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REVISTA LITTERIS No 2 ISSN: 1982-7429 www.revistaliteris.com.

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Maio 2009

Ouso dedicar-lhe a serpente inteira:


poema em prosa como modernidade e crise

BREUNIG, Tiago Hermano1


(UFSC)

RESUMO

O presente trabalho pretende analisar a alegoria da serpente empregada por Baudelaire


como representação do poema em prosa. Para tanto, o ocultismo oculto na alegoria da
serpente permite interpretar o conceito de poema em prosa como signo de crise da
modernidade. A partir da contraditoriedade que o caracteriza pelo encontro de aspectos
contrapostos, o poema em prosa representa a problematização da unidade das categorias
que constituem o seu conceito.

Palavras-chave: Baudelaire; poema em prosa; serpente; ocultismo.

ABSTRACT

This paper analyzes the Baudelaire’s serpent allegory as a representation of the prose poem.
Therefore, the occultism in the serpent allegory permits to interpret the prose poem concept
as a sign of the modernity crisis. From the contradictoriety that characterizes it through the
match of opposed aspects, the prose poem represents the questioning of the unit of
categories that constitute its concept.

Keywords: Baudelaire; prose poem; serpent; occultism.

1
possui graduação em Letras - Português pela Universidade Federal de Santa Catarina (2004) e mestrado em Literatura pela
Universidade Federal de Santa Catarina (2008) . Tem experiência na área de Letras.
Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/4555361609634168

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A atual retomada do poema em prosa como signo de modernidade permite


compreender o mesmo por meio de categorias que o identificam a uma modernidade
concebida a partir de Charles Baudelaire. Com a concepção da arte como mercadoria, a
eliminação das fronteiras entre o poema e a prosa corresponde a um modo de consumo.
Maria Victoria Torremocha (1999) compreende o poema em prosa como uma modernidade
configurada por uma crise que aponta para o conceito derridiano de indecidibilidade. O
poema em prosa pressupõe uma multiplicidade de sentidos produzida pela anulação do
referente decorrente do rompimento da noção de representação, de forma que a linguagem
se funda sobre si mesma. A crise da linguagem e do referente nega, portanto, o conceito de
representação para apresentar a linguagem em seu processo de auto-referencialidade.
Segundo Torremocha (1999), o poema em prosa representa a negação das categorias
por meio da união de aspectos contrapostos que se manifestam na prosa e na poesia. O que
justifica a poeticidade do poema em prosa converge, para a autora, com o misticismo
associado com a evocação da palavra, com a unidade formal unida com a unidade espiritual
e com o fundo subjetivo. Ao surgir em um momento de crise dos valores, o poema em
prosa afeta as hierarquias da Literatura, de modo que a contraditoriedade que subverte as
convenções se caracteriza por um modo de enunciação fundamentado no encontro de
aspectos contrapostos que concedem ao poema em prosa uma estrutura circular.
A dedicatória ao editor Arsène Houssaye, escrita por Baudelaire (1996, p. 23) em
seus Pequenos poemas em prosa, de 1862, interessa na medida em que funda a noção de
poema em prosa:

Meu caro amigo, estou lhe remetendo um pequeno trabalho do qual não se
poderia dizer sem injustiça que não tem pé nem cabeça, já que, pelo
contrário, tudo nele é ao mesmo tempo cabeça e pé, alternada e
reciprocamente (...) Lacere-a em diversos fragmentos, e verá que cada um
deles pode existir à parte. Na esperança de que algumas destas postas
tenham vida suficiente para agradá-lo e diverti-lo, ouso dedicar-lhe a
serpente inteira.

Baudelaire concebe o poema em prosa a partir de uma percepção da literatura como


microcosmo do universo, como analogia do movimento da natureza. Torremocha (1999)

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observa que Bertrand deriva sua inspiração de um princípio antitético: a união de


contrários, enquanto a unidade do conjunto implica em continuidade e circularidade.
Assim, Baudelaire, influenciado por Bertrand, concebe os seus poemas em prosa como uma
totalidade, cuja ordem interna obedece a uma harmonia entre os textos do conjunto, de
modo que cada um pode servir tanto de princípio quanto de fim, o que justifica a alegoria
da serpente para definir o conjunto dos seus poemas em prosa e a autonomia de cada poema
enquanto fragmento de uma unidade.
As categorias pelas quais se compreende atualmente o poema em prosa e outras
breve e antecipadamente suscitadas por Torremocha permitem interpretar a alegoria da
serpente empregada por Baudelaire como representação do poema em prosa. Não espanta
que a serpente mordendo a cauda conste na dedicatória dos poemas em prosa, associados a
um momento de crise, uma vez que Papus (1997, p. 14) observa que “escreveu-se muitas
vezes que o ocultismo floresce nas épocas de perturbação”. A serpente que emerge do
ocultismo se denomina, entre outras variantes, oroboro2, o que, ao possibilitar ler nos dois
sentidos, constitui um caso de palindromia. Nesse ou noutro sentido, a repetição da
primeira letra indica “o círculo” e permite “compreender que a palavra está invertida”,
como escreve Éliphas Lévi (1997b, p. 101) a respeito dos processos da Cabala, a gnose dos
hebreus, cujo interesse pela materialidade da escrita remonta à Alta Antiguidade, com a
particularidade dessa variante apresentar nas extremidades da palavra o sinal que representa
em si mesmo o círculo.

A cabeça

A respeito da dedicatória dos poemas em prosa de Baudelaire, Jacques Derrida, em


Dar el tiempo. 1. La moneda falsa, observa que a questão do dom a atravessa, uma vez que
constitui um movimento dativo ou doador. O texto mesmo representa um “dom”, conclui
Derrida a partir do pressuposto fornecido por Benveniste ao afirmar que “tomar” e “dar”

2
Etimologicamente, o referido termo deriva dos gregos oura (cauda) ou oros (limite ou meta) e boros
(voracidade ou boca), significando tanto “o que devora a própria cauda” quanto “aquilo que se define por sua
própria função, sugerindo, em contrapartida, a vida e a morte pela serpente. Ele é usualmente representado
como uma serpente ou dragão mordendo a cauda”. Cf. LAMBSPRINCK, A. Tratado da pedra filosofal de
Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. São Paulo: IBRASA, 1995, p. 160.

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constituem noções organicamente unidas por sua polaridade, sofrendo a suscetibilidade de


uma mesma expressão.
Derrida (1995, p. 103) compreende o texto como algo dado e publicado, de modo
que, desde que dedicado ao seu amigo (que se converte em leitor), ocorre uma
“disseminação sem retorno”, que constitui a condição do dom na escritura mesmo. Em vista
disso e da “tortuosa fantasia” de Baudelaire (1996, p. 25) por uma escrita adaptada aos
“movimentos líricos”, “ondulações das divagações” e “sobressaltos da consciência”,
comparados aos movimentos de uma serpente, a dedicatória, na medida em que carrega o
envenenamento que aprisiona o outro pelo dom, implica implicitamente uma cobra(nça)
que carrega em si os opostos (o veneno e a cura, o dar e o tomar, o bem e o mal, etc.).
Como afirma Derrida (1995), o dom e, por conseguinte, a dedicatória inscrevem-se em um
processo de circulação que permite pensar a arte como mercadoria.
Barbara Johnson (1982, p. 113), por sua vez, observa que se interpreta
constantemente o poema em prosa como uma anomalia, destacando que Y.G. Le Dante
afirma que o poema em prosa assume o aspecto de um “monstro híbrido”, de tal maneira
que o problema de gênero se apresenta como um problema de genealogia. Jules Lemaitre,
como observa Walter Benjamin (1989, p. 92), afirma ainda em 1895 que “o
especificamente baudelairiano consiste em unir sempre dois modos opostos de reação (...)
uma passada e uma presente”. Portanto, conceber o poema em prosa como percepção de
uma modernidade e de uma crise leva, a partir da dedicatória, ao ocultismo do qual emerge
o oroboro que, não raro, é representado como um monstro híbrido proveniente da união de
opostos inscrita numa circularidade que passa a representar o movimento da mercadoria.
Ao postular a prosa como o verso ou vice-versa por meio de uma equação que
equipara a cabeça e a cauda de uma serpente, uma vez que “tudo nele é ao mesmo tempo pé
e cabeça”, como afirma sobre os seus poemas em prosa, Baudelaire recorre a uma relação
de analogia, considerada a linguagem do ocultismo. Hermes Trismegistos (19--, p 126)
afirma que “O que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o
que está em baixo para cumprir o milagre da Unidade”. O mesmo documento, cujos
escritos, que datam de uma idade indeterminada, chegaram ao mundo ocidental por meio
do grego e do latim supostamente entre 100 e 300 a.C., estipula que “ao mesmo tempo, as
coisas foram e vieram do Um”, sendo que “o sol é o pai, a lua, a mãe”.

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O seu ensinamento consiste justamente na analogia dos contrários. A respeito da lei


geral da analogia definida por Hermes Trismegistos, Papus (1997, p. 31) insiste na
distinção entre analogia e similaridade: “Assim diz Trismegistos: ‘O que está em cima é
como o que está embaixo’. E não diz: “O que está em cima é o que está embaixo’”.

A serpente inteira

A figura da serpente remonta a um cilindro datado presumivelmente de meados do


III milênio a.C., que “mostra um homem e uma mulher diante de uma árvore. Atrás da
mulher, uma serpente em atitude provocadora” (Campos, 1994, p. 34). Os personagens
desse cilindro, proveniente da Suméria, antecedem, portanto, os bíblicos. Jorge Luis Borges
(1974, p. 118) observa que, segundo um texto hebraico, “antes de Eva foi Lilit”. Lilit era a
serpente e a primeira esposa de Adão que, para se vingar da mulher humana posteriormente
criada por Deus, instou-a a provar o fruto proibido. A despeito da forma primitiva do mito,
Lilit, ao longo da Idade Média, deixou de ser uma serpente para se tornar um espírito
noturno que às vezes é um anjo e, outras, um demônio.
O mito da queda do homem, mencionado acima, descreve o pecado original que,
segundo Francis Barret (1994, p. 41-44), representa “o desvio do caminho correto que
figura agora entre outros pecados de impureza (...) O conhecimento do bem e do mal que
Deus colocou na maçã proibida continha em si uma virtude embrionária da concupiscência
carnal”. Com a “corrupção da Natureza”, proveniente daquela virtude “diametralmente
oposta ao estado de inocência”, os olhos de Adão e de Eva “se abriram (...) e isto lhes
trouxe uma natureza degenerada” e, no entanto, “a maldição recaiu unicamente sobre a
serpente”.
Helena Blavatsky (1978, p. 82) observa que a serpente simboliza a renovação
consecutiva da imortalidade e do tempo, recorrentemente associada com a Árvore da Vida:
“Somente na Idade Média é que a serpente se converteu em signo do mal e do demônio”,
considerando-se que primitivamente tinha-se “o Logos dual, a boa e a má serpente”. O fato
é que a serpente desempenha um papel fundamental em diversas culturas ao redor do
mundo, tanto que “o movimento espiral, como o da serpente mordendo o rabo, é a própria
configuração do Universo”, assim como “o símbolo da comunhão é a circunferência”

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(Saboya, 1996, p. 47-48), pois remete à idéia de movimento contínuo e cíclico. A serpente,
que oculta em si a dicotomia do universo, constitui uma figura constante para a magia, a
alquimia e o ocultismo em geral.
Em um tratado proveniente da tradução de um antigo manuscrito que consiste em
alegorias em versos, o oroboro se caracteriza pela propriedade de agregar em um mesmo
elemento, ao mesmo tempo, o veneno e o medicamento, como ilustram as estrofes que se
seguem aos seguintes versos: “De seu veneno se faz a medicina / Pois ele volta contra si
todo o veneno” (Lambsprinck, 1995, p. 157-158):

Ele devora sua cauda venenosa,


E realiza em si mesmo a perfeição.
O mais nobre bálsamo mana do dragão,
Cujas virtudes se supõe admiráveis
E com elas se alegram bem os sábios.

É maravilha grande, e grande arte,


Fazer-se do dragão a suprema medicina.
O mercúrio convenientemente preparado,
Alquimicamente precipitado e sublimado
Se dissolve em água e coagula.

Ao refletir acerca dos seres e deixar seu pensamento planar nas alturas enquanto
seus sentidos corporais permanecem como que atados, Hermes Trismegistos (19--, p. 11-
12) dialoga com Poimandres e, ao descrever o evento, menciona a serpente. Poimandres o
interroga: “Que desejas ouvir e ver?”

“Mas tu, quem és?” – “Eu”, disse ele, “eu sou Poimandres, o Nous da
Soberania absoluta.” (...) E eu disse: “Quero ser instruído sobre os seres,
compreender sua natureza, conhecer Deus. Oh! Como desejo entender!”
(...) Subitamente, tudo se abriu diante de mim em um momento, e vi uma
visão sem limites (...) E pouco depois surgiu uma obscuridade dirigindo-
se para baixo, sendo por sua vez, assustadora e sombria, rolando-se em
espirais tortuosas, semelhante a uma serpente, segundo me pareceu.
Depois esta obscuridade transformou-se numa espécie de natureza úmida
(...) Depois um Verbo santo veio cobrir a Natureza (...) e o ar, sendo leve,
seguia seu sopro ígneo elevando-se até ao fogo; a partir da terra e da água,
de forma a parecer preso ao fogo; pela terra e pela água, permaneciam no
lugar estreitamente conjuntos (...) estavam continuamente em movimento
sob a ação do sopro do Verbo que colocara-se sobre elas (...) Então disse
Poimandres: “Compreendeste o que a visão significa?” E eu: “Eu o

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saberei”. – “Esta luz” disse ele “sou eu, Nous, teu Deus, aquele que existe
antes da natureza úmida que apareceu fora da obscuridade. Quanto ao
Verbo (...) é o filho de Deus”. “Quem então?”, disse eu. – “Conheça o que
quero dizer por esse meio: o que em ti vê e ouve, é o Verbo do Senhor, e
teu Nous é o Deus Pai; não são separados um do outro, pois esta união é
que é a vida.” (...) “Viste no Nous a forma arquetípica, o pré-princípio
anterior ao começo sem fim.” Assim me falou Poimandres. – “Ora, disse
eu, de onde surgiram os elementos da natureza?” – Respondeu: “Da
vontade de Deus, que, tendo nela recebido o Verbo e tendo visto o belo
mundo arquetípico, o imitou feita como foi em um mundo ordenado,
segundo seus próprios elementos e seus próprios produtos, as almas.”3

Jorge Luis Borges afirma que, para os gregos, o Oceano era um rio circular que
rodeava a terra, de forma que “todas as águas fluíam dele e não tinha nem desembocadura
nem nascentes”, recordando que “Heráclito dissera que na circunferência o princípio e o
fim são um só ponto”. Borges constata que a imagem que melhor ilustra esta infinidade
constitui a “serpente que morde a própria cauda”, posteriormente usado prodigamente pelos
alquimistas, e cuja aparição mais famosa decorre da cosmogonia escandinava, na qual a
serpente foi atirada ao mar que rodeia a terra, de modo que “no mar cresceu de tal maneira
que agora também rodeia a terra e morde a própria cauda”.4
Fredric Jameson (2005, p. 32) concebe o poema em prosa como perspectiva de uma
modernidade relacionada à valorização da prosa. Jameson sugere que a noção do “novo”
enquanto valor surge a partir da dicotomia entre o moderno e o antigo, quando o moderno
se sobrepõe. Baudelaire, como recorda Jameson, apreende a arte como uma composição de
duas metades: uma contingente, outra eterna. Com efeito, a concepção baudelairiana do
belo como síntese de contrários que formam parte da condição dos homens, como coloca
Torremocha (1999, p. 87), relaciona-se com as noções de eterno e efêmero da arte que, em
última análise, representam o mesmo que as categorias de fixo e volátil para a Alquimia.
Segundo Walter Benjamin (1994, p. 108-109), a semelhança é fundamental para
compreender o saber oculto. Benjamin conclui que “o círculo existencial regido pela lei da
semelhança era outrora muito mais vasto. Era o domínio do micro e do macrocosmos”, de
forma que “o universo do homem moderno parece conter aquelas correspondências
mágicas em muito menor quantidade”. Nesse sentido, George Frazer (1969, p. 34) descreve

3
TRISMEGISTOS, [19--], p. 11-12.
4
BORGES; GUERRERO, 1974, p. 168-169.

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os princípios do pensamento da lei de semelhança sobre o qual se fundamenta a magia, que


segue o princípio de que o semelhante produz o semelhante ou os efeitos se assemelham a
suas causas. Segundo Frazer, o defeito fatal da magia consiste na concepção da natureza
das leis particulares que a regem: associação de idéias por semelhança e contigüidade no
espaço e no tempo.
Benjamin (1994, p. 111-113) afirma que a linguagem nos aproxima de uma
compreensão do conceito de semelhança, sobretudo no que concerne a relações
estabelecidas entre a imagem escrita de palavras ou letras com o significado por meio da
semelhança, assim como “entre o falado e o intencionado”, “entre o escrito e o
intencionado”, e “entre o falado e o escrito”. Benjamin entende que “a escrita transformou-
se assim, ao lado da linguagem oral, num arquivo de semelhanças”, o que denomina
“dimensão mágica” da linguagem. A propósito, aquilo a que Benjamin se refere como o
“contexto significativo contido nos sons da frase” que constitui “o fundo da qual emerge o
semelhante”, parece ser o que encanta Mallarmé em “Crise do verso”, como
aprofundaremos adiante. Nesse sentido, Benjamin postula um duplo sentido da palavra
“leitura”: a profana, relacionada com a significação, e a mágica, aos acasos. Ao supor que a
representação migrou para a linguagem, produzindo um arquivo completo de semelhanças,
Benjamin compreende que a linguagem constitui o meio dela mesma, tornando-se auto-
referencial.
No que concerne aos processos da Cabala e seu respectivo interesse pela
materialidade da linguagem herdada pelo ocultismo, o que ilustra, inclusive, a tese de
Benjamin, Helena Blavatsky (1978, p. 314) constata, a respeito do significado das letras e
dos algarismos, que a forma de cada signo apresenta um sentido completo e uma dupla
interpretação segundo a doutrina dual, a despeito do significado da palavra, associando o
exposto ao conceito de alegoria. Cada denominação tinha seu fundamento e, por
conseguinte, sua representação por caracteres. A Cabala se interessa pelo simbolismo das
letras do alfabeto, consideradas como elementos criadores, de modo que a alegoria significa
que cada representação implica uma infinidade de significações, beirando a arbitrariedade.
A concepção do Logos condiz com a palavra, o que remete a uma chave do ocultismo do
Evangelho segundo João, que trata da encarnação do Verbo ao propor que “No princípio

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era o Verbo”. Portanto, a palavra antecede a coisa, afinal, “para o mago, falar é criar”,
como afirma Lévi (1997b, p. 109).
Lévi (1997b, p. 120-129) afirma que “o mago só admite como certo, no domínio das
idéias, o que é demonstrado pela realização da palavra” que constitui “o verbo
propriamente dito”: “um pensamento se realiza tornando-se palavra; esta se realiza pelos
sinais, sons e figuras dos sinais: este é o primeiro grau de realização. Depois, ela se
imprime na luz astral por meio dos sinais da escrita ou da palavra”. Assim, o verbo se faz
carne. Contudo, Lévi explica que “denomina-se verbo aquilo que exprime, ao mesmo
tempo, o ente e a ação”, de modo que “a filosofia do Verbo é essencialmente a filosofia da
ação e dos fatos realizados”, como escreve Levi, diferindo a palavra, que pode ser vazia, do
Verbo, que é a palavra cheia e fecunda.
A respeito dos alquimistas e de sua necessidade de uma “linguagem ininteligível”,
Lévi (1997b, p. 63) afirma que aqueles “ressuscitaram a escrita hieroglífica e inventaram
caracteres que resumem uma doutrina inteira num sinal, uma série inteira de tendências e
revelações, numa palavra.” Desta forma, “os livros eram escritos para lembrar a tradição, e
escreviam-se em símbolos ininteligíveis para os profanos.” Esse processo resulta no que P.
V. Piobb (1982, p. 98-99) denomina “esoterismo gráfico”, que consiste em uma
apresentação de letras e desenhos de tal maneira que sejam compreendidas apenas por
aqueles que conhecem o valor indicativo dos sinais gráficos, acrescentando que o objeto
figurado se baseia em uma convenção.
Para Lévi (1997b, p. 64), a Cabala representa a união necessária das idéias e dos
sinais, considerando seus elementos os princípios elementares do Verbo escrito, reflexo do
Verbo falado que criou o mundo. A Cabala consagra a aliança da razão (Nous) e do Verbo,
estabelecendo, pelo contrapeso das duas forças aparentemente opostas, a balança eterna do
ente, tal como a alegoria de Poimandres narrada por Hermes Trismegistos. Lévi (1997b, p.
77-78), compreende que

o verbo ou a palavra é o véu do ente e o sinal característico da vida. (...)


Toda figura é um caráter, todo caráter pertence e volta a um verbo. É por
isso que os antigos (...) formularam o seu dogma nestes termos: ‘O que

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está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o
que está em cima.5

Portanto, “a forma é proporcional à idéia”, assim como “a negação é proporcional à


afirmação, a produção, à destruição, no movimento que conserva a vida, e não há um ponto
no espaço infinito que não seja centro de um círculo cuja circunferência se engrandece e se
estende indefinidamente no espaço”.
Lévi (1997b, p. 82-87), escreve que “o conhecimento supõe o binário”, o qual,
como a chave de Hermes Trismegistos, serve de “medida à unidade, e à relação de
igualdade entre o alto e o baixo”. Em outras palavras, “o princípio ativo procura o princípio
passivo”, ou seja, “a goela da serpente atrai a sua cauda, e, girando sobre si mesma, ela foge
de si e persegue a si mesma”. Dessa forma, “todo o verbo é duplo ou supõe dois”, ou ainda,
“o espírito e a forma se atraem e se repelem como a idéia e o sinal”, mas entre as
polaridades do antagonismo, cuja tensão gera o movimento e a vida, encontra-se o agente
universal “que os antigos representavam sob a figura da serpente que morde a sua cauda”.
Portanto, “o verbo perfeito é o ternário”, pois supõe “um princípio que fala e um princípio
que é falado”. O “absoluto” se revela pela palavra, dando a esta palavra um sentido igual a
si mesmo, pois “o princípio infinito, ao criar, fala de si mesmo a si mesmo”. Na analogia, o
verbo figura entre os opostos com o papel de Intermediário mesmo na configuração da
escrita, de modo que “duas coisas que se assemelham e o verbo que exprime a sua
semelhança, fazem três”, como calcula Lévi (1997b, p. 90-92), a Unidade:

Os primeiros sábios que procuravam a causa das causas viram o bem e o


mal no mundo; observaram a sombra e a luz; compararam o inverno à
primavera, a velhice à juventude, a vida à morte, e disseram: – A causa
primeira é benfeitora e rigorosa, ela vivifica e destrói. – Há, pois, dois
princípios contrários, um bom e um mau? – gritaram os discípulos de
Manes. – Não, os dois princípios do equilíbrio universal não são
contrários, se bem que, em aparência, sejam opostos: porque é uma
sabedoria única que opõe um ao outro.

Ora, Roland Barthes (1971, p. 90-92), cuja noção de neutro parte do dois, que
remete, por sua vez, ao duplo, como que revelando uma matriz ocultista, emprega a

5
Ibid., p. 77-78.

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imagem de mágico para se referir ao poeta que melhor descreve a auto-referencialidade que
sucede Baudelaire – Mallarmé – cuja poesia “postula um silêncio” ao mesmo tempo em que
exprime o momento em que “a linguagem literária só se mantém para melhor cantar sua
necessidade de morrer”. Para Barthes, o mágico representa o agente do “esforço de
libertação da linguagem literária” capaz de “criar uma escritura branca, liberta de qualquer
servidão a uma ordem fixada da linguagem”, de forma que, no deserto das palavras, pensa
atingir um objeto absolutamente privado de História. E é neste sentido que Mallarmé – esse
mago de uma linguagem hermética – exprime o “momento frágil da História, em que a
linguagem literária só se mantém para melhor cantar sua necessidade de morrer”, criando
uma zona de vácuo na qual a fala social – reivindicada pelas Belas-Letras – felizmente não
ressoa mais.
Quando diz “une fleur”, metonimizando “l’absente de tous bouquets”, Mallarmé
(1945, p. 368) postula que a palavra constitui a “inexistência manifesta do que ela designa”
(Foucault, 2001, p. 239-240), desnaturalizando a relação entre a palavra e a coisa e
interrogando o poder sobrenatural da palavra: “Mallarmé n’a-t-il pas fait son thème de ce
pouvoir idealisateur du mot qui fait paraitre et disparaître l’existence de la chose par la
simple déclaration de son nom?”– questiona Derrida (1974, p. 372), recuperando a mesma
metáfora do mágico ou metafísico: “Production et anéatissement de la chose par le nom; e
d’abord création, par le vers ou le jeu de la rime, du nom lui-même” – conclui. Mallarmé
decide pela indecidibilidade, da mesma forma que Baudelaire com a concepção do poema
em prosa.

O pé

Ao modo de operar da desconstrução derridiana, que desmonta os pares opostos,


mostrando outro modo desses pares se relacionarem, a serpente, ao tornar indiferente pé e
cabeça, afirma o indecidível, mesmo o da (im)possibilidade de os opostos configurarem
uma unidade. Barbara Johnson (1982, p. 112) postula que o poema em prosa questiona todo
o sistema de classificação, suspendendo a contradição entre poesia e prosa: “o poema em
prosa marca, com efeito, um momento de crise em que a problematização de uma diferença
se torna discurso sobre a diferença”. A autora (1982, p. 118) escreve: “nem antítese, nem

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síntese, o poema em prosa é o lugar a partir do qual a polaridade – e, portanto, a simetria –


entre presença e ausência, entre prosa e poesia, disfunciona” (Johnson, 1982, p. 118).
Johnson (1982, p. 132-133) conclui que o poema em prosa não implica apenas a subversão
da oposição binária “prosa ou poesia” por uma indeterminação “poesia e prosa”, de modo
que com a cabeça e, ao mesmo tempo, o pé da serpente de Baudelaire, questiona-se a
possibilidade da unidade de cada segmento.
Como afirma Derrida (1981), o pharmakon ou, se quiser, a escrita, pode apenas
girar em círculos e, sendo ambivalente porque constitui o meio no qual as oposições são
opostas, faz um lado atravessar ao outro. Nesse sentido, o pharmakon ou, se quiser, a
escrita é (a produção da) diferença: é a differance da difference. Derrida questiona se a
dedicatória dos pequenos poemas em prosa de Baudelaire faz parte da narrativa, concluindo
que decorre de um lugar que não é interno à ficção, nem externo: faz-se agitando a figura
da serpente – e o livro em questão é uma serpente – uma serpente fragmentada que
Baudelaire afirma dedicar inteira ao amigo, escreve o autor.
Segundo Terry Eagleton (1997, p. 183), a desconstrução compreendeu que o
estruturalismo e a ideologia traçam fronteiras “entre o eu e o não-eu”, postulando que
“talvez o que está fora também esteja, de alguma forma, dentro”, como se refere ao modo
de operar da descontrução. Lido pelo prisma da descontrução, o oroboro representa a
circularidade que anula a dicotomia entre o início e o fim, entre o dentro e o fora, entre o eu
e o não-eu, e que, estendida entre o poema e a prosa, simboliza o próprio poema em prosa.
A escritura que remete a si mesma e, ao mesmo tempo, a uma representação,
configura o texto como um organismo que remete a si mesmo, desmontando a realidade ou
a referencialidade por meio de um jogo de linguagem, que representa tudo o que podemos
encontrar de uma forma ou outra no ocultismo que se oculta na alegoria do oroboro de
Baudelaire. Nesse sentido, a escritura se apresenta como algo que funciona numa forma
oculta, aberta ao empirismo e ao acaso e governada pelos caminhos da magia, como sugere
Derrida (1981), de modo que a mesma suspeita envolve o livro e o medicamento que
constitui, ao mesmo tempo, o veneno. A magia da escritura simula como vivo o morto, ao
passo que a tinta configura uma imagem ausente, processo que representa uma experiência
da modernidade, qual seja, eternizar um momento que se esvai, sintetizada pela noção de
arte de Baudelaire, que abarca o eterno e o efêmero, o fixo e o volátil. Dissolve e coagula:

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operações alquímicas correspondentes à capacidade do poema em prosa de se deformar,


sobretudo enquanto forma que responde a uma crise, enquanto forma, portanto, de
composição e dissolução.

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