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RODRIGO CÁSSIO OLIVEIRA

CINEMA E FILOSOFIA: DA LOGOPATIA


À LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA

GOIÂNIA – GO
2007
RODRIGO CÁSSIO OLIVEIRA

CINEMA E FILOSOFIA: DA LOGOPATIA


À LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA

Monografia elaborada para fins de


avaliação na disciplina Trabalho de
Conclusão de Curso, do curso de
graduação em Comunicação Social
(Habilitação em Jornalismo) na
Faculdade de Comunicação e
Biblioteconomia (Facomb) da
Universidade Federal de Goiás
(UFG).

Prof. Orientador: Dr. Lisandro


Nogueira

GOIÂNIA – GO
2007
RODRIGO CÁSSIO OLIVEIRA

CINEMA E FILOSOFIA: DA LOGOPATIA


À LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA

GOIÂNIA – GO, ___ / ___ / ___

____________ ______________ _____________ _______


Nome Assinatura Instituição Nota

____________ ______________ _____________ _______


Nome Assinatura Instituição Nota
DEDICATÓRIA

A Diva.
AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Lisandro Nogueira, cuja


paixão pelo cinema é contagiante.

Ao Prof. Dr. Julio Cabrera, que


auxiliou atenciosamente o
desenvolvimento dos projetos de
pesquisa que resultaram neste
trabalho.

A todos os professores e colegas que,


ao contemplarem o conhecimento,
inspiram este autor a querer da vida
mais do que apenas continuar vivo.
“O logos é um grande senhor”

Górgias
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 08

1. O CINEMA PENSANTE 11

1.1. DEFINIÇÃO DE LOGOPATIA 15


1.2. O QUE É FILOSOFIA? 17

2. O CINEMA PENSA À LUZ DAS TEORIAS DO CINEMA 23

2.1. O QUE É CINEMA? 26


2.2. O CINEMA COMO LINGUAGEM E SUA ABERTURA 37

CONCLUSÃO 54
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 57
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR 59
INTRODUÇÃO

Voltaire tem em seu nome a famosa máxima que diz: “Se queres conversar comigo,
define primeiro os termos que usa”. Certamente, por ter esse princípio como guia, o pensador
francês conquistou a notoriedade nos salões que freqüentava.
A comunicação e o desenvolvimento do pensamento, ensina o filósofo, é impossível
quando não há um esclarecimento prévio dos termos envolvidos. Um trabalho acadêmico não
poderia ignorar a sugestão, mais ainda quando pretende estudar uma relação entre dois
conceitos. Entretanto, apresentar nesse estudo definições rigorosas e fechadas não seria um
começo adequado. Falar de uma relação entre cinema e filosofia, considerando ao máximo o
que eles podem ser quando separados – e que seja frisado o podem ser, já que não há uma
única e inquestionável resposta – é uma tarefa que exige, como em Descartes, uma estratégica
suspensão dos juízos.
Portanto, ao se falar de cinema e filosofia não há, decididamente, a intenção de
encontrar a palavra final, o significado definitivo de um ou de outro. Essa pretensão,
assombrosa e obviamente ingênua, exigiria esforços imensos que estão muito além do que se
intenciona aqui. Na filosofia, são esforços realizados há dezenas de séculos; no cinema, há
mais de um deles.
O problema se apresenta com mais precisão da seguinte maneira: Como falar de
“filosofia no cinema ou de filosofia através do cinema” (CABRERA, 2006, p. 23), sem
desrespeitar a singularidade de cada um desses conceitos? Como compreendê-los,
vislumbrando essa relação entre eles? A relação pode existir? Como? Essas são questões
essencialmente teóricas, e, como é normal nas questões dessa natureza, podem ser
respondidas mais de uma vez, de maneira diferente. Por isso, o pressuposto básico de quem se
dedica a lidar com elas é uma postura aberta, que se lança em um caminho sem a pretensão de
estar, solitariamente, na direção correta. É o que se busca aqui.
Essa caracterização inicial, contudo, pode levar a crer que o objeto estudado é amplo

8
ou pretensioso demais. É necessário corrigir essa impressão. Primeiro, porque o objeto, no
sentido amplo descrito nas perguntas acima, não é e nem pode ser definido tão depressa, o
que torna impossível o cálculo da sua real amplitude. Segundo, porque o objeto, assim
descrito, não corresponde ao foco específico do trabalho, mas às motivações e conseqüências
do caminho que ele trilha, as perguntas que o impulsionam e ressurgem, passo a passo.
O caminho – e, agora sim, se trata de especificar – não parte de um começo absoluto,
apalpando o vento a fim de encontrar alguma vaga direção, mas de uma referência concreta,
um caminho que já começou a ser traçado. Esse ponto inicial data de 1999, quando foi
lançado na Espanha o livro “Cine: 100 años de Filosofía: Una Introduccion a la Filosofía a
través del análisis de Películas”, do filósofo argentino Julio Cabrera, e teve um novo marco
quando a obra foi traduzida para o português e publicada no Brasil, em 2006, com o nome “O
Cinema Pensa: uma Introdução à Filosofia através dos Filmes”.
A relação entre a filosofia e o cinema estabelecida nessa obra é o assunto específico
desse estudo. O seu objeto, portanto, não é tão extenso quanto parecia há pouco. Mesmo
assim, não há a intenção de amortecer as questões amplas que foram apresentadas, e nem
mesmo o estranhamento que elas provocam. É possível uma relação entre cinema e filosofia?
De que tipo? As perguntas persistem junto com as respostas de Cabrera, já que sua obra
acarreta inquietantes perguntas. “A filosofia não deveria ser considerada algo perfeitamente
definido antes do surgimento do cinema, mas sim algo que poderia modificar-se com esse
surgimento” (CABRERA, 2006, p. 15). Com essa frase introdutória, Cabrera já evidencia
uma abertura na definição de filosofia, e, indiretamente, também na definição de cinema. A
impressão é de que o ato de filosofar carecia de “algo” até a invenção do cinematógrafo. Seria
esse elemento um atributo exclusivo do cinema, ou independente, que apenas é encontrado,
de algum modo, nos filmes? Como os próprios filmes são compreendidos nessa relação?
Antes de mais, o passo inicial comentado aponta para a necessidade de a filosofia não
considerar a si mesma uma prática separada da cultura em que se realiza, uma atividade isenta
de interferências do meio. Ao contrário, o ato de filosofar recebe, sempre, as influências da
forma de vida da qual os filósofos não podem fugir, e que é diferente em cada ocasião da
história humana. Assim, no tempo de agora, ou melhor, nos últimos cem anos e um pouco
mais, o cinema é uma parte integrante da realidade do homem. Entre esses homens, o
filósofo, que, afastando-se da concepção irrefletida que condena uma aproximação teórica
entre a atividade filosófica e outras produções culturais, pode considerar filosoficamente o

9
cinema.
Não são, certamente, todos os bens culturais que servem à filosofia, somando-se a ela
e redefinindo-a no mundo da cultura. Na filosofia de Cabrera, no entanto, essa potencialidade
é inerente ao cinema, o que lhe concede a sua especialidade. A abertura no significado de
filosofia permite essa valorização dos filmes, levando-os a serem um meio para a realização
de um filosofar específico, um filosofar que é encontrado em certos casos na história, e pode
ser, por isso, observado na produção de alguns filósofos canônicos, assim como ignorado por
outras. “O Cinema Pensa” é motivado pela exposição dessas idéias, e realiza, nas palavras de
Cabrera (2006, p. 12), o encontro dos “aspectos lógico-analíticos e os aspectos existenciais”
do seu pensamento.
A obra é composta de um ensaio introdutório, intitulado “Cinema e Filosofia: Para
uma crítica da razão logopática”, no qual a teoria é apresentada de maneira direta e detalhada,
seguido de catorze exercícios nos quais a teoria é aplicada, cada um elegendo certos filmes e
filósofos em torno de um tema filosófico. O texto a seguir se divide também em dois
momentos, igualmente distintos e complementares. Em ambos, “O Cinema Pensa” será
analisado como um todo, ressaltando-se, com a devida ênfase, o ensaio introdutório no qual a
teoria é apresentada, mas também recorrendo a exercícios significativos conforme a leitura
que se propõe, especialmente nas partes finais do texto.
No primeiro capítulo, “O Cinema Pensa” é explicado e interpretado pela sua proposta
filosófica, ao passo que, no segundo, é analisado em face de teorias do cinema selecionadas.
O recurso às teorias do cinema ocasiona um diálogo cujo objetivo é desdobrar as proposições
de “O Cinema Pensa” em um contexto ao qual elas dizem respeito, e, exatamente por isso, um
contexto no qual se confrontam com uma variedade de concepções de cinema que muito lhe
acrescentam. Ao final, espera-se que o caminho percorrido se justifique, fazendo jus à boa
inspiração de Voltaire, convocada já desde as primeiras linhas.

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1 O CINEMA PENSANTE

O cinema possui um elemento de complementação que plenifica o ato de filosofar, e


que a própria filosofia já constatou por si só como necessário. Qual é esse elemento? Julio
Cabrera não somente afirma a sua existência, mas classifica a história do pensamento em duas
vertentes, dois tipos de orientação, encontradas ou não, com maior ou menor ênfase, nas
filosofias que compõem a história do pensamento. O “componente afetivo” é o elemento
chave que marca o limite entre duas maneiras de filosofar, o algo que as diferencia; sua
presença ou ausência reflete o tipo de relação que o filósofo mantém com o pathos e o logos,
palavras gregas que expressam, respectivamente, “sentimento, sensação, disposição, ânimo”,
e “palavra, verdade, razão anunciada”.
Contrapondo-se a uma filosofia denominada apática, essencialmente lógica e racional
(pela negação do componente afetivo e opção radical pelo logos), Cabrera apresenta os
princípios de uma filosofia pática, que ultrapassa o domínio da lógica, superando a “razão
dura” e incorporando a sensação, o pathos, na forma de um encaminhamento, um acesso ao
mundo sem o qual o filosofar se realiza de maneira limitada. Contrariamente ao que defende,
por exemplo, o racionalismo de tipo cartesiano, a filosofia não deve ser uma atividade apenas
do esforço intelectual, que ignora a relevância de qualquer afeto ou sensibilidade, e sim uma
atividade atenta ao impacto emocional, conceito cunhado para se referir àquela que
provavelmente é a mais importante das características de uma filosofia pática: a capacidade
de “desalojar”.

Para se apropriar de um problema filosófico não é suficiente entendê-lo: também é


preciso vivê-lo, senti-lo na pele, dramatizá-lo, sofrê-lo, padecê-lo, sentir-se
ameaçado por ele, sentir que nossas bases habituais de sustentação são afetadas
radicalmente (CABRERA, 2006, p. 16).

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Ainda que seja difícil efetuar rigidamente a classificação dos filósofos em páticos e
apáticos, pathos e logos são determinantes que expõem o quanto uma filosofia deposita
confiança na linguagem escrita, optando ou não por expressar seus problemas de forma
impactante, e, principalmente, tomando esse impacto como uma via pela qual se pode
compreender melhor o problema. O pathos, portanto, tem valor cognitivo.
A escrita “desaforada” de Nietzsche, por exemplo, está repleta dele; o estilo do
filósofo alemão, que não pode ser dissociado da sua concepção de filosofia, faz com que seus
livros não apenas digam algo ao leitor, mas também o façam sentir algo – o que, para
Cabrera, revela a opção do filósofo por enunciar os problemas por meio da via pática,
concedendo a eles mais compreensibilidade, um sentido mais completo. Dito de outra forma,
há dimensões estranhas à nossa capacidade de compreensão e elaboração racional do mundo,
e são elas que vêm à tona por meio do impacto emocional.
“O emocional não desaloja o racional: redefine-o” (CABRERA, 2006, p. 18), ou seja,
o pathos aprimora o que se pretende explicitar logicamente, sem interferir no seu significado,
o que quer dizer que a cognição não deve ser entendida como um processo de modulação, que
transforma o extra-racional em racional e permite, por isso, uma melhor apreensão do
problema pela via lógica. Não se trata de um “reforço” da dimensão lógica, mas um reforço
do sentido do problema, pelo acréscimo de outra via que leva a ele.
Cabrera ressalta também que a afetividade não é simplesmente um conteúdo ao qual o
filósofo se dedica, um tema entre outros possíveis, sendo que a reflexão a respeito das
sensações e emoções foi levada a cabo mesmo por filósofos cujo pensamentos não se ajustam
às características do filosofar pático. Descartes, por exemplo, em “As Paixões da Alma”,
demonstra que sua filosofia racionalista e cuidadosamente metódica não ignorava o tema da
paixão. Assim, a filosofia pática não se define por tematizar o pathos, mas por incorporá-lo à
racionalidade.
A história da filosofia apresenta outros filósofos que, como Cabrera, também
valorizaram o pathos. Além de Nietzsche, já mencionado, o próprio autor reconhece em
Martin Heidegger, “dentre os filósofos mais recentes, quem expressou de maneira mais clara
este compromisso da filosofia com um pathos de caráter fundamental” (CABRERA, 2006, p.
18). O pensador alemão também se ocupou com o tema da emocionalidade como indicadora

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dos limites do raciocínio lógico na filosofia. Certamente, é útil acrescentar, de forma breve,
uma passagem da obra de Heidegger que ilustra esse projeto de valorização da via não-
racional. Em “O que é Metafísica?” (preleção de 1929), ao discorrer sobre o tema da
impossibilidade de uma compreensão total e absoluta do ente, determinando o caráter
fundamental da relação que o homem mantém com ele, Heidegger (2000, p. 55) escreve:

Está fora de dúvida que subsiste uma diferença essencial entre compreender a
totalidade do ente em si e o encontrar-se em meio ao ente em sua totalidade. Aquilo
é fundamentalmente impossível. Isto, no entanto, acontece constantemente em nossa
existência.

O “encontrar-se em meio ao ente” é exemplificado com certas experiências, certos


“estados de espírito”. Um deles é o tédio profundo, outro a alegria pela existência de um ser
querido; ambos são momentos muito específicos que situam o homem, colocando-o em
contato com o ente em sua totalidade. Heidegger afirma ainda que o nada se manifesta na
angústia, na sensação de incômodo estranhamento, desprovido de qualquer determinação –
um fastio pelo indeterminado – ocasião na qual o “nenhum” oprime e suspende o ser humano.
Essa experiência não significa uma apreensão do nada, mas uma manifestação dele para o
dasein 1, tornando-o propenso para a transcendência, o que indica a importância da angústia
para a realização da existência humana, a importância do sentir, dos estados de espírito.
Buscando referência não apenas em um filósofo, mas em um orientação filosófica que
marcou sua época, é possível constatar que, desde o fim da modernidade, a filosofia se dispôs
a uma revisão do papel que a racionalidade ocupa no filosofar. Essa tendência é o que
Cabrera identificou nos filósofos páticos, chamados também de “filósofos cinematográficos”.
As filosofias existencialistas, desenvolvidas com maior solidez a partir de Kierkegaard e
2
Nietzsche , exemplificam bem esse filosofar que explora a emoção, o ilógico, comportando
concepções de racionalidade e irracionalidade bastante diferentes das filosofias modernas. O
próprio Heidegger, de forma polêmica, é acatado como um autor tributário do existencialismo
(a polêmica surge da recusa dessa denominação pelo próprio filósofo, o que, contudo, não

1 Designação heideggeriana para a dimensão ontológica em que o homem constrói a sua existência, traduzido,
geralmente, como pre-sença ou ser-aí.
2 São esses os dois autores que consolidaram o “tronco” da “árvore existencialista” no final da modernidade,
segundo o filósofo e historiador da filosofia Emmanuel Mounier.

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diminui a paticidade de sua filosofia).
O existencialismo leva o seu olhar para a vida, os dilemas, absurdos e sensações
irracionais que condicionam o homem, tornando questionável o império da razão cunhado
desde o cogito cartesiano (penso, logo sou), e que culminou em sistemas racionais ultra-
abrangentes, como o de Hegel, a quem Kierkegaard se opõe de maneira aguda e direta. A
elaboração de um método seguro para o conhecimento, uma das maiores preocupações
modernas, cede espaço para filosofias assistemáticas que aceitam novas formas de expressão,
mais propícias para as suas preocupações, e que vão desde a literatura até a poesia.
Dois exemplos entre muitos (Sartre, Gabriel Marcel, etc.), “O Diário de um Sedutor”,
de Kierkegaard, é um “romance filosófico” que apresenta uma das dimensões existenciais da
vida humana. “Assim Falava Zaratustra”, retomando Nietzsche, questiona efusivamente os
valores modernos por meio de uma vigorosa prosa poética. Um bom exemplo da suspeita em
que caiu o raciocínio lógico, quando começaram a ser contestados os princípios da filosofia
moderna, pode ser encontrado também em outro escrito do filósofo:

Entre as coisas que podem levar um pensador ao desespero está o conhecimento de


que o ilógico é necessário para o homem e de que do ilógico nasce muita coisa boa.
(...) Apenas os homens muito ingênuos podem acreditar que a natureza humana
possa ser transformada em uma natureza puramente lógica; mas se houvesse graus
de aproximação dessa meta, o que não se haveria de perder nesse caminho! Mesmo
o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é,
de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas (NIETZSCHE, 2004, p.
38).

A proposta de Cabrera é marcada por uma certa vinculação ao existencialismo, ou,


para evitar rótulos geralmente insuficientes, à crítica da racionalidade típica deste contexto –
o próprio autor reconhece essa influência quando fala dos “aspectos existenciais” do seu
pensamento, que estão presentes em “O Cinema Pensa”. Como se dizia, uma das
características dessa tendência é que a preocupação com a construção de um método seguro
para o conhecimento perde a ênfase que mantinha na modernidade, o que está refletido
também em Cabrera, que escreve sobre o “acesso ao mundo”, e não o conhecimento dele,
chegando a substituir, cuidadosamente, o verbo experimentar por experenciar.
A “experiência do filme”, pela qual o impacto emocional se instaura, não se trata de
algo semelhante ao que aparece em correntes teóricas como o empirismo, que investiga a

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possibilidade do conhecimento a partir dos sentidos. A sensação não implica uma teoria do
conhecimento, o que é corroborado quando é destacado que o pathos atua no “sentido amplo
de um acesso ao mundo, não em um sentido epistemológico” (CABRERA, 2006, p. 19).
Exposta por outro caminho, a proposta “cine-filosófica” de Cabrera se assume como uma
especulação sobre os limites da linguagem escrita para a filosofia (e, concomitantemente, para
uma percepção ampla do que se pretende dizer verbalmente), chamando a atenção para a
existência da emocionalidade no filosofar e para a necessidade de reconhecer a função
cognitiva dessa dimensão.

1.1. DEFINIÇÃO DE LOGOPATIA

Ao assumir o pathos como componente necessário para a realização do filosofar, a


filosofia pática não recusa a importância do logos. Cabrera não tem como objetivo a
construção de uma paticidade pura, que seria simplesmente o exato contrário da logicidade
pura racionalista, e sequer discute a possibilidade desse feito. Antes disso, a elevação do
pathos não deve ser o abandono do logos, mas a soma das duas dimensões, que consiste na
totalidade cognitiva de uma referência ao mundo.
Por essa razão, a denominação mais adequada para esse tipo de filosofia, afirmada
pelo próprio autor, é logopatia. Pathos e logos são pólos que devem se “equilibrar”,
complementando-se e consolidando, com isso, um filosofar pleno 3. Os filmes são meios
pelos quais o impacto emocional ocorre, apresentando o espectador, de forma “quase
violenta”, a uma outra realidade. Extraindo um exemplo de “O Cinema Pensa”, em “Platoon”
(1986), de Oliver Stone, o espectador é despertado pela sensação inquietante de repulsa e
indignação diante do horror e da violência física representados na tela, o que é comum nos
filmes sobre guerras. Um filme como Platoon, atuando no sentindo de provocar impactos
emocionais, se projeta de que maneira sobre o espectador? Para Cabrera, ele instaura
proposições poderosas e altamente relevantes sobre o que representa, isto é, sobre a guerra
mesmo, em um sentido universal, como explica o autor no seguinte trecho:

3 Esse “equilíbrio” é indicado na intenção de superar a dicotomia entre logos e pathos. Cabrera escreve, em
texto publicado em seu sítio na internet, que sua reflexão pretende revelar a “afetividade do intelecto” e a
“cognitividade do afeto”.

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Poderíamos dizer: “A guerra é um conflito armado assumido quando as negociações
pacíficas foram esgotadas e no qual dois ou mais países, ou duas ou mais facções de
um mesmo país, se atacam mutuamente, até que um deles seja vencido, ou até que
ambas as partes decidam entrar em uma espécie de acordo”. Nesta definição, foi dito
o que é a guerra, sem nenhuma alusão às reações psicológicas dos indivíduos. Mas a
guerra foi captada em sua essência por essa definição? Precisamente, o meio de
expressão do cinema permite acrescentar a emocionalidade da guerra a sua
compreensão puramente lógica, sugerindo que é uma caracterização logopática que
nos dará, efetivamente, a Idéia da guerra (CABRERA, 2006, p. 54 – 55).

Ao mencionar a Idéia da guerra, Cabrera orbita em torno da filosofia de Platão, para


quem o mundo da experiência sensível é uma representação imperfeita da verdadeira
realidade, esta a dimensão imaterial na qual os entes mundanos possuem uma Idéia,
correspondente à sua própria essência – idéia abstrata, puramente racional. Não é por acaso
que Platão é usado como referência: a logopatia pretende acrescentar a essa filosofia que
busca a essência ideal o elemento pático, a carga de emoção que o conceito designado
promove na experiência. Para tanto, o cinema leva o indivíduo a entrar em contato com essa
“emotividade do conceito”. Segundo Cabrera (2006, p. 55), “se o universal platônico, a Idéia-
em-si da guerra, for entendida de forma puramente lógica, o cinema desconstruirá,
certamente, esse tipo de universal, distanciando-se da caracterização platônica da Idéia”.
O filme instaura, nesse processo, proposições imagéticas dotadas de valor conceitual.
O novo tipo de conceito que deriva dessa relação é denominado por Cabrera de conceito-
imagem, ao passo que o conceito tradicional, da filosofia racionalista, ganha o nome de
conceito-idéia. São enumeradas, em “O Cinema Pensa”, oito características que definem
detalhadamente os conceitos-imagem, justificando a sua relação estreita com o tipo de
experiência que o cinema proporciona. Tais características serão melhoradas, direta ou
indiretamente, no decorrer do trabalho, a partir da seguinte síntese:

• O conceito-imagem se refere a uma experiência que é preciso ter, já que saber algo, do
ponto de vista logopático, é deixar-se afetar por algo, experencialmente;

• O impacto emocional é necessário e atua no sentido de despertar no espectador a


sensibilidade apropriada pelo que é apresentado, no filme, em forma de conceito-

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imagem;

• A experiência do impacto-emocional é “redefinidora” dos significados de verdade e


universalidade, que passam a existir no interior de uma filosofia logopática, isto é, os
conceitos-imagem possuem a pretensão de verdade e universalidade;

• Rigorosamente, os conceitos-imagem se revelam na totalidade do filme, o que não


impede que unidades menores, no interior dele, sejam igualmente conceituais.
Dificilmente um único fotograma pode ser um conceito-imagem;

• Os conceitos-imagem podem estar presentes, no filme, em um nível literal e


facilmente apreendido, assim como em um nível ultra-abstrato, que exige uma
interpretação mais elaborada;

• Quase previsível a partir do tópico acima, os conceitos-imagem não são categorias


estéticas. O conteúdo filosófico é independente do valor artístico do filme, importando
unicamente a experiência impactante que ele produz;

• Os conceitos-imagem não são exclusivos do cinema, estão também na literatura e até


mesmo na filosofia. O que especializa o cinema são as suas características técnicas;

• Os conceitos-imagem propõem soluções abertas. A imagem problematiza impedindo


um fechamento pleno das questões;

1.2. O QUE É FILOSOFIA?

A indefinição prévia dos termos, que Voltaire condena nas discussões pouco
frutíferas, talvez já não seria tão problemática a essa altura. Já foi explicitado que a filosofia,
para Cabrera, é filosofia logopática, e que ela encontra no cinema um meio para a sua
realização. No entanto, há uma questão fundamental, ainda não apresentada diretamente, que

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se refere ao significado de filosofia. Trata-se de justificar a filosofia na relação entre filme e
espectador, pois, até aqui, ela apenas foi enunciada como possível, sem ser definida. Por que
motivo a logopatia pode ser considerada uma teoria que diz respeito ao filosofar? O que
permite a Cabrera dizer que o cinema pensa?
Assim, apresentar os elementos que permitem falar de filosofia sem desrespeitar a sua
essência torna-se um passo necessário. Quais os aspectos básicos que caracterizam o
filosofar? Essa pergunta não pretende, obviamente, chegar a um significado último e
absoluto, mas trazer à tona aquilo sem o que não se pode falar de filosofia, ou seja, as
características que definem essa atividade minimamente, permitindo a classificação dos
autores que a ela se dedicam como “filósofos”, assim como das suas obras como obras
“filosóficas”. Cabrera reconhece, como Voltaire, a necessidade dessa definição, sem a qual a
logopatia não poderia se sustentar, e acredita que a resposta pode ser encontrada observando-
se, mais uma vez, a história da filosofia.
Cabrera pergunta-se, inicialmente, sobre uma justificativa para que a filosofia tenha se
estabelecido como uma atividade exclusivamente vinculada à expressão literária. Até então,
não se denominaram “filosóficas” outras obras que não as escritas, da mesma forma que essa
linguagem foi e continua sendo a opção imediata dos filósofos para se expressar. O que
prende a filosofia aos livros? Há uma relação de necessidade entre a filosofia e a sua
expressão por meio da linguagem literária?
Contrariando essa idéia, Cabrera afirma que o hábito da comunicação por escrito se
firmou historicamente, condicionado por transformações culturais, e não há como justificá-lo
como necessário para a filosofia, e nem mesmo como o mais adequado. Talvez filósofos
como Hegel, Heidegger, ou outros que “lutaram” com a língua escrita em seus livros,
conseguiriam um melhor resultado com uma câmera na mão. A obscuridade e o difícil acesso
que o leitor costuma encontrar nesses autores pode ser o reflexo de uma escolha errada, da
opção por uma linguagem menos adequada para o que queriam dizer.

As idéias filosóficas foram expressas de forma literária naturalmente, sem maior


auto-reflexão. Mas quem disse que deve ser assim? Existe alguma ligação interna e
necessária entre a escrita e a problematização filosófica do mundo? Por que as
imagens não introduziriam problematizações filosóficas, tão contundentes, ou mais
ainda, do que as veiculadas pela escrita? (CABRERA, 2006, p. 17).

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Esses questionamentos são amparados, como pode ser percebido, pela definição de
filosofia logopática. A logopatia não prioriza a lógica estrutural dos tratados filosóficos em
linguagem escrita; ao contrário, problematiza a capacidade da escrita lógica de encaminhar o
homem, plenamente, em sua aventura filosófica. Faltaria nessa aventura a dimensão do
pathos que apenas o uso mais metafórico, criativo e desconexo da linguagem pode oferecer.
Cabrera reconhece, com isso, que a literatura também proporciona ao leitor o impacto
emocional, viabilizando a logopatia (não se trata, então, de uma crítica à linguagem escrita
propriamente, mas do seu uso técnico, objetivo, como na filosofia tradicional). O cinema, no
entanto, aumenta consideravelmente o pathos, já que, nele, o impacto emocional é elevado
pela impressão de realidade e pela linguagem cinematográfica.
Contudo, a principal pergunta, que aponta para o fundamento de todas essas
proposições de Cabrera, continua intacta. Como falar de filosofia em linguagens diferentes se
não temos uma definição mínima do que é ela? A mudança de um universo lingüístico para
outro, no caso da logopatia do universo literário para o imagético/cinematográfico, poderia
desvirtuar o significado de filosofia, o que não se daria apenas conservando-se a sua definição
mínima e essencial.
Assim, Cabrera aponta para duas características fundamentais, atribuindo-as aos
conceitos-imagem – o que fortalece a hipótese de que é possível falar de filosofia em uma
linguagem não-literária. A primeira delas é a pretensão de verdade, sendo todo filosofar uma
projeção do homem para o verdadeiro, e a segunda a universalidade, característica que
emerge no aspecto ultra-abrangente e radical da filosofia. Como enunciado no terceiro item
da definição de conceito-imagem, os dois atributos lhe são inerentes.
Não há, em “O Cinema Pensa”, uma discussão aprofundada sobre essas duas
características. Trata-se de uma conclusão baseada na história da filosofia, no tipo de intenção
que se estabeleceu e formou os “filósofos” e as suas obras. Em todo caso, a variedade de
concepções possíveis de filosofia, assim como as inúmeras discussões desencadeadas por este
tema, seriam assuntos para um trabalho específico. No prefácio da edição brasileira de “O
Cinema Pensa” (escrito seis anos após a redação do seu conteúdo) consta uma declaração
crítica de Cabrera a respeito de sua própria caracterização da filosofia. Seria ela uma
compreensão pessoal que “enfraqueceu” com o tempo, o que não invalida o seu livro, nem o
estudo dele, empreendido aqui.

19
Essa instauração impactante de uma experiência [o impacto emocional] é
fundamental para tentarmos entender o tipo de universalidade a que o cinema se
propõe, segundo a leitura filosófica do filme que propomos aqui. [...] terá servido
não para se prender ao particular, mas precisamente para fazer com que as pessoas
cheguem à idéia universal de uma forma mais contundente (CABRERA, 2006, p.
39).

Não sendo a definição de Cabrera injustificável, mas, pelo contrário, perfeitamente


aceitável, interessa a maneira como o cinema se refere à pretensão de verdade e à
universalidade, como exposto acima. Cabrera não economiza as afirmações de que essa
referência é intrínseca ao próprio cinema, instaurada na experiência mesmo de um filme. Não
importa que o visto na tela seja sempre uma representação de particulares envoltos em
situações particulares, pois há uma universalidade que dispõe ao espectador um universo de
infinitas possibilidades.
O cinema mostra o possível, fala do possível, e, para tanto, possui uma margem de
ação extremamente vasta, cujo resultado é impactante, pático. O próprio significado do
universal é repensado, sendo que “a universalidade do cinema é de um tipo peculiar, pertence
à ordem da Possibilidade e não da Necessidade” (CABRERA, 2006, p. 23). Dito de outro
modo, o universal se torna um poderia acontecer com qualquer um, e não um acontece
necessariamente com todo mundo, o que é mais uma leitura crítica da tradição que Cabrera se
propõe a realizar.

A problemática universal/particular não é formulada como conteúdo dentro de um


filme, nem existem filmes cujo argumento trate deste problema. Mas em todos os
filmes que vemos esse problema é formulado implicitamente, de maneira formal e
inevitável, como questionamento radical da própria tentativa de instauração de uma
experiência, que todo filme apresenta, que todo filme é. O problema do universal
está implícito na própria pretensão “declarativo-demonstrativa” do cinema, é uma
espécie de problematicidade intrínseca da imagem (CABRERA, 2006, p. 38).

Para Cabrera, é na experiência do filme que o cinema apresenta a pretensão de


verdade e a universalidade. O filme abarca o espectador com uma “verdade impingida”, em
forma de conceito-imagem. Uma obra sobre as relações sociais tensas geradas em uma
sociedade desigual, como, por exemplo, “A Greve” (1923), de Einsentein, não é tão somente

20
uma representação pontual da União Soviética revolucionária, imersa em conflitos de classe,
mas uma problematização da própria vida humana em sociedade, a partir da leitura filosófica
que concretiza essa problematização. É por causa de uma problematicidade intrínseca da
imagem, como escreve Cabrera, que a sociedade mesmo (o universal, como possibilidade) é
proposta coceitualmente ao espectador, e não exatamente aquela sociedade representada no
filme, localizada de forma fictícia na URSS, onde despontam os eventos criados e registrados
por Eisenstein.
É importante que a impressão de realidade especializa o cinema ao atuar como
fortalecedora do impacto emocional, sendo esse fortalecimento a ligação existente entre os
dois termos. Como mencionado, Cabrera toca ainda no tema da linguagem cinematográfica,
justificando, também com ela, por que o cinema se adequa à logopatia. Entretanto, essa
justificativa tem um peso muito menor em relação ao papel do impacto emocional no todo do
processo, soando como menos importante para os propósitos filosóficos da logopatia 4.
A linguagem cinematográfica aparece como a acentuação do impacto emocional, pois,
no entender de Cabrera (2006, p.31), está vinculada diretamente à composição de uma
impressão de realidade: “O cinema consegue obter esse impacto emocional, fundamental para
a eficácia cognitiva do conceito-imagem, através de certas particularidades da técnica
cinematográfica”. Entre essas técnicas, destacam-se:

• A pluriperspectiva, que é a capacidade da imagem “se situar” objetivamente ou


subjetivamente, variando de perspectivas;

• A infinita possibilidade de manipulação de espaço e tempo;

• O corte cinematográfico, isto é, a maneira peculiar do cinema de conectar uma


imagem a outra.

Os três itens indicam, sinteticamente, o significado de cinema para o qual a logopatia


se dirige. Assim como a filosofia é tomada como pretensão de verdade e universalidade, a

4 De fato, essa importância menor pode ser conferida nas oito características dos conceitos-imagem, expostas
no tópico anterior, entre as quais é incluída a negação de qualquer diferenciação dos filmes pelas suas
qualidades estéticas, as quais são determinadas, em grande parte, pelo uso que os filmes fazem da linguagem
cinematográfica.

21
possibilidade do pathos pelo cinema se deve a uma impressão de realidade fortalecedora do
impacto emocional, e fortalecida, por sua vez, pela própria linguagem cinematográfica.
Exatamente por conter os conceitos-imagem, o cinema contém, de certo modo, a
universalidade e a pretensão de verdade que a experiência pática identifica como essencial
para um acesso ao mundo, características que estão encerradas, como visto, na
“problematicidade intrínseca da imagem”, o que certamente faz com que Cabrera sustente,
lançando mão de uma metáfora, que “o cinema pensa”.

22
2 O CINEMA PENSA À LUZ DAS TEORIAS DO CINEMA

Ainda que Cabrera não vise encontrar definitivamente o significado de cinema, a


logopatia não pretende se referir a um cinema específico, mas ao cinema em um sentido
universal. Contudo, o autor não dedica a uma definição de cinema o mesmo espaço destinado
à definição de filosofia. Em vez disso, deixa claro que faz um uso específico dos filmes, tendo
em vista a relação do cinema com a logopatia, e traçando, para tanto, algumas características
bastante gerais. Falar de um cinema, deste modo, é elaborar uma maneira particular de
compreender o cinema – um ponto de vista geral, particular somente em si mesmo, enquanto
ponto de vista – e que não pretende ser um ponto de vista particularizador do cinema.
Cabrera teria evitado uma particularização indesejável?
A discussão na qual o autor está inserido se refere, em última instância, à linguagem
cinematográfica. O que é essa linguagem? O que se pode esperar dela? Béla Balázs, em “O
Homem Visível”, de 1923, se revela entusiasmado com o renascimento de uma “cultura
visual”, sufocada desde o surgimento da imprensa e o estabelecimento de um forte hábito
entre os homens, o da comunicação por meio da linguagem verbal, pela qual “a alma ficou
concentrada e cristalizada principalmente nas palavras” (BALÁZS. In: XAVIER, 2003a, p.
78).
O cinema é o responsável por uma retomada do visual – em um sentido não observado
por Balázs, consumando um projeto que se origina no Renascimento – e ainda que as imagens
não sejam equiparáveis a palavras, para o teórico húngaro elas não são, também, vagas ou
confusas, o que o leva a prever “a compilação de enciclopédias de expressão facial,
movimento e gesto, da mesma forma que existem há muito tempo dicionários para as
palavras” (BALÁZS. In: XAVIER, 2003a, p. 80). Essa previsão do autor seria contestada pela
semiologia de Christian Metz, para quem o cinema se assemelha a uma linguagem, mas não
constitui uma verdadeira linguagem, e dificilmente poderia recorrer a uma gramática.

A “especificidade” do cinema é a presença de uma linguagem que quer se tornar


arte no seio de uma arte que, por sua vez, quer se tornar linguagem. Duas coisas,

23
portanto. Mas, não três. Pois haveria também a língua. Ora, nem o discurso
imagético, nem o discurso fílmico, são línguas. Linguagem ou arte, o discurso
imagético é um sistema aberto, difícil de codificar, com suas unidades de base não
discretas ( = as imagens ), sua ausência de distância entre significante e significado
(METZ, 1972, p. 76)

Nas palavras de Dudley Andrew (1989, p. 177), o que Metz revelou foi que “apesar de
certamente existirem regras de uso, essas não são tão estritas nem tão complexas quanto as da
linguagem verbal”, e, por isso, “a linguagem cinematográfica parece completamente diferente
da linguagem verbal”. A semiologia, em virtude dessa concepção, toma como objeto de
estudo o processo de significação nos filmes. Em um filme, significante e significado estão
fortemente ligados, ou seja, “a conotação vem junto com a denotação” (ANDREW, 1989, p.
177), o que faz do cinema muito mais próximo de um “lugar” onde o significado está, do que
um “meio” pelo qual o significado ocorre.
Essa é a concepção básica de Christian Metz que interessa aqui, contrapondo-se a
Balázs e viabilizando a seguinte reflexão: A distinção entre a linguagem verbal e a linguagem
cinematográfica, exemplificada igualmente nesses dois autores, ainda que sob pontos de vista
e com conseqüências muito diferentes, permite que a logopatia considere as duas linguagens
veiculadoras de conceitos-imagem? Ao cunhar os conceitos-imagem, Cabrera os reconhece
não apenas enquanto veiculados pelo cinema, mas também pela literatura ou outra forma de
expressão que promova o impacto emocional 5, sendo mais importante, invariavelmente, a
existência do pathos. Esse fator é bastante significativo, pois deixa claro que a crítica à
linguagem escrita não é absoluta, mas direcionada ao seu uso pelos filósofos. Se uma
incomparável carga de pathos é o que torna o cinema especial para a logopatia, quanto mais a
linguagem escrita estiver carregada de pathos, quanto mais potencialmente emotiva, mais ela
é, também, propícia para o mesmo fim.
Como os teóricos do cinema, citados acima, estão relacionados a essa concepção?
Balázs e Metz, entre outros, se preocupam diretamente com a linguagem do cinema,
almejando conhecê-la e identificar os pontos de coincidência e dissonância em relação a
outras linguagens, o que determina as possibilidades e limites do seu uso. As diferenças que
podem emergir de uma análise comparada das duas linguagens é o ponto para o qual chama a
atenção tais teorias do cinema. Não é necessário, contudo, retornar à filosofia para refletir

5 Conferir o sétimo tópico da definição de conceito-imagem, na seção 1.2.

24
sobre o tratamento da linguagem cinematográfica na logopatia. Para Epstein (In: XAVIER,
2003a, p. 297), “todas as dificuldades que o cinema tem para expressar idéias racionais
prenunciam a facilidade com que é capaz de traduzir a poesia de imagens, que é a metafísica
do sentimento e do instinto”. Exemplificando o quanto o cinema é potencialmente diferente
do logos, o autor menciona algumas realizações européias que pretenderam substituir as
palavras por imagens, em filmes que visavam representar o pensamento lógico de maneira
integral.
Os resultados inexpressivos desse projeto revelam, para Epstein, o quanto uma dúbia
utilização do cinema (a tentativa de caracterizá-lo também como logos, sendo pathos?), é uma
diminuição do autêntico potencial da sua linguagem6. O cinema, entendido a partir da sua
linguagem, está mais próximo do ilógico, do acesso imediato ao sensitivo. A sua
representação da realidade é diferente da literária, que, por sua vez, para emocionar, só o pode
fazer por meio de palavras, abstrações que são, por natureza, diferentes dos seus significados.
Este empecilho para a emoção, uma espécie de “ponte” entre o ser e aquilo que o emociona, é
dispensado pelo cinema, que unifica significado e significante, como pensa, também, Metz.

Se ao invés de pretender imitar os processos literários, o filme tivesse se empenhado


em utilizar os encadeamentos do sonho e do devaneio, já teria podido constituir um
sistema de expressão de extrema sutileza, de extraordinária potência e rica
originalidade (EPSTEIN. In: XAVIER, 2003a, p. 297).

A proposta de Epstein é fundada em uma reflexão que leva em conta a linguagem


cinematográfica comparada à linguagem literária, sendo que o cinema derivado dessa
comparação se opõe, assumidamente, ao “método racional segundo o qual o homem, há
milênios e, sobretudo, no decorrer da era cartesiana, exercia quase que unicamente suas
faculdades psíquicas conscientes” (EPSTEIN. In: XAVIER, 2003a, p. 299). Com isso,
Epstein assume a realização da mesma crítica de Cabrera ao racionalismo, considerando,
porém, que o cinema apresenta como contraposição ao logos algo mais radical – no sentido de
nevrálgico, elementar e específico do cinema, pois é a sua linguagem – do que o impacto
emocional. É no cinema enquanto possibilidade de criação linguística de um universo

6 Nessa passagem, a compreensão de Cabrera de que há um “elemento lógico” nas imagens começa a ser
problematizada pelas teorias que investigam primordialmente o que é o cinema. Quando a linguagem do
cinema ocupa o primeiro plano na reflexão, o que pode ser dito sobre racionalidade e paticidade?

25
descontínuo e onírico, ou melhor, na efetivação do que a linguagem do cinema naturalmente
propicia, que ocorre a ruptura com o racionalismo. O pathos reina absoluto: o cinema é
freudiano, inconsciente, ilógico. “O Cão Andaluz” (1928) é um dos exemplos que Epstein
seleciona como precursores de uma cinematografia fundada nos princípios da irracionalidade.
Logos e pathos, segundo a visão de Epstein, estão “distribuídos” na estrutura dos
filmes, concepção que não está presente em “O Cinema Pensa”. Com Epstein, pergunta-se:
Por que, ao escrever sobre Buñuel, Cabrera recorre a “Viridiana” (1961), e não a “O Cão
Andaluz”? Obviamente, a pergunta pode não ter uma resposta, mas o fato de que “Viridiana”
respeita os princípios lógicos estruturais que “O Cão Andaluz” recusa enfaticamente pode ser
uma pista para a relação forte da logopatia com um cinema específico, e não qualquer cinema.
A partir das compreensões variadas de cinema que as teorias oferecem, o sentido universal de
cinema pretendido em “O Cinema Pensa” pode ser objeto de reflexão.

2.1. O QUE É CINEMA?

Paulo Filipe Monteiro (1996, p. 62), pesquisador português e professor da


Universidade Nova de Lisboa, distingue duas pedras de toque que marcam o estudo do
cinema, citando, para isso, o professor da University of New York, Brian Henderson: “As
principais teorias fílmicas existentes são de dois tipos: teorias da relação da parte com o todo
e teorias da relação com o real”. Nöel Carrol, por sua vez, também citado por Monteiro (1996,
p. 63), denomina as mesmas duas tendências de “paradigmas do cinema mudo e do cinema
sonoro”, chamando a atenção para o ponto de virada que enfatiza uma ou outra percepção do
cinema.
O que agrupa os teóricos da fase do “cinema mudo” é a concordância de que a
característica mais relevante do cinema é a manipulação da realidade, enfatizando o processo
de montagem. Os teóricos do “cinema sonoro”, diferentemente, situam essa característica
essencial na identificação entre a imagem cinematográfica e a realidade, isto é, o cinema é um
instrumento pelo qual a realidade pode se revelar, sendo que a manipulação desse real pelas
técnicas cinematográficas torna-se um empecilho.
A reflexão clássica soviética, que possui em Kulechov, Pudovkin e Eisenstein alguns

26
de seus nomes mais representativos, integra-se à vertente que prioriza a relação das partes
com o todo. Em linhas bastante gerais, essa vanguarda se constitui a partir das análises de
Kulechov, que atribuem o sucesso das produções majoritárias da época ao ritmo da
montagem. Continuando o trabalho de Kulechov, Pudovkin desenvolve uma metodologia que
expõe os princípios daquela linguagem nascente. Einsentein, por sua vez, contrapõe-se a esses
princípios (derivados de uma concepção naturalista e realista do cinema, que será explicada a
seguir), elaborando uma técnica de montagem a partir do teatro de atrações, cujo objetivo é
uma organização diferente dos eventos mostrados pelo filme.
Exemplificando o outro paradigma, André Bazin, já em um período moderno, elabora
um realismo ontológico que muito influencia o cinema europeu do pós-guerra. Para o crítico e
fundador da revista Cahiers du Cinéma, a realidade, tal como é, deve ter aval absoluto para
desvelar-se frente à câmera. O cinema possui um poder revelatório, captando a temporalidade
do mundo. Se o real permanece indefinido nas telas, não é por efeito da intervenção do
cineasta, mas pela própria condição indefinível da realidade.
“O cinema vem a ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica”, e, “pela
primeira vez, a imagem das coisas também é a imagem da duração delas, como que uma
múmia de mutação” (BAZIN, 1991, p. 24). A montagem perde o mérito de ser a
peculiaridade essencial do cinema, papel que passa a ser assumido pelo registro na película,
que vem “de fora” do homem, reduzindo a sua intervenção na concepção artística do real, ou
seja, a personalidade do artista está ausente na gênese da imagem, e só pode se destacar na
escolha do fenômeno, diferentemente do pintor ou do escultor, que se interpõe entre o mundo
e a sua arte.
Os dois segmentos teóricos citados se misturam e ecoam nas vocações diversas do
cinema, evidenciando a oscilação do próprio significado de filme, entre um universo teórico e
outro, uma prática e outra. Mesmo décadas após os soviéticos, é perceptível a concepção forte
de montagem que sustenta o cinema onírico de Jean Epstein, o qual protesta veementemente
contra o cinema clássico. Do outro lado, o neo-realismo italiano substitui a idéia de uma
representação do real, própria desse cinema, por uma pretensa exposição do real, colhendo os
frutos da ontologia baziniana, muito adequada em um momento de crise, no qual “impunha-se
a necessidade de registrar o presente – e por presente entendia-se a guerra e a liberação –, de
fazer reviver o espírito de coletividade que havia animado o povo italiano” (FABRIS, 1996,
p. 37).

27
Em todo caso, é notável que permanece como referência um cinema chamado
clássico, que se hegemoniza como um modelo contra o qual se voltam as tendências citadas,
entre outras que ainda serão lembradas.

Entre a Segunda Guerra Mundial e os anos 60, dois pólos de reflexão conduziram a
crítica a essa naturalidade postulada pelo cinema clássico: a teoria radical do
cinema-discurso baseado nas operações da montagem (o Eisenstein dos anos 20-30
permaneceu aqui a referência central) e a crítica francesa inspirada na
fenomenologia, tendo como foco maior André Bazin (XAVIER, 2003b, p. 45).

A intenção de caracterizar o cinema, da maneira como se pretende aqui, exige uma


compreensão mais detalhada dos princípios arraigados na cultura cinematográfica
determinantes do cinema clássico, sobre o qual escreve acima Ismail Xavier. Nessa ótica, a
aproximação de um teórico da montagem, como Eisenstein, e um teórico do realismo
revelatório, como Bazin, é mais possível do que pode parecer em princípio. Lado a lado,
ambos provocam cinemas que meditam sobre os princípios clássicos, ocasionando rupturas.
O rompimento é a recusa de uma tradição que consolida um significado de cinema
como o significado de cinema, esse o próprio processo de enraizamento que cria a hegemonia.
Nesse cinema, a linguagem cinematográfica obedece a uma estrutura cujo cerne é invariável.
Mesmo as sofisticações do formato, que ocasionaram o surgimento de um cinema moderno e
contemporâneo – atentos às necessidades contextuais de atualização do clássico – não
impediram que as possibilidades do cinema, na maior parte de sua produção, se limitassem a
essa estrutura tradicional.

Como não “atrapalhar” o enredo, a transmissão das emoções dos personagens com
essa linguagem [a cinematográfica]? Como fazer para que, depois da sessão, o
espectador se lembre mais do enredo e das personagens, que das movimentações da
câmera? Para isto, foi necessário desenvolver uma linguagem que passasse como
que despercebida. (BERNARDET, 1991, p. 41).

Jean-Claude Bernardet aborda acima um dos elementos mais determinantes da


formação da linguagem clássica: o ocultamento do aparato cinematográfico. Ismail Xavier,
em “O Discurso Cinematográfico”, localiza esse ocultamento como um dos fios condutores

28
que constituem a representação naturalista de Hollywood. O aparato se esconde em virtude do
ilusionismo, um processo de filmagem, decupagem e montagem que prioriza a transparência,
isto é, possibilita ao espectador imergir plenamente na história e identificar-se com o mundo
criado na tela, tal como se contemplasse o próprio mundo da experiência cotidiana, de um
ponto de vista especial, onipotente.
O espectador ocupa uma posição privilegiada, penetrando no espaço e tempo
diegéticos por meio do “olhar sem corpo” instaurado pela câmera, o que não diminui a sua
aceitação, sem resistência, do “jogo de faz-de-conta”, agindo como “quem sabe estar diante
de representações, e, portanto, não vê cabimento em discutir questões de legitimidade ou
autenticidade” (XAVIER, 2003b, p. 34).
O ilusionismo é desenvolvido e se fortalece por meio do naturalismo, segundo o qual
a representação dos atores e a composição dos cenários fílmicos deve prezar pela semelhança
com o mundo representado. O comportamento na tela repete a conduta humana, conforme as
circunstâncias dadas. Ainda que criados artificialmente, os ambientes onde as ações ocorrem
condizem com os aspectos estilísticos da vida real.
O “parecer verdadeiro”, em suma, é o critério maior do naturalismo, cujas raízes
apontam para as transformações burguesas que originaram o mundo moderno, e, ao mesmo
tempo, uma nova compreensão e expectativa em relação às artes cênicas, das quais a
linguagem clássica recebeu um importante legado. Nesse cinema, o absurdo, o impossível, o
fabuloso ganham uma realidade incontestável, pois são moldados pelo filtro da normalidade
percebida pelo homem na sua experiência cotidiana.
A representação naturalística de Hollywood se define também ao optar por gêneros
tradicionais de narrativa, facilmente apreendidos pelo espectador, o que, conseqüentemente,
contribui para a imensa popularidade desse cinema. O melodrama é certamente o principal
entre esses gêneros clássicos adotados pelos filmes, e cumpriu um papel histórico na
formação da linguagem cinematográfica. Em sua forma canônica, a vitimização das
personagens melodramáticas, imersas em um universo conflituoso e radicalmente sôfrego,
constituem uma intensificação da trama que favorece o estopim dramático, momento de
catarse em função do qual a emoção dos espectadores é condicionada por todo o processo de
identificação e envolvimento.
A pesquisadora brasileira Silvia Oroz (1992, p.18) corrobora essa caracterização,
atestando que “o melodrama manteve 'o apelo aos sentidos' e a concentração nos dramas

29
individuais de suas origens musicais”, numa remissão aos séculos XVI e XVII, referência
para a origem do gênero no Renascimento, a partir de uma retomada do “falar cantado” das
tragédias gregas, reforço para a dependência do texto à música, assim como para o
desenvolvimento da trucagem no teatro e no cinema – aspecto que acompanha o ilusionismo e
o naturalismo. Oroz (1992, p. 17) identifica no pathos do lirismo dramático de Monteverdi
essa marca musical inconfundível, que expressa “os sentimentos mais recônditos da alma,
sintetizados em dor, raiva, doçura, resignação”, cujo sucesso permitiu que o alcance do
gênero se estendesse para além de sua forma canônica, integrando-se aos atributos mais gerais
do cinema narrativo clássico e misturando-se a eles.
A relação entre os vários focos de ação e a definição das personagens numa atividade
intensa (pelos seus atos, pela interferência na história, pelos novos focos de ação que abrem
ou pelas soluções carregadas de moralismo), prende o melodrama a uma representação
extremamente simplificada da realidade, cuja vitalidade na cultura ocidental remete,
inclusive, aos valores cristãos de “salvação de si” e oposição do bem ao mal, ambos
caracterizados, culturalmente, como essências eternas e independentes do homem, postas em
conflito constante, pelo qual o destino é determinado. Voltando ainda mais na história
ocidental, a importância da ação e da catarse já era reconhecida na antigüidade clássica por
Aristóteles, como explica Oroz no seguinte trecho:

Os núcleos de conflito da tragédia, como: paixão/dever; bem/mal; amor/poder etc.,


passaram para o melodrama num esquema binário e apresentam-se, como no drama
clássico, em histórias ricas em pathos, que induzem a sentimentos de piedade ou
tristeza. É através desses sentimentos que Aristóteles propõe a catarse, chave que
abre o caminho para a projeção ou identificação (OROZ, 1992, p.32).

Refletindo os princípios do melodrama, ou, dito de outra forma, viabilizando a própria


realização desse gênero nos filmes, a configuração estrutural do filme clássico estabeleceu
uma narrativa específica. A explicitação dessa narrativa é o objetivo de David Bordwell no
artigo “O Cinema Clássico Hollywoodiano: Normas e Princípios Narrativos”, traduzido para
o português em publicação recente no Brasil.
Partindo da utilização de termos próprios do formalismo russo, como fábula (a
história de uma narrativa, ordenada cronologicamente e construída pela imaginação do
espectador) e syuzhet (ou trama, isto é, a maneira como a fábula é apresentada ao espectador,

30
conforme a organização de seus eventos pelo filme), o autor examina diferentes aspectos da
narrativa clássica, como a cognoscibilidade, a autoconsciência e a comunicabilidade,
baseando-se na análise de produções hollywoodianas entre 1917 e 1960 – período que pode
ser considerado como o mais representativo na formação do modelo clássico.
Bordwell inicia afirmando que o elemento fundamental da narrativa clássica é a ação,
o que já destaca a sua estreita relação com o melodrama. Confirmando essa relação, o autor
menciona as personagens bem definidas, isto é, estereotipadas e destituídas de complexidade
psicológica, que envolvem-se em relações conflitivas que têm em vista o alcance de
determinados objetivos e/ou a solução de problemas, expostos de maneira evidente para o
espectador.
Outra característica estabelecida a fim de que a intensidade da ação possua um fluxo
bem ordenado – deixando clara a problemática que justifica toda a trajetória, e, com isso,
ocasionado a conquista mais fácil da apreensão do espectador – é o desencadeamento das
ações a partir de um estado inicial de coisas pacífico e inerte, o qual é violado, causando
incômodo, e, por isso, que deve ser reestabelecido por meio dos próprios acontecimentos dele
derivados. Esse planejamento estrutural é a composição própria da trama clássica,
simplificada na distinção de um “estágio de equilíbrio, sua perturbação, a luta e a eliminação
do elemento perturbador” (BORDWELL. In: RAMOS, 2005, p. 279).
O respeito a uma causalidade dos fatos e a instauração de um dead line (prazo final
para a solução de um problema, que contribui para a tensão constante da narrativa, elevando-a
consideravelmente), é distribuído em duas vertentes originadoras da ação. Enraizadas também
nas narrativas clássicas da literatura, essas vertentes, geralmente, são o resultado da soma do
romance heterossexual a uma outra motivação, como, por exemplo, relações de trabalho,
estado ou iminência de guerra, missão, ou busca.
Vale dizer que nem sempre a trama conclui todos os focos de ação em aberto, sendo
comum que o destino das personagens secundárias seja “esquecido” pelo filme. Em
“Casablanca” (1943), por exemplo, a personagem Sam (interpretada por Dooley Wilson) tem
um participação decisiva na fábula somente à medida que possibilita o desenvolvimento da
trama, facilitando as relações conflitivas dos focos principais de ação, e é esquecida logo que
se torna dispensável para a condução desse eixo norteador (o romance entre as personagens
Rick e Ilsa, e a interferência do marido desta, Victor Lazlo).
As “soluções morais”, estabelecidas para pontuar as narrativas, é outro aspecto

31
consolidado que também atua no ajustamento do cinema clássico ao melodrama. Bordwell
indica o estopim dramático atingido pela evolução dos conflitos, que geralmente se atém ao
conflito do bem contra o mal, e encontra a redenção na elevação do “bem” e do “justo” por
meio da supressão do “mal”, isto é, na tradicional conformação dos problemas apresentados
em um happy end, uma “conclusão lógica” com a qual a trama fecha a si mesma, cessando os
eventos de forma apaziguadora e moralizante – as tensões se resolvem no filme e na
expectativa do espectador (cuja atenção é direcionada sutilmente pela linguagem clássica, por
meio de elementos como o close-up 7).
Em todo caso, é questionável se a trama alcança sucesso, nesse ponto particular do
processo total da narrativa, que compreende desde a desorganização de uma situação dada até
a reorganização dessa situação em uma nova ordem, pretensamente desprovida de conflitos e
portadora de uma mensagem edificante (a famosa “moral da história”). O próprio abandono
das personagens secundárias é um sintoma da necessidade absoluta de fluência da série causal
lógica desencadeada na trama, devendo tudo mais se prestar a essa fluência, imperativo que
faz do tratamento de outros domínios do filme um fator menos importante.
O final clássico aparece como um “coroamento da estrutura” (BORDWELL, In:
RAMOS, 2005, p. 283), a serviço da linearidade narrativa e da satisfação moral do
espectador. A catarse melodramática torna-se ainda mais impactante, pois se acrescenta ao
sentimento de “correção moral” despertado no espectador, que deleita-se sob o lema
inequívoco da justiça, ou, dito de outro modo, se alivia com o fato de que a transgressão da
ordem socialmente válida, experimentada ocasionalmente durante o filme, não o
acompanhará após o término da sessão 8, essa uma característica mais marcante no cinema
moderno, que se desenvolveu da revisão e atualização do clássico, atribuindo ao “olhar” do
espectador um novo estatuto.
Por fim, a narrativa clássica se caracteriza pelo alto grau de conhecimento que possui
da fábula, apresentando-se, na maioria das vezes, como onisciente. A sua comunicação com o

7 O estudo sobre o direcionamento da atenção pelo filme tem uma referência clássica em Hugo Munsterberg,
para quem a atenção do espectador, no cinema, é condicionada pela características peculiares da própria
linguagem cinematográfica. Essa “atenção involuntária” se diferencia da “atenção voluntária”, que pode ser
encontrada no teatro, pois a sua influência diretiva lhe é extrínseca. O close-up, segundo Munsterberg, é um
elemento que contribui para essa característica do cinema, e, “sem ele, dificilmente se poderia encenar um
melodrama” (MUNSTERBERG. In: XAVIER, 2003a, p. 34).
8 Buscando referência nas teorias psicanalíticas, o cinema é propício para um tipo de experiência subjetiva que
desloca o indivíduo das condições de normalidade impostas pela civilização. Trata-se de uma certa
“liberação” das pulsões na situação cinema (termo de Mauerhofer para identificar o ato de assistir a um filme
e o sono), de maneira que ela não acarrete conseqüências negativas ao indivíduo no convívio social.

32
espectador, transmitindo os eventos, também se dá em um nível bastante elevado, o inverso
do que ocorre no tocante a sua autoconsciência, ou seja, a determinação de o quanto a
narrativa conhece a si mesma, como narrativa.
Tais características são conseqüências, entre várias, da construção do tempo pela
trama. À medida que esta adota a ordem cronológica-causal, a comunicabilidade aumenta e a
autoconsciência diminui. Também a construção do espaço é um fator que interfere na
moderação da autoconsciência, algo que é percebido na normalização da “câmera invisível”,
onipresente, que explora ao máximo planos médios, harmonizando as composições e
distanciando-se da cena em uma medida ideal.

Graças a esse tratamento de tempo e espaço, a narração clássica faz do mundo da


fábula um constructo internamente consistente, sobre o qual a narração parece
intervir a partir de fora (BORDWELL, In: RAMOS, 2005, p. 288).

Resumidamente, somando-se ao ilusionismo, o naturalismo e o melodrama, a


narrativa clássica é responsável por um cinema “transparente”, no qual o próprio cinema,
como meio, se esconde, tornando-se invisível e contribuindo para uma elevação do caráter de
“verdade” do que é representado, como se tal representação fosse uma imitação da vida. A
própria idéia de representação, aliás, é um sintoma da pretensão naturalística desse cinema,
que mimetiza a realidade, evitando que efeitos simbólicos se originem fora das formas típicas
do cotidiano, às quais o espectador está habituado – a antítese desse princípio é encontrada,
por exemplo, no expressionismo alemão, que “distorce” formas, criando novas dimensões na
composição do cenário e do espaço diegético. Ao mesmo tempo, privilegiando a fluência
narrativa, o cinema clássico destina à técnica cinematográfica um lugar submisso, visto que
ela não pode tomar a frente como forma expressiva, o que dificultaria o processo causal.
Uma “liberação” da técnica, que significa a possibilidade da criação formal no
cinema, levou as teorias da montagem, desde Eisenstein, a apontarem para a manipulação das
imagens como uma abertura, uma possibilidade de reconsiderar o papel da linguagem.
Reconhecidas as normas do cinema hegemônico, as contra-hegemonias são melhor
reconhecidas. É possível iniciar, nesse sentido, pelo próprio tema da invisibilidade da
narrativa, criticada em vista de um cinema que expressa mais do que narra.
Marcel Martin, analisando concepções diferentes de montagem, distingue a montagem

33
narrativa, própria do modelo clássico, que se submete à fábula e eleva a impressão de
realidade, da idéia geral de montagem expressiva, desenvolvida no período clássico pelos
teóricos soviéticos, “em que a sucessão de planos não é mais ditada apenas pela necessidade
de contar uma história, mas também pela vontade de causar um choque psicológico no
espectador” (MARTIN, 2003, p. 136). A montagem expressiva deve ser entendida como uma
noção geral que acolhe várias tendências de ruptura com o modelo clássico, as quais se dão
em diferentes graus e aspectos particulares, não necessariamente pertencentes ao âmbito da
montagem. A ruptura pode ocorrer, por exemplo, na formulação de novas premissas para a
composição do cenário, explorando de maneira não naturalista a iluminação e as formas do
que é mostrado, como no expressionismo alemão, comentado há pouco.
Em “A Última Gargalhada” (1924), de Murnau, a montagem narrativa é a base
estrutural para a história de um velho porteiro de hotel rebaixado de seu cargo por debilidade
física, que tenta manter o prestígio em sua comunidade e na família escondendo o fato de
todos. Os princípios clássicos, que incluem a solução da trama em um happy end – neste caso
descompassado com o tom geral do filme – não impedem a utilização expressionista do jogo
de luz e sombra, da composição “espiritualizada” da mise-en-scène e de outros elementos que
acrescentam a expressividade também no plano da montagem.
Uma ruptura mais efusiva com o modelo hegemônico pode ser verificada na nouvelle
vague, desde a declaração de Truffaut afirmando que todo bom filme deve saber exprimir, ao
mesmo tempo, uma concepção de vida e uma concepção do cinema, até os casos concretos
das obras mais significativas do movimento francês. Trazendo à tona um cinema autoral, com
orientações temáticas mais sofisticadas e incorporando a espontaneidade na construção de
suas tramas, o espírito crítico agudo da “nova onda” despontou entre as renovações do cinema
que marcaram os anos 60.
A teleologia da narrativa clássica, baseada em conflitos bem definidos, é um dos
princípios ironizados por Godard em “Acossado” (1960), um exemplo entre muitos do
cineasta, para quem “todos os aspectos técnicos e expressivos do cinema [...] destinam-se a
obter uma desestruturação da continuidade fílmica e uma ruptura do fluxo narrativo”
(COSTA, 1989, p. 122). Nesse intuito, Godard é acompanhado por nomes como Alain
Resnais, Jacques Rivette, Eric Rohmer e o já citado François Truffaut, entre outros que
marcaram a época como uma das mais “inquietas” da cinematografia.
É com ainda mais radicalismo que o cinema underground se opõe ao cinema

34
hegemônico, assumindo um caráter fortemente experimental e cultivando também a idéia de
autoria. “As narrativas são raras nos filmes subterrâneos, e poucas foram as que mereceram
atenção”, sendo que “o cineasta está em busca é do que faz sentido visual ou sentido poético”
(RENAN, 1970, p. 12 – 13). Domínio privilegiado para as inovações técnicas, o
“subterrâneo” agrupa produções díspares, mas que se identificam por não se vincularem a
nenhum estatuto ou instituição, como Hollywood, que limite a potencialidade da expressão
cinematográfica.
A intenção é subverter o status quo que determina o que aparece nas telas, valorizando
o olho “não governado pelas leis fabricadas da perspectiva, um olho livre dos preconceitos da
lógica da composição, um olho que não responde aos nomes que a tudo se dá, mas que deve
conhecer cada objeto encontrado na vida através da aventura da percepção” (BRAKHAGE.
In: XAVIER, 2003a, p. 341). Cortes velozes, temas indeterminados e montagens abruptas são
comuns nesse cinema, que raramente oferece algum indício de continuidade.

Nam June Paik realiza Zen For Film, um filme luminoso sem qualquer imagem.
Tkehisa Kosugi gira o projetor sem qualquer película em seu bôjo. O “cinema
ampliado” chega com a integração de muitas técnicas e processos no cinema,
considerados nunca antes como sendo filme. Esta indagação do meio não termina
nunca. E a cada nôvo tipo de filme, a cada nova técnica, o filme subterrâneo amplia
a definição de filme (RENAN, 1970, p. 11).

Para André Parente, o experimentalismo do cinema underground, cuja origem


remonta ao cine-olho de Dziga Vertov, constitui uma vanguarda que tende à produção de
obras vinculadas ao acinema, conceito desenvolvido especialmente pelo pós-modernista Jean-
François Lyotard. O acinema, que é cinema não-narrativo 9, encontra referências nos estudos
deleuzianos de Bergson, os quais diferenciam dois “regimes” das imagens: o da universal
variação, a imagem pura e sem qualquer centro de referência, não existindo sujeito nem
objeto, e o regime substantivo, no qual as imagens variam tendo como referência um
organismo vivo, diferente dos objetos que as compõem.

9 Parente cita, como exemplo de cinema não-narrativo, o nome do cineasta vienense Peter Kubelka, que
organiza os fotogramas de seus filmes em relações matemáticas rígidas, numa busca por sincronia formal que
nega o naturalismo e valoriza a concretude da película. Trabalhando com planos, em vez de cenas, suas obras
podem prescindir de imagem, como em “Arnulf Rainer” (1960), em que se alternam sucessões de branco e
preto, silêncio e ruído, indicando a matéria básica do cinema e as impressões que o uso de som e imagem
acarretam.

35
A não-narratividade do acinema se diferencia do cinema de montagem expressiva,
pois não vislumbra propriamente a expressividade, e sim a captação de uma realidade “em
si”, anterior aos homens. “O acinema tem duas possibilidades de atingir, sem jamais
conseguir totalmente, o universo da universal variação: uma é a imobilidade completa e a
outra, o máximo de mobilidade possível” (PARENTE, 2000, p. 46). As duas possibilidades
são discutidas diretamente por Lyotard em “O acinema”, artigo no qual lança os fundamentos
do conceito. Para o autor, o cinematógrafo é o instrumento que inscreve com movimentos, a
partir de um universo tumultuado de possibilidades, de móveis candidatos à inscrição na tela.
A ordem imposta ao movimento na decupagem clássica é responsável pela
propagação do mecanismo social que movimenta o próprio mundo, reafirmando valores e
modelos de comportamento. A seleção naturalista da arte representativa-narrativa em geral
exclui tudo o que é estéril, dispensável, isto é, tudo o que não se acrescenta à reprodução do
mecanismo. A imobilidade e o excesso de movimentos são os pólos que, quando visados,
permitem a produção das “intensidades gozosas” estéreis, não filiadas à força insensível da
ordem, a qual se propaga em várias dimensões do real, seja no gozo proporcionado pela
genitalidade normal – quando este resulta no parto, na repetição do mesmo – ou na relação de
lucro e retorno própria da sociedade capitalista.

Uma vez acendido, um fósforo se consome. Se, com esse fósforo, você acender o
gás para esquentar a água do café que deve tomar antes de ir ao trabalho, a
consumição não é estéril, mas é um movimento que pertence ao circuito do capital:
mercadoria-fósforo → mercadoria-força de trabalho → dinheiro-salário →
mercadoria-fósforo. Porém, quando a criança esfrega a ponta vermelha do fósforo à
toa, é porque gosta do movimento, das cores que mudam, das luzes que alcançam o
acme de seu brilho, da morte do pedacinho de madeira, do sibilo. Ela gosta então
das diferenças estéreis, que não levam a nada, quer dizer, que não são igualizáveis e
compensáveis (LYOTARD. In: RAMOS, 2005, p. 221)

O que se deduz de todos os cinemas elencados é que os conceitos teóricos não existem
para fixar padrões rígidos e limitar os filmes dentro de ideais estéticos ou filosóficos, por mais
que ocorram tentativas nesse sentido, especialmente na produção cinematográfica que visa a
aceitação das obras em um mercado, transformando-as rigorosamente em “produtos” e
10
instalando uma indústria do cinema . As possibilidades do real escapam ao teorizado, da

10 Novamente sobre “A Última Gargalhada”, há especulações sobre a pressão dos produtores do filme para que

36
mesma forma que a teoria reflete as práticas e, na direção inversa, se distribui na
multiplicidade de filmes que ela comporta.
Nas palavras de Ismail Xavier (1984, p. 139), delimitando a sua análise do cinema
como discurso e prática num meio social, “a relação entre esta prática e os modelos discutidos
não é simples e seria falso considerar tais modelos como referenciais absolutos destinados a
orientar uma classificação mecânica dos filmes”. Os conceitos mostram, portanto, cinemas
possíveis que redefinem o significado de cinema, e, mais que isso, refletem a abertura desse
significado para novas compreensões, que problematizam o meio pela sua própria linguagem,
seus múltiplos usos, suas maneiras de se referir ao mundo.
Assim, o cinema narrativo clássico, fundado em princípios bem delimitados,
representa um tipo de cinema, o hegemônico, do qual se distanciam, de alguma maneira, os
filmes cuja intenção é firmar um outro significado. A despeito da maneira como se dá a
ruptura com o clássico, em movimentos auto-conscientes ou em casos isolados, de forma
mais branda, como no neo-realismo, ou radical, como no acinema, é notável que o significado
de filme se expande, tornando-se maior do que aparenta, em primeira vista, quando a
hegemonia em vigor inibe a diversidade.
Em vista disso, a questão sobre o significado de cinema na logopatia possui grande
importância. Estaria esse significado acoplado, de algum modo, aos princípios hegemônicos?
A noção de impacto emocional, por exemplo, por mais que Cabrera tente universalizá-la, não
seria, ainda, um resquício do pathos melodramático, uma pista que aponta para a hegemonia
desse cinema, também na logopatia? Ao excluir as diferenças estéticas como fatores
determinantes, teria Cabrera se impedido de discutir a estrutura dos filmes? Essas são as
questões discutidas a seguir.

2.3. O CINEMA COMO LINGUAGEM E SUA ABERTURA

A crítica de Cabrera à linguagem técnica dos livros filosóficos não acompanha uma
crítica da linguagem cinematográfica, que só aparece de forma breve e generalizada. Para a
logopatia é irrelevante o uso diferenciado da linguagem e da estrutura fílmica, de maneira que

o roteirista Carl Mayer escrevesse o polêmico happy end, adequando o filme ao modelo hegemônico.

37
o conceito-imagem é absolutamente desvinculado das qualidades estéticas de uma obra.
Assim, mesmo que não se trate de usar os filmes como meras ilustrações de filosofias e o
cinema não seja ofuscado pela filosofia, a linguagem cinematográfica parece ofuscada pela
importância do pathos para a filosofia.
Em princípio, a maior relevância do impacto emocional é admitida com naturalidade,
posto que a logopatia se funda desde cedo sobre a noção de afeto, com a sua especificidade e
dimensão própria, aberta e ampla, mas irredutivelmente emocional, de tal maneira que o
impacto emocional fugura como um “cartão de visitas” do pathos, e os dois conceitos não
podem ser separados. Alternando o ponto de vista que observa uma única moeda – da
filosofia para o cinema – é possível que o privilégio do sentir destaque um significado de
cinema que oculta outros significados possíveis. De acordo com a concepção filosófica da
logopatia, os filmes não devem ser compreendidos tanto pelo que mostram, ou, enunciando
melhor, pela maneira como mostram, mas sim pela sensibilidade que despertam nos
espectadores, isto é, principalmente pelo que fazem sentir.
Cabrera fala da manipulação de espaço e tempo, da pluriperspectiva e do corte
cinematográfico 11, como se a existência desses elementos fosse comum em todo e qualquer
cinema, ou, o que não é menos problemático, como se a existência deles nos filmes, variável
de um cinema para outro, fosse indiferente para o que é o cinema, para a própria compreensão
da sensibilidade que um filme desperta, e, principalmente, para o que é o cinema no interior
do discurso filosófico da logopatia.

Há portanto uma defasagem importante entre a palavra e a imagem. Cabe perguntar


então como o cinema consegue exprimir idéias gerais e abstratas. Primeiro, porque
toda imagem é mais ou menos simbólica: tal homem na tela pode facilmente
representar a humanidade inteira. Mas sobretudo porque a generalização se opera na
consciência do espectador, a quem as idéias são sugeridas com uma força singular e
uma inequívoca precisão pelo choque das imagens entre si: é o que se chama de
montagem ideológica. [...] é preciso aprender a ler um filme, a decifrar o sentido
das imagens como se decifra o das palavras e conceitos (MARTIN, 2003, p. 23 –
27).

A citação de Marcel Martin retoma a discussão sobre a semelhança e a diferença das


linguagens escritas e cinematográficas. Para Martin (2003, p. 16), o cinema se tornou uma

11 Conferir detalhadamente no tópico 1.3 do primeiro capítulo.

38
linguagem pouco a pouco, e “os nomes de Griffith e Eisenstein são os marcos principais dessa
evolução, que se fez pela descoberta progressiva de procedimentos de expressão fílmicos
cada vez mais elaborados”. A “montagem ideológica”, já mencionada anteriormente (ela é um
dos formatos da montagem expressiva), garante ao cinema a potencialidade de veicular idéias
a despeito da sua possível existência como uma autêntica linguagem, o que defende Martin,
ou uma inusitada linguagem sem língua, como quer Christian Metz.
Em todo caso, a hipotética correspondência entre a linguagem escrita e a
cinematográfica é desnecessária para que o cinema seja definido, pelo menos, como um meio
12
de expressão . Assim, um filme não pode ser plenamente compreendido sem a percepção
dos elementos pelos quais expressa, os planos, enquadramentos, elipses, metáforas visuais, a
profundidade de campo, a montagem, entre outros elementos que não surgiram igualmente,
mas se desenvolveram junto com o cinema, consolidando-o como criação artística, e, a partir
disso, como um domínio estético multifacetado.
Seria possível, como faz Cabrera, tomar a pluriperspectiva e a manipulação de tempo
e espaço como características gerais do cinema? O que dizer da imobilidade desejada pelo
acinema, ou das experiências do cinema underground? A imersão de Andy Warhol nesse
movimento, por exemplo, resultou em obras como “Blow Job” (1964), que foca o rosto de um
rapaz em um único plano de mais de meia hora, sugerindo uma felação. A noção de
pluriperspectiva deve passar pela consideração dessas experiências, assim como pelo uso
menos pontual da câmera subjetiva, radicalizada por Montgomery em “A Dama do Lago”
(1947).
Também o corte cinematográfico não pode ser generalizado. Hitchcock, por exemplo,
realizou “Festim Diabólico” (1948) com apenas três cortes, ainda assim invisíveis para o
espectador, pois a junção dos rolos de filme se deu em falsos cortes, e não aparenta qualquer
quebra do plano. Em 2002, a técnica digital permitiu ao diretor russo Alexandr Sukurov abrir
mão completamente da montagem, prescindindo do ardil de Hitchcock, e filmar “Arca Russa”
em um único plano-seqüência de 96 minutos.
Esses exemplos contingentes não indicam apenas o quanto o uso criativo e inovador

12 É essa a definição mais adequada para Gabriel Audisio (apud MARTIN, 2003, p. 17): “Diz-se também que o
cinema é uma linguagem, e é um modo de falar bastante imprudente. Quem confundir linguagem com meio
de expressão irá se expor a graves enganos. A imprensa é um meio de expressão: ela podia aguardar que a
inventassem. Pois o homem sempre teve diversos meios de se exprimir, a começar pelos gestos... Porém, a
música, a poesia, a pintura, são linguagens: não concebo que as tenhamos inventado ontem, nem que
possamos inventar outras jamais. Toda linguagem nasceu com o homem”.

39
dos elementos lingüísticos pode resultar em certas experiências cinematográficas peculiares.
O que deve ser destacado, a partir dessas obras, subjaz a elas. Como se sustenta a pretensão
de Hitchcock e Sukurov de realizarem filmes sem cortes? Que significado de cinema os
alimenta e está refletido em suas produções? Observado que o modelo narrativo clássico é
definido pela continuidade ilusionista, e a montagem clássica, em virtude disso, é uma técnica
que “pode se reduzir ao mínimo necessário” (MARTIN, 2003, p. 133), filmes como “Festim
Diabólico” e “Arca Russa”, que conseguem neutralizar tão drasticamente a interferência da
técnica nas imagens, são bastante significativos. Seria, então, o plano-seqüência absoluto de
Sukurov a concretização do ideal ontológico de Bazin, permitindo que as imagens se
desvelem sem a mínima interferência da montagem? Até que ponto essa interpretação é
válida, se não é considerada uma idéia de cinema?
Ao menos como um arauto da capacidade técnica do cinema atual, “Arca Russa” pode
ser associado imediatamente ao nome de Bazin. A partir disso, qualquer aproximação maior
exigiria cuidado e reflexão. Pois a técnica não reflete, imediatamente, uma ou outra
concepção de cinema. A continuidade de um filme clássico, sem cortes, aponta para uma
perspectiva diferente da que leva Andy Warhol a filmar ignorando o caráter estético do corte
e da montagem para privilegiar o olhar que contempla um quadro quase estático do mundo.
Há algo mais em jogo, uma idéia de cinema para a qual a técnica serve como meio, mesmo
quando se antecipa e figura de maneira intensa. Nesse sentido, a idéia que explica o filme, ao
mesmo tempo que pode constituir a condição de sua realização, o seu ponto de partida, é
também o seu ponto de chegada, oferecendo às teorias do cinema e os atos de interpretação o
desafio de lidar com as faces mais sutis que constituem o filme, a refletir sobre a sua forma,
sua linguagem, enfim, sua maneira de expressar.
Se as características gerais da linguagem cinematográfica não estão em “O Cinema
Pensa”, de fato, como universais, existentes em qualquer filme – o que é excluir por conta
própria a primeira das hipóteses, ainda que ela persista no próprio livro, em seu texto – resta
perguntar sobre o motivo pelo qual essa mesma linguagem, segundo os princípios dos
cinemas hegemônico e de ruptura, não possui um lugar tão privilegiado quanto a
emocionalidade que o filme desperta por meio dos conceitos-imagem. Convém principiar,
exatamente no destaque que Cabrera concede ao sentir, a análise dessa segunda hipótese.
Após afirmar que o espectador/filósofo, ao se deparar com um problema, precisa
“vivê-lo, sentí-lo na pele, dramatizá-lo, sofrê-lo, padecê-lo, sentir-se ameaçado por ele”

40
(CABRERA, 2006, p. 16), “O Cinema Pensa” postula que há “um tipo peculiar de
emocionalidade” no cinema, o qual identifica filmes tão diversos quanto os “dramáticos” e os
“cerebrais”. Os primeiros provavelmente agrupam as obras em que Cabrera encontra – sem,
contudo, dizê-lo conceitualmente, desenvolvendo a idéia – um forte apelo emotivo, como são,
sem dúvida, os melodramas canônicos; os últimos, por sua vez, são os que “comovem o
espectador precisamente por meio de sua frieza, de seu aparente caráter gélido e teciturno”
(CABRERA, 2006, p. 23). Em outras palavras, o impacto emocional comove o espectador,
mas isso não deve ser entendido, absolutamente, como um “efeito dramático” do filme, o que
é explicado a seguir:

Não se deve confundir “impacto emocional” com “efeito dramático”. Um filme


pode não ser “dramático” nem buscar determinados efeitos e, apesar disto, ter um
impacto emocional, um componente “pático” [...] Inclusive os chamados “filmes
cerebrais” comovem o espectador precisamente por meio de sua frieza, de seu
aparente caráter gélido ou taciturno. Sua aparente frieza é, precisamente, seu
recurso persuasivo, seu tipo peculiar de emocionalidade (CABRERA, 2006, p. 22 –
23).

A partir da citação, a logopatia pode ser pensada levando-se em conta os princípios


norteadores do cinema hegemônico, entre eles, especialmente, o pathos melodramático,
apresentado por Silvia Oroz. O melodrama, que atua como uma base explícita, ou, no
mínimo, implícita, na orientação narrativa e na composição estrutural das obras, se realiza
exatamente com o intuito de promover no espectador a sensação de vivência, de experiência
pessoal do que é mostrado, de dramatização, sofrimento, padecimento; em suma, de tudo o
que as primeiras páginas de “O Cinema Pensa” declara como necessário para que o filósofo
se relacione autenticamente com um problema. A distinção entre cinema “dramático” e
“cerebral” daria conta de uma caracterização do cinema que corresponda ao pathos de que a
filosofia precisa, segundo a própria crítica de Cabrera à tradição?
Parece improvável que possam se encontrar, em um mesmo patamar essencial, em
uma mesma dimensão de relacionamento com o espectador, os filmes de ação
hollywoodianos, cujos princípios existem em função do envolvimento, da comoção
melodramática, intensificando o pathos, e os cinemas que se opõem a esses princípios,
privilegiando o mostrar, e não o sentir. Assim, ainda que a emotividade logopática envolva
sensações diferentes, em intensidades diferentes, a sua determinação nos filmes é

41
indispensável, e essa determinação se formula em relação direta com a estrutura da obra. A
igualdade de condições entre um suposto cinema de “efeito dramático” e um cinema
“cerebral” só pode ser justificada pela pouca importância que a logopatia concede à
linguagem cinematográfica.
Quando o filósofo fala da comoção como a maneira pela qual são “afetados” os
espectadores, independente do filme assistido (o que significa dizer que qualquer cinema
“comove” e “afeta”), essa idéia não parece muito distante da idéia de “efeito dramático”, por
mais que o segundo conceito também seja utilizado livremente, sem que o seu significado
seja objeto de maior especulação e definição – essa indeterminação dos termos, aliás, é fator
que corrobora a impressão de que “comoção” e “efeito dramático”, no fundo, se assemelham.
Com isso, parece sustentável que alguns termos lançados por Cabrera dificultam o rigor das
classificações pretendidas em seu livro. Não se pode duvidar da existência de um tipo de
impacto causado por um “cinema cerebral”, porém, se esse impacto não é o mesmo que
ocorre no cinema narrativo clássico (como, de fato, não é), haveria motivo para colocar
ambos lado a lado? O cinema poderia ser melhor compreendido, favorecendo a teoria em
abrangência e precisão, e evitando qualquer possibilidade de uma generalização apressada.
Richard Allen e Murray Smith, em “Teoria do cinema e filosofia”, advertem para o
risco comum de generalização nos estudos de cinema, nomeada pelos autores de falácia da
exemplificação: “O que denominamos falácia da exemplificação ocorre quando uma
generalização (digamos, sobre a natureza do cinema) é feita com base na análise de um único
caso, pretensamente exemplar” (ALLEN; SMITH. In: RAMOS, 2005, p. 79). Pensando a
logopatia em face dessa imprecisão metodológica, uma possível falácia – talvez involuntária
– na sua definição de “natureza do cinema” não partiria de um exemplo particular de filme,
mas do cinema narrativo clássico, marcado pelo pathos em abundância e pelas características
gerais listadas na obra. Os aspectos essenciais desse cinema teriam sido generalizados e
tornados inerentes a todo cinema, o que ganha destaca no predomínio do impacto emocional
como um dado fundamental dos filmes.
Com isso, é possível interpretar que as dificuldades impostas por outros cinemas a
essa definição – por não priorizarem a emoção, mas o olhar, a montagem ou mesmo o
material fílmico, por exemplo – são forçadamente amortecidas, ocasionando, em última
instância, a identificação de cinemas “dramáticos” e “cerebrais”. Essa equiparação talvez
impeça a teoria de considerar criticamente o próprio impacto emocional relativamente ao

42
conceito-imagem.
É notável que, mesmo equiparando cinema “dramático” e cinema “cerebral”, nenhum
dos filmes analisados em “O Cinema Pensa” parece pertencer plenamente ao segundo grupo.
Cabrera menciona, na primeira parte da obra, alguns exemplos de “cinema cerebral”, como
“Detetive” (1985), de Jean-Luc Godard, e a obra do cineasta alemão Alexander Kluge,
destacando “O Poder dos Sentimentos” (1973). O último é reconhecido pelo autor como uma
obra-prima do cinema “gélido e distante”, mas que, ainda assim, proporcionaria o impacto
emocional. Nenhum dos dois filmes, entretanto, são analisados nos exercícios da obra, assim
como nenhum cinema de ruptura mais radical – Antonioni e De Sica são exceções que se
distanciam do clássico, mas que, em todo caso, não o fazem radicalmente, conservando, por
exemplo, a narratividade que compõe o cerne do cinema clássico, reelaborada esteticamente.
Por outro lado, os princípios determinantes do modelo hegemônico não apenas
despontam na maioria dos filmes analisados, representantes desse modelo, mas também na
definição direta do significado de cinema. A impressão é que a projeção das características do
cinema narrativo clássico sobre todo o cinema é útil ao filosofar logopático, como na citação
a seguir.

O cinema é a plenitude da experiência vivida, inclusive a temporalidade e os


movimentos típicos do real, apresentando o real com todas as suas dificuldades, em
vez de dar os ingredientes para que o espectador (ou o leitor) crie ele mesmo a
imagem que o cinema proporciona (CABRERA, 2006, p. 28-29).

Afirmar o cinema como “a plenitude da experiência vivida”, dentro de uma simulação


da “temporalidade” e dos “movimentos típicos do real”, é compreendê-lo como inerente à
forma de expressão ilusionista e naturalista, estabelecida com o modelo de representação
hollywoodiano, conceituado anteriormente por Ismail Xavier. A identificação do espaço e
tempo diegéticos com a realidade é o objetivo específico da “câmera invisível” descrita por
Jean-Claude Bernardet – e não de toda câmera, em todo cinema. Concomitantemente, a
concepção de que os filmes apresentam “o real com todas as dificuldades” expõe com clareza
o padrão clássico de narrativa, fundado em uma problematização dos eventos da trama e uma
relação progressiva de causa e efeito, destacando o conflito das personagens entre si e com o
mundo, processo enunciado tanto pela narratologia de Bordwell, quanto pela orientação

43
melodramática que cunha a representação do mundo como dificuldade, contribuindo
efusivamente para a ação e o efeito emotivo dos filmes.
A idéia de que o cinema apresenta as dificuldades do real, em vez de oferecer “os
ingredientes para que o espectador crie ele mesmo a imagem que o cinema proporciona”,
remete a logopatia à teoria de Epstein, mais uma vez. É a concretude da imagem
cinematográfica, a relação direta entre as imagens e o espectador – em certo sentido, sem uma
mediação verbal do logos – que garante ao cinema onírico se apresentar como uma proposta
coerente com o alto grau de alogicidade do cinema. É notável que a supervalorização do
pathos no cinema de Epstein é diferente da que ocorre na logopatia, e convém explorar essa
diferença.
Para o teórico polonês, o pathos está na estrutura do filme, no abandono das relações
lógicas de continuidade da narrativa, o que é uma declarada oposição a essa norma,
possivelmente a mais elementar do cinema clássico, como exposto por Bordwell. Para
Cabrera, o pathos está na relação do filme com o espectador, que se sente provocado
emocionalmente. Sendo assim, a mesma constatação da concretude do cinema é um ponto de
partida que origina duas teorias diferentes, particularmente opostas na relação que
estabelecem com o cinema narrativo clássico.
Se, para Epstein, a concretude resulta em ruptura, para Cabrera essa possibilidade é
indiferente. Antes de um rompimento, o que ganha ênfase é a impressão de realidade,
precisamente uma das balizas do cinema hegemônico. No trecho destacado há pouco, Cabrera
escreve motivado por esse conceito, razão pela qual o espectador é “apresentado ao real”, não
criando ele mesmo a imagem que o cinema oferece. Na logopatia, o impacto emocional é
fortalecido pela impressão de realidade, tomado como atributo universal do cinema. Também
aqui, “O Cinema Pensa” se vincula ao cinema narrativo clássico. A compreensão da
impressão de realidade como um aspecto inerente da imagem em movimento é válida, e não é
por acaso que as primeiras projeções aterrorizavam os espectadores, encabulados com a
captação do real pelo cinematógrafo. Contudo, ainda que seja válida, essa compreensão não
explora plenamente o que a impressão de realidade passou a significar com o
desenvolvimento do cinema como arte, muito além da experiência científica que lhe deu
origem.
Aprimorado, o efeito ganhou um lugar especial no cinema hegemônico. Nele, a
impressão de realidade é um “véu” que garante a qualidade de um filme, e que pode, por isso,

44
comprometê-lo, o que possui, inclusive, um nome específico: erro de continuidade. O “erro”
surge quando a impressão de realidade desaba, evidenciando a existência de uma narrativa, de
uma construção representativa do mundo – sempre presente, mas que não deve aparecer,
omitindo que o filme é uma mera imitação da percepção natural das pessoas.
O cinema “eficiente”, dentro do padrão hegemônico, é aquele que não deixa pistas da
sua existência como cinema, ou, nas palavras de Bernardet (1991, p. 45), não “revela que o
filme é uma composição artificial, e não a vida”. O contrário ocorre nos cinemas de ruptura,
em que a necessidade de “parecer real” é substituída pelo desenvolvimento de funções
expressivas, oriundas da própria técnica cinematográfica. Assim, em vez de cortes suaves,
suprimidos e ocultados pela ação, a ruptura pode optar por cortes secos, que penetram o
conteúdo com a forma. Em vez da montagem conduzida por causa e efeito, do começo ao
final de uma narrativa, pode optar por uma montagem que abre mão de contar histórias,
mostrando muito mais do que narrando.
A maneira como o cinema usa a impressão de realidade, portanto, não é homogênea,
sendo a sua presença no cinema clássico algo que integra a convicção naturalista desse
modelo. Se há um cinema à maneira de David Griffith, a quem muito deve ser atribuído o
surgimento da linguagem e da estrutura clássica, também há um cinema à maneira de
Eisenstein, para quem um filme deve refletir a dialética hegeliana/marxista em seu processo
de montagem, deixando de significar por meio do ilusionismo, das atuações naturalistas e do
apreço por gêneros narrativos de fácil degustação, passando a significar por meio de
construções metafóricas diretas e mais freqüentes, de uma caracterização descontínua das
personagens e dos eventos, valorizando, assim, as informações oferecidas ao espectador a
partir de “uma espécie de catálogo de estímulos elementares, de efeito previsível, com os
quais o filme só teria de realizar a combinação judiciosa” (AUMONT, 1995, p. 231).
O cinema de Eisenstein contradiz a idéia de impressão de realidade, substituindo-a
pelo uso da montagem para a formação de um imaginário, como descreve Maria Dora
Mourão (1998, p. 9):

Rompe-se a tentativa de considerar o cinema como reflexo do real. O reflexo deixa


de ser uma “impressão de realidade”, e passa a ter o significado de “imaginário”,
significado este que é produzido pela montagem cinematográfica no momento em
que ela irá promover a junção entre o imaginário proposto pela ação e o imaginário
do espectador, chegando, assim, ao real do reflexo.

45
A metodologia de análise dos filmes é a característica que parece melhor explicitar a
influência do cinema hegemônico na logopatia, confirmando todas as observações realizadas
até aqui. As abordagens de Cabrera obedecem, basicamente, ao esquema funcional desse
cinema. A própria possibilidade dos exercícios de “O Cinema Pensa” poderia ser questionada,
se os filmes analisados promovessem uma ruptura radical com a hegemonia – o que explica a
ausência desses filmes no decorrer da obra. A logopatia assume a narratividade, ou, mais
diretamente, elege as próprias narrativas como correspondentes ao principal conteúdo fílmico
das reflexões logopáticas. São elas que, afinal, emocionam o espectador.
Assim, a tônica dos escritos de Cabrera é voltada para o que as histórias
contam/narram, e não para características estilísticas ou para o uso da linguagem
cinematográfica, salvo algumas exceções – nas concisas discussões sobre o cinema-mudo ou
o neo-realismo – que, em todo caso, não admitem a diferenciação dos filmes como um ponto
importante para aproximar cinema e filosofia, isto é, não trazem a discussão da forma para o
interior da logopatia, como um determinante do que é o cinema.
O exercício que orbita em torno de Martin Heidegger e Michelangelo Antonioni,
nomeado “o maior filósofo do cinema” (CABRERA, 2006, p. 315), é um exemplo pertinente
dessa orientação metodológica. Assistir aos filmes do diretor italiano, notáveis pelo ritmo
lento e os planos contemplativos, é algo como experimentar o ser mesmo do mundo –
conceito buscado em Heidegger – em toda a sua opulência, fastio e tédio. Nesses termos, a
análise parece se basear em um aspecto estilístico do cineasta, precisamente a sua concepção
de narrativa. No entanto, a abordagem, logo no início, preserva o modelo narrativo-clássico
como referência.
Por mais que Antonioni realize um cinema aparentemente mais adequado para a
filosofia que o de demais cineastas, algo que se lê nas entrelinhas da análise de Cabrera, o seu
“sucesso filosófico” não decorre exatamente da elaboração de uma narrativa original,
inclusive distanciando-se da narrativa hegemônica, marcada pela velocidade desde a
origem13, mas de uma característica cultural, isto é, extra-fílmica, que condiciona a

13 Ben Singer estuda a origem do cinema como indissociada da origem dos valores modernos, entre os quais se
destaca o “bombardeio de estímulos” que condiciona a vida social e mental dos indivíduos. A modernidade é
muito mais rápida, caótica, fragmentada e desorientadora se comparada a épocas anteriores, o que propiciou
o surgimento e desenvolvimento de um cinema rápido, tenso, o que o autor chama de “estética do espanto”.
Essas características são componentes do cinema clássico, e justificam a sua velocidade e predileção pelo
enervante. Antonioni se opõe a elas com uma narrativa vagarosa, estimulando a contemplação.

46
receptividade dos filmes de Antonioni em um contexto no qual eles são estranhos, diferentes,
isto é, não-clássicos. O filtro do pathos transforma, implicitamente, o cinema clássico em um
critério logopático, um parâmetro filosófico.
Em certo ponto, o foco do exercício ameaça ser alterado, uma conseqüência da
observação de que “o tédio ou o entretenimento não são filosoficamente essenciais”
(CABRERA, 2006, p.320). No entanto, a tese não resulta em uma guinada para a discussão
do filme, dos elementos que poderiam proporcionar um significado determinado de cinema,
associado ao que é filosoficamente essencial. Antes disso, a conclusão de Cabrera (2006, p.
321), logo a seguir, é que “quando se aprende a ver, aprende-se a não traçar nenhuma
diferença importante entre Spielberg e Antonioni. Spielberg problematiza a realidade e faz
com que tornemos conscientes dela através da diversão. Antonioni o faz através do tédio”.
A declaração não apenas contrapõe-se ao que diz o próprio autor, momentos antes,
quando celebra os atributos particulares de Antonioni – “o maior filósofo do cinema” – como
revela o quanto a logopatia prescinde dos diversos cinemas possíveis, recusando-se a
considerar qualquer diferenciação entre os filmes. Será mesmo que “aprender a ver” leva à
conclusão afirmada por Cabrera?
Recuando até as considerações feitas sobre o cinema underground, a resposta a essa
pergunta pode ser encontrada já nas raízes desse cinema, nos manifestos de Dziga Vertov. O
ver é o que motivou o cineasta soviético a fundar o movimento Cine-Olho, vislumbrando a
possibilidade de “tornar visível o invisível, de iluminar a escuridão, de desmascarar o que está
mascarado, de transformar o que é encenado em não encenado, de fazer da mentira a
verdade” (VERTOV. In: XAVIER, 2003a, p. 262). Vertov defende uma mudança de estatuto
do olhar, que só é possível pela contestação do cinema clássico, o qual é incapaz de
compreender com precisão o movimento.
A idéia clássica de que o cinema permite uma “miscigenação” de outras artes – a
literatura, a música e o teatro – não passa de uma limitação imposta à potencialidade da
14
câmera por um modelo esgotado, velho, doente. Precursor do cinema direto/verdade , o
Cine-Olho libera a linguagem e a técnica cinematográficas. A montagem passa a desenhar

14 O cinema verdade e o cinema direto surgiram no anos 60, constituindo um momento de ruptura com a
tradição inaugurada por John Grierson no cinema documentário. Essa tradição pode ser definida pela “utilização
intensa de voz over expositiva, encenação e um namoro sem má consciência com a propaganda” (RAMOS. In:
TEIXEIRA, 2004, p. 81). Os cinemas de ruptura que se contrapõem a essa tradição apontam para uma
apresentação objetiva do mundo, seja no cinema direto, que defende uma ética da não-intervenção do cineasta na
obra, seja no cinema verdade, no qual a atuação do cineasta na realização filme é evidenciada.

47
com as imagens, “escrevendo” o filme e abandonando a composição de cenas, influência
teatral que não tem cabimento nesse cinema. A câmera é o olho humano, especulativa,
reveladora, observadora do mundo, de maneira que “aprender a ver”, como escreve Cabrera,
não poderia jamais recusar as diferenças entre um filme narrativo clássico e um filme
realizado pelos kinoks.

A montagem é o resumo das observações feitas pelo olho humano sobre o assunto
tratado (montagem das próprias observações, ou melhor, montagem das informações
fornecidas pelos cine-exploradores). O plano de filmagem: resultado da seleção e da
triagem das observações do olho humano. Efetuando esta seleção, o autor leva em
consideração tanto as diretrizes do plano temático quanto as características
particulares da “máquina-olho”, do “cine-olho” (VERTOV. In: XAVIER, 2003a, p.
264).

Outro exercício de “O Cinema Pensa” no qual os princípios hegemônicos vem à tona é


o que se refere ao filme “Thelma e Louise” (1991), interpretado pelo viés da filosofia de Jean-
Paul Sartre. Em nenhum momento do texto ganham atenção as características do filme
enquanto cinema, mas tão somente a história narrada, relacionada à filosofia sartreana no que
essa se refere ao tema da liberdade. A linguagem do filme está oculta, fortalecendo a fábula, e
fazendo com que só ela venha ao caso.
Não importa a maneira como o diretor Ridley Scott se expressa cinematograficamente,
o que condiciona o filme em diversas instâncias, interferindo, por exemplo, na profundidade
psicológica das personagens ou na representação estereotipada da sociedade norte-americana.
Importa, tão somente, a idéia de liberdade que leva Thelma e Louise a praticarem diversos
crimes, deparando-se com situações imprevisíveis desde que o momento em que saem para
uma viagem de carro pelo interior dos EUA. Cabrera conclui a análise interpretando essa
liberdade como uma propriedade humana que as personagens não podem recusar, sendo,
dessa maneira, uma exemplificação possível do conceito sartreano.
No ensaio sobre “Z” (1969), em contrapartida, Cabrera observa que a construção de
estereótipos é um fator que limita as referências do cinema ao mundo, observando que a
relação entre a verdade e o filme de Costa-Gravas ocorre por meio de uma simplificação
drástica da complexidade do real, e, de maneira especial, do ser humano (CABRERA, 2006,
p. 287). O filme é apresentado como essencialmente persuasivo, separando claramente o bem
e o mal em cada um dos lados da dicotomia entre centro-esquerda esclarecida e extrema-

48
direita, atuando, por fim, como um “panfleto” a favor de uma vanguarda liberal, lúcida e
comedida. Cabrera concebe que a simplificação das personagens indica a filiação do filme a
essa “causa” liberal, marcando um abandono da objetividade e da imparcialidade.
O autor não toma nota, contudo, que os elementos que identifica em “Z” como
problemáticos, transfigurando a realidade, não são próprios desse filme; eles são elementos
que integram a estrutura narrativa clássica, como visto em Bordwell. A simplificação do real
e do homem, que, aliás, não se estabelece somente no cinema político, é a falta de matizes
psicológicos na construção dos personagens (OROZ, 1992, p. 32) que essa narrativa absorveu
do melodrama, a fim de intensificar a ação. Logo, apesar de reconhecer, indiretamente, uma
característica própria do cinema hegemônico, a logopatia não repensa o seu próprio
significado de cinema, ainda que a “qualidade filosófica” (CABRERA, 2006, p. 270) de um
filme possa ser estabelecida a partir dessa característica. Isso porque a simplificação do real
resulta irrelevante em vista da avaliação do espectador, que é capaz de colocar em xeque a
pretensão de verdade oferecida pela representação, eliminando a possibilidade de uma crítica
ao cinema simplificador enquanto normalizado por uma estrutura padrão, e também à própria
idéia de representação, tão cara ao cinema hegemônico.
Essa crítica, no entanto, já existe, fora da logopatia, à medida que o cinema narrativo
clássico é percebido como uma estrutura que exige simplificação, veiculando “tipos”
humanos e condicionando os filmes dentro de um cercado de possíveis usos da linguagem.
Não é apenas em “Z” que a simplificação ocorre, mas também em “Thelma e Louise” (o que
passa despercebido), e na maioria dos filmes abordados em “O Cinema Pensa”. Por que essa
característica tornou-se importante apenas no exercício sobre um certo “cinema político”?

Pode o cinema apresentar os fatos equanimamente, com pretensão de verdade


histórica? Ou sua forma eminentemente emocional, sua impositividade, sua natureza
de “impacto visual” o impossibilitam visceralmente de ser um testemunho político e
uma crítica objetiva da sociedade, conservando somente seu impacto retórico e sua
eficácia persuasiva? Parece que, nesse sentido, o cinema só poderia ser político em
um forte sentido persuasivo-transformador (CABRERA, 2006, p. 265).

A investigação de Cabrera, enunciada acima, conduz a uma conclusão instigante. Para


o filósofo, os filmes nos quais subjaz uma orientação política tendem a ser essencialmente
persuasivos e transformadores. Por outro lado, em um sentido explorado vastamente pelo

49
culturalismo, pode parecer redundante a idéia de um “cinema político”, diferenciado de outros
cinemas, visto que todo filme, produto cultural que é, possui uma orientação ideológica
dotada de significado político. Assim, a intenção moralizante de D. W. Griffth, na virada do
século XIX para o XX, não é menos engajada que a de Eisenstein, na União Soviética
comunista, mesmo quando os filmes de Griffith não se prestam a uma defesa explícita de um
ponto de vista político, como em “Nascimento de uma Nação” (1915).
Em todo caso, a principal preocupação de Cabrera é que a representação dos
problemas sociais parece culminar, inevitavelmente, no uso do cinema como um instrumento
de propaganda e convencimento ideológico pela via da emoção, o que ocorre simplificando-
se a complexidade política e a própria realidade. O uso de estereótipos em “Z” é tão evidente
quanto a distinção entre uma burguesia sádica e um proletariado sofredor em “Outubro”
(1927), de Eisenstein. Em que medida essa concepção geral dá conta da diferença entre o
cinema de Costa-Gravas, formalmente próximo do modelo hegemônico, e o cinema de
atrações de Eisenstein? A observação de que há simplificações e estereótipos nas obras dos
dois cineastas, que é provavelmente válida – por mais que o método de construção das
personagens e do universo fílmico seja diferente em cada um – não deixa transparecer que o
principal motor do cinema de Eisenstein, precisamente para a persuasão política, é o princípio
da montagem.
Acatada a idéia de que o cinema é emocionalidade, mais uma vez cabe a pergunta
sobre o tipo de emoção desencadeada pelo filme narrativo clássico e pelos cinemas que se
opõem a ele – de certa forma, a equiparação de Costa-Gravas e Eisenstein é a mesma que
identifica filmes “cerebrais” e de “efeito dramático”, podendo, talvez, ser situada dentro
desses dois conceitos. Tratando-se de persuasão política, o contraste entre os dois conceitos
de cinema, primordialmente no campo formal, é um combate auto-declarado e refletido
duradouramente. Nele, a montagem de atrações é a arma de Eisenstein contra o ilusionismo
conservador de Griffith, assim como, décadas depois, filmes de Godard ou de Glauber Rocha,
para usar apenas dois exemplos ricos em ruptura, repetem a contestação da hegemonia
burguesa, ao seu próprio modo, mas também no domínio da forma, tendo como parâmetro de
distanciamento o cinema hollywoodiano, e como inspiração desde a vanguarda russa até a
estética neo-realista.
“Terra em Transe” (1967), do diretor brasileiro, por exemplo, é uma moldura da vida
política de uma país fictício, no qual as relações de poder refletem a asfixiante dicotomia do

50
homem moderno, dividido internamente entre a forte individualidade e o ideal coletivista,
entre o existencialismo, com suas angústias, e o ideal da revolução socialista ainda em voga.
Esse paradoxo fundamental na política contemporânea não se revela apenas na fala sobre o
jornalista Paulo, uma das personagens do filme, para quem “a política e a poesia são demais
para um só homem”, mas também na orientação do filme como narrativa descontínua, repleta
de metáforas, paródias e simbolismos que exploram tanto as raízes e os frutos da cultura
brasileira quanto a prática do populismo e do jogo de interesses que marcam a política em
geral, ou o caráter obscuro de instituições como a igreja e a mídia.

Abandono das formas sintáticas e expressivas tendentes a ocultar o procedimento de


encenação e adoção de técnicas de filmagem, de recitação e de montagem de tipo
“antinaturalista” e destinadas a evidenciar a subjetividade do autor. [...] Em vez de
evidenciar uma mensagem ideológica unívoca e direta, confiada geralmente a uma
herói positivo (como no passado o chamado “realismo socialista”, em alguns
momentos do neo-realismo italiano e do neo-realismo francês), surgiram formas
mais fluídas e indiretas, baseadas em procedimentos metafóricos e alegóricos
(COSTA, 1989, P. 120).

Produzido segundo o ideário sintetizado acima por Antônio Costa, “Terra em Transe”
exemplifica a atualização do projeto de ruptura eisensteiniano nos anos 60, que assume o
princípio da não-continuidade e a recusa da representação, sem, com isso, deixar de pensar
criticamente a obra do cineasta soviético. A simplificação das personagens e do mundo, que
Cabrera encontra tanto em Eisenstein quanto no cinema hegemônico, torna-se um dos pontos
de divergência entre o precursor e a nova geração. Eisenstein é problematizado pelo “discurso
claro e o seu cinema que 'quer dizer' as coisas” (XAVIER, 1984, p. 123), ideal inadequado
para um novo cinema, que expressa em sua linguagem a crise de valores filosóficos antigos e
modernos, entre os quais a idéia tradicional de verdade, do mundo como totalidade definida e
orientada, e da linguagem como acesso às coisas mesmas.
Por mais que alguma orientação ideológica possa ser apreendida do filme de Glauber
Rocha, o “cinema político” representado pelo filme não recorre a simplificações de nenhuma
ordem, pois a complexidade do mundo e do homem é o seu próprio tema, seu conteúdo e sua
forma. Ismail Xavier descreve a intriga em que se encontram o cineasta brasileiro e seus
contemporâneos, comparando os dois principais veículos de propagação das idéias
renovadoras daquele contexto, as revistas francesas Cahiers du Cinéma e Cinéthique.

51
O ataque dos críticos dirige-se à combinação de três enunciados dogmáticos: o
mundo é “pleno de sentido”; o sujeito é capaz de captar as verdades essenciais e o
“sentido” de tal mundo; a linguagem, como instrumento de representação, expressa,
em sua clareza, o pensamento do sujeito que conhece [...] A oposição fundamental
que orienta ambas as revistas na sua militância ideológica é aquela entre cinema
materialista e cinema idealista [...] Nesta linha, os Cahiers vão fazer a distinção
entre os filmes que são pura manifestação acrítica do sistema de representação
dominante vinculado à ideologia burguesa, e os filmes que estão dotados de uma
atividade crítica no domínio dos métodos de representação (e não apenas diante de
um real a ser tematizado), dentro do que é chamado “desconstrução crítica do
sistema de representação” (XAVIER, 1984, p. 123 – 125).

A hegemonia formal do cinema narrativo clássico e moderno reflete a hegemonia


ideológica burguesa. Logo, a contestação dos princípios que sustentam essa hegemonia,
carregada, evidentemente, de significado político, faz da “nova onda” francesa e dos
movimentos de ruptura localizados, como o cinema novo de “Terra em Transe”, pontos de
vista sobre o cinema que valorizam o mostrar. Por esse motivo, entre outros, a concepção
desconstrutivista abandona o modelo narrativo contínuo e representativo, tomando a forma do
filme como um aspecto substancial na definição de uma possível essência do cinema, mais do
que a emocionalidade que o filme desperta.
Com mais exatidão, o que se pode concluir, observando os cinemas contra-
hegemônicos, é que a emocionalidade do filme não pode ser desvinculada da forma. Mesmo
quando Epstein vislumbra o cinema como a expressão plena da pureza do pathos, é a forma
do filme que se eleva, como objeto de crítica (do clássico) e de normatização, pois o efeito
onírico é o resultado de uma montagem ilógica. Também Lyotard repensa o cinema como
forma, identificando na contenção dos movimentos da mise-en-scène naturalista os sintomas
da sociedade contemporânea, condicionada pela indústria cultural, a reprodução em série, a
utilidade e a agressão contra o que é estéril.
Retomando Cabrera, a sua afirmação de que o “cinema político” não pode ser objetivo
nem imparcial soa menos relevante. Em qualquer caso, um filme pode ter esses atributos? A
melhor avaliação do cinema deve recorrer a eles como critério? Imparcialidade e objetividade
são pretensões problemáticas no cinema, o que é comprovado pela vasta discussão sobre o
15
documentário clássico . De qualquer maneira, um cinema político pode ser edificado, a

15 Como citado há pouco, o documentário clássico tem raízes na obra de John Grierson, e é visando a

52
despeito delas, como nas teorias da desconstrução, pelo olhar atento à linguagem, e não pela
persuasão que uma maior ou menor “fidelidade aos fatos” pode ocasionar.
A metodologia de análise da logopatia, que tende a ressaltar a emocionalidade acima
de qualquer outro aspecto fílmico – e com ela a persuasão que decorre do estímulo afetivo do
espectador – oculta a linguagem cinematográfica, refletindo o mesmo ocultamento que se dá
no cinema narrativo clássico. Por essa razão, Eisenstein é interpretado pelo que tem de
comum com a hegemonia: o uso de estereótipos e uma visão maniqueísta do mundo, e não
pela sua diferença em relação a ela, em especial a concepção de montagem dialética. Tal
diferença consiste na sua contribuição maior ao cinema, e sem a qual a linguagem própria de
seus filmes não pode ser compreendida plenamente.
Não apenas o cinema político é repensado quando a linguagem cinematográfica é
objetificada na teoria, mas todo o cinema, a despeito da distinção em gêneros geralmente
realizada sem maiores critérios. Essa abertura de significado pode ser conferida no caráter
amplo dos enunciados dogmáticos, mencionados por Ismail Xavier, contra os quais se voltam
os críticos e realizadores da ruptura moderna. A estrutura do filme determina o que o filme é,
ou, em outras palavras, é impossível separar a emoção proporcionada pelo filme da estrutura
por meio da qual essa emoção é provocada. Afinal, o que é o pathos do filme? A narrativa
envolvente e ilusória desenvolvida pelo cinema clássico pode ser considerada um fator
determinante do significado de cinema em “O Cinema Pensa”, problematizando, também, o
que se pode entender por pathos no cinema – incluindo os conceitos derivados dessa noção
fundamental, como, especialmente, o impacto emocional.

objetividade que os movimentos de ruptura do cinema verdade e direto se estabelecem, não sem despertar
questões teóricas a respeito das suas possibilidades. A intenção do documentário de ser um cinema não
ficcional eleva a questão da objetividade como o seu fundamento, fazendo com que Noël Carroll revise o uso
do termo documentário, propondo a sua substituição por cinema de asserção pressuposta, noção que ressalta
o filme como proposição, e não uma exposição objetiva do mundo.

53
CONCLUSÃO

O projeto anunciado neste trabalho resultou, por fim, em uma reflexão a respeito do
significado de cinema em “O Cinema Pensa”. Considerar minimamente a linguagem
cinematográfica pode ter levado a obra a associar o cinema como todo ao cinema narrativo
clássico. Se não é possível negligenciar que a linguagem cinematográfica está por trás da
sensação que esse cinema hegemônico intensifica, efetivando a sua estrutura, por outro lado a
linguagem aparece “à frente” nos cinemas de ruptura, seja nos que derivam das teorias da
montagem, como Eisenstein, seja no realismo de Bazin, estreitamente ligado ao
desenvolvimento do plano-seqüência. À medida que o cinema hegemônico se expressa por
meio do ocultamento da técnica cinematográfica, forjando uma realidade cuja pretensão é ser
natural, verdadeira, direcionada para a sensibilidade do espectador, é significativo que a
logopatia também realiza esse ocultamento, priorizando as mesmas características que o
cinema hegemônico prioriza, e destinando à linguagem um tratamento semelhante.
Assim, movida pela crítica à exclusividade do logos nas filosofias apáticas, a
logopatia situa a sofisticação do filosofar na relação do espectador com o filme, mas não
encontra um lugar preciso para a sofisticação da linguagem cinematográfica. A logopatia
almeja se referir ao cinema universalmente, ou seja, encontrando em todo cinema particular
os elementos que elege. Contudo, usando um exemplo resultado dessa intenção, a
equiparação de cinemas tão distintos (“gélidos” e “dramáticos”) em nome de um único efeito,
o impacto emocional, mereceria um desenvolvimento teórico mais minucioso, para o qual,
certamente, as teorias específicas do cinema seriam úteis.
Do ponto de vista da linguagem, se as estruturas dos filmes cunham relações
diferentes, afetos diferentes na experiência do espectador com as obras, o conhecimento do
seu mecanismo passa a ser necessário, e não poderia estar tão resumido, ou mesmo ausente da
logopatia. Como visto, a simplificação do real, que Cabrera denuncia em “Z”, mas omite em
outros filmes, intensifica a emocionalidade própria do cinema hegemônico, que acentua a
ação. Por que esse aspecto não foi analisado criticamente em nome de uma definição mais
abrangente de cinema? Haveria um tipo de filme mais apropriado para a logopatia? Até que

54
ponto a narrativa de Antonioni faz das suas obras as mais “filosóficas”? Cabrera sugeriu essa
especialidade do cineasta italiano, mas não desenvolveu o tema até uma reflexão centrada nas
narrativas. São questões que poderiam resultar em desdobramentos teóricos bastante ricos.
Curiosamente, essa possibilidade de pensar a forma do filme aparece na oitava
característica da definição de conceito-imagem, a qual determina que eles invariavelmente
propiciam “soluções lógicas, epistêmicas e moralmente abertas”. Dialogando com o domínio
16
ético de sua filosofia , Cabrera encontra nas imagens captadas pelo cinematógrafo uma
negatividade irrecusável, expondo “tudo o que há de demoníaco, de incontrolável,
incompreensível, múltiplo e desanimador no mundo”. Aqui, mais uma vez, Cabrera e Epstein
se encontram. O surrealismo do autor polonês deriva da mesma observação de que o cinema é
um lugar onde o diabo pode destilar seus venenos, isto é, onde se pode revelar toda a
“estranheza” do mundo, o renegado, recalcado, inconsciente, imoral, enfim, tudo o que é
rejeitado pela tradição otimista e afirmativa do cinema clássico.
Mais uma vez, também, os dois autores se diferenciam pela consideração crítica da
estrutura dos filmes. Enquanto Epstein ojeriza o cinema clássico, precisamente porque a sua
linguagem e seus princípios impõem às imagens uma lógica forçada, prendendo o cinema ao
moralismo, ao convencional, numa representação afirmativa do real, Cabrera não vê outra
possibilidade para o cinema que não a de apresentar “soluções lógicas” (sintoma de que a
estrutura clássica não é problematizada na logopatia), e a sua análise da estrutura constata
substancialmente que o happy end, a maior evidência de moralismo afirmativo nos filmes,
sempre possui algo de descaradamente artificial, não conseguindo barrar a negatividade
natural dos conceitos-imagem – o que é uma conclusão, no mínimo, polêmica, tanto por não
ultrapassar a impositividade afirmativa que se dá no nível da estrutura, quanto pela real
probabilidade do happy end negar a si mesmo, por mais artificial que seja.
Por que a logopatia não “libertou” as imagens da estrutura que lhes impõe um
moralismo afirmativo? Penetrando nela, o cinema poderia ser compreendido pela sua
possibilidade de também possuir uma lógica, uma imposição racional ao pathos. A filosofia
escrita é apática quando realizada pelo rigor técnico, mas se livra dessa característica quando
se abre para novas formas literárias, tornando-se impactante. Logo, o fortalecimento do

16 Cabrera também possui uma filosofia da linguagem e uma ética, essa certamente a parte de sua obra que
ganhou mais repercussão no debate filosófico atual. Sinteticamente, a preocupação principal do filósofo é
com a construção de uma moral negativa, que se diferencia da tradição filosófica ao tomar a vida como
absolutamente desprovida de valor intrínseco. Daí as referências aos filmes como moralmente afirmativos ou
negativos.

55
pathos não parece ocorrer necessariamente pelo uso de uma ou de outra linguagem, mas,
principalmente, pela estrutura que condiciona a linguagem. Talvez não se trataria
precisamente de fazer filosofia por meio de livros ou filmes, mas de promover uma abertura
ao pathos nos livros e filmes, e repensar, assim, o papel do logos em cada uma das
linguagens. Se Hollywood se oferecesse a Nietzsche para filmar “Assim Falava Zaratustra”,
ele aceitaria? A logopatia ganharia em abrangência se considerasse o cinema também por esse
viés – e elaborasse, talvez, uma crítica ao alcance do logos também no plano estrutural?
Nesse sentido, a avaliação crítica do racionalismo moderno pela contemporaneidade
se dá na montagem ilógica do surrealismo, assim como as questões políticas essenciais desse
tempo são desenvolvidas na representação do homem e da sociedade que as rupturas do anos
sessenta aprofundaram, contestando a tipificação do cinema clássico, redutora da
complexidade filosófica do real. Qual desses cinemas expressaria qual filosofia? Como se vê,
não há aqui qualquer pretensão de refutar Cabrera, mas sim de desenvolver os conceitos
lançados em “O Cinema Pensa” por uma via pela qual o seu autor não optou, e que se mostra
pertinente. Por meio de um esforço teórico mínimo diante do problema que se eleva, aponta-
se para um caminho que permite refletir sobre a hipotética aproximação entre cinema e
filosofia.
De fato, os filmes não “filosofam”. No entanto, veiculam concepções de mundo,
expressam realidades, criam homens e coisas, verdades e mentiras, de maneiras tão diversas
que não caberiam em um único conceito. Como lidar filosoficamente com essa idéia? É
provável que o cinema não guarda qualquer especialidade em relação a outros meios de
expressão, a não ser pela sua maneira específica de expressar, pela potencialidade da sua
linguagem. O quanto o conceito-imagem poderia ser ampliado em suas características se as
diferenças “estéticas” dos filmes fossem consideradas? Contemplar essa pergunta não parece
configurar um empecilho para o projeto de “O Cinema Pensa”, mas, ao contrário, com ela o
significado de cinema se expande, e os filmes passam a ter ainda mais valor por si mesmos.

56
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