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A crise da pedagogia messiânica:


a devoração como pedagogia a partir de Oswald de Andrade

Silvio Ricardo Munari Machado1


Vitor Janei Neto2

Evidentemente o que eu quero não é o retorno à taba


e sim o primitivo tecnizado.
Oswald de Andrade

Introdução
Ou da Crise da filosofia messiânica à Crise da pedagogia messiânica

Tomamos aqui o texto de Oswald de Andrade, A crise da filosofia messiânica,


como ponto de partida para pensar uma contribuição para o “1º Colóquio Franco-
Brasileiro de Filosofia da Educação”. Dizer que o texto de Oswald é um ponto de
partida equivale a dizer que não se trata de analisá-lo ou de apresentá-lo
exaustivamente. Trata-se de um impulso, de surfar nessa onda, fazendo um
deslocamento para pensar A crise da pedagogia messiânica. Com isto queremos
dizer que não haverá salvação para a escola, que não haverá porto seguro, que não
há um éden onde encontrar o melhor caminho. Apostamos que não há porto seguro,
mas apenas mar revolto. Nem o retorno ao primitivo natural, nem o avanço ao
civilizado técnico: mas a produção do primitivo ou do bárbaro tecnizado. Pois: ante
uma filosofia messiânica para uma pedagogia messiânica, uma filosofia da devoração
para pensar a devoração como uma pedagogia.

Salvar a educação?
Ou Da forma-humana ao Abaporu, o inumano

A salvação custa caro. O preço cobrado pela salvação deste pedaço de chão
chamado “Américas” foi alto. Foi pago com a morte. A população indígena, em 1500,
antes da invasão européia, era composta por milhões. Hoje, são pouco mais de 800

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Doutor em Educação (UFSCar). E-mail: munari.machado@gmail.com
2
Mestre em Educação (UFSCar). E-mail: vitorjanei@gmail.com
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mil (CUNHA, 2012, p. 14). Sabemos, inclusive, que o método empregado não tinha
nada a ver com salvação das almas. Era um método puramente corporal.

É bem conhecido o método pelo qual certos governos liquidaram os


índios da América do Sul, que foi deixar nos caminhos usados pelos
índios roupas de pessoas gripadas, roupas tomadas nos dispensários,
porque os índios não suportam o afeto gripe. Nem era necessário usar
uma metralhadora, eles caíam como moscas.

Era preciso civilizar, catequizar, humanizar aqueles seres de espírito flexível,


tão naturalmente predispostos a receber Cristo em suas vidas. “Seres sem Lei, sem
Rei e sem Fé” (RAMINELLI, 1996, p. 54), animalescos, incivilizados, perigosos,
bestiais, bárbaros, selvagens. Quantas vidas a humanização das Américas custou às
comunidades indígenas? Quantas nações indígenas foram necessárias exterminar
em prol do processo civilizatório deste continente? Quantos corpos foram dizimados
em prol da salvação da humanidade? A salvação custa caro.
Mas quem é humano, ou melhor, o que é o humano? O humano nada mais é
que um conceito que foi produzido a partir de uma perspectiva, criado por uma certa
vida, um tipo de vida que privilegia certos aspectos em detrimento de outros. Para
que o conceito de humano pudesse existir, impôs-se a todos violentamente um
modelo de homem e, obviamente, muitas vidas tiveram que ficar de fora. Para que
haja o humano é preciso que exista o não-humano, o inumano. Por isso, houve e
ainda há um enorme derramamento de sangue, já que certas vidas não são dignas
de serem humanas.
“Humano é o nome de uma espécie, sendo a espécie justamente aquilo que
desapareceu para que o homem, tal como ele se toma, pudesse aparecer (PELBÁRT,
2013, p. 263). O Homem é um tipo de vida, criado historicamente, mas foi tomado
como universal. Universal é aquilo que perdeu a marca de sua produção, sua origem
e, que passou a ser considerado algo supramundano, transcendente. A categoria de
humano é uma produção histórica de longo prazo, que não tem nada de universal a
não ser a universalidade que ele pretende sustentar por pura presunção. Esse
homem, esse humano, essa humanidade são apenas uma configuração, mas há
muitas outras.
Ora, mas não é justamente uma certa ideia de homem, de humano e de
humanidade que fundamenta a Educação e a instituição escolar? A escola se baseia
em uma concepção de criança, de adolescente e de jovem destituída de humanidade,
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que precisa ser civilizada e tornada humana. Ela só é considerada a partir de um certo
modelo de adulto que deve ser alcançado, de uma meta a ser atingida em seu
processo de desenvolvimento. Há nisso tudo, um quê de messianismo.
Nunca se é nada na escola a não ser aluno, ou seja, algo que só será alguém
ao final do processo de escolarização. Por isso é tão importante cultivar a ideia de
uma vida futura e vindoura. É preciso um ideal transcendente e abstrato para
suportarmos a situação de ser aluno. A Educação, por meio da escola, é um processo
de disciplinarização que exige de nós o sacrifício cristão: a renúncia do presente em
proveito do futuro, a separação entre desejo e aprendizagem.
Para nós, nascidos nas décadas finais do século passado, nos venderam a
ilusão de que a escola serviria para que fossemos alguém na vida, que sem estudos
não seríamos ninguém. Inculcaram em nós ideais ascéticos. Somente estudando
muito, passando horas à fio debruçados sobre os livros e cadernos é que atingiríamos
o apogeu, a felicidade, o nirvana, o paraíso. “[...] uma dura e serena renúncia feita
com a melhor vontade, está entre as condições propícias à mais elevada
espiritualidade (NIETZSCHE, 1998, p.101).
Tínhamos que recusar aos inúmeros convites de amigos para brincar ou sair,
sacrificar momentos de prazer para tirar as melhores notas, ingressar em uma
universidade pública de renome, se destacar, ser o melhor aluno, e assim, um dia,
adentrar aos mundos paradisíacos que nos prometeram quando éramos pequenos.
Hoje, adultos, percebemos que nos venderam uma falsa promessa de prosperidade.
Não se pára de estudar, e mesmo assim não se ascende socialmente nunca, não se
chega à plenitude financeira alguma, não há pote de ouro atrás do arco-íris.
Entretanto, a geração atual, parece não cair nessa mentira de bem-
aventurança vindoura. Para ela, a hora é agora. Os mundos paradisíacos do mercado
já estão aí disponíveis para serem consumidos e ostentados. Estudar e ser alguém
na vida virou conto da carochinha. A escola já não serve para ela, não interessa, pelo
menos não do jeito que está. Ora, não era exatamente esse o protesto das/os
estudantes secundaristas em todo o país?
Para que serve a escola hoje? Será que ela ainda tem alguma serventia? E se
serve, ela está a serviço de quem? Para que, então salvar a escola? Será que ela
tem salvação? A que custo queremos salvar a escola? Quantos milhões de corpos
são trazidos a essa máquina de moer carne ano a ano? Perseguimos a realização do
sonho iluminista? Perseguimos a realização da paz perpétua kantiana? Uma
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maioridade da razão instauradora de uma civilização universal salvará o mundo dos


bárbaros nômades? Quanto de sangue, suor e lágrimas ainda deverão ser
derramados em prol de uma certa humanidade?
A crise não é apenas da escola, mas também da pedagogia. A Grande
Pedagogia, enquanto vocação universal messiânica de salvação da humanidade. E
os muitos remédios prescritos para a crise são, a um só tempo, causadores e
prolongadores dessa crise: o currículo, o diálogo, a razão, a inclusão.
Nosso palpite, entretanto, está na radicalização do bárbaro, e não na
universalização do civilizado - o escolarizado. Não aqui a nostalgia da essência pura
do bárbaro nômade das utopias eurocêntricas. Mas aquele outro bárbaro. Ele mesmo
fruto de nosso, sempre menor, bárbaro-mor: Oswald de Andrade. Trata-se do
bárbaro-tecnizado.

A crise da filosofia messiânica


Ou Caminhando rumo ao bárbaro tecnizado

Oswald de Andrade apresentou, em 1950, o texto “A crise da filosofia


messiânica”. Essa era sua tese para o Concurso da Cadeira de Filosofia, Ciências e
Letras da Universidade de São Paulo. A tese havia sido anunciada com outro título:
"O Antropófago — Uma Filosofia do Primitivo Tecnizado".
O título do trabalho que ora apresentamos promove um pequeno deslocamento
destes títulos da tese. Ao fundí-los, queremos pensar a educação, a escola e suas
pedagogias em termos de uma crise, comparável com a crise da filosofia messiânica.
É a crise da pedagogia messiânica, da qual pode emergir uma pedagogia do primitivo,
ou do bárbaro, tecnizado.
Na tese de Oswald podemos ler uma grande história da filosofia, e talvez da
vida na Terra, contada entre duas linhas: a primeira, uma linha do Matriarcado; a
segunda, uma linha do Patriarcado. Na primeira estaria o homem primitivo e uma
cultura antropofágica. Na outra linha estão o mundo do civilizado e de uma cultura
messiânica.
Por entre estas linhas, Oswald faz uma extensa leitura da vida e do
pensamento, e das maneiras como ambos se embrenharam ao longo da história.
Encontramos uma espécie de guia de leitura na formulação que ele oferece em forma
de uma dialética:
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Porque enfim, é a seguinte a formulação essencial do homem como


problema e como realidade:
1.° termo: tese — o homem natural;
2.° termo: antítese — o homem civilizado;
3.° termo: síntese — o homem natural tecnizado.
Vivemos em estado de negatividade, eis o real. Vivemos no segundo
termo dialético da nossa equação fundamental. (ANDRADE, 1978, p.
79)

O movimento que poderia sinalizar uma diferenciação em relação a esse


segundo momento não seria nem regressivo, rumo a uma sociedade primitiva que
ignorasse os avanços da técnica, nem progressivo, rumo a uma completa anulação
das sociedades primitivas em relação a uma sociedade civilizada. Não: tratava-se de
hibridizar o primitivo e o técnico, produzindo o “homem natural tecnizado” ou o
“bárbaro tecnizado”.
Fazendo um pós-marxismo absurdamente intempestivo, Oswald fazia uma
leitura que juntava Marx e Nietzsche, entendendo que a classe sacerdotal é que havia
dado as rédeas do mundo pós-ruptura com a sociedade matriarcal. Diferente do
matriarcado, onde a antropofagia e a devoração do outro se faziam imanentes, passa
a vigorar um outro mundo em que já não há devoração, mas apenas servidão.
Uma luta de classes em que a classe dominante era a dos sacerdotes,
corrompendo a imanência do matriarcado e da antropofagia. Um estoicismo dos
índios ou uma filosofia da devoração era o caminho de volta - uma volta que não pode
ser compreendida senão como um devir.

Tendi e tendo cada vez mais para uma filosofia que chamo de filosofia
da devoração. A vida é devoração pura e só há uma conduta a seguir:
o estoicismo. É verdade que outro conceito da existência divide a
humanidade. É o conceito messiânico e salvacionista. Os que se
enfileiram debaixo dessa bandeira são os que acreditam que há
qualquer coisa a salvar dentro deste mundo ou fora dele. O primeiro
pensamento é que presidiu a vida das sociedades primitivas tão
superiores às sociedades civilizadas. Estas servem-se do messianismo
para criar as servidões do corpo e do espírito e as ilusões de toda
espécie. (ANDRADE, [1954] 2017).

O terceiro ponto da dialética produzida na tese faz uma saída pela devoração.
O primitivo tecnizado, ou o bárbaro tecnizado, são os descaminhos de um
pensamento que jamais pode ser pensado como o de um meio termo, mas de uma
terceira margem, considerando que Oswald compreendia a técnica como um
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momento de libertação do homem em relação ao tempo - o ócio, aquilo que é


constitutivo da escola, a skolè grega.
O décimo primeiro termo da tese dizia “que só a restauração tecnizada duma
cultura antropofágica, resolveria os problemas atuais do homem e da Filosofia”. Mas
por que uma cultura antropofágica não seria um retorno ao primitivo? Porque “o
homem, como o vírus, o gen, a parcela mínima da vida, se realiza numa duplicidade
antagônica, — benéfica, maléfica — que traz em si o seu caráter conflitual com o
mundo”. Essa dimensão conflitual está não apenas na figura do bárbaro tecnizado,
mas também em uma possível inspiração de Oswald para pensar a crise da
pedagogia messiânica.
A pedagogia messiânica é aqui entendida como esta que pensa uma salvação
para a escola. Seja essa salvação oferecida como um retorno ao passado ou como
um abandono do mesmo, considerando tão somente a necessidade de abandonar
esta escola em direção a um futuro qualquer. Pensamos que não se trata disso. A
devoração está na possibilidade de passar entre duas linhas já deixadas por Oswald:

Temos a base dupla e presente — a floresta e a escola. A raça crédula


e dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da
mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de "dorme nenê que o
bicho vem pegá" e de equações. (Andrade, 1978, p. 9)

O bárbaro tecnizado:
Ou Dobre como ele foi devorado por Oswald

Remonta às leituras que os ditos modernistas fizeram de Hermann Graf


Keyserling a noção de bárbaro tecnizado. Bruna Della Torre de Carvalho Lima
explorou de modo bastante próximo as apropriações que Oswald fez desta noção.
Ela relata que Keyserling, um filósofo idealista, situava tal noção numa discussão mais
ampla sobre a Cultura. O apogeu de uma civilização traria um esgotamento das
formas culturais e o primitivismo podia ser entendido, em algumas leituras, como uma
saída para esse esgotamento.

Keyserling procurou combater na filosofia a visão de que a técnica


possuiria um caráter barbarizador. Para ele, ao contrário, ela não seria
nada além de uma expressão especial do desenvolvimento intelectual.
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Este ideal de progresso, identificado na figura do chauffer, do bárbaro


tecnizado, não poderia ser entendido como fonte de decadência da
civilização, porque se trata de ‘algo positivo, de un paso adelante en la
sumisión de naturaleza al espíritu, de un desenvolvimiento más amplio
del ser humano psíquico” (Carvalho Lima, 2012, p. 87)

A dialética que Oswald cria em sua tese, e que reproduzimos acima, dá conta
de demonstrar que não se trata de um simples retorno. Mas sim de uma espécie de
devir. Bruna Della Torre cita em seu trabalho um escrito de Porominare, pseudônimo
de Oswald, que consegue nos aproximar desta perspectiva do bárbaro tecnizado
como sendo, ele mesmo, uma antropofagia e um devir:

Antropofagia é simplesmente a ida (não o regresso) ao homem natural,


anunciada por todas as correntes da cultura contemporânea e garantida
pela emoção muscular de uma época maravilhosa – a nossa! O homem
natural que nós queremos pode tranquilamente ser branco, andar de
casaca e de avião. Como também pode ser preto e até índio. Por isso
o chamamos de “antropófago” e não tolamente de “tupi” ou “pareci”. [...]
Mas não será por termos feito essa descoberta, que vamos renunciar a
qualquer conquista material do planeta como o caviar e a vitrola, o gás
asfixiante e a metafísica. (Oswald de Andrade, apud Carvalho Lima,
2012, p. 88)

Pedagogia messiânica
Ou Do professor como sacerdote, da criança como corpo sem alma

Na perspectiva da Pedagogia Messiânica, quem quer salvar o mundo, a


escola, o currículo, a criança, que lugar ocupa o professor, senão, é claro, a de
sacerdote? Salvar ou melhorar a escola, operações sacerdotais que colocam em
outro lugar a vida e a morte que atravessam as escolas, sem sequer colocar em xeque
os pressupostos que sustentam o avanço civilizador da pedagogia ocidental - rumo a
uma sociedade absolutamente pedagogizada. Em Nietzsche:

[...] apenas acrescento que, para mim, “melhorado” significa - o mesmo que
“domesticado”, “enfraquecido”, “desencorajado”, “refinado”, “engrandecido”,
“emascado” (ou seja, quase o mesmo que lesado). Mas tratando-se
sobretudo de doentes, desgraçados, deprimidos, um tal sistema torna o
doente invariavelmente mais doente, ainda que o torne “melhor”
(NIETZSCHE, 1998, p. 131).

Não é necessário pintar um quadro pré-colonial, com florestas intocadas e


encontros míticos, para pensar isso. Basta fazer um pequeno deslocamento e
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observar como a relação entre adultos e crianças se dá no interior da escola


contemporânea.
A/O adulta/o inveja a criança, cobiça sua força, seu vigor, sua alegria. Quantas
vezes nós mesmos não ouvimos e reproduzimos aquelas frases nostálgicas e
enfadonhas, como: “Ah, como era bom ser criança, não ter preocupações,
obrigações, ter que trabalhar, pagar contas”. Ser adulto/a é carregar um fardo terrível,
suportar o peso que a história, a memória, as palavras, as regras, os valores, as
ideias, as dores, as frustrações e as interdições exercem sobre nossos ombros.
É óbvio que nem todas/os as/os adultas/os lidam com isso da mesma maneira.
Qualquer universalização corre o risco de ser abusiva, arbitrária, pois é apenas um
ponto de vista. Porém, o que ressaltamos aqui, é que essa ideia de criança que nós
temos hoje, foi fruto de um sentimento de impotência da/o adulta/o, não passa de um
ato de vingança, puro ressentimento. Ação do sacerdote. Filosofia messiânica.
A/O adulta/o está quase o tempo todo tentando domar, domesticar, subjugar,
docilizar, controlar, dominar, reprimir as forças da criança. Para isso, desenvolveu
diversas técnicas e estratégias de poder que governam seu corpo, administram seu
tempo, controlam seu espaço, gerenciam sua alimentação, sexualidade, ações,
entretenimentos. Produziu diferentes saberes e discursos que avaliam,
esquadrinham, classificam, definem normalidades e patologias, progressos e
regressões, benefícios e prejuízos. O/a adulto/a precisou inventar uma forma que
enclausurasse as forças da criança. Movido pelo ressentimento, o/a adulto/a afirmou
a si mesmo como alguém racional, autônomo, independente, superior e, a criança,
por sua vez, como aquele ser irracional, heterônomo, dependente, inferior,
irresponsável, sem juízo, carente.
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A vida é devoração pura


Ou Da pedagogia como devoração e não como salvação

Qual é o antídoto ao salvacionismo pedagógico? A devoração pura, a carne, o


bárbaro tecnizado, a antropofagia. Entre a floresta e a escola: é daqui que
prosseguimos. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-
Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A
vegetação. Pau-Brasil. (Andrade, 1978, p. 10)
Das ruínas do patriarcado, erigidas sobre a crise da filosofia messiânica, nasce
o impuro bárbaro tecnizado. Nem um retorno ao Matriarcado originário, nem a
idealização de um matriarcado em outro mundo. Cria-se uma zona de vizinhança, um
entre, um meio. Nem isto, nem aquilo. Nem bárbaro, nem civilizado. Nem Matriarcado,
nem Patriarcado. E sim isto “e” aquilo ao mesmo tempo: bárbaro ou primitivo
tecnizado. Tão somente a superação da negatividade da civilização, sintetizada na
diferença desse novo homem. Devires.
Gilles Deleuze (2004, p. 12) dizia que “devir nunca é imitar, nem fazer como”.
Muito menos assimilar ou assemelhar-se, nem tornar-se outra coisa num tempo
sucessivo, mas que produz algo sem passado, presente ou futuro. Devir é encontro
entre acontecimentos, movimentos, ideias, multiplicidades, diferenças, afetos. Por
isso, o bárbaro tecnizado de Oswald de Andrade, a antropofagia, não é uma volta ao
tempos do pré-descobrimento, muito menos a pregação de um primitivismo romântico
e ingênuo. Como o próprio autor diz, o homem natural pode ser branco, negro e até
índio. Isso porque a síntese da dialética oswaldiana é justamente a afirmação da
diferença, o desejo de que nos tornemos outra coisa. É como o devir-índio do qual
falam Deleuze e Guattari.

Artaud dizia: escrever para os analfabetos – falar para os afásicos,


pensar para os acéfalos. Mas o que significa “para”? Não é “com vistas
a...”. Nem mesmo “em lugar de...”. É “diante”. É uma questão de devir.
O pensador não é acéfalo, afásico ou analfabeto, mas se torna. Torna-
se índio, não pára de se tornar, talvez “para que” o índio, que é índio,
se torne ele mesmo outra coisa e possa escapar de sua agonia.
Pensamos e escrevemos para os animais. Tornamo-nos animal, para
que o animal também se torne outra coisa. A agonia de um rato ou a
execução de um bezerro permanecem presente no pensamento, não
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por piedade, mas como a zona de troca entre o homem e o animal, em


que algo de um passa ao outro. É a relação constitutiva da filosofia com
a não-filosofia. O devir é sempre duplo, e é este duplo devir que constitui
um povo por vir e a nova terra (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 141).

A pedagogia como devoração é devir. É pensar a escola e a sala de aula não


em suas formas que podem trazer uma paz para sempre almejada. A diferença não
se dá entre dois elementos, mas é pura. Se faz por contágio. Colocar numa utopia a
escola é uma operação própria dessa pedagogia de tipo messiânico.
Buscamos, então, nesse pequeno deslocamento que parte de Oswald, fazer:
i) a crítica da pedagogia messiânica, no sentido de que não basta retornar aos inícios
da educação e da pedagogia para melhorar a escola, já que essa melhora é sempre
uma operação de sacerdotal de poder, o que pode ser verificado em Oswald e em
Nietzsche; ii) a potencialização da devoração como pedagogia, no sentido de pensar
que a relação com o outro, para além de qualquer salvamento, é “devoração pura”.
O bárbaro tecnizado é a expressão dessa devoração. Devoração, aqui, não é
canibalismo, mas antropofagia. Devoração, aqui, não é subsumir os muitos outros da
educação a uma imagem e semelhança universais. Não. Devorar é contagiar, é devir,
é autotransfiguração. E isso não tem nada que ver com melhorar, com salvar, com
voltar aos começos.
Desejamos concluir com uma citação de Eduardo Viveiros de Castro, que torce
“visão do paraíso”, invertendo as coordenadas do “desencontro americano”:

Se europeus desejaram os índios porque viram neles, ou animais úteis, ou


homens europeus e cristãos em potência, os Tupi desejaram os europeus
em sua alteridade plena, que lhes apareceu como uma possibilidade de
autotransfiguração, um signo da reunião do que havia sido separado na
origem da cultura, capazes portanto de vir alargar a condição humana, ou
mesmo de ultrapassá-la. Foram então talvez os ameríndios, não os
europeus, que tiveram a ‘visão do paraíso’, no desencontro americano. Para
os primeiros não se tratava de impor maniacamente sua identidade sobre o
outro, ou recusá-lo em nome da própria excelência étnica; mas sim de,
atualizando uma relação com ele (relação desde sempre existente, sob o
modo virtual), transformar a própria identidade. A inconstância da alma
selvagem, em seu momento de abertura, é a expressão de um modo de ser
onde “é a troca, não a identidade, o valor fundamental a ser afirmado”, para
relembrarmos a profunda reflexão de Clifford (VIVEIROS DE CASTRO, 2002,
p. 206).
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Referências
ANDRADE, Oswald. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 1978.

CARVALHO LIMA, Bruna Della Torre de. Vanguarda do atraso ou atraso da vanguarda?
Oswald de Andrade e os teimosos destinos do Brasil. Dissertação de Mestrado. Programa de
Pós-Graduação em Antropologia. USP. 2012. 230 fls.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo :
Claro Enigma, 2012.

DELEUZE, Gilles. Aula ministrada à Vincennes no dia 24/01/1978. Disponível em:


intermidias.blogspot.com/2011/10/spinoza-por-gilles-deleuze.html. Acesso em: 01/07/2017.

DELEUZE, Gilles. Diálogos. Lisboa: Relógio d’água, 2004.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: 34, 1992.

PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-


1, 2013.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das
letras, 1998.

RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha à


Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios


de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

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