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Educação e identidade: individuação e individualização na
sociedade contemporânea
Resumo
Resumo: A formação do indivíduo no contexto da Eldon Henrique Mühl
sociedade atual denominada de segunda modernidade ou Universidade de Passo Fundio
do capitalismo tardio é o tema do presente texto. Partindo eldon@upf.br
da análise da concepção de individualidade predominante
na primeira fase da era moderna e da crítica que tal
concepção recebeu dos pensadores pós‐metafísicos ou da
segunda modernidade, o texto se dedicará a abordar a tese
da individuação desenvolvida por Jürgen. Habermas e a
concepção da individualização de Ulrich Beck. A hipótese do
trabalho é que as contribuições desses dois pensadores
podem auxiliar no esclarecimento de alguns aspectos
centrais relacionados à questão da formação da identidade
do sujeito na atualidade. A conclusão aponta que a
autonomia do sujeito e a manutenção da perspectiva
emancipadora da educação dependem do desenvolvimento
da interação comunicativa proposta por Habermas.
Palavras‐chave: Individuação; Individualização; Autonomia;
Emancipação
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Eldon Henrique Mühl
1‐Introdução
O tema da individuação‐individualização tem preocupado diferentes autores e se
apresenta como uma questão desafiadora para professores e demais profissionais da
área educacional. A formação da identidade do sujeito é, com efeito, uma das mais
importantes e controvertidas tarefas que cabe à educação. No contexto da atual
sociedade este tema se torna cada vez mais problemático, considerando que estamos
vivendo um momento de muitas mudanças nas tradicionais concepções sobre
individualidade e sociedade e sofrendo as influências de teorias que anunciam a morte do
sujeito e o fim da perspectiva de uma sociedade emancipada. Analisar a questão da
formação do indivíduo neste contexto é o objetivo do presente ensaio. Trata‐se de avaliar
em que termos a teoria da individuação comunicativa de Habermas e a de
individualização compulsória de Beck podem oferecer contributos para o entendimento e
a promoção da emancipação do individuo e a democratização da sociedade. Explorar
alguns aspectos das reflexões dos dois autores que possam auxiliar no esclarecimento da
realidade atual e na avaliação das potencialidades emancipadoras que a educação ainda
mantém são os principais objetivos do presente texto.
Esses três elementos só perderam sua dimensão metafísica com a emergência da
crítica da modernidade tardia e com os problemas que surgiram com o predomínio da
racionalidade instrumental, especialmente no século XX: a natureza está perdendo a aura
de generosa mãe natureza e de ser uma fonte inesgotável de recursos capaz de suprir
todos os desejos de uso e consumo dos seres humanos; o indivíduo percebe‐se cada vez
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mais dependente de fatores que lhe são externos e sob o controle de mecanismos que
escapam à sua capacidade de decisão e deliberação; a cultura perde sua condição de
expressão do espírito objetivo e se rende ao processo da multiculturalidade e pluralidade.
Convém alertar que as ressignificações ocorridas nesses três elementos não podem ser
avaliadas negativamente, pois, mesmo sendo, por vezes, paradoxais, revelam, de modo
geral, avanços do processo de autonomia e da emancipação humana. Elas fazem parte do
fenômeno de desencantamento do mundo e do desenvolvimento da racionalidade
humana.
Na primeira modernidade, o desenvolvimento da identidade era visto como um
processo linear, sendo a maturidade entendida como um estágio final em que o indivíduo
considerava‐se pronto e plenamente formado. Depois de certa fase da vida a condição do
indivíduo deveria tornar‐se irremediavelmente substancializada e tal constituição, se
alterada, era considerado uma patologia.
Beck (2010) avalia que a noção de indivíduo e de individualização da primeira
modernidade fundamenta‐se na visão de um sujeito que, a princípio, se constitui de forma
autônoma, livre. Pondera, porém, que tal autonomia configurou‐se apenas parcialmente,
pois tão logo se estabelece uma ordem social estruturada por relações de classe e sob os
princípios do Estado‐nação, a ideia da individualização deixa de ter o caráter de
transformação inicialmente proposto e esta passa a ser entendida como o processo de
adaptação à respectiva classe social ou ao Estado‐nação. Cabe a cada indivíduo
conformar‐se com os tipos sociais e modelos de conduta de sua classe ou das normas
instituídas pelo Estado, imitar, seguir a pauta, não desviar‐se da norma, aculturar‐se. Beck
reconhece que a modernidade teve o mérito de fazer surgir uma concepção de
individualização mais flexível e suscetível a uma diversidade de possibilidades de formas
de ser, pois, mesmo com a integração do indivíduo, a sua classe social exigiu uma
constante renovação e confirmação das condutas adequadas a cada classe. No entanto, é
somente na segunda modernidade ou modernidade reflexiva que a questão de
individualização se radicaliza e a exigência de readaptação se intensifica. A
individualização deixa de ser um “dado”, um fato, para tornar‐se uma “tarefa”. A
individualização se converte na estrutura social da sociedade como tal.
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A sociedade atual ou a “sociedade no indivíduo” produz, segundo Beck, uma
grande mudança da noção de sujeito e de subjetividade. A concepção de que a identidade
do sujeito é dependente de uma natureza interior que se opõe a uma ordem exterior, ou
de uma interioridade que se constrói à medida que o indivíduo toma consciência da sua
situação de grupo ou classe social a que pertence, se defronta com a concepção de um
ser humano que é o autor absoluto de si mesmo, um “dios personal”, capaz de decidir e
estabelecer o seu próprio destino.1
Desenvolvemos a seguir, as posições dos dois autores acerca de individuação e da
individualização e as implicações que tais concepções podem trazer para o entendimento
da questão atual da formação do indivíduo na educação contemporânea.
3‐ A individuação: Habermas e a formação intersubjetiva da identidade
Habermas reconhece que a formação da individualidade e da sociedade atual está
atrelada ao desenvolvimento de uma subjetividade cada vez mais descentrada e
autônoma. Sua concepção de subjetividade difere, no entanto, da concepção moderna
1
Beck analisa o tema da sacralização da ideia do indivíduo e da sua concepção próxima à ideia de um deus
capaz de se autoconstituir e se autodeterminar na obra El dios personal (2009). Sua tese nessa obra é a
de que a concepção moderna de ser humano leva ao extremo a ideia surgida nas religiões,
especialmente as cristãs, da destinação do homem à liberdade, cuja consequência extrema é sua
absoluta autonomia, tornando‐se um “dios personal”.
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sustentada no paradigma da consciência, entendendo a individuação como um fenômeno
produzido na iteração com o outro através da comunicação. Segundo o autor, tanto
individuação quanto socialização são processos mediados pela linguagem e decorrentes
da interação social.
A questão do indivíduo na sociedade moderna tem sido preocupação recorrente
de Habermas. Seu ponto de partida é a crítica à visão reducionista de subjetividade que
decorre da transformação da ideia de individualidade ao individualismo burguês, fato que
acabou causando o surgimento das tendências filosóficas que anunciaram a morte do
sujeito e a vitória do niilismo. Habermas não aceita as leituras niilistas e considera que a
racionalidade sistêmica representa apenas uma dimensão do desenvolvimento da
sociedade moderna e que a ela se soma o desenvolvimento da racionalidade de outras
instâncias, como é o caso da racionalidade comunicativa que se desenvolve no mundo da
vida.
Habermas considera que em Mead encontra‐se exposta a única proposição
com perspectiva de sucesso para a explanação do processo de formação da subjetividade
ou da individuação produzido a nível social, superando o modelo reflexivo da
autoconsciência. Mead apresenta “a única tentativa promissora de apreender
conceitualmente o conteúdo pleno do significado da individualização social” (1990, p.
185). Isso leva o pensador alemão a realizar um detalhado trabalho de reflexão acerca da
individuação sustentada por Mead, especialmente em dois textos: “Individuação através
de socialização: sobre a teoria da subjetividade de Georg Herbert Mead” (1990) e “El
cambio de paradigma em Mead y Durkheim: de la actividad teleológica a la acción
comunicativa” (1992).
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Para desenvolver sua teoria, Mead retoma o programa da filosofia da consciência
abordando‐a, porém, sob a perspectiva da psicologia funcionalista de Dewey, procurando
esclarecer a genética da constituição da autoconsciência e da reflexibilidade. Para tanto,
descreve a constituição da individualidade, do Selbst, sustentado‐o em duas instâncias: o
eu e o me. Posteriormente, percebendo os limites da visão funcionalista, introduz em sua
teoria a concepção da formação da subjetividade pela comunicação linguística, passando
a considerar, conforme escreve Habermas, que “a forma elementar de auto‐referência
torna‐se possível através da interpretação de outro participante da interação” (1990, p.
209‐210). O aspecto principal dessa mudança é a constatação que a ação do indivíduo
depende de um ato de interpretação, o que só se torna possível pela comunicação.
Mead concebe que a individuação só pode ocorrer em um contexto social pela
interação do indivíduo com outros indivíduos, envolvendo sempre uma tríplice relação: (i)
o gesto inicial de um indivíduo; (ii) a reação de outro indivíduo a esse gesto; (iii) o
resultado da ação iniciada pelo primeiro gesto ou complementação do ato social dado. A
formação do Selbst e o desenvolvimento da autoconsciência só surgem, portanto, no
momento em que ocorre a experiência de interação e o indivíduo passa a antecipar as
reações dos outros, ajustando suas ações de acordo com as reações destes. A interação
que se estabelece exige que cada indivíduo, na relação com o outro, adote para si
próprio, as atitudes do outro. Esse outro não é alguém singular, mas a comunidade ou o
grupo social a que pertence o indivíduo. Trata‐se, nos termos de Mead, de um “outro
generalizado” (MEAD, 1993, p. 184).
O conceito de outro generalizado tem grande importância para compreensão da
teoria do Selbst de Mead, pois ele se apresenta como uma espécie de recurso do controle
social introjetado pelo indivíduo. A atitude do outro generalizado reflete a formulação
abstrata da comunidade ou sociedade a qual pertence o indivíduo e que proporciona a
esse sua unidade de pessoa. À medida que o outro generalizado é introjetado, o eu
começa a reagir e essa atitude torna o “eu” (Selbs) uma instância reflexiva. Para Mead, é
essa capacidade de reagir, de tomar posição diante do outro, que possibilita, em última
instância, o surgimento da pessoa, a individuação. A autorreflexão só se torna possível
diante da existência desse substrato denominado “me”, que representa a facticidade de
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uma forma de vida historicamente instituída. É do ato de posicionar‐se diante da vida que
tenho e da vida que quero ter que emerge a minha individualidade.
Habermas considera que a teoria de Mead sobre a individuação e sua concepção
sobre a formação da autonomia representam um grande avanço para o entendimento do
processo de formação da subjetividade humana. Considera, no entanto, que Mead só
descreve vagamente o processso evolutivo da sociedade tendo por referência as
interações mediadas simbolicamente. Ele não completou sua análise sobre a função
normativa da interação que se estabelece através da ação comunicativa. Daí a queixa de
Habermas: “É curioso que Mead não tenha feito nenhum esforço para explicar como
pode desenvolver‐se este ‘organismo social’, normativamente integrado, a partir das
formas de socialização da interação mediada simbolicamente” (1992, p. 65). Essa é a
tarefa que ele se põe a desenvolver na Teoria do agir comunicativo e em outras obras
posteriores.
Habermas chega à constatção de que a racionalidade comunicativa contém em si
mesma um telos esclarecedor e emancipador, que torna possível a manutenção do poder
transformador da sociedade e dos indivíduos. No telos da linguagem pragmática encontra
elementos capazes de restabelecer o poder da razão de normatizar e dar validade ao agir
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humano. Como falantes, os seres humanos participam de um entendimento racional e, no
uso pragmático da linguagem, estabelecem entendimentos racionais que constituem as
estruturas do mundo da vida.
Na teoria comunicativa o ato de fala assume papel fundamental na constituição da
individualidade e da sociedade. Ao estabelecer atos de fala, o indivíduo se dispõe a buscar
não apenas o entendimento, mas assume a tarefa de coordenar sua ação, orientando‐se
por normas intersubjetivamente estabelecidas. Através da interação simbolicamente
instituida, o indivíduo, além do entendimento, busca regular sua ação na vida social.
O enfoque pragmático da teoria habermasiana apresenta a possibilidade de uma
nova abordagem das ações sociais, as quais podem ser, a partir de agora, analisadas da
mesma forma que as relações internas entre símbolos. A projeção de uma comunidade
comunicativa encontra seu apoio na estrutura da linguagem constituida de regras pré‐
teóricas de sujeitos que falam: “Os pressupostos pragmáticos gerais do agir comunicativo
constituem recursos semânticos de onde as sociedades históricas extraem e articulam,
cada uma a seu modo, representações do espírito e da alma, concepções de pessoas,
conceitos de ação, consciência moral, etc.” (HABERMAS, 2010, p. 253).
As potencialidades e as limitações humanas nos campos do pensar e do agir são
dependentes, portanto, da linguagem enquanto um mecanismo de atuação do homem
no mundo. A linguagem não é somente uma garantia para o estabelecimento dos
entendimentos humanos, mas uma força geradora capaz de superar os conflitos e os
fracassos que a humanidade pode produzir. Escrever o autor:
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princípio ideal e a situação real, entre fatos do mundo e valores morais, leva‐o a
restabelecer a unidade entre o processo cognitivo e o processo regulativo na formação
do indivíduo e da sociedade. Isso assegura a possibilidade do desenvolvimento da
autonomia individual e da formação social democrática e participativa.
Beck (2000; 2002; 2010) define a modernidade em duas fases: a primeira ele
caracteriza como uma sociedade estatal e nacional, de estruturas coletivas, com pleno
emprego, rápida industrialização e um aproveitamento da natureza não “visível”. Essa
primeira modernidade tem profundas raízes históricas e afirmou‐se na sociedade através
de várias revoluções políticas e industriais. Na segunda modernidade, a atual, que ele
também denomina de modernidade reflexiva, estão sendo colocadas em questão os
problemas fundamentais e as limitações da primeira modernidade, dentre as quais ele
destaca os cinco principais: a globalização, a individualização, o desemprego e o
subemprego, a revolução dos gêneros e os riscos globais da crise ecológica e da
turbulência dos mercados financeiros. Enfrentar esses problemas e buscar alternativas
diante das ameaças que elas representam são os desafios de uma segunda modernidade
e isso implica o desenvolvimento de novas categorias analíticas e a substituição de
conceitos sociológicas tradicionais pelo desenvolvimento de categorias que considerem a
“individualização” como categoria central da constituição e da forma de
desenvolvimento da sociedade contemporânea.2
2
Beck desenvolve sua proposta de forma mais específica em dois textos: “Perspectivas y controvérsias de
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Considerando o objetivo deste texto, vamos nos ater de forma mais pontual no
tema da individualização. Para Beck, a individualização é um processo social que assume
feições muito particularizadas na modernidade reflexiva. Esclarece que a modernização
da civilização industrial conduziu a diversas formações institucionais: o domínio do
Estado, a concentração de capital, o entrelaçamento de divisão do trabalho e relações de
mercado cada vez mais sofisticadas, a mobilidade social e o consumo de massa, e, ainda,
a individualização composta de três dimensões: (i) dissolução de elos e formas sociais
historicamente prescritas de autoridade e de dominação e de relações de satisfação
tradicionais (“liberdade”); (ii) perda de seguranças tradicionais em vista do
conhecimento, da fé e das normas vigentes (dimensão da desmistificação); (iii) novas
formas de inserção social (dimensão da reintegração e controle).
Vista de esta manera, la individualización es una condición social no
alcanzable por libre decisión de los indivíduos. Adaptando la famosa frase
de Jean‐Paul Sartre, la gente está condenada a individualización. La
individualización es uma compulsión, aunque paradójica, a crear y
modelar no sólo la própria biografia, sino también los lazos y redes que
la rodean, y a hacerlo entre preferencias cambiantes y en las sucessivas
fases de la vida mientras nos vamos adaptando de maneira interminable
una sociologia orientada al individuo” (in: 2003, p. 54‐61) e “La segunda modernidad” (in: 2002, p 7‐63).
No entanto, a temática é recorrente em diversos outros textos do autor.
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a las condiciones del mercado laboral, al sistema educativo, al Estado del
bienestar, etcétera (BECK; BECK‐BERNSHEIM, 2003, p. 42).
O caráter compulsório da individualização pode parecer inicialmente paradoxal,
pois as críticas atuais apontam para a crescente dominação do indivíduo, tanto do ponto
de vista da manipulação sistêmica, quanto da imposição midiática e tecnológica. Por isso,
a questão da individualização compulsória precisa ser bem esclarecida. Beck não é
ingênuo e percebe o quadro de dominação hoje reinante, alertando para a diferença que
sua concepção de individualização tem do conceito de individualização proposto pelos
pensadores liberais e pelos defensores da globalização. A individualização é característica
diferenciadora da sociedade reflexiva, pois, em nenhum momento anterior, o indivíduo
teve um papel tão central como na segunda modernidade. Ela não decorre, a priori, de
uma decisão subjetiva, mas da própria dinâmica que se estabelece socialmente.
Procurando esclarecer sua posição, Beck;Beck‐Bernsheim desenvolvem uma teoria
da individualização que definem nos seguintes termos:
La teoria de la individualización participa en el debate politico de dos maneras.
Em primer lugar, elaborando um marco de referencia que permite que el área
del sujeto – los conflitos entre individuos y sociedade – sea analizada desde el
punto de vista de los individuos. Em segundo lugar, mostrando que, a medida
que se va desarrolando la sociedad moderna, cada vez es más cuestionable
afirmar que existen unidades coletivas de significado y de acción (2003, p 58).
A passagem acima apresenta dois aspectos importantes da teoria dos dois
pensadores: o primeiro, que indica que o atual processo social não só permite, mas exige
uma contribuição ativa do individuo no estabelecimento de seu destino. Em outros
termos, o aumento da gama de opções e a necessidade cada vez maior de fazer escolhas
diante da diversidade de possibilidades, exige a participação efetiva de cada indivíduo,
tanto no sentido de saber escolher, como no de coordenar suas ações e de assumir a
responsabilidade pelas escolhas feitas. Nesse processo, o indivíduo passa a ser a unidade
referencial do social. O segundo aspecto revela que progressivamente as instâncias e
instituições tradicionais vêm perdendo poder diante do aumento da individualização. O
poder da tradição e a força que muitas instituições tinham no estabelecimento da
organização social, perdem seu poder e significado diante da fluidez da sociedade
emergente. Trata‐se, no entanto, de um processo ambivalente, pois, ao libertar o
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A individualização assume, desta forma, uma perspectiva radical de um processo
no qual cada um se torna a unidade de reprodução vital do social (BECK, 1986, p. 209).
Mais que nascer, temos que fazer algo, temos que ser ativos e criar nossas próprias
possibilidades. Em outros termos, “tenemos que ganhar, tenemos que saber
autoafirmarnos em la competência por unos recursos limitados, y ello no de una vez por
todas, sino dia a dia” (BECK; BECK‐GERNSHEIM, 2003, p. 40).
Beck pondera ainda que o custo dessa crescente exigência de individualização vai
implicar a perda de certas garantias e da segurança que havia no passado. Uma dessas
perdas é o fim das rotinas e a redução da segurança que a vida cotidiana e seus rituais de
repetição traziam. Existe uma vasta bibliografia que mostra o quanto os nossos
pensamentos, sentimento e ações, prefigurados e internalizados de forma pré‐consciente
ou inconsciente, tornam a vida mais leve, mais segura, regular, sem sobressaltos. A
destruição da rotina rompe com essa estabilidade e a vida perde a qualidade da
obviedade. O desafio de fazer permanentemente novas escolhas, de ter que se decidir
sempre de novo, leva o indivíduo a ter uma vida mais instável e, em consequência, mais
desgastante, tensa, estressante, permeada de crises.
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Para Beck, na sociedade atual está‐se levando ao extremo a ideia da
responsabilidade do indivíduo pela sua situação vivencial e pelas formas de vida que
assume. As exigências estão radicalizando a ideia moderna de um sujeito que deve saber
atuar por conta própria, desvinciliar‐se de velhas tradições e estar aberto para assumir
novos desafios e novas responsabilidades. O indivíduo, cada vez mais, deve tornar‐se o
agente de sua própria identidade, definir sua vida de forma autônoma, rompendo com as
instituições e a tradição que impedem suas opções atuais. A segunda modernidade é,
portanto, a modernidade da “cultura do eu”, na qual a aventura de uma vida própria,
autônoma, é levada ao extremo.
Na atual sociedade tudo se torna questão de opção, de escolha: a vida, a morte, o
gênero, a religião, o casamento, o parentesco, os vínculos sociais, as formas de vida, os
valores e o sentido da existência. Tal processo traz como consequência a dissolução de
formas de vida prévias e a fragilização de categorias de classe, estamentos, papel sexual,
família, vizinhança, reduzindo condições gerais de orientação a partir de modelos já
estabelecidos e produzindo a implosão de biografias normais nos limites de um país, de
uma comunidade, de uma família ou de um grupo. Traz também, em última instância, a
framentação sobre o entendimento acerca do indivíduo e sua formação: “Mesmo o self,
já não é apenas o self inequívoco, fragmentou‐se em discursos contraditórios do self”
(BECK, in BECK: GIDDENS; LASH, 2000, p. 8). A consequência dessa situação é que os
indivíduos se vêem progressivamente metidos em seus próprios labirintos de
insegurança.
Para ilustrar esse processo, Beck analisa as mudanças que estão ocorrendo nas
relações de homens e mulheres, de adultos e crianças, de patrões e empregados, de
trabalhadores e suas organizações sindicais. A mudança do papel da mulher na família e
na sociedade, por exemplo, está transformando a estrura da instituição familar, levando
ao rompimento das formas tradicionais de exploração do trabalho feminino e exigindo
uma organização familair mais flexível, dinâmica, com formas de estruturação que
precisam ser permanentemente negociadas. A identidade dos trabalhadores já não se
configura pelo seu pertencimento a uma classe operária em confronto com uma classe
detentora dos meios de produção. Cada vez mais os trabalhadores são desafiados a
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A individualização que se estabelece na atualidade não implica o surgimento de
uma sociedade livre de conflitos, humanamente digna, virtuosa e racional. A
modernidade reflexiva institui a “sociedade de riscos”, que apresenta uma mistura
altamente perigosa, composta de inseguranças e novas possibilidades, riscos e novas
chances, exigências e novas liberdades. A sociedade de riscos é uma sociedade de
ambivalências, contradições e conflitos, não somente pelo aumento das ameaças
decorrentes do modelo de desenvolvimento econômico e científico vigente, mas em
consequência do próprio processo de individualização, que pode acabar produzindo
maiores desigualdades sociais. A individualização, portanto, ao contrário do pensavam os
modernos, não produz necessariamente a maior integração social, podendo ser causa de
aumento dos conflitos sociais. Ou seja, “cuantas mas personas estan individualizadas,
mas consecuencias desindividualizadoras producen para los demas” (BECK; BECK‐
GERNSHEIM, 2003, p. 34).
Isso não significa, porém, que na segunda modernidade desapareçam as questões
éticas que envolvem a convivência com os outros indivíduos. Nela, a ética assume novos
contornos, pois as modificações surgidas implicam o aparecimento de uma visão de
altruismo diferente daquela presente na primeira modernidade. Nesta última, o altruismo
era decorrente de um sentimento de amor cultivado pelo sujeito em relação ao outro. A
individualidade era formada altruisticamente pelo cultivo de um sentimento de
consideração ao outro, alimentada pela religião e por instituições tradicioanis, como a
família, as organizações comunitárias e as organizações filantrópicas. Já na atualidade, o
altruismo vai decorrer da exigência social da própria individualização, uma vez que tanto
o êxito pessoal como a expansão da liberdade individual são dependentes da
sensibilidade social e da capacidade de interagir com os outros. Nos termos de Beck;
Beck‐Gernsheim:
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Las culturas individualizadas dasarrollan sin ninguna duda su própria ética
altruista. Ser individuo no excluye preocuparse de los demás. De echo,
vivir en una cultura sumamente individualizada significa que tenemos que
ser socialmente sensíbles y capaces de relacionarnos con los demás, y
obligarnos a nosotros mismos para poder gestionar y organizar nuestra
vida cotidiana. En el viejo sistema de valores, el ego siempre tenía que
subordinarse a las pautas de lo coletivo. La nueva ética establecerá un
sentido del “nosotros” que se parezca a un individualismo cooperativo o
altruista (2003, p. 353).
Cabe destacar que tal ética não surge nem de uma imposição externa, de uma
tradição ou de algum regramento instituido por normas do Estado. Ela emerge da prática
cotidiana e das necessidades que nascem das relações pessoais. Viver para os demais,
que no passado era considerada uma contradição, passa a ser entendido como uma
exigência ética do cotidiano que se globaliza, como exigência da própria individualização.
Beck; Beck‐Gernsheim destacam essa visão, afirmando:
Es en los experimentos cotidianos con la vida donde descubrimos cosas
sobre una nueva ética que combinen la liberdad personal con el
compromisso con los demás, y hasta con el compromiso sobre una base
transnacional. Creo que estamos viviendo en un mundo sumamente
moral a pesar de lo que tratan de contarnos los pesimistas culturales.
Pero no es un mundo de obligaciones y valores fijos. Antes bien, es um
mundo que está tratando de descubrir la manera de combinar la
individualización con las obligaciones para con los demás, incluso a escala
mundial (2003, p. 353‐354).
O dever para consigo mesmo não dispensa o dever para com os demais. O que
diferencia a moral da modernidade reflexiva é que a esta deixa de ter obrigatoriamente
um caráter social, vinculado a uma determinada ordem social e se cosntitui no
enfrentamento com o outro na busca da realização do próprio indivíduo. Ela deixa de ter
o caráter prescritivo e torna‐se uma moral que se cosntitui no desenvolvimento de novas
relações.
5‐ Conclusão
As contribuições de Beck e de Habermas acerca do processo de individualização e
da socialização apresentam‐se desafiadoras e podem contribuir para o entendimento de
algumas questões que envolvem a educação atual. A formação da identidade individual é
uma das principais tarefas da educação e a compreensão da forma de como ela se
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desenvolve é indispensável para que a escola e os professores possam realizar um
processo educativo adequado e eficaz. Ademais, um entendimento mais apropriado do
processo “compulsório” de individualização e as consequências que isso traz ao
desenvolvimento das identidades dos educandos podem auxiliar no trabalho pedagógico
de minimizar alguns problemas, tais como o hedonismo, a competição, a indiferença ao
outro, a discriminação, a fragmentação social e o crescimento das diferenças sociais,
culturais e econômicas.
Cabe destacar, inicialmente, que o fato de nenhum dos dois autores ter‐se
ocupado especificamente do tema da educação, não impede que suas reflexões possam
servir como contribuições produtivas para repensar a educação contemporânea e, de
modo especial, a escola, considerando as contribuições que trazem para o entendimento
do processo de individuação no contexto complexo e conflituoso em que vivemos. A
escola que surge na modernidade com o papel de contribuir na formação de indivíduos
para uma sociedade esclarecida e democrática, encontra‐se, nesse momento, diante de
inúmeras dificuldades que precisam ser enfrentadas. Um dos aspectos consiste em avaliar
a capacidade desta de assumir um novo papel e de reformular sua estrutura
organizacional em função do processo de individualização em marcha na sociedade
globalizada. De outra parte, cabe refletir sobre o modo de ser atual da escola e avaliar se
a situação em que se apresenta não é decorrente da manutenção de uma forma de agir
que já não corresponde e responde às exigências da sociedade complexa, ambivalente,
concorrencial, dispersiva, heterogênica e caótica que aí está.
As reflexões dos autores sobre a derrocada das instituições tradicionais e as
mudanças que são produzidas de forma não planejada e sem controle são contribuições
que ajudam a entender alguns dos problemas da escola atual, como é o caso da crise do
sentido do saber e da autoridade docente.
3
A expressão categorias zumbis é utilizada por Beck para definir as categorias “vivas‐muertas que rondam
por nuestras cabezas y pueblan nuestra vision de realidades que no dejan de desaparecer. (...) Las
categorias zumbis proceden del horizonte vivencial del sieglo XIX, de la anteriormente mencionada
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que as concepções de indivíduo ou de subjetividade desenvolvidas na modernidade e que
têm servido de referência nas concepções pedagógicas das escolas precisam sofrer
revisões diante dos processos em desenvolvimento na atualidade. A radicalização da
ideia de autonomia, no sentido da ampliação das oportunidades de escolha do indivíduo,
a revisão dos conceitos sociológicos sobre as mais diferentes instâncias e instituições
sociais, são importante indicativo para a revisão dos conceitos dos fundamentos da
educação. As leituras realizadas por categorias já superadas do fenômeno educativo
limitam a compreensão do processo efetivo de formação da individualidade na atualidade
e da realidade social, política e cultural em desenvolvimento. Por isso, as tradicionais
categorias de classe, família, gênero, etnia, dentre outras tantas, precisam ser revistas e
substituídas por categorias analíticas mais adequadas aos tempos da sociedade complexa
atual. De outra parte, suas observações sobre as dependências que podem ocorrer na
individualização diante dos mecanismos que são criados institucionalmente e pelos meios
midiáticos, são referenciais importantes para a leitura do mundo da modernidade
reflexiva. As novas exigências da sociedade, que se transforma rapidamente, e a liquidez
dos modos de ser das individualidades são desafios para o campo educacional. A ausência
de uma subjetividade fixa e de um sentido de existência minimamente estável torna o
desafio da educação cada vez mais difícil e complexo. Em síntese, educar em uma
sociedade de risco e em um mundo fora de controle é uma tarefa hercúlea que exige
muita competência de parte da escola e dos seus educadores. Um desses difíceis desafios
é a construção de uma nova concepção sobre a individualização com base em categorias
que já não se sustentam nas tradicionais categorias sociológicas e filosóficas.
Entendemos que é diante desse desafio que a contribuição de Habermas sobre o
processo da individuação torna‐se fundamental, tanto na complementação do
diagnóstico sobre os fatores que implicam a crise da sociedade contemporânea, como na
manutenção de uma perspectiva emancipadora da sociedade e da educação.
Consideramos que, ao atribuir um papel central à interação comunicativa, Habermas
mantém o nexo com um processo de racionalidade que assegura a possibilidade efetiva
primeira modernidad, y hacen que nos volvamos ciegos, al proceder de maneira analítica‐aprioristica, a
la experiência y dinâmica de la segunda modernidad” (BECK, 2002, p. 14).
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da ação intersubjetiva e da condução consciente das mudanças necessárias para a
formação de um mundo mais justo e solidário.
Além de assegurar a possibilidade da solução dos problemas através da interação
comunicativa e, com isso, alimentar a esperança da formação de uma sociedade
cosmopolita, ele evita que as mudanças sociais e os comportamentos dos indivíduos
dependam apenas de um vago sentimento de medo diante dos riscos que o
desenvolvimento da modernidade produz. Afinal, é através da comunicação que
estabelecemos relações com o mundo e com este podemos adotar uma relação reflexiva.
E é essa relação reflexiva que permite tanto o conhecimento do mundo quanto a sua
construção ou reconstrução, nas suas dimensões social e subjetiva.
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