Ocupação de Terra 06, Icho Cruz, Córdoba, 2012).
5. Conclusões
Com frequência as situações de desigualdade e exclusão nas
sociedades contemporâneas são abordadas a partir de uma dinâmica
10 O crescimento dos assentamentos informais recentemente é significativo. Atualmente,
existem 238 na província, registrando‐se entre 2001‐2010 forte crescimento da
população (62%), nos já existentes, ao invés de surgimento de novos assentamentos.
De todos os assentamentos, 119 estão localizados na cidade de Córdoba
(Levantamento de assentamentos informais na província de Córdoba, Um Teto para
meu País‐Argentina, em setembro de 2011).
288
que focaliza de modo permanente o indivíduo ʺvulnerávelʺ ou ʺpobreʺ
(Bravo, 2001; Indec, 2000; Macadar e Mendive, 1997). Falar de pobreza
soa, inclusive, reiterativo, dada a numerosa produção bibliográfica
sobre o tema. No entanto, de nosso ponto de vista, acreditamos ao
menos ser necessário nos diferenciarmos destes conceitos.
Pobreza habitualmente é um termo que agrupa um conjunto de
estratégias de medição e agregação de categorias que colocam o foco na
“carência” do indivíduo; efetua uma leitura estática das condições de
vida da população; constrói o pobre como um conjunto homogêneo de
população marginalizada e excluída da sociedade. No entanto, as vozes
daqueles pobres dão conta de uma dinâmica diferente: em primeiro
lugar exige que falemos, em todo caso, de pobrezas – no plural –, uma
vez que estas se encontram ancoradas em múltiplas e diversas
experiências cotidianas; e, por outro lado, é necessário entendê‐las
como posições determinadas pela posse de capitais dentro de uma
estrutura específica de relações, quer dizer, dentro da sociedade e não
excluídos desta.
Por sua vez, o conceito de ʺvulnerabilidadeʺ em políticas sociais
é problemático já que ora habilita dinâmicas individualizantes, ora
totalizantes, dos sujeitos beneficiários / destinatários. Por um lado, o
ʺbeneficiárioʺ é objeto de um tratamento diferente do restante da
população, dado que seu atributo principal é a carência de todo tipo de
recursos ou capital. Assim, o acesso à cobertura da política pública não
aparece como um direito, mas como uma compensação por danos
(sociais).
Simultaneamente, cada situação de vulnerabilidade é inscrita
em uma lógica mais global do tratamento, que visa a permanente
normalização da desigualdade social que a provocou. Assim,
configurações do espaço social que assumem um caráter dominante são
permanentemente legitimadas por um discurso compensatório
proveniente da estatalidade, e, neste sentido, é possível pensar o caráter
(des)igualitário que assume a política pública frente às tensões do
presente.
No entanto, a presença do conceito de ʺvulnerabilidadeʺ nos
discursos públicos foi um ponto a problematizar nossa indagação. Os
riscos que supõe essa perspectiva estão em sua própria definição.
289
Assume o vulnerável como aquele indivíduo potencialmente em risco
por algo que é uma ameaça para si mesmo, um estado de ʺincerteza,
impotência e insegurançaʺ (Brusso, 2001). Sob esse pressuposto
desaparece a construção do beneficiário como um cidadão portador de
direitos, como saúde, educação, etc., e, portanto uma categoria de
caráter universal, para passar a ser um sujeito em potencial ameaça de
exclusão de ʺassistênciaʺ educativa, de saúde, etc., e, deste modo, um
indivíduo em risco, um indivíduo vulnerável.
Neste sentido, todos nos vemos expostos a riscos (Beck, 1998),
de modo que se torna necessário ir identificando os mecanismos para
atender cada problemática e situação. Neste marco, ʺvulnerávelʺ é um
conceito que penetrou tanto nos escritórios de organizações
internacionais em Washington e Nova York como nas barricadas e
assentamentos protagonizados pelos setores populares. No entanto,
como era de se esperar, o olhar foi dirigido para eixos diferentes.
Espaços como o G7 e em menor medida o G20 vêm substituir os
mandamentos do Consenso de Washington. O fórum dos 20 países se
converteu em um palco de reivindicações dos países menos
desenvolvidos, e no espaço de reafirmação de medidas financeiras para
apoiar modelos que de modo permanente estão mostrando a
inviabilidade de, parafraseando Touraine (1998), uma ʺvida juntosʺ.
Por outro lado, a partir de baixo, os setores populares
organizados têm instaurado novamente o debate das demandas de
inclusão e radicalizado as práticas de impugnação social. Ambos os
conceitos se encontram em constante disputa, constituem um modo de
(não) nomear os conflitos sociais e de in/excluí‐los. Aparece dessa
maneira uma tensão chave, permanentemente insolúvel, entre a
conformação dos espaços públicos e a definição do sentido da política,
ou a sua capacidade de definir os rumos de uma sociedade.
No breve percurso que tentamos refazer sobre o caso argentino,
e a província de Córdoba em particular, observado a partir da
perspectiva dos setores populares, nos aporta uma série de elementos
para pensar e problematizar as consequências que provocam as
políticas públicas, independentemente do objetivo que perseguem. Os
relatos dos entrevistados, que recuperam mais de 20 anos de
experiência do campo popular, nos advertem sobre a tensão que
290
permanentemente se apresenta quando os espaços de decisão e ação
pública se vêem questionados a partir da própria base social. Sem
dúvida, os recursos que os setores organizados conseguem obter da
estatalidade constituem um dos pilares para fortalecer sua estrutura
interna, sua capacidade de mobilização e negociação com os
funcionários públicos. No entanto, esta forma alternativa de gestão dos
problemas, que implica na intermediação entre indivíduos e Estados a
partir da organização dos setores afetados, representa um risco para a
estatalidade, uma ameaça ao controle que se busca exercer sobre essas
populações.
Percebe‐se nos textos das políticas estatais, ainda, que as pessoas
em questão não careçam de Estado, mas ao contrário, que elas o tenham
de sobra, encontram‐se inscritas em uma nova técnica gerencial, ou uma
nova “tecnologia social”. A presença estatal, entretanto, não é
exatamente garantidora de direitos: em todos esses documentos,
políticas e programas, ao mesmo tempo em que se oferecem
oportunidades, produz‐se histórias de vida típicas de tudo o que falta
para que um sujeito esteja apto a desfrutar do convívio de cidadãos.
Quando a organização popular constitui uma clara ameaça para a
legitimidade dos projetos políticos dominantes, os mecanismos estatais
se esforçam por provocar a fratura, ruptura e desmobilização dessas
experiências coletivas. E o fazem por múltiplas táticas na arena pública,
seja cooptando seus dirigentes, envolvendo essas organizações em
práticas cada vez mais burocratizadas, ou intervindo diretamente no
território, perseguindo a fratura da base de apoio. Mas quando esses
mecanismos não são suficientes, o espaço público se torna um campo
de batalha, onde a repressão opera como a única resposta do Estado às
demandas sociais.
O cenário que se apresenta, então, é de uma dupla
aprendizagem, onde o Estado toma as lutas e a organização popular
como doutrinas, e aquelas fazem de sua prática e da relação com o
Estado uma caixa de ferramentas e um estado de coisas que estabelece
permanentemente novos pontos de partida e instâncias de demandas
sustentadas com estratégias mais radicais, mais móveis, e formas
organizativas que permitem, com relativo êxito, escapar à desativação,
criando um cenário mais participativo, mais politizado, e com atores
291
fortemente empoderados. Daí que sustentamos que para pensar em
uma democracia sólida, e reclamar por instituições que sejam capazes
de organizá‐la, devemos garantir os espaços de liberdade para aquelas
pessoas que estão lutando por uma sociedade mais justa.
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294
Territórios e populações marginais em tempo de desenvolvimento:
modos de gestão do conflito social no Brasil contemporâneo
Gabriel de Santis Feltran1
1. Introdução
O Brasil contemporâneo está em franca transformação, em
grande medida pelo cenário de desenvolvimento econômico da última
década, desigualmente distribuído pelos tecidos social e urbano. A
conflitividade social expressa por esse cenário também é nova. No
centro da cidade de São Paulo, a Polícia Militar (PM) ocupa a região
conhecida como “cracolândia” em meio a uma grande operação de
ʺrequalificação urbanaʺ. Enquanto isso, a Prefeitura Municipal constrói
albergues de “atendimento” aos usuários de crack, cada um para mais
de mil pessoas. Discute‐se publicamente a pertinência da internação
compulsória dos ʺnoiasʺ. Grandes incorporadoras investem em mão de
obra de presidiários paulistas – cuja população foi quadruplicada na
última década – em troca de remissão de penas. Há 200 mil presos no
estado, e cinquenta novos presídios em construção. No Rio de Janeiro, o
Exército Brasileiro ocupa territórios de favela na zona sul, a mais
abastada, expulsando traficantes de drogas para as periferias. O
caminho aberto pelas Unidades de Polícia Pacificadora” (UPPs) também
serve aos mercados imobiliário e do terceiro setor. Uma sequência de
incêndios criminosos em favelas de São Paulo possibilita que as
políticas de remoção, estancadas desde os anos 1980, retomem fôlego e
liberem terrenos de interesse comercial. O conflito alastra violência.
Mais de 80 policiais militares foram assassinados pelo Primeiro
Comando da Capital (PCC), a principal facção criminosa do estado, e a
vingança das forças da ordem produz uma nova escalada das taxas de
1 Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar); Pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Pesquisa apoiada pela FAPESP e
CNPq.
295
homicídios nas periferias, depois de uma década de queda significativa.
As taxas de desenvolvimento da economia acompanham essa elevação.
Esse cenário paradoxal, de desenvolvimento associado a alta
conflitividade social, pode ser captado especificamente nos territórios e
grupos sociais considerados ʺmarginaisʺ no Brasil contemporâneo. Este
ensaio reflete sobre algumas relações entre a gestão contemporânea
desses territórios e populações, bem como os modos como tem podido
ser convertido ‐ tanto no plano semântico, quanto de mercado ‐ em
“desenvolvimento”. Acompanhando etnografias recentes junto a esses
grupos, sobretudo no estado de São Paulo, proponho algumas sínteses
analíticas que apontam para a fusão recente entre os problemas “social”
e de “segurança pública” no debate público brasileiro, bem como para
algumas questões teóricas e políticas pouco intuitivas, a princípio. A
hipótese é que esse modo de administrar o conflito urbano nas
principais metrópoles brasileiras, que promovem franca transformação
territorial, social e econômica conecta‐se diretamente à validação
pública do Brasil com o país em franco desenvolvimento.
Os argumentos expressos aqui, ainda bastante preliminares,
partem de uma investigação coletiva, em andamento desde agosto de
20102, que etnografa três grupos urbanos específicos: i) adolescentes e
jovens inscritos em atividades criminais, moradores de bairros das
periferias urbanas; ii) moradores de rua; iii) prostitutas3. O que articula
analiticamente esses sujeitos e territórios distintos, a princípio, é tanto
sua condição marginalizada frente a dinâmicas sociais consideradas
2 Trata‐se do projeto de pesquisa “As margens da cidade: grupos urbanos ‘marginais’,
política e violência em três territórios do estado de São Paulo”, desenvolvido no
NaMargem – Núcleo de Pesquisas urbanas, além de mim por Mariana Martinez
(PPGAS/UFSCar), Filipe Horta (IESP/UERJ), Daniel Melo (PPGAS/UFSCar), Henrique
Takahashi, Luciano Oliveira, Evelyn Postigo e Luiz Fernando Pereira (PPGS/UFSCar),
Liniker Batista (PPGAS/Unicamp), Domila Pazzini, Deborah Fromm, Leilane
Matsushita, Marcos Vinícius Silva (Ciências Sociais/UFSCar). Agradeço a cada um
deles pela parceria nesses últimos anos. O texto conta com trechos em primeira
pessoa do singular, quando apresento argumentos de minha responsabilidade, e em
primeira pessoa do plural, quando me refiro a dinâmicas de pesquisa coletiva.
3 Os territórios estudados concentram‐se sobretudo nas cidades de São Paulo
(Sapopemba, Heliópolis, Centro – “Cracolândia”), São Carlos e Cruzes (nome fictício),
no estado de São Paulo. Uma das pesquisadoras desenvolve ainda, inicialmente, seu
trabalho na Cidade de Deus, Rio de Janeiro.
296
legítimas, quanto o fato de estarem, quase sempre, convivendo
proximamente com políticas e programas estatais (de atendimento e
repressão, muitas vezes simultâneos). Esses sujeitos impuseram à
equipe de pesquisa, logo de cara, o paradoxo de serem considerados
“excluídos” da vida social ao mesmo tempo que apresentavam
vinculações empíricas com formas de “atendimento” estatais das mais
diversas. Além disso, e ao contrário do que supõe o senso comum, trata‐
se muitas vezes de sujeitos vinculados a distintos arranjos familiares, de
mercados de trabalho e geração de renda, bem como a distintas
religiosidades e modos de habitar a cidade, ou seja, a diferentes
instâncias da vida social considerada legítima. A escolha desta condição
marginal como lente a partir da qual se analisa o cenário brasileiro
contemporâneo não é casual. Trata‐se de uma escolha de pesquisa
desenvolvida ao longo dos últimos anos de investigação coletiva,
amadurecendo conexões entre pesquisa etnográfica e leitura teórica
inspirada, sobretudo, nas etnografias do estado e de suas margens.
O mundo urbano brasileiro, visto aqui sob o prisma de São
Paulo e, com menor intensidade, Rio de Janeiro, tem mudado muito nas
últimas quatro décadas. As periferias da cidade apresentam
deslocamentos nada triviais nas bases da sua dinâmica social. A
migração “nortista”, central à expansão das manchas urbanas do
sudeste brasileiro, declinou muito a partir dos anos 1990; ao mesmo
tempo, os mercados de trabalho populares se reconfiguraram
inteiramente, na esteira da chamada “reestruturação produtiva”, tardia
no Brasil se comparada aos países do norte (Kowarick & Marques,
2011). Consolidou‐se ainda a inscrição das mulheres no mercado de
trabalho popular, agora constitutivamente marcado pelas fronteiras
entre formal‐informal e legal‐ilegal (Telles & Cabanes, 2006; Telles,
2011). Imersa nessas transformações, a família popular tendeu à
nucleação, em arranjos muito heterogêneos. A taxa de natalidade
brasileira de 1,8 filhos/mulher é, hoje, menor do que a taxa de reposição
demográfica. No plano religioso, e especialmente entre os mais pobres,
foi enorme o trânsito do catolicismo ao pentecostalismo (Almeida,
2009). Além disso, o acesso à infra‐estrutura urbana e bens de consumo
cresceu enormemente desde os anos 1970 e, embora ainda muito
deficiente, possibilitou que as novas gerações da cidade vivam, hoje, em
297
mundo radicalmente distinto daquele de seus pais (Marques & Torres,
2005; Feltran, 2011). Nesses anos, além do mais, a “violência urbana”
tornou‐se assunto de qualquer cidadão brasileiro (Caldeira, 2000;
Machado da Silva, 2004; Misse, 2006), e à elevação brutal das taxas de
homicídio nos anos 1990 (Manso, 2003, 2012), seguiu‐se na década
seguinte uma queda muito expressiva em São Paulo, sobretudo nas
margens da cidade (Marques, 2010; Feltran, 2010a, 2010b, 2011; Hirata,
2010; Manso, 2011), fato que não ocorreu em outros estados. Em suma,
as palavras‐chave do debate sobre as periferias de São Paulo, ou seja,
trabalho, migração, religião, família, políticas sociais e violência, estão hoje
muito longe de dizer o que diziam há quarenta anos.
Nesse cenário, o projeto dos “trabalhadores”4 que colonizaram
as periferias da cidade, fundindo o desejo operário de ascensão social à
aposta política na expansão da cidadania (Dagnino, 1994; 2002), sofreu
deslocamentos nada triviais, em todas as suas dimensões fundadoras.
Analisando o percurso de tensões desse projeto nas últimas décadas, e
as dinâmicas recentes de relação dos governos com “populações”
marginalizadas (Foucault, 2000), argumento que o estatuto do conflito
social e político ensejado pelas periferias urbanas foi deslocado (Feltran, 2012).
Se nos anos 1980 esse conflito pôde ser pautado numa perspectiva de
integração das camadas “trabalhadoras”, pela aposta na contrapartida
social do assalariamento, agora trata‐se sobretudo de gerenciar as
fronteiras entre periferias e direito – de modo compartilhado entre
Estado, polícias e “mundo do crime” – pela ênfase sistemática nas
representações da violência urbana.
As investigações de campo empreendidas entre esses grupos,
ainda muito preliminares, sugerem a sustentação desse argumento.
Todas de orientação etnográfica, tiveram como ponto de partida duas
constatações importantes, provenientes de pesquisas anteriores e do
diálogo com a bibliografia mais recente sobre o tema: a primeira
eminentemente teórico‐epistemológica; a segunda mais propriamente
analítica. Neste ensaio, dividido em duas seções, trato de cada uma
delas. Ao final, apresento sínteses das questões analíticas, teóricas e
4 Utilizo aspas para demarcar as categorias de uso corrente nas periferias da cidade,
como “trabalhador”, “mundo do crime”, “bandido” etc. Os nomes próprios citados
são fictícios.
298
políticas que me parecem estar inscritas na gestão contemporânea das
“populações marginais” no Brasil urbano, em tempos de
“desenvolvimento econômico”.
2. Os sujeitos marginais e o mundo social: digressão teórico‐metodológica
Usualmente, tanto nos relatórios dos serviços sociais que atendem
a esses usuários da assistência, quanto nas ações das forças policiais que os
reprimem, e mesmo na produção bibliográfica mais tradicional acerca dos
grupos estudados aqui, a dinâmica social que os caracteriza tem sido
descrita na chave da ausência. Ou seja, nessas perspectivas um menor
infrator, uma prostituta ou um morador de rua, quase invariavelmente, são
pensados como pessoas vivendo nos interstícios sociais, a quem falta o
fundamental para uma vida social considerada saudável, digna, cidadã: o
trabalho regular, a “família estruturada”, as condições de habitação, o
respeito à lei, a civilidade, a moral, o autocuidado, a autoestima.
Evidentemente, ainda nessa chave, aquilo que caracterizaria esses grupos,
estendendo‐se e contaminando também os territórios que habitam, seria o
oposto dessas virtudes: a vadiagem, o alcoolismo, o vício, as atividades
ilegais, ilícitas e/ou imorais, a promiscuidade, a degradação pessoal,
familiar e, no limite, quase como conseqüência natural, a criminalidade
violenta. A partir desse diagnóstico, a vida desses sujeitos tem sido
majoritariamente pensada a partir do problema (pobreza, desordem,
incivilidade, imoralidade, violência, marginalidade, criminalidade) com o
qual são identificados, e a produção de conhecimento a respeito deles parte
da seguinte pergunta: como resolver/administrar esse problema?5
5 Se o problema são os outros, e não a relação, as técnicas de tratamento devem estar
focadas nos sujeitos aos quais se atribui o problema, e não à relação que o(s) constitui.
Desde as primeiras décadas da modernidade se constrói a noção da cidade como
laboratório e clínica do humano, noção formalizada cabalmente nos primeiros escritos
da Escola de Chicago (Park, 1979). Caberia, portanto, aos homens de bem, aos cidadãos,
aos incluídos, encarregar‐se de cuidar dessa fronteira de dignidade e legitimidade
social, agindo para transformar os viciados e desviantes; seria preciso oferecer‐lhes as
oportunidades da vida digna, ou reprimir neles os impulsos deletérios. Da punição
exemplar à filantropia, do suplício à disciplina, e daí à gestão das populações, na
genealogia foucaultiana, os mesmos remédios vem sendo testados por séculos,
década a década, ano a ano.
299
Eis a primeira constatação: esses sujeitos são concebidos pelo
problema social que representam, e portanto pela ausência frente à
normatividade dominante (partilhada muitas vezes pelos próprios
sujeitos em questão, em determinadas situações) que lhes é inerente. É
preciso esclarecer, logo de cara, que não se trata aqui de dizer que esse
problema não existe, acusando o déficit de “realidade” ou o
etnocentrismo de quem assim o formula. Se há um século rompemos
com o positivismo na etnografia, trata‐se aqui, apenas, de dizer que é
preciso estudá‐lo considerando sua existência em perspectiva, e não sob
quaisquer perspectivas. Assumo aqui, inclusive, que o problema se
confirma como tal nas falas dos próprios sujeitos em questão, mas
apenas quando eles se dirigem aos assistentes sociais, psicólogos,
advogados, escrivães, pastores ou missionários que os acompanham
pela vida; o problema não se confirma, entretanto, em inúmeras outras
situações de locução. São essas, pela carência delas na bibliografia, que
cabe a nossa pesquisa explicitar.
A exclusão social de um trecheiro6 é inconteste, partindo do
ponto de vista do religioso que lhe presta ajuda filantrópica; mas não é,
quando vista desde a conversa entre ele e os pares de uma banca de
moradores de rua, que se reúnem para passar o dia, arrumar dinheiro,
comida e bebida, trocar dicas sobre os lugares em que estiveram e as
pessoas que devem ou não ser respeitadas em cada um deles, os modos
mais fáceis de escapar da polícia e conseguir abrigo da prefeitura, os
códigos para falar com os assistentes sociais e as críticas ao sistema
(equivalente semântico de sociedade). Nessa segunda perspectiva, já não
há ausência de sociabilidade, códigos ou laço social, como demonstra a
bibliografia a respeito (Rui, 2012; Martinez, 2010). Ocorre que a primeira
figuração, a da co‐presença de seres excluídos7, portanto alheios ao
pertencimento social, é dominante e se constitui como o ponto nodal de
elaboração dos critérios pelos quais todos esses sujeitos marginalizados –
seu passado, sua presença, seus destinos, seus territórios – passam a ser
6 Sobre trecheiros e pardais, classificações internas ao mundo daqueles conhecidos como
andarilhos, mendigos e vagabundos, no estado de São Paulo, ver Martinez (2010).
7 Há uma série de críticas produzidas à noção de exclusão social, desde a clássica crítica
de Martins (1997). Nossa abordagem soma‐se a elas, embora não se confunda com
nenhuma delas, inteiramente.
300
compreendidos publicamente. A repercussão dessa figuração nas
políticas públicas é evidente – os programas sociais, questionários,
relatórios e fichas de atendimento partem dessas premissas para
confirmá‐las, progressivamente, nos seus “atendimentos”.
Se há consequências políticas expressas a partir daqui,
concentro‐me inicialmente naquelas mais propriamente analíticas. Entre
elas, parece‐me relevante afirmar que o diagrama de compreensão
dominante produz uma fronteira normativa que circunscreve o
pertencimento social. Apostando numa análise reflexiva, pode‐se
perceber sem dificuldade que essa forma de nomeação, tal seja, a que
sugere a existência de “excluídos”, ao fazê‐lo reforça os critérios
normativos de pertencimento ao social, definindo‐os. Desenha‐se nesta
operação, portanto, os limites cognitivos que circunscrevem as margens
daquele domínio passível de ser chamado de sociedade, bem como a
plausibilidade daquilo que pode ser considerado social.
O ganho da abordagem reflexiva que se propõe a tornar
explícita essa figuração, nos parece, está centrado no fato de que o
problema em questão, quando tratamos dos grupos considerados
marginais, deixa de ser o excluído, e volta‐se ao diagrama de relações
que os nomeiam como tais. Nessa medida, desnaturaliza‐se também o
lugar tradicionalmente ocupado pelo pesquisador8. Consequência
primeira desta constatação, e dos desdobramentos analíticos dela –
estudar os grupos marginalizados é também estudar as fronteiras
normativas que circunscrevem o social e, portanto, conhecer os seus
princípios normativos fundadores. Estudar as franjas sociais é, então,
também estudar o centro.
No tratamento mais corrente da questão, portanto, há uma
partilha a ser considerada para se pensar a sociedade: o social, nessa
perspectiva, é sempre considerado circunscrito por valoração e
normatividade, e há invariavelmente sua contraface: fenômenos,
territórios e seres dele apartados, por o constituírem em negativo. De
8 Ressalta‐se, nesse ponto, a contribuição decisiva de pesquisadores, no grupo, oriundos
dos contextos estudados. É bastante recente, na bibliografia, a presença de
pesquisadores desses contextos que compartilham códigos, sociabilidade e territórios
com seus sujeitos de pesquisa e com as universidades; Dias (2012) apresenta reflexão
metodológica fundadora a respeito.
301
um lado há um terreno reservado àquilo que é propriamente social – os
critérios de legalidade, legitimidade, moralidade correntes o definem;
de outro, há territórios e populações que não compartilham desses
critérios, e mesmo os ameaçam, e portanto deve permanecer excluídos. A
sociedade tem sempre um lado de fora, portanto, e a fronteira que
define seus limites é inteiramente pautada pela relação mútua entre os
lados que ela divide.
A proposta das investigações deste projeto de pesquisa, que
ora desenvolvemos, pensa as margens, interstícios, periferias ou franjas
do social numa outra direção, afeita a outra tradição de investigação.
No tratamento proposto aqui, não há lado de fora na vida social, portanto
não há excluídos da sociedade9. Há dependentes de crack, prostitutas,
ladrões, e moradores de rua fazendo parte da vida social e urbana e, por
vezes, pautando, pela sua presença, a definição mesmo dos critérios das
ações dos grupos considerados centrais. Estudar os marginais a partir
das relações que estabelecem com as fronteiras – semânticas,
classificatórias e mesmo físicas – que os definem como excluídos é, nessa
perspectiva específica, acessar os critérios de formulação da
normatividade social dominante, não raras vezes legitimadas por
determinações estatais. O conjunto de relações que compõe o social,
nessa medida, abarca não apenas todos esses sujeitos, mas seus
territórios, formas de ação, rotinas, cotidianos, instituições. A
“sociedade” ganha, ao mesmo tempo, mais amplitude descritiva e
menos caráter normativo.
A definição bipolar que opõe os homens de bem aos vagabundos,
os trabalhadores aos bandidos, as moças de família às prostitutas, inteligível
por onde quer que se ande, perde força como categoria analítica. Essas
polaridades usuais de compreensão da vida social e urbana passam,
então, não mais a funcionar como categorias pelas quais se poderia
compreender o que se passa; elas passam a ser vistas como uma espécie
de representação (coletiva, e não precisamos da transcendência do social
durkheimiano para considerá‐la assim) que é, justamente, aquilo que
nos caberia estudar. Essas polaridades semânticas, portanto, deixam de
9 A inspiração é, sobretudo, de Das & Poole, 2002; Das, 1999, 2006, 2012. Latour (2000),
por outros caminhos, chega a conclusões semelhantes.
302
ser chaves a partir das quais se poderia pensar o problema dos grupos
marginalizados, e passam a ser pensadas como parte fundamental do
próprio objeto que se pretende compreender10. A prostituta, o morador de
rua ou o jovem infrator deixam de ser, assim, sujeitos dados ou
problemas sociais concretos, circunscritos aos interstícios ou alheios ao
social, que nosso saber deve contribuir para sanar. Eles passam a ser,
antes de mais nada, enunciados naturalizados, porque dominantes, que nos
cabe estudar em detalhe, e na linha do tempo, para compreender as
forças que os constroem como dotados de sentido, e os rituais
cotidianos que os atualizam.
É essa construção, e essa atualidade, que demarcam as
consequências analíticas – e políticas – que fazem com que o morador de
rua, o jovem infrator e a prostituta ocupem, nos contextos pesquisados, o
lugar que ocupam. São elas que fazem com que se pense saber quem
eles são, e o que pensam, sem nunca ter travado contato com eles – a
percepção que nos faz entender quem eles são se dá pelo que se sabe
que eles não são e não pensam. Estudá‐los o mais rigorosamente possível,
assim, tem por finalidade produzir inteligibilidade sobre perspectivas
múltiplas e conflitantes que, em sua tensão constitutiva, estabelecem os
parâmetros do conjunto da normatividade social. Estudar as noções de
moralidade, legitimidade, valores e concepções de mundo, códigos de
pertencimento e conduta, entre outras, está, portanto, no centro dessa
tentativa. Trata‐se aqui, portanto, de multiplicar as formas de enxergar
esses grupos, buscando estabelecer etnograficamente as perspectivas a
partir das quais a complexidade das suas relações sociais possa ser
captada. Busca‐se estabelecer lugares de pesquisa a partir dos quais as
inúmeras formas de codificação interna, formulação de regras e valores
morais, constituição de alianças e inimigos, linguagem e reflexividade
desses sujeitos possam se tornar mais presentes na análise.
As formas de nomeação, classificação, hierarquização e significação,
enunciadas e postas em marcha nos territórios, situações e grupos estudados,
são tomadas, nessa medida, como parte fundamental do material de campo
10 Aproprio‐me aqui da reflexão original de Machado da Silva (2004) sobre a categoria
“violência urbana”, estendendo‐a a outros problemas.
303
que analisamos, cujos diagramas de sentido nos cabe compreender11. Assim,
pretende‐se realizar, sobretudo, um retorno à tradição fundadora da
pesquisa social, no sentido simmeliano, que propõe uma ruptura – a começar
pela inversão da questão central que lhe é imanente – com o conjunto de
pressupostos normativos de senso comum que informava, e que informa
ainda hoje, boa parte das estruturas dominantes de compreensão dos
sujeitos marginalizados. Em termos práticos, ao invés de nos perguntarmos
pelo que falta para que o problema representado nas figuras de adolescentes
inscritos no crime, dependentes de crack ou prostitutas seja sanado, ou como
administrá‐lo de modo mais eficiente, eficaz, efetivo, preocupamo‐nos
inicialmente apenas em descrever as relações que caracterizam as dinâmicas
íntimas, sociais e públicas desses sujeitos, em sua vida cotidiana, seus
espaços de atendimento, suas formas de lidar com a cidade, etc. Em seguida,
procuramos comparar os efeitos de conhecimento acerca das dinâmicas sociais
que se abrem, nessa perspectiva, aos que são gerados por outras formas de
analisar. Constatamos, então, que esses efeitos são muito diferentes, que a
partir deles as análises chegam a lugares distintos. O choque entre essas
perspectivas de saber é, então, inteiramente rentável analiticamente.
Levando‐o a sério, trata‐se de um choque de saberes inteiramente afeito à
constituição da política, no sentido de Jacques Rancière12.
O método de trabalho etnográfico nos tem parecido adequado a
esse investimento por possibilitar convivência, a mais próxima possível,
11 A sociologia pragmatista de Boltanski & Thevenot (1991); Thevenot (2006) tem sido
ponto de ancoragem constante dessa reflexão.
12 O que se passa, com efeito, quando as forças da ordem são enviadas para reprimir
uma manifestação política? O que se passa é uma contestação das propriedades e do
uso de um lugar: uma contestação daquilo que é uma rua. Do ponto de vista da
polícia, uma rua é um espaço de circulação. A manifestação, por sua vez, a transforma
em espaço público, em espaço onde se tratam os assuntos da comunidade. Do ponto
de vista dos que enviam as forças da ordem, o espaço onde se tratam os assuntos da
comunidade situa‐se alhures: nos prédios públicos previstos para esse uso, com as
pessoas destinadas a essa função. Assim, o dissenso, antes de ser a oposição entre um
governo e pessoas que o contestam, é um conflito sobre a própria configuração do
sensível. Os manifestantes põem na rua um espetáculo e um assunto que não têm aí
seu lugar. E, aos curiosos que vêem esse espetáculo, a polícia diz: “vamos circular,
não há nada para ver”. (...) Antes de ser um conflito de classes ou partidos, a política é
um conflito sobre a configuração do mundo sensível na qual podem aparecer atores e
objetos desses conflitos. (Rancière 1996, p.373).
304
entre pesquisadores e sujeitos pesquisados, incluído aí o esforço de
reflexão sobre essa convivência (bastante significativo para pensar a
alteridade como fronteira). Mais uma vez, cabe dizer que essa proposta
não é nada inovadora, embora distinta do que vem sendo feito
majoritariamente nas Ciências Sociais brasileiras (e também em muitos
contextos internacionais), nas últimas décadas. Estamos procurando fazer
apenas o que os clássicos da Sociologia – e da Antropologia – já
recomendaram, e foi posto em prática de pesquisa, com algumas distinções
relevantes, por trabalhos fundadores como os de Simmel (2006 [1903]),
Anderson (2010 [1923]) ou Whyte (2005 [1943]). Basicamente, trata‐se de
buscar suspender – o tanto quanto possível, e o mais radicalmente possível
nas situações de pesquisa – os juízos morais acerca dos sujeitos
pesquisados, para descrever os modos como essas pessoas interagem entre
si, nas diferentes situações que vivem, nos diferentes momentos e
territórios em que convivem. Da mesma forma, atentar para como se dão,
desde essa perspectiva, suas relações efetivas com instâncias sociais e
políticas legitimadas como a família, o mercado de trabalho, as igrejas, as
políticas sociais, a esfera jurídica, o “mundo do crime” e o Estado.
Descrever, ainda, as trajetórias pessoais, de grupos e de associações
inscritas nessas dinâmicas marginais, tomando como parâmetros o que
acontece, o que se diz, o que se faz, e não o que julgávamos que deveriam
fazer, falar, pensar. Não se trata, portanto, de desconsiderar que esses
sujeitos se apresentam como um problema social, para muitos, mas de não
reificar a existência desse problema como se fosse objetivamente
encontrado em todas as situações ou perspectivas em questão. Até porque
nossos dados de pesquisa têm mostrado, justamente, que não é assim que
as coisas se passam, se trabalharmos com rigor a partir dos princípios
teórico‐metodológicos fundamentais das Ciências Sociais.
3. Pensar a mudança nos setores populares: as margens como lacuna na
bibliografia
Um segundo ponto de partida desta pesquisa, igualmente
derivado de investigações anteriores e da leitura da bibliografia recente,
é aquele que percebe as dinâmicas sociais e políticas dos setores
populares a partir da mudança, da transformação, registrada
305
empiricamente pelos mais variados métodos – das pesquisas por
questionário ao georreferenciamento, das buscas por trajetórias
individuais às que procuram captar transformações estruturais no
Estado ou na economia. Parte‐se aqui do pressuposto de que os
parâmetros da vida social nas margens urbanas vêm se alterando
enormemente nas últimas décadas, de modo conectado a mudanças
ocorridas também em outras esferas sociais, econômicas e de Estado,
inclusive as mais legítimas. A transformação nas margens nos parece,
portanto, conectada às transformações do trabalho, família, religião,
projetos de mobilidade social, formas de associativismo, relações com a
institucionalidade estatal, as políticas públicas e os movimentos sociais.
Motivo, portanto, para pensá‐las relacionalmente e, assim, contribuir para
a transformação também das formas de analisá‐las.
Dando passos atrás com relação às propostas dedutivas de
teorias de grande envergadura, a proposta é produzir pesquisas
situadas e análises de médio alcance, renovando pela base as formas de
compreensão do social – e aqui falamos, portanto, tanto de
pressuposições teóricas, quanto de estratégias de método e formas de
analisar. Mais uma vez, não há nenhuma intenção em reinventar a roda,
ou trabalhar apenas com o cenário contemporâneo, tão diferente dos
anteriores. Ao contrário, trata‐se de recorrer aos fundamentos das
disciplinas das Ciências Sociais, entre elas as categorias de tempo,
espaço e mudança social: uma das perspectivas mais relevantes para os
pesquisadores envolvidos nesse projeto tem sido, justamente, a busca
pela historicidade e pelas múltiplas causalidades das mudanças em
curso, que derivam das formações sociais e políticas que lhes
precederam13.
13 As transformações nas periferias urbanas têm sido pensadas ao longo das últimas
quatro décadas, tempo restrito para historiadores, embora apenas inicialmente
traçado para a compreensão do perfil recente desses territórios (Feltran, 2011a;
Batista, 2011). Em alguns casos, a temporalidade das pesquisas é maior: as políticas de
encarceramento recentes, em São Paulo, geraram uma investigação sobre uma
rebelião de 1952, da qual se desdobram inúmeras linhas de análise do presente
(Horta, 2011, 2012); a curiosidade acerca da atual conformação dos dispositivos de
justiça do PCC gerou pauta para uma investigação sobre duas décadas de trajetória
de um grupo de rap (Takahashi, 2011) e, em seguida, para a formulação de um
subprojeto de pesquisa acerca da expressividade do conflito social das periferias e
306
A partir dessa tentativa, parece‐me fundamental considerar um
deslocamento, especialmente para pensar os sujeitos em questão nesse
projeto: trata‐se de pensar os modos de formulação pública da questão
social e os descompassos frente às formas como ela é vivida entre
aqueles figurados como seus protagonistas. Se há algumas décadas, e
em diversas perspectivas, tratava‐se de procurar as formas de
integração do trabalhador à vida moderna e urbana, fazendo proteção
social e defesa de direitos (Durham, 1973; Kowarick, 1979; Santos, 1979;
Sader, 1988; Dagnino, 1994, 2002; Telles e Paoli, 2000; Telles, 2001),
atualmente os sujeitos‐chave do problema são aqueles considerados
marginais, e a perspectiva de integrá‐los é cada vez mais frágil.
Diferentes pesquisas vêm mostrando que os bandidos, favelados, drogados
e traficantes, pontos de gravitação do problema social contemporâneo,
devem ser, sobretudo, contidos (seja em prisões e clínicas de internação,
ou mesmo fora delas (Thomaz, 2008; Agier, 2008; Telles & Cabanes,
2006; Misse, 2010; Villela, 2010; Telles, 2011; Hirata, 2011; Feltran, 2011;).
A questão social passa a ser compreendida publicamente, então,
como problema de segurança e ordem públicas, que tem sujeitos e
territórios bem demarcados14. Tanto do centro da cidade, habitado por
dependentes de crack, moradores de rua, travestis e prostitutas, quanto das
periferias e favelas mais distantes, representadas como territórios da
violência e do tráfico de drogas, emergiria o ponto de gravitação da “nova
questão social”, que se pretende tratar com ampliação da repressão,
controle, contenção e gerenciamento15. As tentativas de ocupação de
favelas e cracolândias, no Rio de Janeiro ou em São Paulo, são
exploradas ad infinitum em todas as mídias, e se tornam problemas ou
trunfos fundamentais de governos de diferentes esferas. O debate
favelas notável na sua produção musical, em todo o século 20 (NaMargem, 2011); a
atualidade do problema do crack tem sido pensada a partir de seus antecedentes
relacionais – transformações no tráfico de drogas, nas dinâmicas sociais e políticas
urbanas, nas políticas de atendimento, etc. (os trabalhos de Martinez, Oliveira,
Barbosa, Pereira e Pazzini, nos anexos, seguem nessa direção).
14 A respeito da distinção entre uma ameaça à segurança individual e uma ameaça à ordem
pública, em contexto diferente, ver Villela (2011).
15 Expressão dessa centralidade é a filmografia brasileira nos anos 2000, praticamente
307
público sobre a questão social se confunde, progressivamente, com
aquele voltado às questões da criminalidade violenta, tráfico e abuso de
drogas, e preconiza‐se mais repressão.
4. Desenvolvimento
A repressão, entretanto, não é a única face pública da mudança
dos setores populares, no Brasil contemporâneo. Muito mais pública
tem sido a constatação, justamente entre eles, de crescimento das
capacidades de consumo em ritmo acelerado, ou seja, na figuração
dominante a constatação dos efeitos positivos do “desenvolvimento
econômico” e da “consolidação institucional” do país. A ampliação no
acesso à escolarização, saúde e outros direitos sociais, a queda
substantiva do desemprego, além da expansão agressiva do poder de
compra, nos últimos anos, são discutidas diariamente pelos gestores do
mercado e do Estado. A propalada emergência de uma nova classe
média16 dá novo alento ao projeto de trabalhadores que, conforme notava
agudamente Durham (1973), para o caso central dos operários do seu
período de pesquisa, tinham como centro de seu projeto de vida a
mobilidade social. Atualmente, a retomada deste projeto pelas elites da
periferia urbana é quase uma redenção, já que haviam passado por duas
décadas de frustração importante desse projeto. Dos últimos quarenta
anos, vivemos na segunda metade dos anos 2000 o período de maior
expectativa de ascensão social entre os trabalhadores pobres urbanos. A
década atual se inicia em plena marcha dessa esperança (a de um Brasil
sem pobreza, conforme o slogan oficial).
Favelas e cracolândias de um lado, novos integrantes da classe
média, de outro. Contrafaces, muitas vezes, das mesmas territorialidades
urbanas: as periferias e o centro da cidade; sujeitos presentes – os
trabalhadores, os nóias, os presos, as prostitutas, as mães de família, os bem‐
sucedidos – muitas vezes, no seio das mesmas famílias populares.
Nenhuma dessas duas configurações contemporâneas está bem
estudada na tradição de pesquisa sobre as periferias urbanas e as classes
populares brasileiras. Há uma lacuna relevante na bibliografia
16 Crítica a essa abordagem aparece nos dados apresentados por Pochman, 2012.
308
específica a respeito, talvez ocasionada pela ênfase das Ciências
Humanas latinoamericanas no estudo do operariado e das classes
populares erigidas em torno do ideal do trabalho – e não do lumpen,
sequer dos pequeno‐burgueses, que hoje aparecem sobretudo como
derivações significativas e tendenciais, nas representações dominantes,
das periferias trabalhadoras.
Nossas pesquisas sobre esses sujeitos marginalizados,
portanto, se dedicam também a contribuir para o estudo de territórios e
sujeitos sociais populares, extremamente heterogêneos, cuja
conflitividade não se canaliza para a representação política oficial e que,
talvez por isso, não tenha sido majoritariamente legitimada como objeto
válido da bibliografia específica sobre os setores populares urbanos no
país. A própria tematização desses sujeitos já é expressão da mudança
social, captada em pesquisa de campo nos últimos anos. Nota‐se, além
do mais, que a presença estatal nos territórios estudados auxilia a
construção de bipolaridades (que mascaram e reconfiguram, a todo
tempo, a pluralidade empírica desses lugares). Nesse processo, como na
fotografia, o esfumaçamento de tons de cinza dispersos em dado
suporte é substituído pela classificação dicotômica de seus limites
extremos: o preto e o branco. E a partir daí – o caso de São Paulo é
exemplar a esse respeito – expandem‐se ao mesmo tempo políticas
extremas: a ampliação agressiva do encarceramento (de 40 mil presos
em 1996 para 190 mil em 2012, com mais 50 presídios em construção) é
simultânea à ampliação do acesso a direitos e serviços sociais
fundamentais, aumento da escolarização média e emprego,
modernização da infra‐estrutura urbana etc. Praças de guerra em
remoções urbanas, reintegrações de posse e cracolândias convivem com
discursos amenos da responsabilidade social empresarial. Essas
polaridades, em vista geral, são apresentadas como lógica única nas
situações em que se mostram. Essa clivagem, e a disposição da análise
situacional, é portanto importante na própria formulação do problema a
analisar que, muitas vezes, é pouquíssimo claro nas dinâmicas
empíricas observadas.
Exemplo desse esfumaçamento é a constatação de que
atualmente, entre os grupos urbanos mais marginalizados, há tudo,
menos ausência de Estado. Nem mesmo dos serviços públicos, algo que
309
os movimentos sociais das periferias puderam alardear com certa razão
nos anos 1980. Aumentou‐se muito a presença estatal entre essas
populações, e nos territórios em que elas habitam. Tanto – e sobretudo –
para levar até ali a ordem que estaria ausente, procurando, sempre sem
muito sucesso, reprimir e ocupar os insterstícios urbanos em ofensivas
civilizatórias, como nas UPPs cariocas ou na Nova Luz paulistana,
quanto para possibilitar que pudessem ser resgatados do crime e da
vagabundagem aqueles indivíduos que, mesmo desfrutando da
convivência de bandidos, drogados e pervertidos, desejassem se tornar
cidadãos. Logo após a entrada da polícia, ocupam favelas e cracolândias
uma miríade de ONGs e programas sociais (a UPP tem um braço
policial e um assistencial, como todas as intervenções nas ruas e favelas
paulistas). Depois dessa ocupação, a valorização imobiliária produz as
“remoções brancas” para que a gentrificação se instale definitivamente.
Por isso, paralelas às retomadas das políticas de mercado imobiliário,
inclusive populares (Shimbo, 2012), estão as desocupações de favelas e
as retomadas das reintegrações de posse de prédios ocupados.
De um lado, portanto, as mudanças da questão social
contemporânea promovem associações gestionárias como ONGs,
prestadores de serviços sociais e cursos de aprendizado profissional,
das mais diversas qualidades; de outro lado, aposta‐se todas as fichas
na repressão em massa dos desviantes. Ao mesmo tempo. Para a elite
das periferias, e os desgarrados das famílias mais pobres que puderam
fazer alguma ascensão social e, por isso, cumprem com os critérios
objetivos e disciplinares da mobilidade, há cursos de alta qualificação
no SENAI, no SENAC, entre outros. Há algum trabalho, há cursos
noturnos, há inclusive universidades pagas. Nas margens das favelas,
há formação preventiva promovida por entidades assistenciais e pelos
Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) para manicures,
cabeleireiros, fazedores de bijuterias, entre outros, permanecerem onde
estão – e não caírem na vida fácil. Via de regra, nenhuma dessas
atividades chega aos que estão inscritos nos mercados ilegais e ilícitos e,
se chegam, não duram. Os circuitos de inscrição desses outros sujeitos
não passam necessariamente por elas. Expandem‐se lado a lado,
portanto, ações sociais muito heterogêneas – algumas poucas voltadas a
“garantia de direitos”, para os que moralmente os mereçam; outras
310
tantas voltadas para “evitar que os meninos fiquem na rua, na droga, no
crime”. Para os que não atendem os critérios formais, mas sobretudo
aos critérios morais desejados, há outras políticas hoje muitíssimo bem
estruturadas – Fundação Casa para os que têm menos de 18 anos,
sistema carcerário para os que têm mais. Ambas em franca expansão
pelo estado. Clínicas de reabilitação, internação, contenção de
transtornados mentais e dependentes químicos terminam de compor o
cenário. Quem já passou algum tempo por favelas da cidade sabe que
não se tratam de dispositivos residuais; quem já passou tempo entre
essas instituições totais sabe que elas já não atuam pela integração social,
no plano normativo anunciado acima, mas são elementos estratégicos
constitutivos de uma nova ordem social, nos termos descritos nesta
pesquisa. A lógica da ocupação de territórios e controle de grupos
marginalizados, quando não de sua internação – seja por
criminalização, por dispositivos de saúde mental ou “guerra às drogas”
– é então complementada pela conversão desses processos em
acumulação de valor. São os modos relacionais de construção dessa
nova ordem, articulada entre gestão de miseráveis e desenvolvimento
econômico, que parece ser possível vislumbrar – embora ainda
estejamos dando passos muito iniciais nessa direção – a partir da
investigação em curso.
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314
Por uma sociologia das narrativas sobre o meio ambiente1
Rodrigo Constante Martins2
1. Introdução
A produção de verdades/diagnósticos sobre a moderna crise
sócio ambiental é atualmente um campo amplo que concentra não
apenas investigadores e peritos da ciência, mas também engloba
militantes ambientalistas, agentes econômicos, burocracias de governo,
stakeholders, dentre outros. A pluralidade de interesses envolvidos na
tessitura de hipóteses e explicações sobre causas e efeitos do
aquecimento global, da perda de biodiversidade, da poluição e da
escassez de água indica a pertinência de esforços sociológicos de
problematização das forças sociais que disputam o reconhecimento pelo
retrato legítimo da questão ambiental. Isto é, as narrativas dos desafios
ambientais contemporâneos podem ser apreendidas como objeto de
investigação sociológica através das relações entre as categorias de
classificação dos fenômenos naturais e as posições das classes e grupos
sociais que simultaneamente atuam e são afetados por tal classificação.
Neste texto, a questão ambiental será abordada através das
narrativas hegemônicas dos problemas relativos aos usos e acessos à
água no século XXI. Como é sabido, a temática dos recursos hídricos
adquiriu grande abrangência social e política no decorrer das últimas
três décadas. Encontros multilaterais envolvendo técnicos e chefes de
governo tornaram‐se recorrentes, tendo no mais das vezes o propósito
de estabelecer inovações normativas para a regulação do uso e acesso à
água em escalas nacional e internacional. Em termos simbólicos,
ressaltam‐se as novas estratégias de classificação do recurso, associado
aos signos de riqueza econômica estratégica, como ouro azul ou petróleo
do século XXI.
1 Este texto reúne resultados de estudos desenvolvidos pelo autor com apoio da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq).
2 Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós‐graduação em
Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
315
Esta ressignificação do recurso, alçado à categoria de capital
natural, também repercute na construção de novas estruturas de gestão
ambiental, voltadas fundamentalmente para o ideal econômico da
alocação eficiente dos fatores de produção. Neste sentido, a
disseminação internacional dos chamados instrumentos econômicos de
gestão ambiental vem sendo apontada como solução eficaz para o
ajustamento do consumo social da água. Do ponto de vista prático, tais
instrumentos teriam o mérito maior de fazer refletir, através de
mecanismos de mercado, os níveis de escassez relativa do recurso,
induzindo os agentes econômicos a adotarem condutas racionais de uso
do capital natural.
Neste artigo buscaremos desenvolver uma interpretação crítica
sobre o aparato conceitual e os valores sociais envolvidos na narrativa
que sustenta os instrumentos econômicos de gestão das águas. Para
tanto, o capítulo divide‐se em quatro partes. Na primeira parte, mais
descritiva, serão apresentadas algumas experiências nacionais de gestão
econômica dos recursos hídricos, chegando até os contornos
institucionais do caso brasileiro. Na segunda parte do texto serão
discutidos os pressupostos teóricos que, legitimados pela crença
científica, amparam as narrativas elaboradas pelos especialistas da
chamada “economia da água”. Na terceira e quarta partes do artigo
serão discutidos alguns elementos críticos envolvidos nestas narrativas
sobre “oferta”, “escassez” e “gestão” do recurso, que atualmente
influenciam sobremaneira o debate internacional sobre a governança
ambiental. Por fim, nas considerações finais, será feita uma síntese das
principais implicações das discussões empreendidas ao longo do texto.
Do ponto de vista conceitual, as narrativas ambientais serão
abordadas neste capítulo não como simples resultado discursivo de
visões de mundo estabelecidas, mas sim como vontade de verdade, nos
termos de Foucault (2005). Isto é, as narrativas serão interpretadas como
força, poder singular que atua nos processos de construção de verdades
que visam organizar e orientar as práticas sociais. São, portanto,
práticas discursivas que operacionalizam a realidade, transcendendo o
domínio exclusivo da representação e se apresentando como aparato
que também produz o real – um efetivo dispositivo de poder.
316
2. A gestão econômica da água: experiências nacionais
Problemas relacionados à escassez de água potável em nível
mundial têm suscitado preocupações, tanto por parte de Estados
Nacionais quanto por agências e organizações multilaterais, acerca dos
modos de regulação e otimização do uso dos recursos hídricos.
Gradativamente, em vários países – sobretudo nos pertencentes à
OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) –
o controle institucional direto sobre o acesso e uso dos recursos hídricos
vem sendo feito a partir da adoção dos chamados instrumentos
econômicos, que teriam como função induzir os agentes econômicos a
comportarem‐se de acordo com padrões socialmente desejados. No
concernente à experiência internacional de gestão das águas, os
instrumentos econômicos mais utilizados para a garantia de usos mais
eficientes do recurso têm sido os orientados para a criação de mercados
de água e para formas de cobrança pelo uso dos recursos hídricos – a
valoração da água.
A instituição de mercados de direitos de água tem sido realizada
com base na crença do marginalismo neoclássica de que, dentro de um
sistema de livre mercado, a escassez relativa de um bem determina
automaticamente a elevação de seu preço, estimulando assim seus
consumidores a otimizarem o seu uso. Nos estados do oeste dos
Estados Unidos (Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada e Novo
México), o direito de propriedade da água possui as mesmas
características dos direitos de propriedade sobre a terra, podendo
inclusive ser vendido, cedido ou alugado temporariamente. A
administração do mercado de direitos de água é feita pelo Estado,
através de tribunais especiais de água (Water Courts), encarregados de
reconhecer os direitos sobre o recurso e resolver eventuais conflitos
(Cowan, 1998).
Na América Latina, o Chile é o país com experiência mais longa
de implementação de estratégias econômicas de gestão da água. Desde
1981, a legislação chilena garante a negociabilidade dos diretos de água
(definidos como certo volume de água por unidade de tempo),
permitindo o intercâmbio entre o que a lei define como setores agrícolas
e não‐agrícolas (Lee; Juravlev, 1998). Contudo, se comparado com o
317
caso norte‐americano, o mercado de água chileno ainda é considerado
incipiente, e possui um pequeno volume de transações.
A cobrança pelo uso dos recursos hídricos, por sua vez, constitui‐se
atualmente no principal instrumento de gestão de águas em nível
internacional. Em síntese, tal instrumento parte da atribuição de um
valor monetário aos recursos hídricos, que se reflete na forma de
impostos, taxas ou simplesmente preços a serem cobrados sobre o uso
e/ou contaminação da água. Tal instrumento tornaria possível
responsabilizar os agentes (usuários/poluidores) pelas externalidades
negativas que suas atividades comportam, permitindo uma
aproximação entre custos privados e custos sociais, ao mesmo tempo
em que pode gerar receitas para amenizar os impactos negativos sobre
os aspectos quantitativos e qualitativos dos recursos hídricos (Dinar,
2000).
A adoção da cobrança pelo uso dos recursos hídricos tem como
uma de suas orientações básicas o Princípio do Poluidor Pagador, adotado
pelas legislações ambientais dos países filiados à OCDE. Tal princípio
pressupõe que o agente econômico poluidor responderia à demanda de
sustentabilidade ambiental menos por considerar que tal temática seja
legítima e mais porque o não atendimento à mesma reverbaria
negativamente em sua posição no mercado, através da elevação de seus
custos individuais3.
O sistema francês de gestão dos recursos hídricos é um dos
principais exemplos internacionais do emprego do Princípio do Poluidor
Pagador. Calçado em legislação da década de 60, tal modelo define a
bacia hidrográfica como unidade administrativa de gestão das águas
nacionais, além de também garantir a cobrança pelo uso da água para
os agentes públicos e privados que contribuam para a deterioração da
qualidade do recurso. A taxa cobrada dos agentes poluidores franceses
– a redevance – é determinada através do volume de poluição lançado ou
3 Neste mesmo sentido, o Banco Mundial (1998: 80) pressupõe que “as tarifas de água e
incentivos fiscais podem incentivar as firmas a adotarem tecnologias para economizar e
conservar a água, incluindo sistemas de reciclagem. Tais tecnologias e alternativas de
gerenciamento tornarão fácil a conservação da água e a reutilização”. No caso da
agricultura, o banco acredita que “da mesma forma, as tarifas podem servir de incentivos
aos agricultores para alternarem seu trabalho agrícola para culturas que utilizem pouca água.”
318
na degradação gerada sobre os corpos d’água. Sua aplicação seria uma
forma de induzir o poluidor a realizar análises de custo‐eficácia entre
poluir – pagando taxas – ou não poluir, adotando mecanismos ou
tecnologias que reduzam sua carga poluidora (Barraqué, 1991).
Na Alemanha, embora a gestão das águas seja assegurada aos
estados (Länder), a legislação geral sobre a cobrança pelo uso da água
tem caráter nacional, cabendo a cada estado complementá‐la e/ou
reforçá‐la. Datada de 1976 (e efetivamente aplicada a partir de 1981), a
valoração da água na Alemanha tem como principal alvo os agentes
poluidores, através da cobrança pelo lançamento de efluentes. Mais
recente, a cobrança pela captação de água se baseia em legislações
estaduais complementares, não abrangendo a totalidade do país. Na
prática, a cobrança alemã atinge quase exclusivamente os industriais
(com lançamentos diretos em corpos d’água) e os usuários domésticos
(através das estações de tratamento de esgotos).
Na América Latina, o México iniciou sua política de cobrança
pelo uso da água em 1991. Na ocasião, os principais alvos eram as
municipalidades e as indústrias que em seus lançamentos sobre os
corpos d’água rompiam limites de emissão pré‐estabelecidos. A partir
de 1995 o critério de cobrança foi alterado, passando a basear‐se na
carga efetiva de poluentes lançados pelos agentes individuais –
aproximando‐se assim da lógica de mercado própria dos princípios de
valoração ambiental.
No Brasil, o modelo francês tem sido a principal referência para
a construção dos arcabouços institucionais nacional e estaduais de
gestão dos recursos hídricos. A Constituição Federal de 1988 reiterou o
domínio público da água, reconhecendo, porém, o valor econômico do
recurso e a cobrança por seu uso. Em 1997, a Política Nacional de
Recursos Hídricos definiu que a valoração seria o instrumento
privilegiado de ação política de controle ambiental. Dado o caráter
descentralizado do novo sistema de gestão das águas no país, nos rios
de domínio federal, cumpriria aos Comitês de Bacia Hidrográfica a
implementação da cobrança. No caso dos rios de domínio estadual,
seria dos estados a responsabilidade pela regulamentação do sistema de
cobrança.
319
Desde 2003, em nível federal, a cobrança pelo uso dos recursos
hídricos é praticada pelo Comitê do rio Paraíba do Sul, que envolve
municípios dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro Minas Gerais. Em
nível estadual, o Ceará implementou a cobrança no final de 1998. No
estado de São Paulo, a cobrança pelo uso da água foi aprovada em
forma de lei em 2005 e encontra‐se em fase de implementação pelos
Comitês de Bacia Hidrográfica. A Política de Recursos Hídricos deste
estado, desde 1991, reconhecia a água não só como um bem público,
mas também como um bem dotado de valor econômico, “cuja utilização
deve ser cobrada, observados os aspectos de quantidade, qualidade e as
peculiaridades das bacias hidrográficas” (São Paulo, 1991).
De maneira geral, no Brasil, o princípio da mercantilização da
água, sobretudo através das estratégias de valoração, vem sendo
amplamente defendido por movimentos ambientalistas e pelos
integrantes dos Comitês de Bacia Hidrográfica. As justificativas
comumente manifestadas em favor do princípio estão, por parte dos
movimentos ambientalistas, relacionadas à perspectiva de penalização
dos agentes poluidores, e, por parte das instituições gestoras, voltadas à
arrecadação de recursos financeiros para as atividades de
gerenciamento.
Considerando este contexto de expansão das estratégias de
mercantilização da água, nos parece que, em termos de reflexão
sociológica, são necessários novos esforços de interpretação crítica dos
principais termos envolvidos na noção de valoração ambiental. Ou seja,
se por um lado as necessidades de recursos financeiros para a gestão
ambiental e de enquadramento jurídico dos agentes poluidores são
inquestionáveis, por outro, é preciso atentar para a não‐naturalização de
noções lógico‐dedutivas que pouco contribuem para a construção de
políticas públicas condizentes com a complexidade das disputas
socioambientais.
Do ponto de vista da análise sociológica, são vários os caminhos
de interpretação crítica que podem ser desenvolvidos sobre a narrativa
da mercantilização dos recursos naturais. Dentre tais caminhos,
buscaremos aqui percorrer os contornos essenciais de duas alternativas
interpretativas, quais sejam: a das dimensões extra‐econômicas do
comportamento econômico dos agentes sociais; e a da crítica ao padrão
320
capitalista de uso e acesso aos processos ecossistêmicos. Antes, porém,
convêm algumas notas sobre os princípios teóricos que sustentam esta
narrativa da gestão econômica dos recursos naturais.
3. Mercado e meio ambiente: as hipóteses do utilitarismo neoclássico
A microeconomia ambiental neoclássica tem fornecido um
importante suporte conceitual para a adoção em escala internacional de
instrumentos econômicos para a gestão dos recursos naturais (Jacobs,
1994; Martins, 2004). No nível das políticas públicas, este suporte
conceitual fornece os fundamentos para a hipótese do Princípio do
Poluidor Pagador. De acordo com tal princípio, o agente social poluidor
deve arcar com as despesas para manter o meio ambiente dentro de
parâmetros aceitáveis de qualidade, sustentando, por conseguinte, a
hipótese de que, ao ser penalizado pela cobrança no uso deletério da
água, o poluidor seria induzido a adotar práticas menos onerosas ao
meio ambiente (OCDE, 1992).
Na construção epistemológica do referido princípio – que, em
consonância com o utilitarismo neoclássico, segue uma lógica
estritamente hipotético‐dedutiva, onde os conceitos aplicadas na análise
derivam abstratamente uns dos outros4 –, supõe‐se que o agente
econômico isoladamente induziria o progresso técnico, respondendo
rapidamente à demanda de sustentabilidade ambiental. Contudo, tal
resposta justificar‐se‐ia menos pela legitimidade dos valores da
sustentabilidade ambiental ante o cálculo econômico do agente do que
pela ameaça de custos adicionais que o não atendimento à demanda de
sustentabilidade lhe acarretaria. No caso da aplicação do Princípio do
Poluidor Pagador à gestão das águas, espera‐se que a insistência de um
agente no uso insustentável do recurso eleve seus custos de produção –
custos estes que, repassados ao preço final de seus produtos, diminuirá
sua competitividade. Assim, seria esta uma forma de internalização do
problema ambiental pelos agentes econômicos tida pela OCDE como
4 Neste sentido, a própria Economia Ambiental, com as noções de equilíbrio e
externalidade, surge como derivação do neoclassicismo no campo da ciência
econômica. A propósito deste caráter lógico‐dedutivo do utilitarismo neoclássico, ver
Wolff e Resnick (1988).
321
legítima e urgente de ser instaurada nos países que atravessam
situações limite.
Nestes termos, a criação de mercados de água e a valoração do
recurso surgem como processos de significação por excelência da
questão ambiental em nível social. Por intermédio da instauração destas
novas institucionalidades, as situações de degradação e escassez
relativa dos recursos hídricos seriam naturalmente incluídas no cálculo
racional‐econômico dos agentes consumidores, que, por sua vez, seriam
incitados a definirem formas de uso mais sustentáveis de tais recursos.
Esta dedução acerca das práticas individuais ampara‐se na
suposição neoclássica de que a alocação eficiente de qualquer bem ou
serviço dá‐se mediante a livre manifestação da escala de preferência dos
agentes‐consumidores. Isto significa que seria possível medir a
sensibilidade dos consumidores diante das variações na oferta de
mercadorias a partir, única e exclusivamente, de sua disposição a
adquiri‐las/comprá‐las, ou seja, a partir de sua utilidade circunstancial.
No caso dos bens ambientais, a situação de uso e acesso não
regulados pelos mecanismos de mercado afetaria de maneira decisiva a
função de utilidade do agente‐consumidor. Pearce (1985), um dos
principais expoentes da Economia Ambiental, destaca que o caráter
não‐rival dos bens ambientais faz com que seu consumo por um
indivíduo não implique, necessariamente, o não‐consumo de outrem,
impedindo, assim, que os consumidores manifestem suas preferências
pelo referido bem por intermédio de lances de mercado. Diante de tais
circunstâncias, os resultados – sejam eles positivos ou negativos – dos
usos feitos pelos agentes econômicos dos bens e serviços de domínio
público constituiriam‐se em externalidades da atividade econômica.
Fundamental no arcabouço teórico da Economia Ambiental, as
externalidades são definidas por este paradigma como sendo os efeitos
gerados pela atividade de um agente econômico sobre outrem, afetando
sua função de utilidade e, por conseguinte, o próprio equilíbrio do
mercado (Baumol; Oates, 1988). A alteração desta situação de equilíbrio
afastaria o mercado do optimum de Pareto, causando então distorções na
distribuição dos recursos e das rendas entre produtores e
consumidores. No caso dos bens e serviços ambientais, ao provocar
algum tipo de prejuízo que se transformasse em custos excedentes para
322
outro, o agente em questão estaria produzindo uma externalidade
negativa, afastando então o mercado do seu ponto optimum de alocação
dos recursos.
Desta feita, em uma situação de poluição (que não seria apenas
ambiental, mas também econômica), a solução para o restabelecimento
do equilíbrio de mercado seria a internalização, por parte do homo
oeconomicus, das externalidades por ele provocadas. Contudo, conforme
afirmam Baumol e Oates (1988), a ausência de direitos de propriedade
sobre muitos dos recursos naturais faz com que não haja pressão social
para que o agente gerador da externalidade arque com os custos sociais
de sua ação. Para os autores, na medida em que os bens ambientais não
podem se constituir em propriedades privadas, sendo então de uso e
domínio públicos, a racionalidade própria das transações de mercado
não pode sobre estes imperar. Por conta disso, Stevenson (1991) nos
mostra que, historicamente, tem sido atribuída aos governos nacionais –
na condição de gestores dos bens públicos – a função privilegiada de
equacionar os impasses políticos e econômicos criados pela degradação
ambiental.
Entretanto, vários outros autores têm argumentado que esta
intervenção governamental tem dado margem ao surgimento de outras
disfunções na relação entre economia e natureza. Definidas por Gowdy
e O’Hara (1995) como falhas de intervenção, ou, conforme o próprio
Stevenson, falhas de governo, tais disfunções estariam vinculadas à
própria forma de estruturação do moderno Estado‐nação. Segundo os
autores, o aparato burocrático característico da estrutura deste Estado
dificulta a regulação do uso dos recursos naturais na medida em que os
interesses políticos envolvidos no âmbito da gestão pública
transformam a questão ambiental em instrumento de barganha entre
facções da burocracia estatal. Também ressaltando a existência das
falhas de governo, Turner, Pearce e Baterman (1993) apontam as
possíveis manobras na legislação ambiental em favor de interesses
setoriais, revelando a incapacidade do Estado de fazer refletir os níveis
de escassez ambiental junto aos agentes econômicos. De acordo com os
autores, a regulação estatal poderia mascarar o nível de esgotamento do
capital natural, uma vez que não remete ao homo oeconomicus a
responsabilidade de adquirir informações sobre o estoque de recursos
323
naturais para, a partir delas, realizar suas próprias análises de custo‐
eficácia.
Diante desses impasses atribuídos à atuação do Estado na gestão
ambiental, a análise neoclássica conclui que não há como enfrentar os
problemas relativos à escassez e à degradação ambiental – retomando o
bem estar de todos os agentes econômicos –, senão através da criação de
condições para que os próprios instrumentos de mercado possam atuar
nas relações entre economia e natureza. Para tanto, ao invés de
regulamentar, caberia ao Estado a tarefa de criar condições para o
“livre” funcionamento dos mercados ambientais, que, por sua vez,
agiriam em prol da minimização dos impactos econômicos da
degradação ambiental.
4. O mercado como prática social
Em face da consolidação dos principais termos da Economia
Ambiental para a narrativa da moderna crise ambiental, vários estudos
têm sido realizados, no curso das duas últimas décadas, com o objetivo
de estimar valores monetários para bens e serviços ambientais. A
elaboração de indicadores quantitativos ponderados através de critérios
de escassez, tais como os níveis de vulnerabilidade e insubstitubilidade
dos recursos naturais, e a tentativa de mensuração da disponibilidade
da sociedade em pagar pela preservação ambiental – passando inclusive
pela construção de mercados hipotéticos para os serviços ambientais –
têm sido apresentadas por autores da Economia Ambiental como a
solução viável e eficaz de gerenciamento dos recursos naturais em
escala mundial (Pearce e Turner, 1991; Pearce, 1993; Tisdell, 1997).
De outra parte, vários esforços interpretativos, partindo de
diferentes matrizes teóricas das Ciências Sociais, têm enfatizado tanto a
falta de sustentação teórica da concepção de mercados ambientais
quanto sua inadequação como princípio norteador de políticas de
gestão dos recursos naturais. No geral, as críticas à Economia
Ambiental apontam para o reducionismo do comportamento
econômico dos agentes sociais no uso dos recursos naturais (Leff, 1995;
Benton, 1994), a apreensão a‐histórica da relação sociedade‐natureza
(Martins, 2004; Altvater, 1995) e a própria concepção de sistema
324
econômico deste approach, que reduziria a atividade econômica a um
sistema fechado e isolado, desconsiderando que a produção é,
fundamentalmente, troca e/ou transformação de energia (Allier e
Schlüpmann, 1993; Daly, 1991).
Contudo, a despeito das críticas, os princípios da economia
política da água sustentados pelo neoclassicismo marginalista seguem
ocupando lugar de destaque no debate internacional sobre regulação
ambiental. Outrossim, estes princípios são recorrentemente utilizados
para a nominação dos principais temas da moderna crise
socioambiental. Esta atividade de nominação, que se origina na
designação dos ativos ambientais e se estende até a proposição dos
mercados futuros de commodities ambientais, também explicita o fabrico
de relações complexas de poder, que não se encerram nos limites de
autonomia dos distintos campos de relações (burocrático, acadêmico,
econômico). A rigor, a temática ambiental perpassa estes campos;
contudo, fundamenta‐se sobre a retórica dominante do campo
econômico.
O entendimento da gênese do moderno discurso ambientalista
requer, sem embargo, a compreensão das formas pelas quais a retórica
econômica conduziu os termos da temática ambiental na agenda
política desde meados do século XX. Do ponto de vista analítico, propor
tal compreensão não implica em tomar a dimensão econômica dos
processos sociais como elemento determinante de interpretação. Neste
caso, o olhar sobre a retórica econômica resulta da própria historização
do discurso ambientalista, posto que sua formulação foi resultante do
apontamento de certos limites físicos para a sustentação do padrão de
crescimento econômico verificado nas economias centrais no curso das
duas primeiras décadas do pós‐guerra.
Um dos produtos sociais mais expressivos da presença da
retórica econômica na gênese do moderno debate ambiental é a noção
de racionalidade no interior do discurso ambientalista. A expressão
“racionalização do uso dos recursos naturais” atribui às práticas sociais
um conjunto de suposições que comumente apresentam‐se de forma
bastante fragmentada na vida cotidiana. A noção de cálculo implicada
nos discursos de uso racional da água, da energia e dos recursos
florestais, dentre outros, requer uma consciência fundamentada no
325
cálculo e na previsibilidade. Esta consciência temporal e seu ethos
correlato aparecem como fundamento da conduta econômica racional e
capaz de assegurar êxito ao planejamento do que nos últimos anos
convencionou‐se chamar de contabilidade ambiental.
Entretanto, a suposição da condução universalizada das práticas
sociais na direção desta modalidade de racionalização despreza o fato
de que a racionalidade da ação tem seu limite na conduta socialmente
estruturada do agente. Logo, toda prática social está circunscrita a um
quadro específico de experiências passadas que funcionam como matriz
de percepções, decisiva para a formulação de estratégias de conduta
social. Ou, como nos sugere Bourdieu, a prática revela a fundamentação
da illusio como ordem de ação, rotina; no caso do utilitarismo, revela
que “o conjunto de disposições do agente econômico que fundam a
ilusão da universalidade a‐histórica das categoriais e conceitos
utilizados são o produto de uma longa história coletiva, e que deve ser
adquirida no curso da história individual” (Bourdieu, 2003: 83)
É notório que a crença de que os agentes econômicos, induzidos
por “sinais” de mercado, deverão incorporar a dimensão ambiental sob
um padrão de racionalidade econômica, pressupõe a existência de um
padrão unívoco de racionalidade. Entretanto, se consideramos que a
relação da sociedade com o meio ambiente é mediatizada também por
processos políticos e culturais, torna‐se evidente que qualquer
estereótipo de conduta racional constitui‐se numa idealização com
estreito alcance analítico. Weber (1999), em sua clássica análise da
dimensão reflexiva da ação social, já enfatizava a necessidade de se
compreender o seu sentido subjetivamente visado, ou seja, os elos
significativos que fundamentam a ação do agente. Para o autor, a
dimensão do termo racional vincula‐se estritamente aos processos que
sustentam a ação social. Sem a compreensão dos seus elos significativos
– ou, na terminologia weberiana, de seu sentido – a ação torna‐se, do
ponto de vista analítico, um comportamento reativo, sem conteúdo
eminentemente social.
Portanto, a racionalidade de uma ação ou processo social não
deve ser compreendida senão a partir dos seus elos significativos,
compostos tanto de motivações materiais quanto simbólicas. É
justamente tal iniciativa que permitiria à teoria social, tal como
326
enfatizam apropriadamente Elias e Scotson (2000), a recusa da herança
iluminista no que tange à crença consoladora da supremacia de uma
razão abstrata, descarnada e totalizante. Os dados sociais, por serem sui
generes, não são racionais ou irracionais em sentido absoluto, mas base
sobre a qual indivíduos e/ou grupos sociais se autoreconhecem e
constroem suas identidades (seja através do conhecimento científico e
de ideologias políticas, ou mesmo da construção depreciativa do outro).
Neste contexto, ao contrário do que supõem os neoclássicos, a
significação cultural, dentre outras, pode ser o fator determinante sobre
o resultado social de uma dada ação, sobrepondo‐se inclusive a
aspectos econômicos que poderiam dar‐lhe sentido distinto. Este seria o
caso, por exemplo, de uma interpretação um pouco mais acurada do
que o neoclassicismo chama de falhas de mercado. Na economia
moderna, as falhas relacionadas com a alocação dos recursos naturais
constituem‐se, a rigor, em vantagens competitivas disputadas por
diferentes grupos (ou capitais) econômicos. A apropriação e uso de
condições ecológicas favoráveis ao processo de valorização capitalista
têm sido, historicamente, alternativas para ganhos de produtividade e
competitividade dos capitais individuais. Da mesma forma, o uso de
vantagens institucionais e políticas da esfera não‐mercantil – chamadas
pelos neoclássicos de “falhas” de governo – também constituem‐se, sob
o prisma da prática destes agentes, em vantagens competitivas5.
Ademais, convém ainda destacar que o alcance dos
instrumentos econômicos na gestão dos recursos naturais, ao serem
concebidos sob a estratégia marginalista de universalização das práticas
sociais, evidencia de antemão seus limites em face das distintas
modalidades de disputas sociais pertinentes aos jogos de cada campo
de forças sociais. Isto é, se considerarmos os recursos naturais como
elementos de disputas que são indissociáveis do espaço social, é mister
supor que os jogos de oposições e de distinções sociais de cada campo
revelarão estratégias diversas de distribuição dos recursos materiais e
5 Para apontamentos sobre a construção política destas vantagens competitivas no
contexto da economia norte‐americana (berço dos ideais do “livre‐mercado”), ver
estudo de Fligstein (2001) a propósito da emergência do valor acionário como
concepção do moderno controle das empresas, e do crescimento do Vale do Silício,
força motriz da indústria informática naquele país.
327
simbólicos em face dos princípios de diferenciação do próprio campo.
Neste sentido, os pressupostos nos quais a aplicação de tais
instrumentos se baseiam – quais sejam, os da alocação econômica
eficiente e da promoção do uso racional do recurso – deverão servir
sobremaneira aos mecanismos de diferenciação social de cada campo de
forças. Por esta razão, não há como estabelecer nenhum elo, seja de
ordem prática ou mesmo teórica, entre o pseudo equilíbrio das relações
de troca e o equilíbrio ecológico requerido para a sustentabilidade do
uso dos recursos naturais.
Nestes termos, convém ainda resgatar a definição de Fligstein
(1996) para a constituição do mercado econômico como fenômeno
eminentemente sociopolítico. Tal como destaca o autor, a criação de
mercados implica em soluções sociais para problemas de direito de
propriedades, estruturas de governança, concepções de controle e
regras de troca. A definição do perfil não resulta de processos
automáticos de interação social. Esta definição é sobretudo política. As
soluções para a constituição de cada mercado são decisivas para a
permanência ou exclusão dos agentes. Portanto, a racionalidade destes
agentes no âmbito do mercado reserva‐se às disputas políticas pelo
ordenamento das relações e pela conquista de vantagens competitivas.
E, no campo destas disputas políticas, os capitais econômico, social e
cultural combinam‐se de formas peculiares à posição de cada agente no
espaço social.
Mesmo a noção de equilíbrio, recorrente na literatura da
Economia Ambiental em referência à obra de Pareto, revela traços de
inconsistência que ultrapassam as dificuldades de identificação do plano
das relações concretas e chega á sua formulação conceitual. Como bem
observa Passeron (2004), a originalidade de Pareto em relação aos demais
marginalistas neoclássicos relaciona‐se com sua ressalva de que o
equilíbrio econômico de mercado não fornece um modelo que possa ser
transposto para suposições acerca do equilíbrio social. O equilíbrio
econômico suposto pelo autor estria intimamente atrelado a condutas
lógico‐ideais dos agentes econômicos. Em sua análise econômica, o autor
procura demonstrar que o livre mercado seria o espaço por excelência de
realização de tais condutas. Já em sua obra sociológica, Pareto avança
sobre o que denomina de ações não‐lógico‐experimentais, relacionadas
328
ao que chama de resíduos e derivações. Tal como insiste o autor, é
preciso estar atento ao fato de que estas ações não‐lógicas não seriam
ilógicas: na história social, equilíbrios, conflitos e crises se explicariam
através dos resíduos (expressão dos sentimentos inscritos na natureza
humana e nos processos de socialização) e das derivações, formas as
quais indivíduos e grupos lançam mão para a justificação de condutas
não‐racionais (no sentido da correspondência da relação meios‐fins na
consciência do agente e no contexto empírico). Sua sociologia, ao estudar
as condutas não‐lógicas, não visava construir paralelos com a idéia de
utilidade empregada na economia. E menos ainda indicar alguma
convergência entre as duas noções. Em Pareto, as ações lógicas e não‐
lógico‐experimentais comporiam, tal como sugere Aron (2002), o esforço
de construção de uma sociologia totalizante, evidentemente correndo os
riscos que tais esforços comumente implicam.
A propósito da obra paretiana, o que os autores da Economia
Ambiental desprezam é justamente um de seus pressupostos
fundamentais, qual seja, o da inexistência de sociedades compostas
exclusivamente de condutas lógico‐exprimentais ou de condutas não‐
lógicas. Tratar‐se‐iam de modalidades extremas, quase no sentido dos
tipos puros weberianos. Como salienta em seu Tratado de Sociologia:
“Embora isso desagrade aos humanistas e aos positivistas, uma
sociedade determinada exclusivamente pela razão não existe e não
pode existir; e isto, não por que os prejulgamentos dos homens os
empeçam de seguir os ensinamentos da ”razão”, mas por que os dados
do problema que se quer resolver pelo raciocínio lógico‐experimental
lhes faltam. Aqui aparece de novo a indeterminação da noção de
utilidade (...). As noções que os diferentes indivíduos têm a respeito do
que é bom para eles mesmos ou para os outros são essencialmente
heterogêneas, e não há meio de reduzi‐las a uma unidade.” (Pareto,
2003, § 2143)
A leitura sobre estes limites empíricos das condutas lógico‐
experimentais é o que vem permitindo, por exemplo, a retomada crítica
da obra paretiana. Este é o caso dos esforços de Burns e Roszkowska
(2009), que problematizam o princípio abstrato do optimum de Pareto no
contexto de situações de conflitos e questionamentos sobre os
329
resultados de processos institucionalizados de negociação envolvendo
diferentes agentes sociais. Ressaltando os limites do enfoque paretiano
para os estudos sobre conflito, os autores apontam como os
procedimentos de negociação (tais como o voto e a jurisdiciação das
relações), e não propriamente seus resultados, adquirem legitimidade
nas sociedades modernas (promovendo uma espécie de alquimia
institucional). Nestes termos, o ponto optimum de equilíbrio para a
alocação de recursos se relativiza na avaliação dos resultados das
negociações institucionalizadas. Como bem observam os autores, a
aceitação geral dos procedimentos é que se torna fundamental na
resolução do conflito, e não seu resultado como função de utilidade.
Com efeito, talvez não seja por outra razão que a crítica social aos
instrumentos econômicos de gestão de águas encontra‐se em grande
medida centrada na condenação dos procedimentos de mercado como
reguladores viáveis das modalidades de uso e acesso a este recurso6.
5. Crítica da economia política da água
Criticar esta modalidade de economia política da água não
significa simplesmente retificar distorções de detalhes da abordagem
neoclássica ou preencher eventuais lacunas. Neste esforço de análise, a
crítica da economia política da água sugere o apontamento de uma
nova narrativa, capaz de superar os impasses inerentes às
interpretações centradas no modelo formalista de equilíbrio de
mercado. Na direção inaugurada por Marx, em sua crítica da economia
política clássica, o que este texto coloca em discussão é o próprio objeto
da economia ambiental, a saber, a alocação eficiente dos recursos
naturais baseada em categorias econômicas de gestão.
Sobre a constituição das categorias econômicas, é importante
ressaltar que a sociedade cria formas diversas de trocas, que se
relacionam e se retroalimentam. Retomamos, portanto, a assertiva de
Mauss (2003) de que os mercados são constituídos de práticas
6 São muitos os críticos que no âmbito do debate público (principalmente no campo
jornalístico) ressaltam o caráter excludente da gestão estritamente econômica da água.
Para uma síntese dos principais argumentos envolvidos em tal crítica no cenário da
opinião pública nas duas últimas décadas do século XX, ver Laimé (2003).
330
econômicas que são, simultaneamente, políticas e culturais. Como é
sabido, em seu clássico Ensaio sobre a Dádiva, o autor interpreta a troca
como um fato social total, cujas regras manifestam‐se simultaneamente
na moral, na religião, no direito, na economia, na política, na
organização das relações de parentesco e na estética da sociedade em
questão. Neste sentido, os indivíduos não podem ser concebidos como
estátuas econômicas, posto que também são agentes políticos, culturais
e pessoas morais. É justamente por esta razão que, ao se supor a
conduta racional do agente econômico diante dos mecanismos de
valoração da água, está‐se absolutizando a dimensão econômica da
conduta social e refletindo‐se sobre um agente abstrato, fracionado em
sua integridade social.
Este superdimensionamento do cálculo econômico na conduta
individual em ambientes de mercado, tal como sugere Sahlins, (2003), é
uma expressão da própria cultura permeada pela hegemonia da razão
utilitária. Tal razão, fundamento da visão moderna de racionalidade
econômica, é, do ponto de vista cultural, a maneira pela qual as
sociedades ocidentais vêm se experimentando desde o início do século
XX. Equivocadamente, este modo de experimentação social segue sendo
reificado como único fundamento para a explicação das propriedades
das relações sociais, desconsiderando que mesmo a utilidade é
composta por dimensões simbólicas que escapam ao universo dos
fluxos de oferta e demanda dos mercados.
Senão, como interpretar as práticas culturais de grupos sociais
distintos em relação às águas tomando como referência as noções de
utilidade e conduta racional sustentadas pela economia ambiental? Ou,
como interpretar a resistência à precificação da água por aqueles que a
concebem como recurso sagrado, sem possibilidade de representação
no universo das mercadorias? Neste caso, tratar‐se‐ia simplesmente de
uma conduta residual, nos termos paretianos? Ou ainda, no sentido
antropológico, como compreender as tradicionais Festas dos Pescadores
e as práticas religiosas sobre as águas, tão presentes em cidades
ribeirinhas brasileiras, a partir das posições sociais de ofertante e de
consumidor do utilitarismo neoclássico? Qual será a resposta racional
dos que cotidianamente mantém com as águas práticas simbólicas que
estão para além dos ajustamentos de mercado?
331
Como sugere Espeland (1998), a suposição de uma conduta
racional universal é problemática justamente em razão das dimensões
de identidade e cultura que amparam as práticas e a construção social
da realidade. Nestes termos, a leitura dos grupos de interesse e de suas
estratégias baseada diretamente em suas respectivas posições de
mercado despreza, segundo a autora, a complexidade que envolve as
construções de diferentes visões técnicas sobre a natureza, de diferentes
disputas políticas envolvidas na regulação do acesso ao meio ambiente
e do multiculturalismo envolvido na construção da moderna temática
ambiental7.
Podemos afirmar que a noção de racionalidade econômica não
apenas possui um alcance relativo, mas também contribui para a
construção de ausências no âmbito dos saberes regionais sobre as águas.
Intimamente articulada à razão indolente analisada por Santos (2002),
as categorias de conhecimento disseminadas pela economia política da
água, ao marcarem os horizontes de alcance para aplicação de certos
saberes técnicos, também contribuem para a produção da monucultura
do saber e das ausências que lhe são decorrentes. Talvez seja um dos
caminhos possíveis para a interpretação das formas de exclusão de
grupos sociais das possibilidades de participação em estruturas
descentralizadas de gestão das águas8. Ao realizar‐se como saber
legítimo, esta razão técnico‐instrumental não promove apenas a
7 Espeland (1998) exemplifica esta complexidade através do caso dos conflitos
envolvidos na construção de uma barragem no oeste dos Estados Unidos. Destaca,
em particular, os diferentes universos simbólicos presentes no processo de
desocupação territorial para tal construção, que envolvia os Yavapi, comunidade
indígena do Arizona que, por considerar a terra como parte de sua herança étnica,
não a concebe como alvo de atos de compra ou venda; os engenheiros planejadores
da obra, que por quarenta anos argumentaram sobre seu mérito técnico; e os
burocratas de estado envolvidos na elaboração de modelos de consenso para mitigar
a tensão social em torno da construção da barragem.
8 A despeito do caráter de parlamento das águas, os Comitês de Bacias Hidrográficas no
Brasil revelam circunstâncias crescentes de exclusão de grupos sociais. No contexto
específico da construção social da governança das águas no estado de São Paulo, este
processo vem sendo interpretado por Martins (2006; 2007) através da posição dos
agentes nos aparatos de governança, da construção dos discursos, dos critérios de
autoridade para as falas/posições no debate descentralizado e das hierarquias sociais
resultantes destes atos de distinção.
332
marginalização de outras epistemologias do saber ambiental. A
acumulação seletiva dos sucessos em termos de nominação estritamente
econômica dos recursos ambientais pode também levar ao processo
descrito por Santos, Menezes e Nunes (2004) como epistemicídio dos
saberes concorrentes, liquidando por conseguinte os grupos sociais
cujas práticas se assentavam em tais conhecimentos.
Se do ponto de vista cultural, a noção estrita da racionalidade do
homu oeconomicus reafirma o modo utilitário de experimentação do
cotidiano social, do ponto de vista da construção do conhecimento, a
mesma dissocia a ação social dos demais processos que lhe compõe.
Como também nos esclarece Santos (2002), esta fragmentação da ação
social propiciou o reducionismo das concepções modernas de regulação
e emancipação. Isto porque a emancipação moderna tornou‐se
estritamente associada à racionalidade cognitivo‐instrumental da
ciência, voltada à produção totalitária do saber e promissora da
dominação plena da sociedade sobre os recursos naturais. A regulação,
por sua vez, foi associada, com larga contribuição do utilitarismo
neoclássico, à livre atuação das forças de mercado. Deste modo, o
pragmatismo do paradigma da racionalidade econômica, reduzindo em
nível analítico as várias dimensões envolvidas nos processos de
desenvolvimento social, de produção de saberes e de regulação
institucional de práticas sociais, foi alçado à condição de parâmetro
supradimensional para a problematização de quaisquer temas relativos à
sociedade, política, economia, ciência e cultura em tempos de
modernidade.
Com efeito, as relações sociais não são balizadas somente pelas
disputas econômicas por benefícios. Como bem acentua Mauss (2003),
em sociedade, não são apenas as mercadorias que circulam, mas
também as pessoas, os nomes, palavras, os títulos (prestígio), etc. Por
esta razão, cálculos de custo‐eficácia não refletem os distintos
instrumentos sociais empregados nas práticas cotidianas de classes e
grupos. Outras regras e recursos sociais interferem nas ações
individuais. A experiência dos grupos sociais, por exemplo, através da
construção de saberes e valores sobre o ambiente e sobre a própria
sociedade, é um instrumento de percepção social decisivo para os
eventuais redimensionamentos da relação sociedade‐natureza.
333
Desta feita, além da compreensão histórica dos processos de uso
e apropriação dos recursos ecossistêmicos, também faz‐se necessária a
análise da transformação social da natureza através de um dado
território, com formação histórica específica e relações próprias de
dominação. Neste âmbito, a produção social de valores excedentes nos
espaços sociais ganha nova dimensão, porquanto abre caminho para a
problematização da relação sociedade‐natureza a partir da disputa entre
grupos e classes sociais pela hegemonia nas formas de uso, regulação e
apropriação da natureza local. Isto é, o resgate das dinâmicas regionais
e das especificidades políticas de cada sociedade permite que, do ponto
de vista analítico, os processos ecológicos circunscritos aos ambientes
de produção de valor adquiram um conteúdo histórico que ultrapasse a
simples condição de base biofísica dos processos de acumulação. Por
outro lado, o que a concepção da relação sociedade‐natureza presente
no instrumental conceitual da economia ambiental deixa de esclarecer
são justamente as contradições locais das formas capitalistas de
sociabilidade. Deste modo, mantém obscuros os processos que revelam
mais elementos da crise da sociedade produtora de valores excedentes.
Não é por outra razão que Leff (1995) destaca que a tentativa de
pensar a articulação entre sociedade e natureza exclusivamente em função
das categorias de investimentos de capital e utilidade marginal dos
fatores de produção impossibilita a compreensão dos processos
ecológicos como integrantes da história social. Na medida em que as
condições ecológicas do processo produtivo surgem como externalidades
do sistema econômico, as contribuições dos processos ecossistêmicos e da
própria produtividade ecológica à geração de riqueza passam a ser
negligenciadas, juntamente com as diferenças entre a produção de
valores de uso e valores exedentes. Isto impediria uma análise da
transformação ecossistêmica derivada da apropriação social dos recursos
naturais como objeto e meio de trabalho para a produção de mercadorias,
o que, por sua vez, repercutiria negativamente na construção de
alternativas políticas para os grandes temas da moderna crise sócio‐
ambiental – como é o caso da questão hídrica.
Portanto, no âmbito histórico‐estrutural, é importante o
estabelecimento de conhecimentos complexos para a promoção de
políticas para o uso e acesso sustentáveis das águas em níveis nacional e
334
regional. No caso da água, considerando as especificidades regionais de
disponibilidade e qualidade do recurso, torna‐se de grande relevância o
esforço de integrar as disputas locais às relações dinâmicas da dialética
do particular‐universal. Este esforço, ao dispor‐se a interpretar a
complexidade das esferas de sociabilidade historicamente inscritas nos
modos de interação da sociedade com a natureza, permite a construção
de cenários mais condizentes com o cotidiano dos grupos e classes que
possuem interesses concretamente situados diante das potencialidades
ecológicas e sociais.
6. Considerações finais
A expectativa sobre o aprofundamento da crise de acesso à água
em várias partes do mundo vem estimulando não apenas disputas
materiais, mas sobretudo lutas simbólicas em torno dos diagnósticos da
crise e das possibilidades de sua mitigação. Neste capítulo, buscou‐se
sistematizar alguns elementos críticos que permitem compreender o
cenário de criação de uma narrativa social hegemônica sobre o recurso
água, focada essencialmente em sua significação econômica.
Face às discussões empreendidas, nos parece adequado sugerir a
problematização da conveniência social dos mecanismos de mercado na
gestão de águas com base em dois critérios não excludentes de
apreciação de políticas públicas, quais sejam, os de extensão e densidade.
Conforme se espera ter evidenciado no curso do texto, a extensão
pretendida pelos princípios conceituais dos instrumentos econômicos
de gestão dos recursos naturais é bastante ampla, posto que, em um
contexto lógico‐dedutivo, dissemina as hipóteses do utilitarismo
econômico para todas as esferas da vida em sociedade. Entretanto,
justamente por aprisionarem os referenciais da experiência social aos
mecanismos de conduta econômica, as estratégias de mercantilização da
água apresentam baixa densidade informacional, uma vez que não
fornecem suportes em seus princípios de gestão para as dimensões
extra‐econômicas da relação sociedade‐natureza.
Como procurou‐se ressaltar através dos marcos críticos aqui
abordados, há sempre uma intencionalidade simbólica corporificada no
código de recursos socialmente desejáveis. Isto significa dizer que um
335
recurso natural não pode ser reduzido à sua dimensão econômica
mesmo para os que o observam como tal; ele também é recurso
simbólico que corporifica signos culturais, ocupando assim posição no
conjunto hierárquico das trocas simbólicas. Evidentemente, em razão de
sua posição neste conjunto hierárquico, suas dimensões políticas e
econômicas assumem significado particular para sociedades e grupos
sociais distintos.
Por fim, mesmo na análise histórico‐estrutural das condutas
econômicas nos mercados capitalistas, o formalismo da análise
utilitarista impede a problematização do mercado como instituição
política, palco de disputas que se estruturam em outros contextos (ou
campos) de sociabilidade. Ou seja, no curso da análise socioambiental,
este formalismo impede a constatação de que os grupos e classes não
apenas criam bases materiais distintas para seus modos de vida, mas
também interpretam de formas diversas a construção dos modos de
vida, das identidades culturais e da experiência social sobre as
potencialidades ecológicas. Para o contexto das sociedades latino‐
americanas, que encontram‐se em vias de consolidação de novos
princípios para a gestão das águas, a leitura crítica deste formalismo a‐
histórico nos parece decisiva para a construção do olhar plural que o
tema requer.
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