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Hospício é Deus - crítica

Maura Lopes Cansado passou um bom tempo esquecida pelo cânone literário
brasileiro. Mesmo tendo obtido uma enorme repercussão na época em que escreveu,
sendo comparada até mesmo à Clarice Lispector, era raro encontrar alguém que
conhecesse a fundo sua obra. Porém, com o relançamento de seus dois únicos livros:
Hospício é Deus – Diário 1 (1965) e O Sofredor do Ver (1968), a autora voltou a
receber um olhar especial por apreciadores da literatura brasileira que buscam encontrar
em suas palavras um material valioso sobre o mistério da loucura e as condições da
psique humana.

Escrito como uma espécie de diário, Hospício é Deus é dividido em duas partes. Na
primeira vemos um breve relato autobiográfico sobre a infância de Maura até sua
adolescência, onde nos é revelado detalhes de sua rica família e os motivos que a
fizeram se mudar para o Rio de Janeiro após a morte de seu pai. Na segunda parte, a
autora passa a escrever um diário de seu cotidiano como paciente no Hospital
Psiquiátrico Gustavo Riedel, localizado em Engenho de Dentro, entre outubro de 1959 e
março de 1960. Descreve com detalhes a ambientação do local, evidenciando as práticas
violentas cometidas pelos funcionários, fazendo uma espécie de crítica ao sistema de
saúde daquela época, que não entregava o prometido.

Discorre sobre a vida de algumas das pacientes que convive com ela, fala sobre o
trabalho das enfermeiras e as consultas com os doutores. Dos dois doutores que a
acompanham, Maura não revela nenhum nome, chamando-os apenas de Dr. J e Dr. A.
Enquanto que o primeiro representa tudo o que há de ruim no hospício, com o Dr. A
Maura acaba sofrendo uma espécie de amor platônico e cria uma enorme afeição por
ele, mesmo sendo declaradamente racista.

Seu relato sobre a infância e a adolescência não passam de vinte páginas, mas são
momentos intensos e pertubadores. Com uma liguagem objetiva e estilisticamente
neutra, Maura narra acontecimentos graves, isentos de qualquer tipo de comoção, como
quando cita os diversos abusos que sofrera quando criança ou da sua descoberta
prematura com o erotismo. Já na adolescência, a experiência sexual era muito presente
na vida de Maura e, segundo ela, sua primeira tentativa de internação em um hospício
ocorreu com apenas 18 anos de idade. Durante esse período ela também tentou se matar
e desde então passou a frequentar diversos sanatórios diferentes por conta própria.

Após pedir o divórcio e abandonar a carreira de aviadora, enxergamos em Maura


uma mulher que sofre por estar de fora do horizonte patriarcal exigido pela sociedade
mineira do século XX. É fácil notar o quanto a mente de Maura é marcada
psicologicamente por todos esses acontecimentos. O livro é muito mais do que um
diário: ele é um pedido de socorro, um grito de alguém que não consegue escapar do
vazio existencial que a corrói por completo.

O ego de Maura não tem limites. Busca o tempo todo se afirmar como a mulher
mais inteligente daquele espaço, sendo superior à todas as outras e considera-se a maior
escritora da língua portuguesa. Se acha extremamente bela e diz ao longo da narrativa
ser próxima de diversos intelectuais importantes da época, como Ferreira Gullar,
Amílcar de Castro, Carlos Heitor Cony, entre outros.

Se em sua infância a vemos em uma posição elevada, como alguém criada para
olhar todos de cima, no hospício de Engenho de Dentro encontramos uma mulher
derrotada, presa, frustrada por estar sendo tratada da mesma maneira que as demais e
incapaz de se libertar da lucidez de sua própria loucura. Maura aos poucos deixa de ter
uma visão romantizada sobre o que achava que seria o hospício e vai se colocando no
papel de testemunha, onde além de conhecermos a sua mente conturbada vemos o
reflexo de uma realidade doentia de uma sociedade que negligenciava por completo os
cuidados básicos para com os pacientes de sanatório.

Pelos olhos de Maura, observamos o pátio do sanatório: repleto de vidas


abandonadas, pessoas miseráveis e solitárias, onde a maioria das mulheres são de cor
negra e se encontram submetidas à um sistema violento e brutal de negligenciação da
saúde pública.

Apesar de ser escrita como um diário, não devemos interpretar a obra como sendo
de todo real. Maura certamente inventou diversas situações, já que certos textos
jornalísticos contradizem alguns pontos que se encontram nesse livro, o que faz essa
obra ir mais para o lado de uma autoficção do que para uma autobiografia. Mesmo
assim, Hospício é Deus se mostra hoje como uma preciosidade pouco escavada dentro
da Literatura Brasileira. Com inteligência e sensibilidade, misturando ficção com
realidade, Maura criou uma obra bela que dialoga com a psicanálise humana e a
condição mais cruel do ser humano.

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