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Educação e identidade: individuação e individualização na 
sociedade contemporânea 
 
 
 
 
Resumo   
Resumo:  A  formação  do  indivíduo  no  contexto  da  Eldon Henrique Mühl 
sociedade  atual  denominada  de  segunda  modernidade  ou  Universidade de Passo Fundio 
do capitalismo tardio é o tema do presente texto. Partindo  eldon@upf.br 
da  análise  da  concepção  de  individualidade  predominante   
na  primeira  fase  da  era  moderna  e  da  crítica  que  tal   
concepção  recebeu  dos  pensadores  pós‐metafísicos  ou  da   
segunda modernidade, o texto se dedicará a abordar a tese   
da  individuação  desenvolvida  por  Jürgen.  Habermas  e  a   
concepção da individualização de Ulrich Beck. A hipótese do 
trabalho  é  que  as  contribuições  desses  dois  pensadores 
podem  auxiliar  no  esclarecimento  de  alguns  aspectos 
centrais relacionados à questão da formação da identidade 
do  sujeito  na  atualidade.  A  conclusão  aponta  que  a 
autonomia  do  sujeito  e  a  manutenção  da  perspectiva 
emancipadora da educação dependem do desenvolvimento 
da interação comunicativa proposta por Habermas.  
 
Palavras‐chave: Individuação; Individualização; Autonomia; 
Emancipação 
 
 
 
 
 
 
 

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Educação e identidade: individuação e individualização na sociedade contemporânea 
 Eldon Henrique Mühl 

1‐Introdução 
  O  tema  da  individuação‐individualização  tem  preocupado diferentes autores e  se 
apresenta  como  uma  questão  desafiadora  para  professores  e  demais  profissionais  da 
área  educacional.  A  formação  da  identidade  do  sujeito  é,  com  efeito,  uma  das  mais 
importantes  e  controvertidas  tarefas  que  cabe  à  educação.  No  contexto  da  atual 
sociedade  este  tema  se  torna  cada  vez  mais  problemático,  considerando  que  estamos 
vivendo  um  momento  de  muitas  mudanças  nas  tradicionais  concepções  sobre 
individualidade e sociedade e sofrendo as influências de teorias que anunciam a morte do 
sujeito  e  o  fim  da  perspectiva  de  uma  sociedade  emancipada.  Analisar  a  questão  da 
formação do indivíduo neste contexto é o objetivo do presente ensaio. Trata‐se de avaliar 
em  que  termos  a  teoria  da  individuação  comunicativa  de  Habermas  e  a  de 
individualização compulsória de Beck podem oferecer contributos para o entendimento e 
a  promoção  da  emancipação  do  individuo  e  a  democratização  da  sociedade.  Explorar 
alguns aspectos das reflexões dos dois autores que possam auxiliar no esclarecimento da 
realidade atual e na avaliação das potencialidades  emancipadoras que a educação ainda 
mantém são os principais objetivos do presente texto. 

2‐Educação  e  identidade:  ideais  da  modernidade  e  críticas  da  segunda 


modernidade  
 Segundo  Guardini  (2000,  p.  38‐43),  pelo  menos  três  elementos  são  considerados 
como inalienáveis à modernidade e que a mantém sob a orientação de bases metafísicas: 
(i) a natureza enquanto fonte inesgotável de bens, repousando em si mesma; (ii) o sujeito 
como  um  ser  autônomo,  capaz  de  autodeterminar‐se;  (iii)  a  cultura  como  realização  do 
espírito objetivo da humanidade, que, criando suas próprias normas, estabelece o sentido 
comum e universal da existência. 

Esses três elementos só perderam sua dimensão metafísica com a emergência da 
crítica  da  modernidade  tardia  e  com  os  problemas  que  surgiram  com  o  predomínio  da 
racionalidade instrumental, especialmente no século XX: a natureza está perdendo a aura 
de  generosa  mãe  natureza  e  de  ser  uma  fonte  inesgotável  de  recursos  capaz  de  suprir 
todos os desejos de uso e consumo dos seres humanos; o indivíduo percebe‐se cada vez 

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mais dependente de fatores que lhe são externos e sob o controle de mecanismos que 
escapam  à  sua  capacidade  de  decisão  e  deliberação;  a  cultura  perde  sua  condição  de 
expressão do espírito objetivo e se rende ao processo da multiculturalidade e pluralidade. 
Convém  alertar  que  as  ressignificações  ocorridas  nesses  três  elementos  não  podem  ser 
avaliadas negativamente, pois, mesmo sendo, por vezes, paradoxais, revelam, de modo 
geral, avanços do processo de autonomia e da emancipação humana. Elas fazem parte do 
fenômeno  de  desencantamento  do  mundo  e  do  desenvolvimento  da  racionalidade 
humana.  

  Na  primeira  modernidade,  o  desenvolvimento  da  identidade  era  visto  como  um 
processo linear, sendo a maturidade entendida como um estágio final em que o indivíduo 
considerava‐se pronto e plenamente formado. Depois de certa fase da vida a condição do 
indivíduo  deveria  tornar‐se  irremediavelmente  substancializada  e  tal  constituição,  se 
alterada, era considerado uma patologia.  

  Beck  (2010)  avalia  que  a  noção  de  indivíduo  e  de  individualização  da  primeira 
modernidade fundamenta‐se na visão de um sujeito que, a princípio, se constitui de forma 
autônoma, livre. Pondera, porém, que tal autonomia configurou‐se apenas parcialmente, 
pois tão logo se estabelece uma ordem social estruturada por relações de classe e sob os 
princípios  do  Estado‐nação,  a  ideia  da  individualização  deixa  de  ter  o  caráter  de 
transformação  inicialmente  proposto  e  esta  passa  a  ser  entendida  como  o  processo  de 
adaptação  à  respectiva  classe  social  ou  ao  Estado‐nação.    Cabe  a  cada  indivíduo 
conformar‐se  com  os  tipos  sociais  e  modelos  de  conduta  de  sua  classe  ou  das  normas 
instituídas pelo Estado, imitar, seguir a pauta, não desviar‐se da norma, aculturar‐se. Beck 
reconhece  que  a  modernidade  teve  o  mérito  de  fazer  surgir  uma  concepção  de 
individualização mais flexível e suscetível a uma diversidade de possibilidades de formas 
de  ser,  pois,  mesmo  com  a  integração  do  indivíduo,  a  sua  classe  social  exigiu  uma 
constante renovação e confirmação das condutas adequadas a cada classe. No entanto, é 
somente  na  segunda  modernidade  ou  modernidade  reflexiva  que  a  questão  de 
individualização  se  radicaliza  e  a  exigência  de  readaptação  se  intensifica.  A 
individualização  deixa  de  ser  um  “dado”,  um  fato,  para  tornar‐se  uma  “tarefa”.  A 
individualização se converte na estrutura social da sociedade como tal.  

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A  sociedade  atual  ou  a  “sociedade  no  indivíduo”  produz,  segundo  Beck,  uma 
grande mudança da noção de sujeito e de subjetividade. A concepção de que a identidade 
do sujeito é dependente de uma natureza interior que se opõe a uma ordem exterior, ou 
de uma interioridade que se constrói à medida que o indivíduo toma consciência da sua 
situação de grupo ou classe social a que pertence, se defronta com a concepção de um 
ser humano que é o autor absoluto de si mesmo, um “dios personal”, capaz de decidir e 
estabelecer o seu próprio destino.1  

Habermas  também  identifica  como  conceito  singular  de  individualidade  da 


modernidade  a  noção  do  “eu  como  fonte  espontânea  do  conhecer  e  do  agir”  (1990,  p. 
192) e que tal conceito já não responde ao desafio de um pensamento de natureza pós‐
metafísica.  No  entanto,  em  vez  de  fazer  uma  leitura  do  desenvolvimento  da 
individualização  atual  aos  moldes  de  Beck,  aponta  para  a  necessidade  de  se  pensar  a 
formação  da  identidade  do  indivíduo  na  perspectiva  da  teoria  da  individuação,  que  tem 
como principal tese a concepção de que a instituição do individuo se realiza na interação 
pela  mediação  da  linguagem.  Sob  esta  ótica,  embora  reconheça  sob  alguns  aspectos  a 
validade  da  crítica  de  Beck,  Habermas  opõe‐se  à  visão  fatalista  de  seu  conterrâneo  e 
defende  a  possibilidade  de  um  desenvolvimento  emancipador  da  individualidade  e  da 
sociedade na sociedade do capitalismo tardio ou da segunda modernidade.   

Desenvolvemos a seguir, as posições dos dois autores acerca de individuação e da 
individualização e as implicações que tais concepções podem trazer para o entendimento 
da questão atual da formação do indivíduo na educação contemporânea.  

3‐ A individuação: Habermas e a formação intersubjetiva da identidade  
   Habermas reconhece que a formação da individualidade e da sociedade atual está 
atrelada  ao  desenvolvimento  de  uma  subjetividade  cada  vez  mais  descentrada  e 
autônoma.  Sua  concepção  de  subjetividade  difere,  no  entanto,  da  concepção  moderna 
                                                            
1
 Beck analisa o tema da sacralização da ideia do indivíduo e da sua concepção próxima à ideia de um deus 
capaz de se autoconstituir e se autodeterminar na obra El dios personal (2009). Sua tese nessa obra é a 
de  que  a  concepção  moderna  de  ser  humano  leva  ao  extremo  a  ideia  surgida  nas  religiões, 
especialmente  as  cristãs,  da  destinação  do  homem  à  liberdade,  cuja  consequência  extrema  é  sua 
absoluta autonomia, tornando‐se um “dios personal”. 

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sustentada no paradigma da consciência, entendendo a individuação como um fenômeno 
produzido  na  iteração  com  o  outro  através  da  comunicação.  Segundo  o  autor,  tanto 
individuação quanto socialização são processos mediados pela linguagem e decorrentes 
da interação social.   

A  questão  do  indivíduo  na  sociedade  moderna  tem  sido  preocupação  recorrente 
de Habermas. Seu ponto de partida é a crítica à visão reducionista de subjetividade que 
decorre da transformação da ideia de individualidade ao individualismo burguês, fato que 
acabou  causando  o  surgimento  das  tendências  filosóficas  que  anunciaram  a  morte  do 
sujeito e a vitória do niilismo. Habermas não aceita as leituras niilistas e considera que a 
racionalidade  sistêmica  representa  apenas  uma  dimensão  do  desenvolvimento  da 
sociedade  moderna  e  que  a  ela  se  soma  o  desenvolvimento  da  racionalidade  de  outras 
instâncias, como é o caso da racionalidade comunicativa que se desenvolve no mundo da 
vida.  

   Habermas considera que em Mead encontra‐se exposta a única proposição 
com perspectiva de sucesso para a explanação do processo de formação da subjetividade 
ou  da  individuação  produzido  a  nível  social,  superando  o  modelo  reflexivo  da 
autoconsciência.  Mead  apresenta  “a  única  tentativa  promissora  de  apreender 
conceitualmente  o  conteúdo  pleno  do  significado  da  individualização  social”  (1990,  p. 
185). Isso leva o pensador alemão a realizar um detalhado trabalho de reflexão acerca da 
individuação sustentada por Mead, especialmente em dois textos: “Individuação através 
de  socialização:  sobre  a  teoria  da  subjetividade  de  Georg  Herbert  Mead”  (1990)  e  “El 
cambio  de  paradigma  em  Mead  y  Durkheim:  de  la  actividad  teleológica  a  la  acción 
comunicativa” (1992).  

A  teoria  de  Mead  (1993)  é  a  de  que  a  formação  da  consciência  e  o 


desenvolvimento  da  autonomia  dos  indivíduos  estão  associados  à  interiorização  das 
instâncias  controladoras  do  comportamento  que  migram  do  exterior  para  o  interior.  É, 
inicialmente,  pela  assimilação  das  expectativas  que  as  pessoas  de  referência  têm  em 
relação ao indivíduo que vai sendo constituído um centro orientador capaz de levar cada 
indivíduo a responder por seus atos. 

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Para desenvolver sua teoria, Mead retoma o programa da filosofia da consciência 
abordando‐a, porém, sob a perspectiva da psicologia funcionalista de Dewey, procurando 
esclarecer a genética da constituição da autoconsciência e da reflexibilidade. Para tanto, 
descreve a constituição da individualidade, do Selbst, sustentado‐o em duas instâncias: o 
eu e o me.  Posteriormente, percebendo os limites da visão funcionalista, introduz em sua 
teoria a concepção da formação da subjetividade pela comunicação linguística, passando 
a  considerar,  conforme  escreve  Habermas,  que  “a  forma  elementar  de  auto‐referência 
torna‐se  possível  através  da  interpretação  de  outro  participante  da  interação”  (1990,  p. 
209‐210).  O  aspecto  principal  dessa  mudança  é  a  constatação  que  a  ação  do  indivíduo 
depende de um ato de interpretação, o que só se torna possível pela comunicação.  

Mead  concebe  que  a  individuação  só  pode  ocorrer  em  um  contexto  social  pela 
interação do indivíduo com outros indivíduos, envolvendo sempre uma tríplice relação: (i) 
o  gesto  inicial  de  um  indivíduo;  (ii)  a  reação  de  outro  indivíduo  a  esse  gesto;  (iii)  o 
resultado da ação iniciada pelo primeiro gesto ou complementação do ato social dado. A 
formação  do  Selbst  e  o  desenvolvimento  da  autoconsciência  só  surgem,  portanto,  no 
momento  em  que  ocorre  a  experiência  de  interação  e  o  indivíduo  passa  a  antecipar  as 
reações dos outros, ajustando suas ações de acordo com as reações destes. A interação 
que  se  estabelece  exige  que  cada  indivíduo,  na  relação  com  o  outro,  adote  para  si 
próprio, as atitudes do outro. Esse outro não é alguém singular, mas a comunidade ou o 
grupo  social  a  que  pertence  o  indivíduo.  Trata‐se,  nos  termos  de  Mead,  de  um  “outro 
generalizado” (MEAD, 1993, p. 184). 

  O  conceito  de  outro  generalizado  tem  grande  importância  para  compreensão  da 
teoria do Selbst de Mead, pois ele se apresenta como uma espécie de recurso do controle 
social  introjetado  pelo  indivíduo.    A  atitude  do  outro  generalizado  reflete  a  formulação 
abstrata  da  comunidade  ou  sociedade  a  qual  pertence  o  indivíduo  e  que  proporciona  a 
esse  sua  unidade  de  pessoa.  À  medida  que  o  outro  generalizado  é  introjetado,  o  eu 
começa a reagir e essa atitude torna o “eu” (Selbs) uma instância reflexiva. Para Mead, é 
essa capacidade de reagir, de tomar posição diante do outro, que possibilita, em última 
instância,  o  surgimento  da  pessoa,  a  individuação.  A  autorreflexão  só  se  torna  possível 
diante da existência desse substrato denominado “me”, que representa a facticidade de 

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uma forma de vida historicamente instituída. É do ato de posicionar‐se diante da vida que 
tenho e da vida que quero ter que emerge a minha individualidade.  

Pelo  exposto,  percebemos  que  o  desenvolvimento  da  subjetividade  em  Mead 


decorre sempre do confronto produzido no meio social pelo encontro de um “outro eu” 
– o eu generalizado – e o “eu individualizado”. A individuação realiza‐se, portanto, como 
uma  exigência  da  evolução  nas  interações  sociais  e  da  concepção  de  autonomia 
estabelecida socialmente.  

Habermas considera que a teoria de Mead sobre a individuação e sua concepção 
sobre a formação da autonomia representam um grande avanço para o entendimento do 
processo  de  formação  da  subjetividade  humana.    Considera,  no  entanto,  que  Mead  só 
descreve  vagamente  o  processso  evolutivo  da  sociedade  tendo  por  referência  as 
interações  mediadas  simbolicamente.  Ele  não  completou  sua  análise  sobre  a  função 
normativa da interação que se estabelece através da ação comunicativa. Daí a queixa de 
Habermas:  “É  curioso  que  Mead  não  tenha  feito  nenhum  esforço  para  explicar  como 
pode  desenvolver‐se  este  ‘organismo  social’,  normativamente  integrado,  a  partir  das 
formas  de  socialização  da  interação  mediada  simbolicamente”  (1992,  p.  65).  Essa  é  a 
tarefa  que  ele  se  põe  a  desenvolver  na  Teoria  do  agir  comunicativo  e  em  outras  obras 
posteriores.   

A  tese  que  Habermas  procura  desenvolver  é  a  de  que  tanto  o  conhecimento 


humano quanto a formação da subjetividade ocorrem pela ação linguístico‐comunicativa. 
A  natureza  da  ação  humana  é  linguística,  isto  é,  “nosso  saber  tem  uma  estrutura 
proposicional” e nossa racionalidade tem a ver “com a forma com que os sujeitos capazes 
de  linguagem  e  ação  fazem  uso  dos  conhecimentos”  (HABERMAS,  1992,  p.  24).  É, 
portanto, o ato da ação performativa que se realiza pela linguagem que traduz a natureza 
efetiva da ação humana racional. 

Habermas chega à constatção de que a racionalidade comunicativa contém em si 
mesma um telos esclarecedor e emancipador, que torna possível a manutenção do poder 
transformador da sociedade e dos indivíduos. No telos da linguagem pragmática encontra 
elementos capazes de restabelecer o poder da razão de normatizar e dar validade ao agir 

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humano. Como falantes, os seres humanos participam de um entendimento racional e, no 
uso pragmático da linguagem, estabelecem entendimentos racionais que constituem as 
estruturas do mundo da vida. 

Na teoria comunicativa o ato de fala assume papel fundamental na constituição da 
individualidade e da sociedade. Ao estabelecer atos de fala, o indivíduo se dispõe a buscar 
não apenas o entendimento, mas assume a tarefa de coordenar sua ação, orientando‐se 
por  normas  intersubjetivamente  estabelecidas.  Através  da  interação  simbolicamente 
instituida, o indivíduo, além do entendimento, busca regular sua ação na vida social.  

O enfoque pragmático da teoria habermasiana apresenta a possibilidade de uma 
nova abordagem das ações sociais, as quais podem ser, a partir de agora, analisadas da 
mesma  forma  que  as  relações  internas  entre  símbolos.  A  projeção  de  uma  comunidade 
comunicativa  encontra  seu  apoio  na  estrutura  da  linguagem  constituida  de  regras  pré‐
teóricas de sujeitos que falam: “Os pressupostos pragmáticos gerais do agir comunicativo 
constituem  recursos  semânticos  de  onde  as  sociedades  históricas  extraem  e  articulam, 
cada  uma  a  seu  modo,  representações  do  espírito  e  da  alma,  concepções  de  pessoas, 
conceitos de ação, consciência moral, etc.” (HABERMAS, 2010, p. 253). 

As potencialidades e as limitações humanas nos campos do pensar e do agir são 
dependentes,  portanto,  da  linguagem  enquanto  um  mecanismo  de  atuação  do  homem 
no  mundo.  A  linguagem  não  é  somente  uma  garantia  para  o  estabelecimento  dos 
entendimentos  humanos,  mas  uma  força  geradora  capaz  de  superar  os  conflitos  e  os 
fracassos que a humanidade pode produzir. Escrever o autor: 

Somente  no  fracasso  se  mostra  o  medium  da  comunicação  linguística 


como camada de uma comunhão sem a qual não podemos existir como 
indivíduos.  Nós  nos  encontramos  preliminarmente  no  elemento  da 
linguagem. Somente os que falam podem calar. Nós podemos nos isolar 
porque somos ligados, naturalmente, com os outros” (HABERMAS, 2007, 
p. 22). 
Ao  realizar  a  revisão  do  conceito  de  racionalidade  e  desvelar  o  atrelamento  da 
razão  ao  agir  comunicativo,  Habermas  contribui  sobremaneira  para  o  desenvolvimento 
de uma concepção ampliada da interação humana vislumbrada por Mead, destacando a 
possibilidade  da  fundamentação  racional  dos  conhecimentos  e  das  ações  através  de 
acordos racionalmente motivados. Sua luta contra o hiato entre ser e dever‐ser, entre o 

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princípio  ideal  e  a  situação  real,  entre  fatos  do  mundo  e  valores  morais,  leva‐o  a 
restabelecer a unidade entre o processo cognitivo e o processo regulativo na formação 
do  indivíduo  e  da  sociedade.  Isso  assegura  a  possibilidade  do  desenvolvimento  da 
autonomia individual e da formação social  democrática e participativa. 

4‐  A  individualização  em  Beck:  capacidade  de  inclusão  e  a  coragem  de 


assumir riscos 
  O  tema  da  individualização  é  central  na  teoria  de  desenvolvimento  da  sociedade 
reflexiva  ou  da  segunda  modernidade,  conforme  denominações  adotadas  por  Beck.  No 
entanto, essa importância nem sempre foi muito destacada pelos críticos e analistas da 
obra do pensador alemão. Percebendo esse fato, ele mesmo destaca a centralidade dessa 
questão  ao  dedicar  toda  uma  obra  para  tratar  do  assunto,  mesmo já  tendo  abordado  a 
questão em inúmeras passagens de sua vasta produção.   

  Beck  (2000;  2002;  2010)  define  a  modernidade  em  duas  fases:  a  primeira  ele 
caracteriza  como  uma  sociedade  estatal  e  nacional,  de  estruturas  coletivas,  com  pleno 
emprego,  rápida  industrialização  e  um  aproveitamento  da  natureza  não  “visível”.  Essa 
primeira modernidade tem profundas raízes históricas e afirmou‐se na sociedade através 
de  várias  revoluções  políticas  e  industriais.  Na  segunda  modernidade,  a  atual,  que  ele 
também  denomina  de  modernidade  reflexiva,  estão  sendo  colocadas  em  questão  os 
problemas  fundamentais  e  as  limitações  da  primeira  modernidade,  dentre  as  quais  ele 
destaca  os  cinco  principais:  a  globalização,  a  individualização,  o  desemprego  e  o 
subemprego,  a  revolução  dos  gêneros  e  os  riscos  globais  da  crise  ecológica  e  da 
turbulência  dos  mercados  financeiros.  Enfrentar  esses  problemas  e  buscar  alternativas 
diante das ameaças que elas representam são os desafios de uma segunda modernidade 
e  isso  implica  o  desenvolvimento  de  novas  categorias  analíticas  e  a    substituição  de 
conceitos sociológicas tradicionais pelo desenvolvimento de categorias que considerem a 
“individualização”  como  categoria  central  da  constituição  e  da  forma  de 
desenvolvimento da sociedade contemporânea.2   

                                                            
2
 Beck desenvolve sua proposta de forma mais específica em dois textos: “Perspectivas y controvérsias de 

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Educação e identidade: individuação e individualização na sociedade contemporânea 
 Eldon Henrique Mühl 

  Considerando  o  objetivo  deste  texto,  vamos  nos  ater  de  forma  mais  pontual  no 
tema da individualização. Para Beck, a individualização é um processo social que assume 
feições  muito  particularizadas  na  modernidade  reflexiva.  Esclarece  que  a  modernização 
da  civilização  industrial  conduziu  a  diversas  formações  institucionais:  o  domínio  do 
Estado, a concentração de capital, o entrelaçamento de divisão do trabalho e relações de 
mercado cada vez mais sofisticadas, a mobilidade social e o consumo de massa, e, ainda, 
a  individualização  composta  de  três  dimensões:  (i)  dissolução  de  elos  e  formas  sociais 
historicamente  prescritas  de  autoridade  e  de  dominação  e  de  relações  de  satisfação 
tradicionais  (“liberdade”);  (ii)  perda  de  seguranças  tradicionais  em  vista  do 
conhecimento,  da  fé  e  das  normas  vigentes  (dimensão  da  desmistificação);  (iii)  novas 
formas de inserção social (dimensão da reintegração e controle). 

  A  individualização  vivida  na  modernidade  reflexiva  dissolve  essas  referências  da 


sociedade  industrial,  na  medida  em  que  as  velhas  fórmulas  de  convivência  são 
desagregadas e, as tradicionais instituições que lhe davam sustentação, implodidas. Com 
isso,  abre‐se  espaço  para  ação  do  indivíduo,  que,  já  não  possuindo  referenciais  seguros 
sustentados  na  tradição  e  numa  ordem  social  linear,  tem  a  possibilidade  e  a 
responsabilidade de estabelecer sua própria biografia. “Toda metafísica y transcendência, 
toda  necesidad  y  certidumbres  están  siendo  sustituidas  por  la  habilidade  personal”  
(BECK;  BECK‐GERNSHEIM,  2003,  p.  38).  As  máximas  dessa  nova  individualização  são: 
“faça você mesmo”, assuma sua vida e escreva sua própria biografia.  

A  compreensão  de  Beck;Beck‐Bernsheim  sobre  a  individualização  expõe  o 


processo atual que está determinando, de forma compulsória, a formação da identidade 
individual. Sobre esse caráter compulsório, escrevem: 

Vista  de  esta  manera,  la  individualización  es  una  condición  social  no 
alcanzable por libre decisión de los indivíduos. Adaptando la famosa frase 
de  Jean‐Paul  Sartre,  la  gente  está  condenada  a  individualización.  La 
individualización  es  uma  compulsión,  aunque  paradójica,  a  crear  y  
modelar no sólo la própria  biografia, sino también los lazos y redes que 
la rodean, y a hacerlo entre preferencias cambiantes y en las sucessivas 
fases de la vida mientras nos vamos adaptando de maneira interminable 

                                                                                                                                                                                          
una sociologia orientada al individuo” (in: 2003, p. 54‐61) e “La segunda modernidad” (in: 2002, p 7‐63). 
No entanto, a temática é recorrente em diversos outros textos do autor.   

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Educação e identidade: individuação e individualização na sociedade contemporânea 
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a las condiciones del mercado laboral, al sistema educativo, al Estado del 
bienestar, etcétera (BECK; BECK‐BERNSHEIM,  2003, p. 42). 
 
  O  caráter  compulsório  da  individualização  pode  parecer  inicialmente  paradoxal, 
pois as críticas atuais apontam para a crescente dominação do indivíduo, tanto do ponto 
de vista da manipulação sistêmica, quanto da imposição midiática e tecnológica. Por isso, 
a  questão  da  individualização  compulsória  precisa  ser  bem  esclarecida.  Beck  não  é 
ingênuo e percebe o quadro de dominação hoje reinante, alertando para a diferença que 
sua  concepção  de  individualização  tem  do  conceito  de  individualização  proposto  pelos 
pensadores liberais e pelos defensores da globalização. A individualização é característica 
diferenciadora  da  sociedade  reflexiva,  pois,  em  nenhum  momento  anterior,  o  indivíduo 
teve  um  papel  tão  central  como  na  segunda  modernidade.  Ela  não  decorre,  a  priori,  de 
uma decisão subjetiva, mas da própria dinâmica que se estabelece socialmente. 

Procurando esclarecer sua posição, Beck;Beck‐Bernsheim desenvolvem uma teoria 
da individualização que definem nos seguintes termos:  

La teoria de la individualización participa en el debate politico de dos maneras. 
Em primer lugar, elaborando um marco de referencia que permite que el área 
del sujeto – los conflitos entre individuos y sociedade – sea analizada desde el 
punto de vista de los individuos. Em segundo lugar, mostrando que, a medida 
que  se  va  desarrolando  la  sociedad  moderna,  cada  vez  es  más  cuestionable 
afirmar que existen unidades coletivas de significado y de acción (2003, p 58). 

  A  passagem  acima  apresenta  dois  aspectos  importantes  da  teoria  dos  dois 
pensadores: o primeiro, que indica que o atual processo social não só permite, mas exige 
uma  contribuição  ativa  do  individuo  no  estabelecimento  de  seu  destino.  Em  outros 
termos, o aumento da gama de opções e a necessidade cada vez maior de fazer escolhas 
diante  da  diversidade  de  possibilidades,  exige  a  participação  efetiva  de  cada  indivíduo, 
tanto  no  sentido  de  saber  escolher,  como  no  de  coordenar  suas  ações  e  de  assumir  a 
responsabilidade pelas escolhas feitas. Nesse processo, o indivíduo passa a ser a unidade 
referencial  do  social.  O  segundo  aspecto  revela  que  progressivamente  as  instâncias  e 
instituições  tradicionais  vêm  perdendo  poder  diante  do  aumento  da  individualização.  O 
poder  da  tradição  e  a  força  que  muitas  instituições  tinham  no  estabelecimento  da 
organização  social,  perdem  seu  poder  e  significado  diante  da  fluidez  da  sociedade 
emergente.  Trata‐se,  no  entanto,  de  um  processo  ambivalente,  pois,  ao  libertar  o 

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indivíduo  de  padrões  e  referências  tradicionais  e  lançá‐lo  a  novas  liberdades,  o  expõe  a 


riscos  que  decorrem  da  derrocada  dessas  mesmas  instituições.  Enquanto  processo,  ele 
amplia e, ao mesmo tempo, limita as possibilidades de ação do indivíduo, o que pode ser 
compreendido e experimentado como fardo e, concomitantemente, como oportunidade 
ou como possibilidade de autonomia e emancipação do sujeito.  

  Beck;Beck‐Bernsheim  denominam  a  individualização  que  ocorre  na  segunda 


modernidade  de  “individualismo  institucionalizado”  (2003,  p.  27  e  s),  o  que  representa 
não apenas uma mudança na percepção do indivíduo, mas o surgimento de instituições 
essenciais  na  sociedade  moderna  que  exigem  o  desenvolvimento  de  autobiografias  e  o 
estabelecimento  de  novos  postulados  coletivos.  A  individualização  não  depende, 
portanto,  de  uma  escolha  ou  opção  individual,  mas  do  surgimento  de  relações  que  se 
instituem  socialmente  e  das  exigências  do  próprio  desenvolvimento  social,  econômico, 
cultural e político da nova modernidade.  

  A individualização assume, desta forma, uma perspectiva radical de um processo 
no  qual  cada  um  se  torna  a  unidade  de  reprodução  vital  do  social (BECK,  1986,  p.  209). 
Mais  que  nascer,  temos  que  fazer  algo,  temos  que  ser  ativos  e  criar  nossas  próprias 
possibilidades.  Em  outros  termos,  “tenemos  que  ganhar,  tenemos  que  saber 
autoafirmarnos em la competência por unos recursos limitados, y ello no de una vez por 
todas, sino dia a dia” (BECK; BECK‐GERNSHEIM, 2003, p. 40).   

Beck pondera ainda que o custo dessa crescente exigência de individualização vai 
implicar  a  perda  de  certas  garantias  e  da  segurança  que  havia  no  passado.  Uma  dessas 
perdas é o fim das rotinas e a redução da segurança que a vida cotidiana e seus rituais de 
repetição  traziam.  Existe  uma  vasta  bibliografia  que  mostra  o  quanto  os  nossos 
pensamentos, sentimento e ações, prefigurados e internalizados de forma pré‐consciente 
ou  inconsciente,  tornam  a  vida  mais  leve,  mais  segura,  regular,  sem  sobressaltos.  A 
destruição  da  rotina  rompe  com  essa  estabilidade  e  a  vida  perde  a  qualidade  da 
obviedade.  O  desafio  de  fazer  permanentemente  novas  escolhas,  de  ter  que  se  decidir 
sempre de novo, leva o indivíduo a ter uma vida mais instável e, em consequência, mais 
desgastante, tensa, estressante, permeada de crises. 

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Para  Beck,  na  sociedade  atual  está‐se  levando  ao  extremo  a  ideia  da 
responsabilidade  do  indivíduo  pela  sua  situação  vivencial  e  pelas  formas  de  vida  que 
assume. As exigências estão radicalizando a ideia moderna de um sujeito que deve saber 
atuar  por  conta  própria,  desvinciliar‐se  de  velhas  tradições  e  estar  aberto  para  assumir 
novos  desafios  e  novas  responsabilidades.  O  indivíduo,  cada  vez  mais,  deve  tornar‐se  o 
agente de sua própria identidade, definir sua vida de forma autônoma, rompendo com as 
instituições  e  a  tradição  que  impedem  suas  opções  atuais.  A  segunda  modernidade  é, 
portanto,  a  modernidade  da  “cultura  do  eu”,  na  qual  a  aventura  de  uma  vida  própria, 
autônoma, é levada ao extremo.  

Na atual sociedade tudo se torna questão de opção, de escolha: a vida, a morte, o 
gênero, a religião, o casamento, o parentesco, os vínculos sociais, as formas de vida, os 
valores  e o sentido  da existência.  Tal  processo  traz  como  consequência  a  dissolução  de 
formas de vida prévias e a fragilização de categorias de classe, estamentos, papel sexual, 
família,  vizinhança,  reduzindo  condições  gerais  de  orientação  a  partir  de  modelos  já 
estabelecidos e produzindo a implosão de biografias normais nos limites de um país, de 
uma comunidade, de uma família ou de um grupo. Traz também, em última instância, a 
framentação sobre o entendimento acerca do indivíduo e sua formação: “Mesmo o self, 
já  não  é  apenas  o  self  inequívoco,  fragmentou‐se  em  discursos  contraditórios  do  self” 
(BECK,  in  BECK:  GIDDENS;  LASH,  2000,  p.  8).  A  consequência  dessa  situação  é  que  os 
indivíduos  se  vêem  progressivamente  metidos  em  seus  próprios  labirintos  de 
insegurança.   

Para  ilustrar  esse  processo,  Beck  analisa  as  mudanças  que  estão  ocorrendo  nas 
relações  de  homens  e  mulheres,  de  adultos  e  crianças,  de  patrões  e  empregados,  de 
trabalhadores e suas organizações sindicais. A mudança do papel da mulher na família e 
na sociedade, por exemplo, está transformando a estrura da instituição familar, levando 
ao  rompimento  das  formas  tradicionais  de  exploração  do  trabalho  feminino  e  exigindo 
uma  organização  familair  mais  flexível,  dinâmica,  com  formas  de  estruturação  que 
precisam  ser  permanentemente  negociadas.  A  identidade  dos  trabalhadores  já  não  se 
configura  pelo  seu  pertencimento  a  uma  classe  operária  em  confronto  com  uma  classe 
detentora  dos  meios  de  produção.  Cada  vez  mais  os  trabalhadores  são  desafiados  a 

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desenvolverem  uma  identidade  autônoma,  autoempreendedora,  descrustada  de 


sindicato  e  da  organização  de  classe.  A  criança  já  não  pode  ser  tratada  como  um  ser 
submetido  ao  domínio  do  adulto,  mas  deve  ser  considerada  uma  individualidade  em  si, 
com cracterísticas e atribuições próprias dessa fase da vida.   

  A  individualização  que  se  estabelece  na  atualidade  não  implica  o  surgimento  de 
uma  sociedade  livre  de  conflitos,  humanamente  digna,  virtuosa  e  racional.  A 
modernidade  reflexiva  institui  a  “sociedade  de  riscos”,  que  apresenta  uma  mistura 
altamente  perigosa,  composta  de  inseguranças  e  novas  possibilidades,  riscos  e  novas 
chances,  exigências  e  novas  liberdades.  A  sociedade  de  riscos  é  uma  sociedade  de 
ambivalências,  contradições  e  conflitos,  não  somente  pelo  aumento  das  ameaças 
decorrentes  do  modelo  de  desenvolvimento  econômico  e  científico  vigente,  mas  em 
consequência  do  próprio  processo  de  individualização,  que  pode  acabar  produzindo 
maiores desigualdades sociais. A individualização, portanto, ao contrário do pensavam os 
modernos, não produz necessariamente a maior integração social, podendo ser causa de 
aumento  dos  conflitos  sociais.    Ou  seja,  “cuantas  mas  personas  estan  individualizadas, 
mas  consecuencias  desindividualizadoras  producen  para  los  demas”  (BECK;  BECK‐
GERNSHEIM, 2003, p. 34).  

Isso não significa, porém, que na segunda modernidade desapareçam as questões 
éticas que envolvem a convivência com os outros indivíduos. Nela, a ética assume novos 
contornos,  pois  as  modificações  surgidas  implicam  o  aparecimento  de  uma  visão  de 
altruismo diferente daquela presente na primeira modernidade. Nesta última, o altruismo 
era decorrente de um sentimento de amor cultivado pelo sujeito em relação ao outro. A 
individualidade  era  formada  altruisticamente  pelo  cultivo  de  um  sentimento  de 
consideração  ao  outro,  alimentada  pela  religião  e  por  instituições  tradicioanis,  como  a 
família, as organizações comunitárias e as organizações filantrópicas. Já na atualidade, o 
altruismo vai decorrer da exigência social da própria individualização, uma vez que tanto 
o  êxito  pessoal  como  a  expansão  da  liberdade  individual  são  dependentes  da 
sensibilidade  social  e  da  capacidade  de  interagir  com  os  outros.  Nos  termos  de  Beck; 
Beck‐Gernsheim:  

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Las culturas individualizadas dasarrollan sin ninguna duda su própria ética 
altruista.  Ser  individuo  no  excluye  preocuparse  de  los  demás.  De  echo, 
vivir en una cultura sumamente individualizada significa que tenemos que 
ser  socialmente  sensíbles  y  capaces  de  relacionarnos  con  los  demás,  y 
obligarnos a nosotros mismos para poder gestionar y organizar nuestra 
vida  cotidiana.  En  el  viejo  sistema  de  valores,  el  ego  siempre  tenía  que 
subordinarse  a  las  pautas  de  lo  coletivo.  La  nueva  ética  establecerá  un 
sentido del “nosotros” que se parezca a un individualismo cooperativo o 
altruista (2003, p. 353). 
Cabe  destacar  que  tal  ética  não  surge  nem  de  uma  imposição  externa,  de  uma 
tradição ou de algum regramento instituido por normas do Estado. Ela emerge da prática 
cotidiana  e  das  necessidades  que  nascem  das  relações  pessoais.  Viver  para  os  demais, 
que  no  passado  era  considerada  uma  contradição,  passa  a  ser  entendido  como  uma 
exigência ética do cotidiano que se globaliza, como exigência da própria individualização. 
Beck; Beck‐Gernsheim destacam essa visão, afirmando: 

Es en los experimentos cotidianos con la vida donde descubrimos cosas 
sobre  una  nueva  ética  que  combinen  la  liberdad  personal  con  el 
compromisso con los demás, y hasta con el compromiso sobre una base 
transnacional.  Creo  que  estamos  viviendo  en  un  mundo  sumamente 
moral  a  pesar  de  lo  que  tratan  de  contarnos  los  pesimistas  culturales. 
Pero  no es un mundo de  obligaciones y valores fijos. Antes bien, es um 
mundo  que  está  tratando  de  descubrir  la  manera  de  combinar  la 
individualización con las obligaciones para con los demás, incluso a escala 
mundial (2003, p. 353‐354). 
O  dever  para  consigo  mesmo  não  dispensa  o  dever  para  com  os  demais.  O  que 
diferencia a moral da modernidade reflexiva é que a esta deixa de ter obrigatoriamente 
um  caráter  social,  vinculado  a  uma  determinada  ordem  social  e  se  cosntitui  no 
enfrentamento com o outro na busca da realização do próprio indivíduo. Ela deixa de ter 
o caráter prescritivo e torna‐se uma moral que se cosntitui no desenvolvimento de novas 
relações. 

5‐ Conclusão   
  As contribuições de Beck e de Habermas acerca do processo de individualização e 
da socialização apresentam‐se desafiadoras e podem contribuir para o entendimento de 
algumas questões que envolvem a educação atual. A formação da identidade individual é 
uma  das  principais  tarefas  da  educação  e  a  compreensão  da  forma  de  como  ela  se 

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desenvolve  é  indispensável  para  que  a  escola  e  os  professores  possam  realizar  um 
processo  educativo  adequado  e  eficaz.  Ademais,  um  entendimento  mais  apropriado  do 
processo  “compulsório”  de  individualização  e  as  consequências  que  isso  traz  ao 
desenvolvimento das identidades dos educandos podem auxiliar no trabalho pedagógico 
de minimizar alguns problemas, tais como o hedonismo, a competição, a indiferença ao 
outro,  a  discriminação,  a  fragmentação  social  e  o  crescimento  das  diferenças  sociais, 
culturais e econômicas. 

  Cabe  destacar,  inicialmente,  que  o  fato  de  nenhum  dos  dois  autores  ter‐se 
ocupado especificamente do tema da educação, não impede que suas reflexões possam 
servir  como  contribuições  produtivas  para  repensar  a  educação  contemporânea  e,  de 
modo especial, a escola, considerando as contribuições que trazem para o entendimento 
do  processo  de  individuação  no  contexto  complexo  e  conflituoso  em  que  vivemos.  A 
escola que surge na modernidade com o papel de contribuir na formação de indivíduos 
para  uma  sociedade  esclarecida  e  democrática,  encontra‐se,  nesse  momento,  diante  de 
inúmeras dificuldades que precisam ser enfrentadas. Um dos aspectos consiste em avaliar 
a  capacidade  desta  de  assumir  um  novo  papel  e  de  reformular  sua  estrutura 
organizacional  em  função  do  processo  de  individualização  em  marcha  na  sociedade 
globalizada. De outra parte, cabe refletir sobre o modo de ser atual da escola e avaliar se 
a situação em que se apresenta não é decorrente da manutenção de uma forma de agir 
que  já  não  corresponde  e  responde  às  exigências  da  sociedade  complexa,  ambivalente, 
concorrencial, dispersiva, heterogênica e caótica que aí está.   

  As  reflexões  dos  autores  sobre  a  derrocada  das  instituições  tradicionais  e  as 
mudanças que são produzidas de forma não planejada e sem controle são contribuições 
que ajudam a entender alguns dos problemas da escola atual, como é o caso da crise do 
sentido do saber e da autoridade docente.  

  Beck  traz  um  importante  alerta sobre  a  insuficiência  das  abordagens  tradicionais 


de  individualização,  cujas  teorias  atuam  ainda  com  categorias  “zumbis”3,  considerando 

                                                            
3
 A expressão categorias zumbis é utilizada por Beck para definir as categorias “vivas‐muertas que rondam 
por  nuestras  cabezas  y  pueblan  nuestra  vision  de  realidades  que  no  dejan  de  desaparecer.  (...)  Las 
categorias  zumbis  proceden  del  horizonte  vivencial  del  sieglo  XIX,  de  la  anteriormente  mencionada 

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que as concepções de indivíduo ou de subjetividade desenvolvidas na modernidade e que 
têm  servido  de  referência  nas  concepções  pedagógicas  das  escolas  precisam  sofrer 
revisões  diante  dos  processos  em  desenvolvimento  na  atualidade.    A  radicalização  da 
ideia de autonomia, no sentido da ampliação das oportunidades de escolha do indivíduo, 
a  revisão  dos  conceitos  sociológicos  sobre  as  mais  diferentes  instâncias  e  instituições 
sociais,  são  importante  indicativo  para  a  revisão  dos  conceitos  dos  fundamentos  da 
educação.  As  leituras  realizadas  por  categorias  já  superadas  do  fenômeno  educativo 
limitam a compreensão do processo efetivo de formação da individualidade na atualidade 
e  da  realidade  social,  política  e  cultural  em  desenvolvimento.  Por  isso,  as  tradicionais 
categorias de classe, família, gênero, etnia, dentre outras tantas, precisam ser revistas e 
substituídas por categorias analíticas mais adequadas aos tempos da sociedade complexa 
atual.  De  outra  parte,  suas  observações  sobre  as  dependências  que  podem  ocorrer  na 
individualização diante dos mecanismos que são criados institucionalmente e pelos meios 
midiáticos,  são  referenciais  importantes  para  a  leitura  do  mundo  da  modernidade 
reflexiva. As novas exigências da sociedade, que se transforma rapidamente, e a liquidez 
dos modos de ser das individualidades são desafios para o campo educacional. A ausência 
de  uma  subjetividade  fixa  e  de  um  sentido  de  existência  minimamente  estável  torna  o 
desafio  da  educação  cada  vez  mais  difícil  e  complexo.  Em  síntese,  educar  em  uma 
sociedade  de  risco  e  em  um  mundo  fora  de  controle  é  uma  tarefa  hercúlea  que  exige 
muita competência de parte da escola e dos seus educadores. Um desses difíceis desafios 
é a construção de uma nova concepção sobre a individualização com base em categorias 
que já não se sustentam nas tradicionais categorias sociológicas e filosóficas.  

  Entendemos que é diante desse desafio que a contribuição de Habermas sobre o 
processo  da  individuação  torna‐se  fundamental,  tanto  na  complementação  do 
diagnóstico sobre os fatores que implicam a crise da sociedade contemporânea, como na 
manutenção  de  uma  perspectiva  emancipadora  da  sociedade  e  da  educação. 
Consideramos  que,  ao  atribuir  um  papel  central  à  interação  comunicativa,  Habermas 
mantém o nexo com um processo de racionalidade que assegura a possibilidade efetiva 

                                                                                                                                                                                          
primeira modernidad, y hacen que nos volvamos ciegos, al proceder de maneira analítica‐aprioristica, a 
la experiência y dinâmica de la segunda modernidad” (BECK, 2002, p. 14).  

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da  ação  intersubjetiva  e  da  condução  consciente  das  mudanças  necessárias  para  a 
formação de um mundo mais justo e solidário.  

  Além de assegurar a possibilidade da solução dos problemas através da interação 
comunicativa  e,  com  isso,  alimentar  a  esperança  da  formação  de  uma  sociedade 
cosmopolita,  ele  evita  que  as  mudanças  sociais  e  os  comportamentos  dos  indivíduos 
dependam  apenas  de  um  vago  sentimento  de  medo  diante  dos  riscos  que  o 
desenvolvimento  da  modernidade  produz.  Afinal,  é  através  da  comunicação  que 
estabelecemos relações com o mundo e com este podemos adotar uma relação reflexiva. 
E  é  essa  relação  reflexiva  que  permite  tanto  o  conhecimento  do  mundo  quanto  a  sua 
construção ou reconstrução, nas suas dimensões social e subjetiva. 

 
 
6‐ Referências bibliográficas 
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2 ed. São Paulo: Ed. 34, 
2010.  

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cosmopolitismo”. Barcelona: Paidós, 2009. 

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institucionalizado e suas consecuencias sociales y políticas. Madrid: Paidós, 2003. 

___________. Libertad o capitalismo: conversaciones com Johannes Willms. Barcelona: 
Paidós, 2002. 

___________; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e 
estética no mundo moderno. Oieras (PT): Celta Editora, 2000. 

GUARDINI, Romano. O fim da idade moderna. Lisboa: Edições 70, 2000. 

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esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, nº 18, 1987. 

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1989. 

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X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014.                                                                             
 
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